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Das representações míticas à cultura clerical: as Fadas da Literatura Medieval

Resumos

O presente artigo estuda a permanência dos mitos celtas no folclore medieval e como seus temas e motivos são assimilados pela cultura clerical do século XII em diante. O principal propósito do mesmo é analisar a dimensão simbólica dos mitos celtas e o deslocamento de seu sentido original nos textos produzidos no meio cavaleiresco.

Cultura Medieval; Mitos; Representações


The present article studies the constancy of the celtic myths in the medieval folklore and how its themes and motifs are assimilated for the clerical culture of the XIIth. century and forth. The principal purpose of this article is analyse the symbolical dimension of the celtic myths and the displacement of its original sense in the literary texts produced in the chivalrous environment.

Medieval Culture; Myths; Representations


Das representações míticas à cultura clerical: as Fadas da

Literatura Medieval

Antônio P. V. Morás

Doutorando História Social-FFLCH/USP

RESUMO

O presente artigo estuda a permanência dos mitos celtas no folclore medieval e como seus temas e motivos são assimilados pela cultura clerical do século XII em diante. O principal propósito do mesmo é analisar a dimensão simbólica dos mitos celtas e o deslocamento de seu sentido original nos textos produzidos no meio cavaleiresco.

Palavras-chave: Cultura Medieval; Mitos; Representações.

ABSTRACT

The present article studies the constancy of the celtic myths in the medieval folklore and how its themes and motifs are assimilated for the clerical culture of the XIIth. century and forth. The principal purpose of this article is analyse the symbolical dimension of the celtic myths and the displacement of its original sense in the literary texts produced in the chivalrous environment.

Keywords: Medieval Culture; Myths; Representations.

As fadas encontraram seu espaço na literatura de entretenimento nos séculos XII-XIII. Com o despontar da literatura narrativa de Corte na segunda metade do século XII, - produção literária esta em língua vulgar e constituída em torno dos principados regionais que melhor souberam se adequar à expansão comercial e ao desenvolvimento urbano do período, como é o caso dos condados de Champagne e Flandres -, o tema da fada que se deixa surpreender pelo cavaleiro por quem se apaixona, cumulando-o de benefícios e riquezas, torna-se uma constante nos lais e romances de cavalaria franceses do final do século XII em diante, surgindo com ele todo um conjunto de referenciais relacionados ao mundo das fadas: animais maravilhosos que conduzem o cavaleiro ao outro mundo feérico, rivais ou inimigos declarados que ele encontra por lá etc. Contudo, as fadas e as criaturas feéricas em geral também acharam acolhida na literatura escrita em latim produzida no âmbito da Corte de Henrique II Plantagenet. Com a ascensão deste monarca ao trono da Inglaterra, jovens instruídos nas universidades francesas e italianas foram contratados para a função de "curiales", funcionários especializados na administração jurídica e fiscal do reino. Duas autênticas coletâneas de maravilhas surgirão deste ambiente de letrados prestigiados que fazem parte da comitiva real: o De Nugis Curialium, de Walter Map, obra escrita entre 1181 e 1194, e os Otia imperialia, de Gervais de Tilbury, esta última redigida em 1210, depois que Gervais tinha abandonado o séquito de Henrique II, e dedicada ao imperador Othon IV de Brunwick. Apesar das inevitáveis diferenças de estilo e propósitos entre a literatura escrita em latim e a literatura vernácula no período citado, os temas e motivos que se ligam ao mundo feérico apresentam evidentes semelhanças em ambos os gêneros literários, permitindo constatar que eles partem de um núcleo comum.

No estágio atual das pesquisas, não pairam dúvidas sobre o fundo comum de onde surgiram as concepções e modelos relativos às fadas e ao mundo feérico em geral presentes na literatura medieval dos séculos XII-XIII: os mitos e lendas célticos conservados nas tradições folclóricas do norte da Europa, notadamente em Gales, na Irlanda e na Bretanha francesa. Levando-se em conta o valor intrínseco do estudo das imagens e modelos literários para a compreensão da sociedade medieval, dois enfoques diferentes a respeito das fadas e das criaturas feéricas consolidaram-se nos trabalhos históricos das últimas décadas. Um deles, inspirado nos estudos de E. Köhler sobre as tensões entre o ideal cavaleiresco e a realidade social e econômica do século XII1 1 KÖHLER, E. L'aventure chevaleresque. Paris, Gallimard, 1974. Para uma visão dos seguidores de Köhler ver KELLOGG, J. L. "Economic and social tensions reflected in the romance of Chrétien de Troyes". In Romance Philology, vol. 39, 1985, pp. 01-21. , analisa a existência e a ação das fadas e dos entes feéricos na literatura do período como um contraponto - de valor compensatório - às pressões que se abatem sobre a cavalaria da segunda metade do século XII em diante. O outro enfoque, mais antigo, inspira-se nos estudos folclóricos em geral e nos trabalhos de R. S. Loomis2 1 KÖHLER, E. L'aventure chevaleresque. Paris, Gallimard, 1974. Para uma visão dos seguidores de Köhler ver KELLOGG, J. L. "Economic and social tensions reflected in the romance of Chrétien de Troyes". In Romance Philology, vol. 39, 1985, pp. 01-21. , dando ênfase aos substratos célticos revelados a partir do ciclo arturiano, os quais se procura identificar com precisão.

Não obstante os resultados obtidos por estas linhas de pesquisa, é inegável que, em termos metodológicos, ambos os enfoques operam um duplo desconhecimento de seu objeto de estudo. No primeiro caso, ignora-se os substratos arcaicos e as estruturas míticas inseridas nas narrativas feéricas de forma a valorizar os determinantes de ordem social e econômica da época em que tais textos foram produzidos. No segundo caso, relega-se a uma posição ínfima ou secundária a conjuntura social e cultural que deu origem a estes textos em prol de modelos míticos que tendem a ser considerados inalterados. Tanto em um caso como no outro, as conclusões obtidas inclinam-se para uma visão parcial, senão tendenciosa, do problema. E a tendenciosidade revela-se em todos os seus matizes quando se atribui a modelos míticos arcaicos um significado anacrônico que se pretende universal ou transcultural.

Para fugir a este dilema epistemológico, a melhor solução parece ser a análise dos complexos míticos relativos às fadas presentes na literatura medieval em termos de padrões de significados estruturados que revertem ao mundo céltico e, uma vez decodificadas as linhas gerais destes padrões de significados, o exame das transformações verificadas nestes substratos míticos no contato com a cultura clerical do século XII. Deste modo, evita-se uma atribuição errônea de significados às estruturas míticas inseridas nas formas literárias do período, ao mesmo tempo em que se possibilita a avaliação clara da inflexão dada a estas estruturas míticas pela cultura clerical.

