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Crianças à prova da escola: impasses da hereditariedade e a nova pedagogia em Portugal da fronteira entre os séculos XIX e XX

Resumos

Este trabalho pretende discorrer sobre o debate pedagógico em Portugal do final do século XIX e do início do século XX. As fontes documentais utilizadas foram revistas especializadas em educação, dirigidas quer aos pais, quer aos professores. Tais periódicos, que continham artigos de renomados intelectuais e "pedagogistas" da época, tinham por objeto debater as grandes questões colocadas internacionalmente no campo educacional. Falava-se muito, na altura, da Nova Pedagogia, da Educação Nova, corrente que pretendia trazer para o campo educativo as contribuições do desenvolvimento da ciência e das recentes práticas de investigação já em vigor nos países tidos como mais adiantados, mais civilizados. Um dos temas que mereceram muito destaque entre os especialistas da época era aquele que conferia à educação a missão de combater, quer os impasses do meio, quer as limitações provenientes da hereditariedade. Contra os determinismos biológicos e sociais, cabia, portanto, à Pedagogia lutar. Sendo assim, o ato educativo era percebido, em larga medida, como uma aposta social, que seria empreendida por uma instituição específica, especializada e necessariamente renovada. A escola, já tida por "tradicional", não dava conta dos impasses com os quais os novos educadores se defrontariam. Cabia, então, alterar radicalmente velhas concepções de método e de conteúdo.

educação; infância; determinismo


This paper, as the just title indicates, intends to discuss about Portuguese pedagogical contest at the end of the XIXth century and at the beginning of the XXth century. The used documentary sources were magazines specialized in education, directed whether to the parents, or to the teachers. Such periodicals, that were including articles from reputed intellectuals and "pedagogists" of the epoch, had the objective to discuss the great questions internationally set within the educational area. They were talking a lot, during the New Pedagogy epoch, about the New Education, a tendency that was intending to bring the science development contributions to the educative area, and about the recent investigation practices, already in force in the countries considered as more advanced, more civilized. One of the themes that deserved a great notability within the specialists in that time, was the one that would give to the education the mission to fight, wether the social obstacles, or the limitations coming from the hereditariness. Against the biological and social determinisms, it was the role of the pedagogy to fight them. In such case, the educative act was seen as a social bet, that would be performed by a specific, specialized and necessarily renewed institution. The school, already considered as "tradicional", was not up to the obstacles with which the new educators had to face. Then, it was necessary to modify the old method and content conceptions.

education; childwood; determinism


Crianças à prova da escola: impasses da hereditariedade e a nova pedagogia em Portugal da fronteira entre os séculos XIX e XX

Carlota Boto1 1 Este texto é parte da tese de doutoramento intitulada Ler, escrever, contar e se comportar: a escola primária como rito da sociedade portuguesa do século XIX (1820-1910).

Universidade Mackenzie

Universidade Estadual Paulista – UNESP

RESUMO

Este trabalho pretende discorrer sobre o debate pedagógico em Portugal do final do século XIX e do início do século XX. As fontes documentais utilizadas foram revistas especializadas em educação, dirigidas quer aos pais, quer aos professores. Tais periódicos, que continham artigos de renomados intelectuais e "pedagogistas" da época, tinham por objeto debater as grandes questões colocadas internacionalmente no campo educacional. Falava-se muito, na altura, da Nova Pedagogia, da Educação Nova, corrente que pretendia trazer para o campo educativo as contribuições do desenvolvimento da ciência e das recentes práticas de investigação já em vigor nos países tidos como mais adiantados, mais civilizados. Um dos temas que mereceram muito destaque entre os especialistas da época era aquele que conferia à educação a missão de combater, quer os impasses do meio, quer as limitações provenientes da hereditariedade. Contra os determinismos biológicos e sociais, cabia, portanto, à Pedagogia lutar. Sendo assim, o ato educativo era percebido, em larga medida, como uma aposta social, que seria empreendida por uma instituição específica, especializada e necessariamente renovada. A escola, já tida por "tradicional", não dava conta dos impasses com os quais os novos educadores se defrontariam. Cabia, então, alterar radicalmente velhas concepções de método e de conteúdo.

Palavras-chave: educação, infância, determinismo.

ABSTRACT

This paper, as the just title indicates, intends to discuss about Portuguese pedagogical contest at the end of the XIXth century and at the beginning of the XXth century. The used documentary sources were magazines specialized in education, directed whether to the parents, or to the teachers. Such periodicals, that were including articles from reputed intellectuals and "pedagogists" of the epoch, had the objective to discuss the great questions internationally set within the educational area. They were talking a lot, during the New Pedagogy epoch, about the New Education, a tendency that was intending to bring the science development contributions to the educative area, and about the recent investigation practices, already in force in the countries considered as more advanced, more civilized. One of the themes that deserved a great notability within the specialists in that time, was the one that would give to the education the mission to fight, wether the social obstacles, or the limitations coming from the hereditariness. Against the biological and social determinisms, it was the role of the pedagogy to fight them. In such case, the educative act was seen as a social bet, that would be performed by a specific, specialized and necessarily renewed institution. The school, already considered as "tradicional", was not up to the obstacles with which the new educators had to face. Then, it was necessary to modify the old method and content conceptions.

Keywords: education, childwood, determinism.

A MODERNA GRAMÁTICA DA ESCOLARIZAÇÃO

Pensar na infância nas sociedades ocidentais modernas é, inequivocamente, refletir sobre a(s) criança(s) na(s) escola(s), a(s) criança(s) na(s) família(s) e a ação educativa desenvolvida por tais instituições. O mundo moderno tende a tornar mais coletivo o processo de formação das gerações mais novas, que no mundo medieval se pautava fundamentalmente pelas relações homem a homem, como é o caso da cavalaria ou de um mestre para com seu discípulo, se tomarmos a prática da aprendizagem de ofícios de acordo com os modelos das corporações. Podemos dizer que o mundo moderno conduz a escola como uma instituição autônoma e coletiva (no sentido de um mestre que ensina muitos alunos), pautada por regras bastante específicas quanto à organização do tempo e à delimitação de espaços individuais e sociais, representando, no parecer de Julia Varela, "a instituição que ocupa o tempo e pretende imobilizar no espaço todas as crianças"

a definição de um estatuto específico, que possibilitasse tornar a infância uma categoria social a ser pensada pela coletividade;

a emergência de um espaço específico destinado à prática educativa;

o aparecimento de um corpo de especialistas efetivamente munidos por cabedal teórico capaz de legitimar sua ação sobre "os filhos dos outros";

a destruição de outros modos de formação dos jovens, que, inclusive antecedem esse estilo moderno da escola ;

a imposição da obrigatoriedade escolar, como uma demonstração efetiva da supremacia na responsabilidade educativa da coletividade social sobre as famílias.

A formação de hábitos e de condutas seria, sob tal enfoque, objetivo explícito da ação institucional. A própria acepção de modernidade trará como seu desdobramento a especificidade da instituição escolar, tendendo cada vez mais a escapar do monopólio que a Igreja perseguia no domínio educativo, além da intensificação da cultura do escrito, que, por sua vez, herdará a prática religiosa de um ler/escrever pautados na Bíblia, para ingressar, cada vez mais, numa lógica inovadora, uma cultura urbana, cujo alicerce é, antes, um escrever/contar. Em certa medida, podemos dizer que o caminho da escola construída pela modernidade perpassa, de alguma maneira, a opção que teria sido efetuada por essa mesma modernidade em direção à educação das crianças e da juventude. O mundo moderno é, pois – para retomar aqui a interpretação de Hébrard – aquele que, sem romper completamente com a tradição clerical, dá pleno desenvolvimento à ordem mercantil em expansão:

Quer ela esteja ligada à ampliação da base de recrutamento dos clérigos e dos profissionais que utilizam o poder real ou os poderes locais, quer ela esteja ligada às exigências culturais de uma parte cada vez mais numerosa das elites urbanas que a difusão da imprensa atrai para as práticas da escrita, quer ela seja enfim uma conseqüência direta da extensão das idéias humanistas e reformadas, a demanda de escolarização que se manifesta desde o século XV nas cidades importantes transforma radicalmente os procedimentos antigos de formação. (...) Trata-se antes de oferecer às crianças que pertencem aos meios diversificados das pequenas e médias e grandes burguesias urbanas os primeiros elementos dos saberes desejados por suas famílias, mas que a maioria delas não lhes saberia transmitir.