Nesse sentido, este estudo colocará em primeiro plano a literatura escrita em latim produzida pelos "curiales" da corte de Henrique II, não apenas porque estes textos são menos conhecidos do que os "lais" e romances de cavalaria franceses, mas principalmente porque o De Nugis Curialium e os Otia Imperialia não deixam de revelar uma certa inclinação etnográfica (dentro das condições da época, bem entendido). As duas obras não perdem a oportunidade de registrar histórias e acontecimentos maravilhosos que são encarados como um contraponto à realidade cotidiana do mundo cortesão. No De Nugis Curialium, de Map, os galeses são um modelo negativo do mundo dos "curiales" por sua selvageria e seus costumes estranhos. Já os Otia Imperialia, de Gervais de Tilbury, são uma autêntica coletânea de maravilhas das diversas regiões pelas quais ele passou, o que lhe valeu inclusive, comparações com os catálogos compilados pelos folcloristas. Não se deve esquecer, contudo, que os dois autores são eruditos forjados no ambiente universitário do século XII.

Como eram representadas as fadas nas histórias do De Nugis Curialium, a mais antiga das duas obras citadas? Examinemos a história de Gwestin Gwestiniog conforme Map a relatou:

Gwestin Gwestiniog habitava nas cercanias do lago Brycheiniog, que tinha duas milhas de diâmetro. Durante três noites de lua cheia ele vê um grupo de mulheres dançar em seu campo de aveia e em seguida precipitar-se dentro do lago. Ao seguir estas mulheres, Gwestin as ouve murmurar como ele poderia capturar ao menos uma delas, e assim, procedendo de acordo com o que ouvira, ele apodera-se de uma delas e a desposa. As primeiras palavras que a mulher lhe dirige foram que ela voluntariamente o serviria e lhe obedeceria até o dia em que, querendo seguir os gritos vindos do outro lado do Llyfni, um rio das proximidades do lago, ele a golpeasse com o arreio. É o que se passa; após terem tido vários filhos, ele a golpeia com seu arreio e, ao retornar, a surpreende fugindo com as crianças. Ele as persegue e com dificuldade consegue arrancar-lhe uma das crianças, Triunein Vagelauc3 1 KÖHLER, E. L'aventure chevaleresque. Paris, Gallimard, 1974. Para uma visão dos seguidores de Köhler ver KELLOGG, J. L. "Economic and social tensions reflected in the romance of Chrétien de Troyes". In Romance Philology, vol. 39, 1985, pp. 01-21. .

Subentende-se, pelo relato, que a fuga da mulher de Gwestin dá-se para dentro do lago de onde ela tinha saído, fato este que será comprovado mais adiante. Na seqüência de sua obra, Map inclui outro episódio bastante similar ao supra citado. Trata-se da história de Eadric, o Selvagem:

Eadric, o Selvagem era um homem de grandes proezas, um senhor de Ledbury North. Voltando da caça por volta da meia-noite, Eadric erra pela mata e encontra uma casa de grandes dimensões, onde vê uma assembléia de mulheres nobres que se punham a dançar. Com a ajuda de seu pagem, Eadric consegue raptar aquela que lhe era mais desejável, e durante três dias e três noites obtém prazer com ela. No quarto dia ela lhe dirige a palavra e lhe diz que eles serão felizes e Eadric será próspero em bens e saúde enquanto não reprovar as irmãs dela, que ele viu a dançar, as matas e o lugar de onde ela veio. Se ele o fizesse, ela partiria, muitas desgraças lhe sucederiam e sua imprudência o levaria à morte. Um dia, Eadric retorna da caça por volta da meia-noite e, não encontrando sua mulher, ele a censura ao reencontrá-la, dizendo: 'Foram tuas irmãs que te guardaram tanto tempo?' À menção de suas irmãs ela imediatamente desaparece. Eadric a procura desesperadamente, mas nunca mais torna a achá-la e morre numa dor contínua. Entretanto, a mulher lhe deixa um filho, Alnoth, que na velhice foi atingido por uma paralisia e é curado pelas relíquias de S. Ethelbert, legando ao santo as terras que herdara de Eadric4 1 KÖHLER, E. L'aventure chevaleresque. Paris, Gallimard, 1974. Para uma visão dos seguidores de Köhler ver KELLOGG, J. L. "Economic and social tensions reflected in the romance of Chrétien de Troyes". In Romance Philology, vol. 39, 1985, pp. 01-21. .

Aqui já é possível notar o esforço de Map para acomodar o substrato céltico destas histórias às concepções e doutrinas cristãs. Ao encerrar a história de Eadric e seu filho Alnoth ele afirma:

Temos ouvido falar de demônios íncubos e súcubos e do perigo das relações sexuais com eles, mas nunca descobrimos nas histórias da Antigüidade herdeiros ou crianças que terminaram sua vida felizes e prósperas como este Alnoth, que dá toda sua herança ao Cristo para sua cura e passa o resto dos dias a seu serviço como peregrino.

A desconfiança do autor em relação a estas fadas já se evidenciara no decorrer da narrativa. Quando Eadric resolve capturar a fada por quem tinha se apaixonado, o texto esclarece que ele "já tinha ouvido falar de povos errantes, de bandos noturnos demoníacos", mas que, "cego pelo Cupido", ele prossegue em seu intento. A mesma desconfiança também acha-se presente na história de Gwestin Gwestiniog. Na continuação do relato, Triunein, o filho resultante da união de Gwestin com a fada, teve a infelicidade de seguir um rei fanfarrão que perde todo seu exército ao desafiar outro rei mais poderoso. Contava-se que Triunein tinha sido salvo por sua mãe e agora vivia com ela debaixo do lago, mas Map nega tal proeza à fada, afirmando que tudo não passava de um embuste que podia ser facilmente inventado a respeito de um desaparecido.

O aspecto demoníaco da fada, no entanto seria reforçado com muito mais ênfase na seguinte história narrada por Map:

Hennon, dito 'dos Grandes Dentes', encontra por volta do meio-dia na costa normanda uma jovem belíssima acompanhada apenas por outra jovem. Apaixonando-se por ela, Hennon oferece-lhe proteção e termina por desposá-la, união da qual resultam três belas crianças. A jovem freqüentava a igreja com assiduidade e constantemente auxiliava as viúvas, os órfãos e os indigentes, mas a mãe de Hennon observou que ela sempre entrava na igreja após a aspersão com água benta e se retirava antes da eucaristia. Tomada pelas piores suspeitas, ela passa a espionar a jovem, e um domingo de manhã bem cedo, através de um buraco na parede, a mãe de Hennon vê sua nora entrar no banho e transformar-se num dragão, o mesmo sucedendo depois com a outra jovem que sempre a acompanhava. A mãe de Hennon alerta seu filho e chama um padre, que pega a jovem e sua serva desprevenidas e as asperge com água benta. Em um salto rápido elas atravessam o teto impelindo grandes gritos e abandonando para sempre a casa que as abrigou. Sua numerosa progenitura, no entanto, subsiste mesmo depois de seu desaparecimento5 1 KÖHLER, E. L'aventure chevaleresque. Paris, Gallimard, 1974. Para uma visão dos seguidores de Köhler ver KELLOGG, J. L. "Economic and social tensions reflected in the romance of Chrétien de Troyes". In Romance Philology, vol. 39, 1985, pp. 01-21. .

Nos Otia Imperialia, de Gervais de Tilbury, há uma historieta que guarda nítidas semelhanças com esta, tendo por protagonista o senhor do castelo de Rousset:

Na província de Aix, o senhor do castelo de Rousset, chamado Raimond, encontra ao longo do regato de Lar uma dama de uma beleza sem par, ornada com suntuosos adornos. Ele lhe faz a corte e ela lhe diz que concordaria com essa união desde que eles se casassem. Inflamado pelo desejo, Raimond aceita, mas ela acrescenta que, enquanto viverem sob o mesmo teto, ele gozará de grande prosperidade, mas jamais deverá vê-la nua. Caso isto acontecesse, ele perderia toda a prosperidade e passaria a levar uma existência miserável. O matrimônio é realizado e o cavaleiro vê-se cumulado de riquezas, ultrapassando seus pares, e tendo muitos filhos nascidos desta união. Transcorridos muitos anos, Raimond volta um dia da caça e, movido por um impulso, atravessa o cortinado em que sua mulher se mantinha para tomar banho, vendo-a transformada numa serpente. Ela enfia sua cabeça sob a água do banho e desaparece. Nunca mais ela é vista, mas as amas dizem ouví-la à noite, quando ela retorna para ver suas crianças. O cavaleiro perde em seguida a maior parte de sua prosperidade e o favor dos grandes, mas uma de suas filhas desposa um membro da nobreza de Provence, e sua progenitura persistia ainda ao tempo de Gervais6 6 TILBURY, Gervais de. Le livre des merveilles (Trad. parcial dos Otia Imperialia por A. Duchesne), Paris, Les Belles Lettres, 1992, pp. 148-150. .

Ao contrário da história de Hennon dos Grandes Dentes, e semelhante aos exemplos anteriores, a narrativa de Gervais comporta um interdito claramente expresso: jamais ver a fada nua. Aqui também a dupla forma mulher/serpente é uma alusão à natureza demoníaca da fada, similar ao dualismo mulher/dragão do exemplo de Map. Devido à semelhança de motivos, diversos autores já fizeram a aproximação entre estas fadas demoníacas e Melusina, a fada ligada à casa dos Lusignan, no Poitou, à lenda homônima redigida no século XIV por Jean de Arras7 7 ARRAS, J. de. Mélusine. (Trad. em francês moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979. , ainda que suas posições divirjam radicalmente em muitos pontos. C. Lecouteux, por exemplo, supõe que três grupos de contos, cada um deles organizado em torno de um tema central, estão na origem de Melusina: o primeiro refere-se ao interdito; o segundo à união de um súcubo com um ser humano, enquanto o terceiro trata de serpentes8 7 ARRAS, J. de. Mélusine. (Trad. em francês moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979. . J. Markale, por sua vez parte do princípio que Melusina é um dos arquétipos de uma deusa mãe ancestral "atemporal e a-espacial em sua textura mais profunda", deusa mãe que se encarnaria em diversos personagens míticos ou religiosos como Lilith, a Esfinge e, em sua forma mais atenuada, até mesmo Virgem Maria. Tomando este arquétipo da deusa-mãe como eixo condutor de sua análise, o autor tenta decifrar o simbolismo implícito na lenda de Melusina recorrendo a teorias psicanalíticas (ele chega a citar o mito de Édipo): Melusina, assim como a Esfinge, é um monstro bissexual na realidade; o cerne desta lenda é a imagem do andrógino, personificada em sua cauda de serpente, simbolicamente um falo9 7 ARRAS, J. de. Mélusine. (Trad. em francês moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979. .

A tese de Markale é um excelente exemplo de como o desconhecimento do significado simbólico original de mitos e lendas presos a uma realidade arcaica induz o pesquisador a uma interpretação anacrônica dos mesmos, amparado em teorias contemporâneas que nunca se comprovaram universalmente aplicáveis. Quanto às premissas de C. Lecouteux, ainda que em linhas gerais plausíveis, não deixam de se mostrar incorretas na definição dos temas centrais que compõem a lenda melusiana, falhando na explicação do interdito por se apoiar num aparato conceitual e metodológico deficiente. A argumentação destes autores é relevante para este estudo porque eles partem precisamente dos textos transcritos acima.

O principal equívoco da tese de J. Markale é o de conduzir a análise da lenda melusiana enquadrando-a totalmente ao arquétipo da deusa-mãe. Deste modo, sem perceber, vai viciando suas interpretações do tema. Para dar prosseguimento à linha metodológica que traçou para seu estudo, é, primeiramente, obrigado a admitir que "o relato melusiano forma um todo coerente" cujo tema organiza-se em torno da androginia manifestada simbolicamente pela cauda de serpente. Entretanto, na história de Hennon dos Grandes Dentes, a fada transforma-se num dragão, não numa mulher que é serpente da cintura para baixo. Map é mais preciso sobre este ponto: a mulher sai de seu banho sob a forma de dragão, entra numa coberta que sua serva tinha desdobrado e a reduz em pequenos pedaços com seus dentes, evidenciando assim que ela também era um dragão na metade superior de seu corpo. Isto nos faz pensar na estranheza de um tema mítico organizado em torno da imagem da androginia, expressa pela cauda de serpente, que perde seu núcleo simbólico central e mantém preservada a riqueza de detalhes adicionais (perceptível na semelhança entre a história de Hennon dos Grandes Dentes do De Nugis Curialium, e a de Raimond de Rousset dos Otia Imperialia). Na verdade, J. Markale não pode advogar uma estrutura mítica total para a lenda de Melusina porque Jean de Arras, o autor do Roman de Mélusine, afirma na introdução de sua obra que ele a compôs "seguindo crônicas que estima ser verídicas", além de reforçar ao seu relato com as aparições sobrenaturais dos Otia Imperialia de Gervais de Tilbury10 7 ARRAS, J. de. Mélusine. (Trad. em francês moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979. , entre as quais ele destaca justamente o caso de Raimon de Rousset.