No parecer de recente historiografia da educação, a escola moderna vem como corolário da primeira grande idéia de Europa, e esta será encontrada com Carlos Magno, cujo império teria fortalecido critérios ocidentais de racionalidade e linguagem, os quais, por sua vez, teriam já antecedentes nos tempos do Império Romano. Contudo, quem universaliza, naturaliza e adota o imperialismo dessa acepção de formação européia será o mundo moderno. A Modernidade, aliás, poderia ser inclusive caracterizada também como uma revolução pedagógica, que, com variantes e inflexões, de alguma maneira, chega até nós. Os colégios, que na Idade Média representavam apenas o alojamento dos estudantes universitários estrangeiros, adquirem um inaudito significado no Mundo Moderno, praticamente como substitutos (ou concorrentes, num primeiro momento) das antigas Faculdades de Artes, as quais, como se sabe, compunham o primeiro ciclo dos estudos superiores, trabalhando fundamentalmente as matérias do Trivium (gramática, retórica e dialética). Sob a égide de novas orientações, tais colégios criados pela modernidade – imbuídos do espírito de controle das almas típico dos movimentos reformadores, protestantes e católico –, preocupam-se, sob a referência do grande modelo escolar jesuítico, fundamentalmente em conformar a disciplina, a vigilância e a organização do tempo e das atividades do aluno, visando, já à partida, tanto a objetivos morais quanto a propósitos relativos ao conhecimento e ao aprendizado propriamente dito. É assim que a preocupação quanto à especificidade da organização pedagógica acompanha o processo de escolarização da modernidade. De prática quotidiana, a Pedagogia procurará constituir-se, mais e mais, como a ciência legítima e autorizada da Educação. Como destaca o trabalho de Petitat:

Os colégios introduzem um novo tipo de atividades escolares baseadas na graduação dos programas, na separação em classes sucessivas, na avaliação regular dos conteúdos adquiridos, no emprego do tempo subdividido e controlado, etc.. ‘Até então, nunca havia sido uma preocupação a ordem pela qual é mais conveniente ensinar as letras’, diz Baduel. Esta ordenação do tempo alia-se a uma restrição e a uma subdivisão do espaço. É o fim dos locais de ensino dispersos e das grandes salas que serviam a muitas aulas simultâneas. Cada classe passa a ter seu professor, e cada série, sua sala de aula. O colégio deixa de ser somente uma instituição e passa a ser um prédio. Esta dupla repartição espaço-temporal fornece um ambiente adequado para o desenvolvimento dos métodos pedagógicos. A classe de alunos, ‘como sala e como grau’, torna-se o eixo central da atividade escolar e condiciona largamente a reflexão pedagógica: métodos de supervisão, medidas disciplinares, constatação das ausências e dos atrasos, ritmo e sucessão das atividades rotineiras, provas, treinos, exames escritos, classificação dos alunos, emulação e censuras, promoções e rebaixamentos, tudo ganha forma e significado na série de classes ordenadas e distintas de um estabelecimento.

Na seqüência, o autor recorda então que a classe, que classifica os alunos ao organizar seu espaço e seu tempo, ao estruturar-se por regulamentos muito específicos, muito escolares, auxilia a transformar as antigas temporalidades medievais. O tempo do colégio é um tempo novo que se insere na lógica do comércio, um tempo que deverá ser mensurável, calculado portanto pelo relógio; muito diferente, enfim, da temporalidade cíclica e cósmica que orienta o pensamento e as práticas da vida medieval. Nesse sentido, a tese de Petitat é a de que o colégio não apenas reproduz, mas contribui para produzir uma ordem nova, que é toda sua...

Teria havido, como sugere o trabalho de Ariès, uma privatização da vida, que vem progressivamente, desde o século XVII, a fazer com que as antigas solidariedades comunitárias fossem substituídas, pouco a pouco, pela organização mais fechada da família nuclear. Portanto, a mesma família que reconhece à infância uma identidade particular e mais nítida, que lhe altera os padrões de convívio e modifica seu lugar social, será aquela família que, na outra margem, retira essa criança da sociabilidade coletiva, da participação mais efetiva no espaço público, reduzindo-a a formas de representação que, por um lado, são mais ciosas em marcar a distinção de classe; por outro lado, recorrem ao espaço da classe ou da escola como um recurso alternativo de auxílio à responsabilidade de instrução e de moralização que se supunha então caber, até então, à família. A criança moderna é, nessa medida, a criança que deverá ser protegida do espaço público; poderíamos até dizer que o mundo da burguesia privatiza a infância pela distinção: aproximando, como remarca Ariès, sentimento de família, preservação de patrimônio e sentimento de classe; estabelecendo relação de causalidade entre a retração do espaço público e os progressos da intimidade. A criança bem-educada é a criança distinta.

Uma nova noção moral deveria distinguir a criança, ao menos, a criança escolar, e separá-la: a noção de criança bem-educada. Essa noção praticamente não existia no século XVI e formou-se no século XVII. Sabemos que se originou das visões reformadoras de uma elite de pensadores e moralistas que ocupavam funções eclesiásticas ou governamentais. A criança bem educada seria preservada das rudezas e da imoralidade, que se tornariam traços específicos das camadas populares e dos moleques

A nova escola moderna, sendo assim, resulta de uma nova relação do homem com o conhecimento e de um novo olhar com que a(s) sociedade(s) passará(ão), pelo menos desde o século XVII, a observar a infância enquanto categoria teórica e, mais especificamente, as suas próprias crianças. A modernidade educativa principia com os jesuítas, com as Escolas de Caridade de La Salle e com Port-Royal, com Comenius e com Rousseau, mas indubitavelmente tem também muito a ver com a Sociedade de Corte e com a irradiação das conquistas da tipografia. Poderíamos mesmo arriscar dizer que a escola moderna, em última instância, é a escola que concorre com o escrito impresso, que pretende dominar, controlar e talvez refrear a leitura, trazendo disciplina aos corações e moralização às mentes.

O século XVIII, caminhando por vestígios desse modelo escolar já rascunhado, irá propor que o Estado assuma aquela escola que então já estava esboçada, com o intuito de consolidar, pela educação escolar, a própria idéia de nação, de cidadania e de identidade nacional. Herdeiros do racionalismo cartesiano, os iluministas procuram trazer uma forma radicalmente original à instituição educativa que, na altura, passa a ter por missão criar o homem dos tempos contemporâneos: um homem diferente (se possível), laico e regenerado, o homem das democracias (ou pelo menos aquele que deveria enfrentar a idéia de democracia), um homem novo. Acreditando na perfectibilidade intrínseca ao gênero humano, acreditando de uma certa maneira na superioridade "natural" e inequívoca do presente sobre o passado e do futuro sobre o presente, os iluministas fundariam, em educação, a ilusão de um progresso contínuo, inexorável,

Caracterizado como o tempo da pedagogia, o século XIX expande a escola dos Estados europeus, mas, paradoxalmente, cria grandes oposições à forma escolar

A APOSTA NA EDUCAÇÃO PARA A FORMAÇÃO DE HÁBITOS

Estudar a história da infância supõe, nessa trilha, indagar sobre as representações das sociedades em diferentes momentos históricos sobre suas específicas crianças. Supõe indagar os modos e a intensidade mediante os quais a escolarização – como prática social – se apropriou de uma tarefa que até então era fundamentalmente reservada à família. Estudar a infância na modernidade ocidental requer, portanto inequivocamente, perscrutar o processo mediante o qual a família delegou uma parcela de sua responsabilidade educativa à escola. Mas, mais do que isso, compreender a educação da infância exige também que se procure reconstituir outros educadores e indicadores sociais: revistas, jornais, folhetos, almanaques, enfim, impressos que pretendiam educar os responsáveis pela educação –diga-se, pais e mestres –, colocando-se como porta-vozes autorizados da autoproclamada pedagogia científica. Este trabalho tem o objetivo de discorrer sobre esse processo educativo-editorial, que tem a infância como tema e como problema, nos últimos decênios do século XIX português.

Com o intuito de analisar, portanto, especificamente o caso de Portugal em finais do século XIX, cabe demarcar suas similitudes e suas distâncias com qualquer outro exemplo europeu, quer francês, quer alemão, quer inglês. Antes de mais nada, Portugal era um país profundamente católico. Ainda no final do século XVIII, o próprio imaginário desse catolicismo português resistia, em certa medida, às pretensões ilustradas. Sendo assim, os teóricos iluministas portugueses, mais próximos dos italianos e espanhóis do que dos franceses, abraçariam a idéia de um ensino que, controlado e gerido pelo Estado, deveria manter-se entretanto religioso. Contudo, cabe lembrar que o Marquês de Pombal já propusera um modelo público e centralizado de ensino para o caso português – o qual, sob tal perspectiva, seria também distinto do modelo inglês.

Veremos que, também em Portugal, o século XIX é o período que vê a Pedagogia se firmar como um ramo de saber dotado de competência científica e repertório específico. As conquistas da ciência não chegaram assim tão tarde a Península Ibérica, embora o atraso fosse sempre motivo de queixa entre os contemporâneos. Sabia-se, porém, que trazer cientificidade ao campo da educação era sobretudo conjugar a ação disciplinar da escola com sua tarefa civilizadora: despojar a criança daquilo que seria sua animalidade; torná-la polida e prudente; moralizar seu sentimento e sua percepção; e, com todos esses requisitos preenchidos, cultivar sua inteligência mediante a transmissão organizada de conteúdos culturais julgados relevantes. Educar era trazer ao indivíduo uma razão autônoma, uma ética autônoma; tudo isso supunha a erradicação de alguma crença, de algum costume, de alguma tradição. A educação escolar era, portanto, aculturação; mas urgia atentar para que o percurso educativo fosse percorrido pela boa tradição portuguesa, dado que a vontade emancipada seria aquela enraizada em solo pátrio, sem requerer para tanto referências exclusivamente estrangeiras. O início do século XX vê, então, continuarem os debates e a polêmica sobre a constituição de uma "verdadeira ciência da educação". Teóricos da pedagogia, políticos e jornalistas da época discutiam as novas correntes que então se defrontavam no cenário europeu acerca do temário educativo.