Melusina é uma criação literária de Jean de Arras que tem por base algumas histórias que circulavam pelo Poitou e relatos feéricos registrados por cronistas, com ênfase no já citado Gervais de Tilbury. Além disso, é pouco provável que o mito de uma fada serpente ou dragão existisse desde os tempos da ocupação celta e que Melusina fosse encontrada somente no Poitou, já que motivos folclóricos envolvendo fadas célticas podem ser encontrados em toda a Irlanda, Grã-Bretanha, França e vastas regiões da Alemanha e da Europa central.

O estudo de C. Lecouteux, por sua vez, começa com a análise dos relatos feéricos que se associam, na estrutura narrativa, à lenda de Melusina. Ocorre que sua análise prende-se apenas aos aspectos formais destes relatos, não dando a devida atenção à genealogia dos temas e motivos que se somam em Melusina. Assim, torna-se problemático afirmar que o segundo grupo de relatos somados às lendas melusianas refere-se à união de um ser humano com um demônio súcubo, enquanto o terceiro prende-se às serpentes enquanto animais demoníacos. Considerando que o fundamento mítico de Melusina acha-se nas fadas célticas que se acasalam com humanos, até que ponto pode-se falar em demônios súcubos? O tema das serpentes forma um conjunto distinto dos outros dois, como supõe Lecouteux, ou trata-se simplesmente da resultante de uma adaptação das fadas célticas aos pressupostos da cultura clerical?

A questão do interdito que é rompido pelo mortal e provoca o desaparecimento da fada também se acha mal resolvido no estudo de C. Lecouteux, e é justamente neste ponto que as contradições metodológicas do autor tornam-se latentes. Lecouteux não distingue o "mito" do "conto maravilhoso". Baseando-se nas teorias de Von der Leyen, o homem primitivo, "supersticioso e medroso, não faz diferença entre o sonho e a realidade", e é esta ambivalência que estaria na raiz dos mitos, uma vez que sua dimensão onírica permite ao homem obter o que lhe é recusado pela vida real11 7 ARRAS, J. de. Mélusine. (Trad. em francês moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979. . O fundamento mítico da história de Melusina, então, seria de ordem psicológica: a fada garante ao ser humano uma compensação das adversidades da vida e também do medo da morte, pois acenar com a perspectiva da imortalidade no outro mundo12 7 ARRAS, J. de. Mélusine. (Trad. em francês moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979. .

Lecouteux não parece compreender a diferença entre o mito e a obra literária. Um conto ou uma novela podem derivar de um dado complexo mítico, mas sua própria existência numa forma literária já pressupõe um trabalho de elaboração realizado pelo autor, como é o caso das histórias relatadas por Walter Map e Gervais de Tilbury, e no Roman de Mélusine, de Jean de Arras. Os mitos, por sua vez, constituem-se num conjunto definido de representações do mundo organizadas justamente como coleções de relatos que estruturam um modelo simbólico da realidade13 13 Sobre esta questão ver MELETINSKY, E. M. "Du mythe au folklore". In Diogène, t. 99, 1977, pp. 117-142, ponto que está implícito ainda que num viés completamente distinto, nas teses de M. Eliade (ver ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972). . A função do mito nas sociedades arcaicas não é, de fato, fornecer mecanismos de compensação psicológica para primitivos "supersticiosos", que não distinguem o sonho da realidade, e sim permitir uma construção ontológica do universo que associe as categorias da vida social aos pressupostos de uma ordem cósmica, dando, deste modo, um sentido ao arbitrário da existência humana. Por consegüinte, ao invés de se examinar as formas assumidas pelo interdito nas historietas de Walter Map e de Gervais de Tilbury - onde ele já passou por diferentes formas de manipulação literária a par das intenções do autor - seria mais apropriado buscar sua gênese e significado a partir da análise das representações simbólicas reveladas pelos substratos míticos presentes nas sagas e epopéias célticas, uma vez que é o contexto simbólico dos mitos celtas que dá origem às apresentações literárias do interdito. É o que tencionamos fazer deste ponto em diante.

Em todos os relatos supra-citados há um padrão que se repete: uma fada acasala-se com um mortal gerando filhos. Note-se que o interdito não se acha presente em todos os exemplos, pois na história de Hennon dos Grandes Dentes não há nenhuma menção a ele: a fada parte com sua serva porque foi aspergida com água benta. Nos mitos celtas, este padrão de acasalamento verifica-se não apenas entre um mortal e uma divindade. Ele é válido para as relações entre as próprias divindades. Os mitos das invasões sucessivas da Irlanda incluem um episódio no qual Dagda, um dos deuses chefes dos "Tuatha de Danann" (uma das raças míticas que invadem a Irlanda), encontra a Morrigan, uma rainha dos espectros, deidade ligada à morte e à carnificina, nas margens do rio Unius. Dagda mantém relações sexuais com ela, e como resultado desta união, Morrigan promete ajudar os "Tuatha" contra os "Fir Bolg" (a terceira raça de invasores da Irlanda, anterior aos "Tuatha") por intermédio de sua influência sobre as guerras14 14 Episódio relatado em SJOESTEDT, M. L. Dieux et Héros des Celtes. Paris, PUF, 1940, p. 56; e VRIES, J. de. La religion des Celtes. Paris, Payot, 1963, p. 238. . Como a tribo de Dagda sairá vencedora deste combate, o mito pressupõe que Morrigan teve um papel a desempenhar na vitória dos "Tuatha".

Este padrão hierogâmico de relações entre divindades, ou entre um mortal e uma divindade, é uma característica dos mitos celtas, e ele é muito mais revelador no segundo caso, como pode ser observado na história de Pwyll, príncipe do Dyvet, a primeira rama do "Mabinogi". Esta obra é uma coleção de contos medievais de origem galesa que conservou muito das tradições mitológicas celtas. O segundo episódio da história de Pwyll narra o casamento deste rei do sul de Gales com uma rainha do Outro Mundo. É preciso salientar que no primeiro episódio de sua história, Pwyll torna-se um rei iniciado. Por ter cometido uma descortesia durante uma caçada a Arawn, o senhor de "Annwfyn" ("o abismo", isto é, o "Outro Mundo"), Pwyll consente em trocar de lugar com ele, assumindo sua aparência e o governo de "Annwfyn", enquanto Arawn faz o mesmo em relação ao reino de Pwyll. Esta troca de identidades e funções teve a duração de um ano, e neste período Pwyll vence o rival de Arawn no Outro Mundo enquanto este governa o reino de Pwyll de um modo que excede as expectativas de seus súditos. Quando retorna ao seu reino, Pwyll passa a ser chamado "Pwyll Penn Annwfyn" (Pwyll, "Senhor dos Abismos").

Mas o segundo e o terceiro episódios de sua história revelam-se mais interessantes para este estudo:

Pwyll sobe com seus homens a colina maravilhosa de Arberth, onde sempre se realizam prodígios para aqueles que sobem até seu cume. De lá, vê uma mulher montada num grande cavalo branco que atravessa o caminho principal e que partia da colina. Durante dois dias, se repete o mesmo prodígio quando Pwyll encontra no cume da elevação, e em ambas as ocasiões ele manda um de seus homens interceptar a amazona. É em vão que o faz: por mais que o cavaleiro tentasse, seu cavalo mantinha-se sempre à mesma distância do cavalo da jovem. No terceiro dia, é o próprio Pwyll que a persegue e, vendo que não conseguiria alcançá-la, pede para que ela o espere. Como a jovem acatasse seu pedido, Pwyll fica sabendo que seu nome é Rhiannon, e que ela veio porque queriam casá-la com outro, embora ela estivesse interessada nele, Pwyll. A esta altura, já fascinado pela beleza de Rhiannon, Pwyll acompanha-a até o Outro Mundo e consegue superar Gwawl, o outro pretendente da jovem, graças a um astucioso estratagema armado pela própria Rhiannon, que o leva a passar por um mendigo para enganar o rival do Outro Mundo. Como resultado de sua vitória, Pwyll traz Rhiannon para seu reino.

Rhiannon mostra-se uma rainha pródiga em presentes e liberalidades aos súditos de Pwyll. O segundo ano de seu reinado continuou a ser próspero. Entretanto, passado três anos, ela ainda não havia dado um filho a Pwyll. Por causa disso, os parentes mais próximos de Pwyll, seus irmãos de leite (alusão ao 'fosterage', aparentamento por criação), pedem-lhe que repudie sua esposa. Pwyll adia sua decisão por um ano, e neste mesmo ano Rhiannon tem um filho nos domínios da corte de Arberth. Contudo, a criança desaparece misteriosamente na noite de seu nascimento, e as parteiras, para evitar que qualquer punição recaísse sobre elas, alegam que Rhiannon devorou seu próprio filho, após tê-la untado com o sangue de uma cachorra enquanto dormia. Como penitência por seu suposto crime, Rhiannon deveria permanecer durante sete anos nos limites de Arberth, contar a todo viajante sua história e oferecer-se para levá-lo até a corte montado em suas espáduas. E assim passou-se meio ano. Teyrnon Twryv Vliant, um senhor do sudeste de Gales, possuía uma égua insuperável em formosura que paria sempre na noite de primeiro de maio, mas o potro jamais era encontrado. Resolvido a elucidar este mistério, Teyrnon pegou suas armas e pôs-se a montar guarda na noite de primeiro de maio. No começo da noite a égua pariu um potro de belas proporções, e neste momento Teyrnon ouviu ruídos vindos do exterior e viu uma grande garra entrar pela janela e agarrar o potro pela crina. Imediatamente ele pegou a espada e cortou este braço, que caiu no interior do recinto com o potro. Correndo para fora da casa, Teyrnon não achou ninguém, mas ao regressar encontrou um menino com uma capa de brocados e cabelos dourados ao lado do potro. Teyrnon descobririu então que se tratava do filho de Pwyll e, avisando-o do ocorrido, deu fim à penitência de Rhiannon15 14 Episódio relatado em SJOESTEDT, M. L. Dieux et Héros des Celtes. Paris, PUF, 1940, p. 56; e VRIES, J. de. La religion des Celtes. Paris, Payot, 1963, p. 238. .

A aparente estranheza deste conto explica-se facilmente se preenchermos algumas lacunas. Em primeiro lugar, a colina de Arberth. É ao subir na colina que Pwyll e seus homens tomam contato com Rhiannon. Nos mitos e sagas célticos, os outeiros e demais elevações do solo e o fundo das águas são os locais de acesso ao "Sid" (ou "Sidhe"), o Outro Mundo das tradições célticas, que mais raramente também se encontram em grutas ou cavernas16 14 Episódio relatado em SJOESTEDT, M. L. Dieux et Héros des Celtes. Paris, PUF, 1940, p. 56; e VRIES, J. de. La religion des Celtes. Paris, Payot, 1963, p. 238. . Note-se que nos exemplos extraídos de Walter Map e Gervais de Tilbury as fadas são encontradas nas proximidades das águas por seus futuros esposos, à exceção da história de Eadric o Selvagem, que encontra a fada numa estranha casa no meio da mata. Já Rhiannon, é em sua origem, uma divindade do Outro Mundo. Seu nome vem de Rigantona, "a grande rainha", e a aproximação entre Rhiannon e Epona, a deusa associada aos eqüídeos nos monumentos galo-romanos, já foi sugerida por muitos estudiosos da mitologia celta17 14 Episódio relatado em SJOESTEDT, M. L. Dieux et Héros des Celtes. Paris, PUF, 1940, p. 56; e VRIES, J. de. La religion des Celtes. Paris, Payot, 1963, p. 238. . É necessário admitir que esta aproximação é capaz de esclarecer muitas das características da história de Pwyll, pois, de fato, Rhiannon é associada aos cavalos no texto em questão. Primeiro, apresenta-se montada num cavalo para Pwyll (exatamente como se representava Epona em muitas estátuas galo-romanas). Depois, a penitência que lhe é imposta exige que ela transporte sobre seus ombros os viajantes que vêm a Arberth, alusão evidente à sua forma eqüídea.