Existia em Portugal da fronteira entre o século XIX e o XX um conjunto significativo de revistas e de jornais voltados especificamente para a orientação da educação familiar8 8 Antonio NÓVOA foi quem, em sua tese de doutoramento [intitulada Le temps des professeurs: analyse socio-historique de le profession enseignante au Portugal (XIIIéme-XX éme Siècle). 2 vols. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987, chamou a atenção para o impacto que em Portugal as revistas pedagógicas teriam naquela altura. . Eram publicações periódicas, que saíam em fascículos semanais ou quinzenais, dirigidos ao tratamento de temas considerados modernos, interessantes e, de algum modo, úteis para leitura das famílias. Com o intuito de conferir à Pedagogia seu significado maior, tais revistas pretendiam orientar escolas e famílias, ou preparar para o ofício aqueles que seriam, por excelência, os educadores da Pátria: mestres e mães...

Escrevendo naqueles tempos que imediatamente antecediam à República portuguesa, entre os finais do século XIX e os primeiros dez anos do século XX, Ferreira-Deusdado indagava-se da legitimidade intelectual da Pedagogia em um mundo que parecia ser todo regulado por leis do campo da Biologia. Ora, como parece óbvio, a dinâmica pedagógica e a própria ação educativa em si só poderiam existir a partir da crença no potencial transformador impresso na capacidade humana de desenvolvimento intelectual, físico e moral. Considerava-se ser a possibilidade de sua transformação quem fazia do homem um ser educável. Essa mesma característica era também uma das distinções básicas que singularizam o gênero humano enquanto espécie produtora de cultura. Aceitar a hipótese segundo a qual tudo pode ser geneticamente determinado corresponderia a uma verdadeira renúncia a qualquer potencial transformador impresso no ato de educar. Acreditar na hereditariedade e portanto na raça, era além disso negar a igualdade intrínseca, matricial e inalienável, constitutiva do gênero humano. Apostar, quer no determinismo do ambiente, quer no determinismo da Biologia era – digamos assim – o grande impasse com que se debatiam no princípio deste século aqueles herdeiros da configuração positivista. Em sua grande maioria eles preferiam, a despeito das inúmeras e (tidas à época por) irrefutáveis evidências do campo da Fisiologia, apostar na Pedagogia. Acreditar no potencial transformador da natureza em cultura, acreditar na possibilidade de ser o próprio homem a regrar o campo de sua conduta ética, acreditar no acúmulo e na partilha do conhecimento historicamente acumulado: tudo isso era enfim apostar na educação... E, de alguma maneira, essa aposta social na educação traria consigo a correlata aposta na criança; e apostar na criança era, por sua vez, apostar também no futuro. Debatiam-se entre os educadores da época as correntes da Psicologia que então sustentavam a supremacia absoluta da determinação hereditária sobre a formação humana.

Certa escola de Psicologia sustenta que a educação é impotente para modificar os instintos morais que provêm da hereditariedade. Admitida absolutamente esta doutrina, levar-nos-ia a um fatalismo desesperador, à negação da eficácia educativa. Todos conhecem a ação que exerce a intimação, a ordem, a autoridade, a lei penal, o conselho, a simples afirmação, a ameaça, a sugestão ordinária e moderadamente a sugestão hipnótica, fenômenos psíquicos convertidos pela repetição do mesmo ato em hábito, que desempenha a função duma verdadeira hereditariedade, gerando novos sentimentos que modificam por sua vez profundamente o caráter.

Tornando, a seu modo, inteligível o fenômeno da educação, a Pedagogia estaria pautada por essa crença em que seria possível e necessário matizar o imperialismo da composição genética. Sem isso, não se supunha haver saída para o fatalismo da hereditariedade; e contra isso, tanto os progressos do campo da Psicologia quanto novas técnicas – como a da hipnose – eram vistos como recursos aliados. Ao recorrer aos autores nos quais se baseava, Ferreira-Deusdado comenta que Spencer, por reforçar excessivamente o peso das determinações do meio e as implicações da Biologia, entrava em contradição com sua própria teoria, julgando, já à partida, que pais de família imperfeitos trariam um limite orgânico à efetiva possibilidade de aperfeiçoamento do homem.

A crença e a aposta na educação como alternativa de fuga do determinismo ambiental traria como corolário o fato de que uma das principais finalidades da ação educativa deveria ser a diminuição no educando do peso e da interferência do instinto, o qual era, por sua vez, a mais plena evidência do domínio da animalidade. Ora, segundo Ferreira-Deusdado, para que a criança pudesse mesmo se afastar dos seus instintos, para que se propusesse, a partir disso, a ingressar na vida moral, seria imprescindível uma sistemática e regular formação do hábito, entendido este como a força adquirida que capacita e potencializa as aptidões do entendimento. Ora, por "revigorar a inteligência e robustecer a vontade", a prontidão para o hábito seria consentânea à formação do caráter, da disciplina, da perseverança e da determinação na criança. Estabelecendo paralelismo entre o fortalecimento da vontade e o desenvolvimento intelectual, o hábito teria por efeito a incorporação de rotinas que consistiam em atitudes regulares, as quais, muitas vezes repetidas, poderiam ser tomadas como se fossem ações espontâneas; automatizadas. Para fortalecer a consciência moral, a criança deveria ser formada pela conformidade da ação cotidiana com supostas regras de validade universal. Sendo a moralidade essa transmutação do dever em lei, Ferreira-Deusdado apresenta seu referencial teórico:

O devasso como o trabalhador, o criminoso como o filantropo, obedecem a certas regras constantes que não são no fundo senão a fórmula teórica das suas práticas. Este fato, singular na aparência, vem, segundo Herbart, de que a própria ação precede necessariamente a análise, a crítica da ação. A própria consciência moral não existe feita e pronta na alma da criança; mas desenvolve-se à medida que esta é chamada a obrar. Se pois quisermos exercer sobre as crianças uma influência moral, é preciso dirigir as suas ações antes de lhes ensinar máximas: é necessário, segundo Herbart, deixar-lhes o cuidado de formularem por si regras de proceder conforme aos hábitos virtuosos que lhes tivermos inculcado desde cedo (...) Mas para isso é preciso nós próprios querermos e obrarmos como verdadeiros legisladores, quer dizer, com uma perfeita uniformidade e uma perpétua constância. Assim a influência da educação juntar-se-á à da hereditariedade. Esta pode bastar para produzir o gênio; nunca porém bastará para produzir a verdadeira moralidade.

A idéia de fundamentar a ciência da educação como uma apropriação entrelaçada de preceitos derivados da psicologia, da lógica e da moral era já bastante acentuada desde o final do século XIX. As ciências da educação firmavam-se pela cientifização de um leque variado de empréstimos que os estudos da educação necessitavam fazer; mesclando referências e engendrando um recorte específico do conhecimento, que estaria exatamente na fronteira entre as incertezas da arte e a firmeza do saber científico. A Pedagogia era posta e rememorada em sua dimensão de cientificidade, como a grande fonte de compreensão de todos os problemas educativos postos pela humanidade de maneira geral. Para ser um bom pedagogo, contudo, havia de se tornar primeiramente um bom filósofo, um psicólogo capaz um sujeito ético por excelência e um crítico arguto da cultura. Recorde-se, a propósito disso, a definição que seria dada pela revista Educação Nacional de 26-11-1899:

A Pedagogia é a ciência da educação. É ela que dá as regras e os preceitos que temos de observar na arte de educar as crianças. Apresenta à crítica dos que a estudam os diversos sistemas educativos mais considerados pelos psicólogos e fixa as incertezas daqueles cuja missão é instruir a juventude. A Pedagogia é uma ciência filosófica, baseada sobre a psicologia, a lógica e moral. Efetivamente toda a boa Pedagogia deve ser fundada sobre a natureza da alma humana, deve facultar dados para o raciocínio, segundo regras lógicas e deve finalmente conceber um ideal de moralidade pelo qual forma a criança.