As concepções míticas presentes no nascimento de Pryderi também merecem alguns comentários. Ele nasce e desaparece logo em seguida, sendo reencontrado apenas quando Teyrnon decepa o misterioso braço que tentava se apoderar de seu potro. A evidente associação entre a égua extraordinária de Teyrnon e Rhiannon parece evocar, à primeira vista, algum vestígio de relações totêmicas. Embora não se possa descartar a possibilidade de alguma forma de totemismo no longínquo passado dos povos que se estabeleceram no continente europeu, no presente caso, o modelo parece ser mais complexo. Pryderi está intimamente relacionado às forças do Outro Mundo, por isto ele só poderia vir a este mundo conduzido por um animal que também fizesse alusão às forças sobrenaturais. Pryderi tem uma roupa de brocados, que é uma caracterização típica dos habitantes do Outro Mundo, e cabelos cor de ouro. Num sentido simbólico, ele é uma personificação do sol, que desaparece no inverno e retorna no verão: lembremo-nos que a noite de primeiro de maio antecede a festa de Beltane, o início do ciclo diurno na civilização celta18 14 Episódio relatado em SJOESTEDT, M. L. Dieux et Héros des Celtes. Paris, PUF, 1940, p. 56; e VRIES, J. de. La religion des Celtes. Paris, Payot, 1963, p. 238. . A grande mão com garras que invade a casa de Teyrnon representa as forças das trevas, que tentam capturar um potro prodigioso e mantê-lo junto de Pryderi no Outro Mundo. Ao destruir esta possibilidade, Teyrnon garante a vinda de Pryderi a este mundo. Nos povos indo-europeus, o cavalo é, via de regra, o animal que transporta os corpos celestes e um grande número de divindades para este mundo, como é o caso nos mitos escandinavos descritos na Edda de Snorri Sturluson, onde o sol e a lua são transportados pelo ar em carros puxados por cavalos19 19 STURLUSON, Snorri. Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62. , e também nos hinos védicos, onde os dois "corcéis ardentes" de Indra encarregam-se de transportar tanto a ele como ao sol20 19 STURLUSON, Snorri. Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62. .

Ao fazermos referência à mitologia indo-européia, convém mencionar uma de suas características implícitas que se adequa muito bem aos estudos realizados nesta área por G. Dumézil. De acordo com os contornos assumidos por estes mitos, a soberania, a supremacia militar e as forças ligadas à prosperidade e à fertilidade têm sua origem no exterior da sociedade e estão associadas a divindades ou semi-divindades que estabelecem pactos ou relações com os mortais que se mostram aptos a usufruírem destes poderes e vantagens. Usufruir, não dominá-los realmente. Estes poderes pertencem às divindades e seres do Além mítico, e sua recepção no seio das sociedades indo-européias é decorrência do modo pelo qual estas sociedades representam, no plano da cultura, a formação de suas categorias sociais.

O relacionamento entre homens e deuses assume diversas formas conforme as ramificações apresentadas pelos povos indo-europeus. É assim que, na literatura germano-escandinava, os guerreiros que ascendem à realeza são patrocinados por Odin-Wotan ou descendem dele, ou os cinco heróis Pandava do "Mahabharata" hindu são gerados por divindades associadas ao esquema trifuncional indo-europeu definido por G. Dumézil21 19 STURLUSON, Snorri. Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62. . No caso específico dos celtas, a organização geográfica do mundo é resultante da partilha da terra entre os homens e os gênios e divindades que vivem nos locais de acesso ao "Sid". No entanto, são as "gentes do Sid" que detêm a abundância e a habilidade nas artes e poderes sobrenaturais (ou considerados como tal), conforme pode ser comprovado na história de Pwyll.

Ao se relacionar com seres do Outro Mundo, Pwyll traz para seu reino a justiça e o equilíbrio na distribuição dos benefícios e honras (resultado da troca de identidade com Arawn no primeiro episódio) e a abundância inesgotável do Outro Mundo (benefício oriundo de seu casamento com Rhiannon), predicados da função de soberania. Vale lembrar que "pwyll" em galês significa precisamente "sabedoria": o personagem é um rei sábio justamente por compatibilizar as forças dos dois mundos. Um outro ponto a ser destacado é que estas mulheres feéricas, ainda que tragam as benesses do Outro Mundo para o mundo dos mortais, são sempre encaradas com desconfiança pela comunidade. Esta desconfiança explica-se pelo fato de tais mulheres não poderem se enquadrar satisfatoriamente nos padrões de relações determinados pela sociedade celta. Pesa sobre elas uma ambigüidade estrutural irremovível: quando se acasalam com um rei, um guerreiro ou um rico proprietário de terras (representantes das distinções culturalmente estabelecidas pela hierarquia social), estas mulheres passam a integrar a sociedade ao mesmo tempo em que permanecem representantes de uma realidade exterior que transcende os poderes e normas existentes na sociedade que as abrigou. Tal incompatibilidade não se manifesta quando este padrão hierogâmico efetiva-se com dois parceiros do lado divino, como foi o caso com Dagda e Morrigan citados acima, onde o primeiro adquire a supremacia militar através deste acasalamento. Com os seres humanos, entretanto, o resultado é inevitável: os homens que desposam mulheres feéricas usufruem de poderes que ultrapassam o mundo social que de fato não lhes pertencem.

Quando não conseguem manter a seu lado a mulher do Outro Mundo, eles perdem as dádivas que receberam delas. É exatamente este padrão que subsiste na história de Eadric o Selvagem e na de Raimond de Rousset supra-citadas, bem como em Melusina. Cabe salientar que na maioria das lendas e sagas irlandesas, relatos de fundo indubitavelmente céltico, o mortal falha ao tentar manter a mulher feérica do seu lado. Pwyll parece ser uma exceção: ele consegue conservar Rhiannon, mas ele é um rei iniciado nas realidades do Outro Mundo.