A HEREDITARIEDADE E O MEIO COMO OS GRANDES OBSTÁCULOS DA EDUCAÇÃO

A Revista de educação e ensino, na qual escrevia Ferreira-Deusdado, era, como se pode observar acima, um periódico que pretendia tratar com rigor e solidez as grandes questões da Pedagogia da época, destacando os autores mais renomados, apresentando teorias e técnicas e – o que é mais importante – dirigindo-se já aos especialistas da educação. Era, portanto, uma iniciativa destinada – se é que podemos dizer isso – à formação continuada de professores. Contudo, como vimos, naqueles anos de encruzilhada entre o século XIX e o XX, o repertório da imprensa especializada em educação não se reduzia a isso. Havia periódicos voltados para a multiplicação, para a divulgação e até mesmo para a vulgarização das questões educacionais. Se o público era outro, a organização e a proposta do conteúdo do impresso também deveria ser alterada.

Um dos mais populares no gênero de divulgação era a Encyclopedia das Famílias; revista illustrada de instrucção e recreio, que pretendia – como salientava nos próprios anúncios que fazia – "instruir, educar, recrear". Tratava-se na verdade de um almanaque que abarcava um contigente bastante vasto de assuntos, que iam – como eles mesmo frisavam – da agricultura ao teatro, passando por anatomia, mineralogia, botânica, química, "descobertas e invenções", literatura, meteorologia, geografia, geologia, mitologia, paleontologia, folclore, "Portugal pitoresco", "fatos científicos e industriais", cronologia, biografia, religião, moral, medicina, mecânica, música, engenharia, e – obviamente – educação...

No 24º ano de publicação, a Revista vinha com a seguinte propaganda na sua contracapa:

A Enciclopédia mais útil que se publica em Portugal ! Única no seu gênero que conseguiu atingir o 24º ano! O livro indispensável às famílias! A grande aceitação que a Enciclopedia das Famílias tem conseguido obter é única e exclusivamente devido ao fiel cumprimento do seu programa, que encerra as mais levantadas idéias, mas que se resume a instruir, educar, recrear: INSTRUIR – Referindo-se sob uma forma literária, simples e clara a todos os assuntos interessantes, de modo a torná-los compreensíveis a todas as inteligências, no propósito de facultar aos leitores uma grande generalidade de noções sobre todos os ramos da atividade do pensamento, próprias a fornecer a todas as classes sociais uma geral ilustração indispensável, informando do movimento artístico e industrial, descobertas científicas, questões comerciais e agrícolas, viagens exposições, etc.; EDUCAR – Divulgando o que de mais educativo e importante se encontre nas Ciências, nas Artes e nas Letras; RECREAR – Com romances, fantasias literárias, contos, poesias, gravuras, problemas, enigmas, etc.

Com certeza, os temas deveriam ser todos apresentados em linguagem acessível, de modo a que o leitor menos informado pudesse verdadeiramente tomar contato com as distintas áreas abordadas pelo periódico, cujo conjunto pretendia contemplar um leque razoável da cultura geral suposta necessária para as camadas populares e médias da população. Era – digamos assim – o rol dos conhecimentos autorizados. Pudemos constatar que, no mínimo entre 1897 e 1906, a revista teria na expressão "educação popular" o subtítulo, em letras destacadas no lado superior da primeira página. Naqueles anos também o verso da folha de rosto trazia a lista de matérias que virtualmente seriam objeto de reflexão pelo mesmo periódico, a qual, aliás, procuramos resumir acima. No nº 178 do ano de 1901, que era o 15º de publicação da revista, havia, como exemplo, um artigo intitulado Higiene da Primeira Infância, que procurava discorrer sobre o problema da mortalidade infantil e sua relação com a falta de higiene na primeira infância. Aconselhava-se às mães sobre o modo mais apropriado de alimentar seus filhos, sobre a importância para o organismo do bebê da aqui chamada "amamentação natural", e que consistia no aleitamento materno. Desejava-se visivelmente convencer as mães da relevância do processo de amamentar as crianças. Para tanto, procuravam-se fornecer as estatísticas comparadas – um recurso, diga-se de passagem extremamente utilizado à época – particularmente de países como a Noruega, que tivessem no aleitamento materno uma verdadeira regra e um hábito já cristalizado. Dizia o texto, sobre o tema, o seguinte:

Com efeito, compreende-se bem a impossibilidade de exigir de uma mulher mercenária, que abandonou o seu próprio filho para criar o dos outros, os carinhos, os desvelos, e os cuidados, que só um coração de mãe pode dispensar. Salvo honrosas exceções, essas mulheres subordinam tudo ao espírito mercantil, ocultando quanto possível as desordens do seu organismo, que muitas vezes só se apercebem depois de terem causado estragos importantes na saúde da criança. Mas as vantagens da amamentação pela mãe são ainda comprovadas pelas estatísticas, nos países que se dão ao trabalho de as fazer.

Podemos constatar naquele periódico, cujo subtítulo fora um dia "educação popular", a crença ilimitada nos poderes da ciência da educação, cuja prioridade no mesmo impresso se manifestava através de artigos dirigidos às mães; como este, intitulado Uma criança criada cientificamente:

Leonardo é um pequenito excepcionalmente saudável, formoso, robusto e alegre, que passou a idade perigosa da primeira infância sem ter uma única enfermidade, cresceu sem interrupção desde que nasceu, e excedeu constantemente em peso, força e inteligência o que se considera o termo médio das crianças. O pequeno Leonardo foi criado cientificamente em Nova York. Sua mãe começou por abster-se de todas essas manifestações de suposto carinho materno, tão comum em toda a parte, como o cantar para os seus filhos adormecerem, o beijá-los amiúde, o baloiçá-los nos braços, ou no berço, por ter observado que tudo isso se tornava prejudicial para os sensíveis nervos das crianças. Assim, pois, combinou também o vestuário higiênico com o ar puro e a alimentação apropriada.

Na seqüência, o texto explicita – à guisa de sugestão para outras mães – todos os cuidados que a mãe de Leonardo tivera quanto à alimentação, ao desmame, ao modo de ensinar a andar, etc., como se tudo isso estivesse sujeito a regras extremamente exatas que, se cumpridas todas corretamente, deixariam a certeza de um resultado saudável, robusto; enfim, pedagógico em sua acepção científica...

Contrariando entretanto as tendências científicas com que, cada vez mais, ia se revestindo a Pedagogia, a escola e sua rotina permaneciam presas de inúmeras carências e de um atraso que eram vistos como estando em completo desacordo com as supostas tendências do século. A escola primária portuguesa, como já pudemos observar anteriormente, resistia atada ainda ao seu antigo regime. Na freguesia de Rio de Moinhos, em 1909, as alunas de uma escola oficial chegavam a levar os banquinhos para poderem se sentar na classe, dado que, do contrário, permaneceriam em pé durante as aulas. Artigo de Carlos P. Da Costa, intitulado "Coisas nossas...", narra a precariedade daquela situação que seria, no parecer do redator, um exemplário da real condição da vida de grande parte das escolas portuguesas naquela altura. Diz sobre isso o referido artigo:

Se no princípio do ano letivo um estranho a esta freguesia aqui passar, pelas 9 horas da manhã, e encontrar algumas crianças com uma saca numa das mãos e na outra um banquinho tosco de madeira e lhe perguntar para onde vão com ele, não se admire de ouvir por resposta que vão para a escola oficial. Como lá não há bancos onde possam sentar mais de 12 alunas e a freqüência é muita, é costume cada aluna levar de casa o seu banco para se sentar, se não fica de pé. Assim, todas levam um banquinho, mais ou menos arranjado, ou uma cadeira, segundo os pais são mais ou menos abastados. Entra-se na escola e tem-se a impressão de se entrar, que digo eu ! num museu. É tal a variedade de bancos, uns pequeninos e ajeitadinhos, outros desconformes e mal feitos; uns baixinhos que parecem para bonecas, outros duma altura tal que o gigante português poderia utilizar-se deles comodamente, na sua hora de descanso, enfim, tal é a promiscuidade de modelos que mais parece uma exposição de assentos do que uma escola primária oficial. Se ao menos, cada aluna que a abandonasse lhe deixasse o seu banquinho, como penhor de gratidão, dentro em pouco tempo ela ficaria mobilada, mas qual! Quer levá-lo como recordação do tempo mais bem passado de sua infância. Guarda-o como se guarda um tesouro!

A Pedagogia aqui notoriamente se esquecera da dimensão da ciência, embora tal situação corresse contemporânea à daquela mãe que, relatada pela revista das famílias, teria educado cientificamente seu bebê a partir das orientações de Nova York. Eram, não resta dúvida, dois mundos que corriam paralelamente...

Tornavam-se cada vez mais fortes, em Portugal daquele princípio de século, os ideários da Educação Nova e do movimento que, à volta da Pedagogia Experimental, mundialmente ganharia corpo. Tratava-se inegavelmente da aplicação mais direta dos preceitos científicos e positivistas ao campo da educação. Os teóricos de então passam a considerar cada vez mais o tema da Pedagogia como uma atividade humana a ser renovada em seus próprios pressupostos; e isso – como imediato efeito de divulgação – começa a aparecer nas revistas e nos jornais especializados em assuntos educacionais: "A Pedagogia Nova, como se lhe chama em França, Bélgica e Itália, Pedagogia Experimental nos países onde se fala a língua alemã e Pedagogia Exata na Inglaterra e América do Norte é a última palavra na ciência do ensino e da educação."