A ambigüidade que envolve as entidades do Outro Mundo evidencia-se também na irredutibilidade de tais criaturas aos poderes constituídos pela hierarquia social. É o que pode ser comprovado na lenda do nascimento dos filhos de Macha, a qual integra o ciclo mitológico do Ulster. A Macha é uma divindade feminina citada em três relatos diferentes, e nesta tripla aparição ela parece evocar o esquema trifuncional dos indo-europeus22 19 STURLUSON, Snorri. Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62. :

Um viúvo possuidor de terras, de nome Crunniuc, vê uma mulher entrar em sua casa e fazer todas as tarefas domésticas como se ela sempre tivesse estado lá. Ela põe a casa em ordem e à noite deita-se com ele, passando a viver na propriedade junto com seus filhos. Não muito depois, houve uma grande reunião dos Ulates, e Crunniuc resolve participar. Sua esposa lhe diz: 'Tome cuidado para não dizer tolices'. Ele vai até a assembléia e ao ouvir os elogios ao par de cavalos do rei não se contém e diz: 'Minha esposa é mais rápida do que eles'. O rei então manda detê-lo e envia mensageiros à mulher de Crunniuc para dizer-lhe que, se ela não fosse até a assembléia e corresse contra os cavalos do rei, Crunniuc seria morto. Macha vai até a reunião e solicita um adiamento, pois já estava sentido as dores do parto. O rei e seus homens não se comovem. Ela lhes diz que o mal que eles sofrerão será maior que o seu e os afligirá por longo tempo. Em seguida ela corre contra os cavalos e os vence, dando à luz um menino e uma menina ao final da prova. Mas os Ulates que ouviram os gritos do parto foram amaldiçoados por ela a sofrer suas mesmas as dores e a se tornarem tão fracos quanto as mulheres no leito durante cinco dias e quatro noites por nove gerações23 19 STURLUSON, Snorri. Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62. .

Inicialmente cabe-nos observar que Macha é também uma encarnação da falecida mulher de Crunniuc, por isto age "como se sempre tivesse estado lá". Nos mitos celtas, "as gentes do Sid" são tanto divindades ou gênios de caráter local quanto os mortos em geral. Esta é só uma das versões da história, extraída do Livro de Leinster, de cerca de 1150. C. Lecouteux utilizou a versão de G. Dumézil em seu estudo sobre melusina para defender a existência de um proto-interdito que já existiria na história de Macha e, por um desenvolvimento unilinear, daria origem aos chamados interditos melusianos. Nesta versão, mais rica em detalhes, quando Crunniuc prepara-se para ir à assembléia, sua esposa lhe diz: "Não vá, para não correr o risco de falar de nós, pois nossa união só durará enquanto tu não falares de mim na assembléia"24 19 STURLUSON, Snorri. Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62. . Para apoiar sua teoria, Lecouteux cita ainda a versão do Livro Amarelo de Lecan, onde a dama que adentra pela casa de Crunniuc não lhe conta seu nome alegando que, "se fosse obrigada a dizê-lo", ela deveria abandonar seu lar, e seu nome só é revelado quando ela amaldiçoa os Ulates25 25 LECOUTEUX, C. op. cit., pp. 161-162. . Ocorre, porém, que a advertência de Macha não se prende à revelação de seu nome nem à menção de sua existência pura e simplesmente. A narrativa não teria sentido se assim fosse, porque, observe-se bem, em nenhuma das versões citadas Crunniuc pronuncia o nome de Macha, e na versão do Livro Amarelo de Lecan ele não poderia fazê-lo porque Macha não lhe conta seu nome. Na verdade, a advertência de Macha a Crunniuc é para que ele não revele aos outros o teor real de suas relações, por isto ele não deve "correr o risco de falar de nós", nem "dizer tolices" (isto é, falar demais). É precisamente o que Crunniuc acaba fazendo: ao dizer que Macha era capaz de correr mais rápido que os cavalos do rei, ele acaba por revelar sua condição de mulher do Outro Mundo. Só que o poderes destas mulheres feéricas não se acham submetidos à hierarquia vigente na sociedade celta. Elas só agem por intermédio de seus eleitos. Quando o rei e os demais membros da assembléia obrigam Macha a correr contra os cavalos, tentam controlar forças que estão fora do mundo social, daí serem amaldiçoados com uma transferência das dores do parto, imagem que evoca o papel de Macha como representante das forças procriadoras do Outro Mundo.

É a contradição fundamental destes seres do Outro Mundo em relação ao ordenamento usual do mundo humano que dá origem às diversas formas de interditos com que são cercados, concepção esta claramente explicitada em O galanteio feito a Etain. Este relato, que integra o ciclo mitológico da Irlanda, pode ser lido como o modelo inverso da história de Pwyll. Agora é Mider, um rei do "Sid", que vem à terra para levar Etain, sua antiga esposa no Outro Mundo.

Após muitas peripécias, Etain foi transformada num inseto pela primeira esposa de Mider e, sendo engolida por uma mulher mortal, ela nasceu deste lado do mundo, pois nos mitos celtas, os dois mundos estão numa relação invertida de complementaridade. É nesse ponto que a história nos interessa:

Étain, após ter crescido, foi prometida ao rei Ecchu Airem de Eriu. Mider vem cortejá-la, perguntando-lhe se ela não queria partir com ele para uma terra de prazeres e riquezas sem fim. Etain lhe diz que só partiria se ele a obtivesse de seu noivo. Mider então aparece um dia diante de Ecchu quando ele estava só e lhe propõe uma partida de 'fidchell' (jogo de tabuleiro semelhante ao xadrez). A aposta são cinqüenta cavalos de raça ornados com rédeas esmaltadas. Eles jogam e Mider perde. No dia seguinte ele encontra Ecchu no mesmo lugar e lhe dá os cinqüenta cavalos ornamentados. Mider propõe uma nova partida dizendo que se Ecchu vencesse ele lhe daria uma pequena fortuna em porcos, vacas, bezerros e carneiros, além de armas trabalhadas e mantos. O pai de criação de Ecchu, vendo-o com tantas riquezas, pergunta-lhe onde ele as tinha conseguido. Ecchu lhe conta o que ocorreu e seu pai lhe diz que é um homem de grande poder que veio até ele, e que ele deve impor-lhe tarefas difíceis. Quando Mider e Ecchu se encontram no dia seguinte, este propõe que Mider limpe um pântano, refloreste uma região e construa uma estrada na localidade. Mider protesta dizendo que Ecchu estava pedindo demais, mas aquiesce em realizar estes trabalhos sob uma condição: a de que nenhum homem comandado por Ecchu saísse de sua casa na noite seguinte. Ecchu concorda, mas manda seus intendentes ver o que estava acontecendo. Eles lhe contam que uma multidão inumerável surgida não se sabe de onde pôs-se a trabalhar sob as ordens de Mider, e em uma noite todas as tarefas foram realizadas. Entretanto, o calçamento da estrada não saiu perfeito porque o trabalho foi observado. Se ninguém tivesse assistido sua construção, aquela seria a melhor estrada do mundo. Já irritado com Ecchu, Mider propõe uma nova partida de 'fidchell' em que o vencedor escolheria o prêmio. Ecchu aceita, mas desta vez é Mider quem ganha, exigindo que Ecchu lhe deixasse pôr os braços em volta de Etain e beijá-la. Preso pela palavra, Ecchu consente, mas por precaução cerca sua residência com seus homens no dia em que Mider viria receber seu prêmio. Mider aparece na data combinada, põe seus braços em volta de Etain e leva-a na direção da clarabóia da casa. Lá, diante do espanto da corte de Ecchu, eles se transformam em dois cisnes e voam para o 'Sid' governado por Mider26 25 LECOUTEUX, C. op. cit., pp. 161-162. .