Ocorre, contudo, que os pedagogos que se pretendiam renovadores não tinham sido, por sua vez, capazes de firmar modelos alternativos que conformassem um novo modo de ser escola, uma renovada maneira de interagir com a instituição educativa.... De acordo com o que se dizia à época, a humanidade caminhava em direção a um constante e sucessivo aprimoramento de experiências históricas. As experiências acumuladas viriam a ser transformadas incessantemente por seus seguidores. Ora, a educação necessitava, bem como todo e qualquer ramo do conhecimento científico, dessa busca interminável da correção e da precisão; dessa incessante busca do contínuo aperfeiçoamento, que os ruídos do tempo pareciam, eles mesmos, trazer... Havia de se oferecer também à educação a perspectiva científica, tão ausente das representações e práticas escolares até então em vigor. Supunha-se que a educação tradicional estivera absolutamente rendida a um modelo de ensino que desconhecia as teorias da aprendizagem e que, por essa razão, conferia toda prioridade à ação docente e não ao aprendizado do aluno, assemelhando indiscriminadamente o ato de instruir ao gesto de educar. A Pedagogia cientista daquele final de século supunha que, em seu caminho de vida, o homem pudesse refazer, por seu processo educativo, as etapas cognitivas pelas quais historicamente a humanidade teria passado... Passa-se, a partir disso, à defesa de um método de análise fundado na observação direta, em uma acepção de ciência indutiva, mediante a qual a observação e experimentação eram as palavras-chave para a composição da nova plataforma educativa. Acreditava-se ser, pois, urgente mudar a escola, perante critérios decalcados de uma visão científica de mundo, onde não poderia deixar de existir a prescrição de indicadores biopsico-sociológicos que cientificamente norteassem o percurso da Pedagogia. Quanto aos procedimentos sugeridos para a superação do anterior, ultrapassado, obsoleto e inócuo modelo educativo, o texto é categórico em acentuar a necessidade de aferir de maneira científica os dados das pesquisas educacionais, valendo-se de métodos quantitativos mais do que de idéias antigas:

A Pedagogia experimental habilita o mestre e o educador a saber que nem todas as crianças por igual formam, observam, assimilam e reproduzem, que nem todas têm o mesmo grau de inteligência e energia, que nem todas se cansam com trabalho de igual intensidade, quer físico, quer intelectual, habilita-os a determinar e distinguir cada individualidade para racionalmente poder instruir e educar, a fim de criar a personalidade.17 17 SILVA, Oliveira. "Pedagogia Experimental". In A Federação Escolar. nº 31, 14-8-1909.

A observação da criança em seu espaço de aprendizado e de sociabilidade seria um requisito básico a todo e qualquer educador. Prescreve-se acerca do tema que, com o intuito de acompanhar sistematicamente o seu desenvolvimento físico e intelectual, o educador desenvolvesse nas crianças algumas habilidades cognitivas primordiais: percepção, memória, abstração, pensamento, sentimento. Era necessário, também, traçar os tipos de personalidades que se singularizariam na configuração de uma disciplina escolar calcada na economia, na técnica, na ordem e na higiene. No tocante ao estudo, cada disciplina deveria ser pensada perante uma metodologia ativa, para a qual o estudante efetivamente se sentisse motivado e desafiado. Faltava vida àquela escola; a educação nova pretendia trazer esse novo sopro, reavivando com ele a própria crença na escolarização. Ocorre que aderir à Pedagogia Experimental supunha, em larga escala, passar a comungar cientificamente alguns pressupostos que contrariavam a perspectiva da universalidade do gênero humano, para centrar-se sobre uma visão particularista que transfere inadequadamente da ciência a noção de que caracteres provenientes dos antepassados podem ser biologicamente herdados, o que, de alguma maneira, se contrapõe à acepção de uma igualdade matricial entre todos os homens. Aqui delineia-se, sob nítido legado do universo mental cientificista, a defesa da herança dos antepassados como uma intransponível fonte de distinção humana.

Caracteres físicos, intelectuais e morais herdam-se e a alma não é tábua rasa que se pode moldar aos caprichos e desejos de cada um. E uma prova em defesa do fato da hereditariedade mostra que em todos os tempos têm existido famílias onde sucedem pessoas notáveis, sendo essa sucessão interrompida pela entrada dum novo indivíduo estranho de inferioridade mental e física e moral, o que vem a dar origem a um produto também relativamente inferior, caso no indivíduo, novo produto, tenham prevalecido as energias do indivíduo inferior.18 18 SILVA, Oliveira. "Pedagogia Experimental". In A Federação Escolar. nº 33, 28-8-1909.

A propósito, pode-se destacar nesse movimento da educação renovada uma explícita contraposição para com a teoria de Rousseau, tão reivindicada por seus arautos, basicamente em virtude do fato de O Emílio defender a igualdade matricial do gênero humano, enquanto a educação nova propunha compreender os caracteres adquiridos dos ascendentes como fonte privilegiada de distinção humana.

SOBREVIVÊNCIAS TRADICIONAIS COMUNITÁRIAS E A NOVA PEDAGOGIA CIENTÍFICA

Na medida em que se dizia tornar ciência, a Pedagogia passava a justificar teoricamente os mecanismos de seleção e de vitória de uma sociedade pautada por recortes nítidos quanto ao nascimento e por desigualdades que daí decorriam. Mais do que nunca, portanto, a idéia de hereditariedade ganhava terreno perante o crédito que então se depositava na educação. A partir dali caberia realmente questionar a suposição de que o movimento de Educação Nova exacerbara a crença no potencial de mudança intrínseco ao ato educativo. Até certo ponto, acreditar na hereditariedade é, pela via do determinismo biológico, desacreditar na capacidade de transformação humana. Por outro lado, havia ainda quem apontasse a referência da maximização dos talentos como a grande e talvez única tarefa da instrução. Parecia neste caso que ainda persistiam, mesmo longínquos, os ecos da crença iluminista, que tomara a escola por elemento corretivo da fidalguia sangüínea:

Amo a escola, as criancinhas, os pobres, os esfarrapados e, ou porque seja filho dum pobre e tenha como suprema glória viver com os pobres e no seio do povo, ou porque o meu espírito se não conforme com os entendidos sociais, eu desprezo os ricos que se envergonham dos pobres e estremeço os pobres que se honram pelo trabalho, que se nobilitam pelo sofrimento e se enaltecem pela educação e pela instrução. A pobreza na sua miséria é uma virtude credora do nosso mais profundo amor; honrá-la é honrar a humanidade no que esta tem de mais sublime. Isso a que a sociedade no seu mal entendido chama sangue azul não é senão o sarcasmo da ironia a nodoar a humanidade. Para mim não há senão uma nobreza, a do coração; senão uma fidalguia, a do espírito. E essa nobreza e essa fidalguia são os nobilíssimos pergaminhos que, em cintilações de luz, enaltecem o espírito de todos aqueles para quem a pátria não é uma quimera e, em torrentes de amor, aformosearam o coração de todos os que vêem nos filhos do povo os apóstolos das grandes evoluções sociais.

Ainda que viesse imbuída por um certo lirismo, uma dada ingenuidade que exaltava a pobreza com a mesma entonação que pretensamente a combatia, parecia haver em tal perspectiva a esperança de que deixassem de existir as determinações, não biológicas, mas ambientais. Havia, pois, uma luta de representações entre os que faziam da Pedagogia a refém do meio e da herança biológica e os que acreditavam no potencial de desenvolução humana contido no ato de educar. Alguns conferiam prioridade para a referência genética; outros entendiam ser a cultura a verdadeira fonte de distinção. O poder da educação era distintamente compreendido por uns e por outros. De qualquer maneira, todos já agora concordavam no fato de que, sem escola, carecendo de qualquer contato com o mundo da cultura, as crianças se tornariam presas do mesmo obscurantismo que impedira uma vida melhor para os seus pais. A educação e a cultura erudita eram tidas nitidamente como códigos e signos de poder; um poder que, se fosse repartido como de fato deveria passar a ser, emanciparia a Humanidade de alguns grilhões com os quais ela se defrontava.

A Pedagogia Nova, na forma pela qual entrava em Portugal, centrava-se sobretudo na denúncia do tradicionalismo em educação, na crítica àquele modelo escolar que a modernidade construía e que parecia carecer do reconhecimento do aluno enquanto individualidade, basicamente aos olhos dos educadores que se supunham radicalmente modernos. A Escola Nova pretendia, assim, romper com o coletivismo da classe e adentrar pelos mecanismos interiores à aprendizagem de cada educando, individualmente. O coletivismo no ensino, que supostamente possibilita a eqüalização das condições do aprendizado, era tomado por tirânico e em desacordo com a necessária consideração da originalidade posta por cada indivíduo, em particular. A nova escola pretendia, como vimos, calcular cientificamente as faculdades cognitivas de cada um dos estudantes, de todas as suas crianças; ela deveria se comportar – nos termos do que diziam as revistas do princípio do século – como uma "escola por medida"; talvez exatamente por fazer da experimentação a chave do rumo alternativo a ser agendado para o caminho da matéria pedagógica. De algum modo, existe aqui a ilusão de conferir à Pedagogia o estatuto de uma ciência exata:

É isto que vem confirmar uma psicologia mais perfeita, propriamente experimental e que pensa ser bem sucedida por processos cada vez mais perfeitos e rigorosos, medindo as faculdades intelectuais ou morais. De modo que se poderão tomar as medidas do espírito como do corpo, e notificá-las em cifras sobre uma ficha psicométrica. Assim precisada, a psicologia reclama uma educação adaptada a cada criança, ou, segundo o termo do Dr. Claparède, a escola por medida. É preciso conceder a maior atenção a este esforço, que tende a constituir uma ciência exata da criança e a renovar ou até a transformar, por uma verdadeira revolução, toda a Pedagogia (...)

Na verdade, esse artigo, que vinha sem assinatura na seção pedagógica do referido periódico, procurava resumir experiências que, no exterior, já teriam sido efetuadas. O texto sublinha a validade das análises quantitativas para a educação na medida em que, entrecruzando múltiplas variáveis, elas possibilitam parâmetros que conduzem à determinação dos perfis individuais. Segundo consta da seqüência do mesmo argumento: "Poder-se-á (...) construir e analisar a curva da sensibilidade e da atenção e calcular nela o desenvolvimento com os característicos próprios do sexo, da idade, do meio social, da raça, etc. Após o que a síntese, combinando as diversas operações que compõem o indivíduo, permitirá fixar a sua curva geral e a sua equação."21 21 A ESCOLA POR MEDIDA. In A Federação Escolar. nº 86, 3-9-1910. Tendo por suposto que os fatos psicológicos são qualidades mensuráveis, a própria memória ortográfica e a prontidão para a leitura seriam, em função disso, matematicamente calculáveis.

Intensificava-se a crítica a propósito da estrutura e da forma da escola primária tradicional portuguesa. Tanto em termos de métodos de ensino quanto no que diz respeito ao próprio conteúdo, que valorizava aspectos abstratos e pouco relevantes dos saberes escolares, a escola falhara naquilo que seria o essencial: o domínio da língua, o raciocínio lógico e a capacidade analítica para lidar com as equações postas pelo cotidiano. Assim:

Que importa que o aluno, ao obter o seu alvará do curso de 1º grau, fique sabendo que tais e tais palavras se chamam advérbios ou substantivos e que dadas flexões de um verbo são de tal pessoa, de tal tempo e de tal modo, se ele fica ignorando absolutamente qualquer princípio relativo à dignidade humana, aos seus deveres sociais e aos seus direitos, não possuindo a mais leve noção do que seja família e muito menos conhecendo o que seja pátria e o que lhe devemos ?! E o trabalho ?! (...) Honrar o trabalho e fazê-lo amar é um elevado princípio de política que desejaríamos ver mais estremecido pelos nossos dirigentes.

A tarefa da formação do espírito racional, analítico, do juízo crítico do jovem estudante -posta freqüentemente como primeiro dever da escolarização- a escola deixava para trás; e não cumpria... Sucede que nem os próprios críticos da escola conseguiam fugir da "gramática" que parecia lhe ser própria. Na esteira de David Tyack e Larry Cuban

Havia quem enfatizasse a necessidade de a instrução portuguesa passar a se referenciar mediante as necessidades, as aspirações e as expectativas das populações locais. Isso significava que as localidades, os municípios, as câmaras, as juntas de paróquia devessem efetivamente investir no edifício escolar, na mobília, nos utensílios da escola. Parecia ser necessário e urgente esse esforço conjugado que resultaria na prática de afastamento dos professores interinos, à medida que se aperfeiçoasse o controle das comunidades sobre a escola. Na verdade, a escolarização de massas portuguesa, bem como vinha sendo constituída desde os tempos das Reformas Pombalinas, tinha forte apelo ao aspecto centralizador, quase como uma bandeira, talvez uma plataforma de ação imposta pela modernidade. Contudo, se a centralização era um projeto, em certa medida, em construção, dado que tanto o financiamento escolar quanto os vencimentos dos mestres de escolas públicas eram assegurados pelos Estado, há inegavelmente uma parcela bastante significativa da vida escolar que resiste aos marcos de modernidade impostos pela ânsia centralizadora. Pelo menos até 1910, tanto pela autonomia didática dos professores quanto pelo provimento de materiais e de utensílios escolares, e até pelos abaixo-assinados que, muitas vezes, eram encaminhados pelas comunidades aldeãs acerca do funcionamento desta ou daquela escola, do comportamento deste ou daquele professor, poderemos dizer que a escolarização portuguesa mantém aspectos de solidariedades locais, de aldeias, de vilarejos e de cidades, que faziam com que efetivamente houvesse significativa ressonância das populações sobre a vida escolar. A escola nacional, a ser formada, permanecia, pois, com largas e significativas sobrevivências comunitárias.

EDUCAÇÃO, PELA VOCAÇÃO, PARA SUPERAR A DECADÊNCIA

Como tentativa de conferir homogeneidade àquela prática educativa que parecia querer fugir dos formuladores de suas políticas curriculares, procurava-se instaurar o recurso do livro escolar. O livro de escola corresponderia, nessa perspectiva, ao esforço de uniformização das redes nacionais de ensino, esforço esse que, mais cedo ou mais tarde, foi – geralmente no século XIX – perfilhado por países europeus em direção à sua modernidade educativa. O livro escolar auxiliava o professor a organizar os conteúdos de sua aula, auxiliava-o a melhor repartir seu tempo, possibilitando o ensino coletivo, se esse mesmo livro estivesse nas mãos de todos os alunos. Sob tal perspectiva, poderíamos mesmo dizer que o livro escolar pretendia ser, na altura, o professor do professor. A preocupação com essa literatura de sala de aula, em Portugal, ganharia vulto a partir dos primeiros anos do século XX. Discutia-se se era apropriada ou não a adoção de um livro único, e quem defendia isso, em geral alegava como principal razão a carência de formação de professores e os problemas curriculares decorrentes do fato de o mestre não conhecer aquilo que deveria estar a ensinar. Havia uma quantidade considerável de escolas regidas por interinos que, na maioria das vezes, eram absolutamente despreparados para exercer o magistério. Existia, como contraponto a tal prática, uma vertente que defendia o fim desse controle centralizado que, aos olhos de muitos educadores da época, não teria trazido ganho nenhum à educação.

É sabido, ninguém ousará negá-lo, que uma grande parte das escolas, dadas como criadas na folha oficial, não passam do papel, e que outra parte, não menos considerável, é entregue à regência de personagens para cujo uso particularíssimo parece ter sido criada a escola, havendo a brilhar no meio dessa formidável plêiade de interinos e de idôneos desde o taberneiro alcaiote até a pobre mulherzinha que nem os recibos do vencimento sabe assinar, pela razão simplíssima de nunca ter aprendido a fazer o seu nome. Parece fantástico ! Estes casos estupendíssimos, já por nós denunciados, de entregar a escola a analfabetos absolutos ou quase absolutos conduzem-nos a concluir que o analfabetismo não se extinguirá entre nós com a difusão de escolas enquanto tal benefício for assim ministrado ao povo pelo poder central.24 24 DIFUSÃO de escolas. In Educação Nacional. 24-9-1899, nº 157.

Entre as referências teóricas dos escritos pedagógicos portugueses na fronteira entre os séculos XIX e XX, reconhece-se a inspiração dos ideários de Froebel e de Pestalozzi como precursores de um modelo alternativo de escola, que passaria a ser defendido na esteira daquele movimento da educação nova, de que Portugal desejaria não apenas figurar como membro, mas efetivamente participar.

No fim do século passado, três vultos importantes estavam predestinados a produzir uma completa revolução na Pedagogia. É do centro da Europa, donde dimanam as mais lídimas idéias, que esses três astros surgem e derramam as primeiras luzes que germinaram as bases em que devia fundamentar-se a Pedagogia moderna. Ao dogmatismo até aí predominante na escola contrapõe-se a intuição, verdadeira ginástica do espírito, base e fundamento de todos os conhecimentos. O nosso século herdou do século XVIII esses três luminares que tanto haviam de concorrer, pela nova feição que imprimiram ao ensino, para, com bastante razão, ser cognominado o século das luzes. A escola primária criaram-na eles, sem dúvida. Essa augusta missão – quem o desconhece? – coube a Henrique Pestalozzi, nascido em Zurich em 1746; a Gregório Girard, nascido em Friburgo em 1765 e a Frederico Froebel que nasceu em Oberweissbach, na Turíngia em 1782.

Remeter Portugal ao plano da inovação educativa era, de acordo com a compreensão da época, europeizar pedagogicamente o país, forçando-o a romper com seu interminável atraso perante outros povos do Continente. A esperança na educação coloca-se aqui mais uma vez voltada para o desejo de superação da malfadada decadência. A educação era identificada, pois, como instrumento privilegiado, capaz de reerguer uma, alhures perdida, vocação nacional.

Nesse sentido, contrariando o ensino catequético, os educadores, desde o princípio do século, passarão a preconizar o ensino laico. Identifica-se como catequético tudo o que recorre exclusivamente à memória, sendo que a acepção de laicismo, mais do que a suspensão de juízos de ordem religiosa, significaria a liberdade de pensamento em sua dimensão de crítica e de criação de referências. O mesmo movimento que propugna a educação nova irá defender o laicismo como parâmetro imprescindível para essa renovada escolarização do futuro.

Retomando a questão do livro escolar, cabe recordar que, naquela fronteira entre o século XIX e o XX, os saberes escolares expressos no compêndio já eram objeto de vigoroso questionamento por parte dos analistas educacionais. Acerca do tema d’ ‘A laicização do ensino’, Ávila Júnior apontaria – no periódico A Voz do Professor de 1-11-1909 – a impropriedade do argumento religioso como justificativa para edificação de uma moral escolar. O catecismo seria – no parecer do redator – a pior estratégia para proceder ao ensino das primeiras letras, responsável talvez pelos elevados índices dos que, não sendo capazes de dominar as habilidades da leitura e da escrita, fatalmente deixavam a escola após as primeiras tentativas. Além de pedagogicamente impróprio, o modelo catequético apresentaria recortes de verdades cristãs calcadas na doutrina que, curiosamente, apareceriam como reveladores antes da vida profana do que de qualquer dimensão da realidade espiritual. Assim – prossegue o texto – os compêndios utilizados naquela época aconselhavam os alunos a adentrarem pelo território do cristianismo mediante leitura pausada e ritmada de trechos selecionados, em função de cujo reconhecimento as crianças pudessem apreender o "verdadeiro sentido" de cada frase... Entretanto – como veementemente denunciavam os críticos –, tais recomendações poderiam facilmente acarretar inóspitas surpresas, e "meter o professor em maus lençóis":

Imaginemos que o professor manda uma criança recitar, pausadamente a Ave Maria ou a Salve Rainha de maneira que às frases dê o verdadeiro sentido. O que sucede ? Sucede que chegando à criança a frase – ‘bendito é o fruto do vosso ventre’ – frase esta que o professor, a bem da moralidade, pretende passar sem explicação, a criança, muito naturalmente e por ser curiosa, pede-lhe que explique o sentido daquela frase. Que faz o professor neste caso ? Certamente isto: ou se cala e desobedece à lei ou explica a frase e desmoraliza os seus alunos. Mas temos mais. O professor chama uma das classes mais adiantadas para lhe lecionar catecismo. Depois de várias perguntas, faz esta a uma das crianças: – O que é pecado original ? Responde o aluno com as palavrinhas do compêndio: ‘É o pecado cometido no paraíso terreal pelos nossos primeiros pais Adão e Eva e que é comum a todos os seus descendentes.

A seguir, antes de o professor chegar a formular nova pergunta, uma das crianças o interrompe, solicitando uma explicação sobre o que de fato viria a ser o pecado original, já que não pudera compreender os termos da definição do compêndio. Ora, como o compêndio também recomendava que as crianças explicitassem ao professor todas as suas dúvidas, o menino estaria na verdade apenas a reivindicar o seu virtual direito à explicação. O professor, hesitante, e aparentemente para não se desmoralizar, sai com uma evasiva que transcrevemos na seqüência:

(Aluno) Mas, senhor professor, o que fizeram eles no paraíso ?

(Professor, com ar enfadado) Ora...pecaram; então já não lhe disse?

(Aluno) Disse, sim, senhor; mas eu ouvi dizer que Adão e Eva pecaram porque comeram uma maçã. É verdade, professor ?

(Professor) É...

(Aluno) Então, quem come maçã peca ?

(Professor) Está visto que sim.

(Aluno) Sendo assim, nós não podemos comer maçãs ?|

(Professor) Podem... sair, que já deu a hora.27 27 Idem.

Sem se considerar elucidado, o menino chega à casa e pergunta ao pai o que era "pecar originalmente"....

As crianças, cheias de admiração e sem saberem a que atribuir tanto mistério, narram os fatos passados na escola e entregam aos pais os seus compêndios de doutrina cristã, oficialmente aprovados, e dizem tristemente: – Foi aqui, papá, que aprendemos o que o fez zangar tanto ! O pai abre um deles e vê que é verdade o que lhe dizem os seus queridos filhos. Fica assombrado ! Continua a folhear o livro e fica estupefato quando vê em letra redonda o seguinte: 6º Não ofender a castidade; 9º Não desejar a mulher do próximo.28 28 Idem.

O articulista, a partir daí, revela sua perplexidade, convicto de que a escola portuguesa, ao fundamentar-se sobre o ensinamento catequético, estaria paradoxalmente a antecipar para os meninos aquilo que apenas muito mais tarde eles deveriam descobrir. Em virtude disso, indaga-se se efetivamente a moral religiosa que regia até então a vida escolar não seria (ainda que isso representasse uma contradição nos termos) imoral. Mais do que religiosidade, cabia à escola, no entender dos arautos da nova pedagogia – de acordo com tendências do mundo contemporâneo –, fortalecer conhecimentos verdadeiramente práticos, que habilitassem a mulher a ser mãe e o homem a ser trabalhador e cidadão. Pretendia-se formar pela e para a disciplina da vida prática. Essa seria a maior tarefa da escola moderna naquilo que ela diferiria da "escola antiga".

O mesmo Ávila Junior, em artigo intitulado ‘A escola primária portuguesa", destacaria o seguinte, alguns meses antes de se pronunciar sobre o tema da questão religiosa naquele já referido periódico:

A pobre criança só decora palavras, não aprende fatos porque não vê coisas. Eis o que é a escola primária portuguesa – a escola antiga. Não é assim a escola moderna, a escola imaginária de Rabelais, de Comenius, de Rousseau, de Pestalozzi e de tantos outros ilustres pedagogistas. Nesta encontra o professor todos os elementos indispensáveis ao ensino e, por isso, o vastíssimo campo que se estende sob suas vistas é de fácil cultura e muito ubérrimo. Na escola antiga só há treva porque nela todo o ensino é prático. Para a criança e para o professor nada há mais difícil, penoso e improfícuo do que o ensino teórico. A criança não se satisfaz com palavras: quer ver, quer tocar. Além disso, como sua atenção é pouco duradoura, é preciso prendê-la sem a cansar – o que só se pode conseguir com o ensino prático.

Pretendia-se fortalecer, ainda, elos de solidariedade intersocietários. Pretendia-se, ao fim e ao cabo, maior produtividade profissional e prosperidade para o país. A educação, em vez de preparar seres catequizados, formaria então para a utilidade social do conhecimento; da escola esperava-se a capacitação do indivíduo, enfim, para resolver com destreza seus afazeres e rotinas cotidianos. Nessa direção, postulava-se com freqüência o dito "aprendizado ativo da obediência". Contraposta aos inconvenientes do mimo excessivo, tão freqüente na vida familiar, a escolarização não daria asas a caprichos ou fantasias, mas se direcionaria fundamentalmente para a formação de hábitos, dos quais as crianças posteriormente deveriam se valer na vida do trabalho: hábitos de regularidade, de exatidão, de doçura e de "benevolência nas relações exteriores"; hábitos de disciplina, de perseverança e de polidez. A nova pedagogia não abdicaria da autoridade do professor; pelo contrário, caberia torná-la mais eficaz, bem como mais ágil o processo do que agora se passava a intitular ensino-aprendizado. Ainda tomada como obra de aperfeiçoamento do gênero, a educação nortear-se-ia por três referências, como constava do texto da Educação Nacional já nos idos 1899:

1º. Natural, simultânea e propensiva, isto é, deve seguir a marcha da natureza sem a violentar e sem a retardar; ter em vista o natural da criança, desenvolvendo simultaneamente e numa mesma proporção as faculdades do seu espírito. 2º Liberal, isto é, respeito à pessoa da criança, que é por si mesma um fim, como afirmou Kant, e nunca servir-se dela como um meio; e, sob o ponto de vista da instrução, fazer-lhe adquirir o maior número de conhecimentos gerais que for possível, sem a limitar ou encerrar na especialização. 3º Moral, isto é, deve ter por ideal não só o fazer concorrer à instrução e à moralização, mas ainda dirigir finalmente a vontade da criança para o bem que lhe tiver feito reconhecer e amar. (...) A educação como obra de aperfeiçoamento dura toda a vida. Porque, quando somos novos, o saber e a experiência dos outros são os fatores que nos orientam; quando homens, a nossa própria experiência ensina-nos muitas coisas e permite-nos tornar-nos melhores. Ao passo que nos melhoramos pela educação, influímos também sobre os nossos semelhantes e até sobre os nossos descendentes, pois que, pelas leis da hereditariedade psicológica, é sabido que, em certa medida, as tendências e hábitos contraídos por um indivíduo se transmitem à descendência.

Para concluir, diríamos que a compreensão da criança nos tempos modernos, bem como o estudo acerca da história da infância exigirão, em larga medida, encontrar a trajetória da escolarização e das representações e práticas sobre as quais essa mesma escolarização se procedeu. Como, quando e por que as crianças foram para a escola? Qual era a relação entre a multiplicação das escolas e a nuclearização das famílias? Como a escola criada pela modernidade entrelaça conhecimento, valores e referenciais de conduta e de urbanidade? É possível superar fronteiras nacionais para pensar no tema da escola, entre referências, a um só tempo, locais e globais? Quais os processos de exclusões e de interdições sobre a criança no mundo moderno e quais suas relações com a instrução sistematizada institucionalmente? Seria de complementaridade ou de concorrência a relação entre a escola e a família? E entre a escola e a leitura, haveria didática ou competição? Será mesmo que a escola veio justamente, não apenas para ensinar a ler, mas para domesticar e refrear o impulso leitor das populações? Tudo isso, de uma maneira ou de outra, conjuga-se muito estreitamente com as preocupações da historiografia contemporânea da educação, cada vez mais voltada para estudos sobre a infância e a juventude. Por essa razão, eu penso que, no âmbito da pesquisa acadêmica, estudar a historicidade da infância – como problema e como objeto analítico – supõe o encontro "transdisciplinar" entre História e Educação, áreas de fronteira que, cada vez mais, requerem diálogo, entrelaçamento e partilha entre sujeitos...

NOTAS

Artigo recebido em 04/1999. Aprovado em 09/2000.

  • 2 VARELA, Julia & URIA, Alvarez. "A maquinaria escolar". In Teoria e educaçăo 6, p. 69, 1992.
  • 3 HÉBRARD, Jean. "La scolarisation des savoirs elementaires ŕ lépoque moderne". In Histoire de léducation Paris, Service dHistoire de lÉducation, INRP, nş38, maio 1988, p. 77.
  • 4 PETITAT, André. Produçăo da escola produçăo da sociedade Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. p. 90.
  • 5 ARIČS, P. História social da criança e da família 2Şed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 185.
  • 6 NÓVOA, Antonio. "Modčles danalyse en éducation camparée: le champ e la carte". In Les sciences de léducation: pour lčre nouvelle Caen/France, nşs 2-3/1995, passim
  • 7 VINCENT, Guy Lécole primaire française: étude sociologique Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1980.
  • 9 FERREIRA-DEUSDADO. "Psychologia applicada ŕ educaçăo". In Revista de Educaçăo e Ensino vol. VII, 1892, 54.
  • 10 FERREIRA-DEUSDADO. "A psicogenia e a educaçăo." In Revista de Educaçăo e Ensino vol. XIII, pp. 398-399, 1898.
  • 11 PEDAGOGIA. In Educaçăo Nacional, nş 166, 26-11-1899.
  • 12ENCYCLOPEDIA das Famílias, nş 287, 24ş ano, 1910.
  • 13 HIGIENE da primeira infância. In Encyclopedia das famílias; revista de instrucçăo e recreio nş 178, decimo quinto anno, pp. 744-745, 1901.
  • 14ENCYCLOPEDIA das Famílias nş 287, 24ş ano, 1910, p. 817.
  • 15 COSTA, Carlos P. Da. "Coisas nossas...". In A Federaçăo Escolar nş43, 6-11-1909.
  • 16 SILVA, Oliveira. "Pedagogia Experimental". In A Federaçăo Escolar n ş 31, 14-8-1909.
  • 19 COIMBRA, M. "O meu norte". In Almanaque illustrado do jornal pedagógico Educaçăo Nacional 4ş anno, 1908, p. 15.
  • 20 A ESCOLA POR MEDIDA. In A Federaçăo Escolar nş 86, 3-9-1910.
  • 22EDUCAÇÃO NACIONAL nº 156, 17-9-1899.
  • 23 TYACK, David & CUBAN, Larrry. Tinkering toward utopia: a century of school reform Harvard University Press, 1995.
  • 25 DIFUSÃO de escolas. In Educação Nacional nº 157, 24-9-1899.
  • 26 ÁVILA JUNIOR, "A laicizaçăo do ensino". In A Voz do Professor nş 19, ano 1, 1-11-1909.
  • 29 ÁVILA JUNIOR. "A escola primária portuguesa". In A Voz do Professor nş 1, ano 1, 1-2-1909.
  • 30 PEDAGOGIA. In Educaçăo Nacional nş 171, 31-12-1899.
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    . Na perspectiva dessa autora, a escola nacional, tal como será organizada em nosso modo contemporâneo de pensar a educação, terá como características básicas:
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    e a crença de que a educação, considerada em termos coletivos, constituir-se-ia como uma alavanca para o aprimoramento do homem, das sociedades e dos tempos. Pode-se então dizer que, pelo menos a partir daí, a educação assume a feição de uma aposta social. Uma aposta que, de uma maneira ou de outra, deveria lidar com e superar impasses e limitações provenientes tanto do meio quanto da hereditariedade.
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    , tal como ela já se instituíra. Nasce aquilo que, sob derivação imediata do positivismo e outras doutrinas cientistas e evolucionistas da época, pretende ser a pedagogia científica e experimental. Fortalecem-se os questionamentos sobre métodos e técnicas pedagógicas com o intuito de aprimorar, pela inovação, práticas corriqueiras, as quais – sabia-se – consolidavam os ritos cotidianos da escola projetada. A escola, até então abraçada, condenada ou propagandeada, deveria agora ser alterada à luz das novas conquistas que eram então bem-vindas no campo da ciência médica e dos estudos pedagógicos.
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    Acreditava-se que a Pedagogia tradicional estabelecera uma explícita ordenação quanto a condutas, atitudes e procedimentos escolares que, impressos no currículo, seriam de fato a diretriz norteadora da lógica ritual da escola primária. Ocorre que, calcada quer sobre a excessiva fantasia, quer sobre a excessiva dedução, supunham os novos pedagogos que o modelo escolar dito tradicional já se fizera ultrapassado perante as conquistas então recentes no campo da Fisiologia e da Psicologia humanas. A Pedagogia que justificava aquela forma de escola teria, na mesma proporção, se tornado também obsoleta. Tendo herdado seus pressupostos de grandes clássicos do conhecimento pedagógico, como Rousseau, Herbart e Froebel, a escola tradicional falhara por tornar mecânico o ensino que se fazia exclusivamente pela dimensão do coletivo, não sendo capaz, no processo, de considerar os aspectos propriamente individuais do educando como criança e como pessoa.
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    , mais do que saber o que as teorias fizeram da escola, interessa saber o que o ritual escolar fez das teorias que sobre ele dissertavam. Em certa medida, supondo a veracidade dos conteúdos do ensino, acreditando que estes constituiriam apenas a transposição didática do saber científico, de alguma maneira, se estaria a falsear o recorte cultural feito pela vida escolar e até os efeitos de apropriação com que professores e alunos captariam pela transformação o conhecimento que a escola, em princípio, lhes transmitia. A escola, que também traz consigo – diga-se de passagem – finalidades muitas vezes não-manifestas em seu currículo oficial, de alguma maneira inculca o aprendizado da obediência, do acatamento, do silêncio, da polidez e do sentimento moral. Mas nem sempre as coisas saíam como supunham os formuladores das normas e das prescrições curriculares. Muitas vezes, a lógica toda própria do dia-a-dia da vida escolar, as solidariedades de grupo e de idade que iriam se constituindo "às portas" da classe faziam com que houvesse toda uma rede de aprendizado informal e de transgressões, sobre a qual nem inspetores e nem sequer o professor possuíam controle algum.
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    Este texto é parte da tese de doutoramento intitulada
    Ler, escrever, contar e se comportar: a escola primária como rito da sociedade portuguesa do século XIX (1820-1910).
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    Antonio NÓVOA foi quem, em sua tese de doutoramento [intitulada
    Le temps des professeurs: analyse socio-historique de le profession enseignante au Portugal (XIIIéme-XX éme Siècle). 2 vols. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987, chamou a atenção para o impacto que em Portugal as revistas pedagógicas teriam naquela altura.
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    SILVA, Oliveira. "Pedagogia Experimental". In
    A Federação Escolar. nº 31, 14-8-1909.
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    SILVA, Oliveira. "Pedagogia Experimental". In
    A Federação Escolar. nº 33, 28-8-1909.
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    A ESCOLA POR MEDIDA. In
    A Federação Escolar. nº 86, 3-9-1910.
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    DIFUSÃO de escolas. In
    Educação Nacional. 24-9-1899, nº 157.
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    Idem.
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    Idem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Nov 2001
    • Data do Fascículo
      2001

    Histórico

    • Aceito
      Set 2000
    • Recebido
      Abr 1999
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