O mesmo padrão de concepções presentes na lenda de Macha reproduz-se no exemplo supra-citado. A proibição que Mider impõe a Ecchu não se refere ao problema da visão das criaturas do Outro Mundo, senão ele próprio não poderia aparecer na corte de Ecchu. A intenção de Mider, de fato, é impedir que as criaturas do Outro Mundo sejam vistas em ação, isto é, utilizando-se de poderes que apenas elas detêm. Na concepção dos mitos celtas, ver equivale a avaliar, mensurar, contar, ou seja, adquirir alguma forma de conhecimento e controle de forças que estão além dos limites do mundo humano. Esta idéia acha-se claramente expressa no tema do encontro da rainha mítica Medb com os porcos da caverna de Cruachu. Na mitologia celta os porcos são freqüentemente associados ao Outro Mundo27 27 Pwyll recebe como presente do Outro Mundo os porcos de Annwfyn, que são mantidos com seu filho na quarta rama do "Mabinogi", voltado à história de Math, filho de Mathonwy ( Mabinogion, op. cit., p. 62). Na mesma história, o personagem principal, Gwydyon, encontra seu filho Lleu, que fora ferido e transformara-se numa águia (isto é, saíra da esfera da realidade humana) seguindo um porco que toma um caminho "como se fosse abaixo da terra" ( Idem, p. 79). Já no conto "Kulhwch e Olwen" ( Idem, pp. 99-141), o animal monstruoso associado ao Outro Mundo é o monstruoso javali Twrch Trwyth. Em bretão armoricano, "tourch" significa porco, e nas línguas celtas o javali é um porco selvagem, como ocorre com o inglês atual ("wild boar", javali, porco selvagem). , e a presença da caverna não deixa dúvidas de que estamos diante de uma das entradas do "Sid". Estes porcos saíam da caverna de Cruachu, mas se alguém tentava contá-los eles jamais permaneciam no local, de modo que ninguém sabia quantos eram. Uma vez Medb tentou contá-los, mas um deles pulou em seu carro e atrapalhou a contagem. Eles desapareceram em seguida e ninguém sabe para onde foram28 27 Pwyll recebe como presente do Outro Mundo os porcos de Annwfyn, que são mantidos com seu filho na quarta rama do "Mabinogi", voltado à história de Math, filho de Mathonwy ( Mabinogion, op. cit., p. 62). Na mesma história, o personagem principal, Gwydyon, encontra seu filho Lleu, que fora ferido e transformara-se numa águia (isto é, saíra da esfera da realidade humana) seguindo um porco que toma um caminho "como se fosse abaixo da terra" ( Idem, p. 79). Já no conto "Kulhwch e Olwen" ( Idem, pp. 99-141), o animal monstruoso associado ao Outro Mundo é o monstruoso javali Twrch Trwyth. Em bretão armoricano, "tourch" significa porco, e nas línguas celtas o javali é um porco selvagem, como ocorre com o inglês atual ("wild boar", javali, porco selvagem). . O interdito que cerca as entidades do Outro Mundo não proíbe especificamente que elas sejam vistas ou que seu nome seja revelado. Estas são as formas literárias que o interdito assume nos contos cortesãos da Idade Média. A proibição fundamental reside na impossibilidade de adequação destas criaturas aos ordenamentos culturalmente estabelecidos no plano da realidade humana, como o demonstra o próprio sentido da narrativa acima. Mider vem a este mundo exclusivamente para levar Etain. Ele deixa-se derrotar por Ecchu nas duas primeiras partidas de propósito, para compensá-lo pela perda de Etain (como detentor dos poderes mágicos do Outro Mundo, ele não poderia ser derrotado num jogo por um mortal). No entanto, irrita-se com Ecchu por este exigir demais, o que é uma forma de afirmar que os poderes e riquezas do Outro Mundo não estão sujeitos à autoridade dos reis e potentados deste mundo.

A partir dos dados obtidos pelo exame dos textos citados já é possível esboçar uma primeira conclusão a respeito das relações entre os mortais e as mulheres do Outro Mundo. Um dos objetivos do acasalamento de um ser humano com uma mulher feérica é justamente gerar descendentes que, pela própria condição de sua concepção, serão capazes de compatibilizar a força e a posição recebidas do lado paterno com a obtenção das graças do Outro Mundo providenciadas pelo lado materno. Observe-se que, por esta via, a incompatibilidade verificada entre as mulheres feéricas e os representantes das relações sociais institucionalizadas no interior da sociedade celta (como os nobres encarados como irmãos de criação de Pwyll, o rei dos Ulates na história de Macha e mesmo o pai de criação de Ecchu, que impele seu filho a aproveitar-se dos poderes de Mider) acha-se neutralizada, pois o filho da mulher-fada encontra-se inevitavelmente inserido nas relações de parentela e nos padrões de relações sociais vigentes na sociedade celta. É exatamente o que ocorreu com Pryderi, o filho de Pwyll e Rhiannon, segundo um modelo que encontra equivalentes em outros relatos de origem celta. Algumas vezes este padrão apresenta-se invertido, como no caso do grande rei Conare Mor, concebido da filha do rei Cormac com o homem pássaro Mess Búachalla, claramente um ser feérico29 27 Pwyll recebe como presente do Outro Mundo os porcos de Annwfyn, que são mantidos com seu filho na quarta rama do "Mabinogi", voltado à história de Math, filho de Mathonwy ( Mabinogion, op. cit., p. 62). Na mesma história, o personagem principal, Gwydyon, encontra seu filho Lleu, que fora ferido e transformara-se numa águia (isto é, saíra da esfera da realidade humana) seguindo um porco que toma um caminho "como se fosse abaixo da terra" ( Idem, p. 79). Já no conto "Kulhwch e Olwen" ( Idem, pp. 99-141), o animal monstruoso associado ao Outro Mundo é o monstruoso javali Twrch Trwyth. Em bretão armoricano, "tourch" significa porco, e nas línguas celtas o javali é um porco selvagem, como ocorre com o inglês atual ("wild boar", javali, porco selvagem). . Mas o significado destas uniões é sempre o mesmo: a composição entre os dois mundos através da geração de um descendente mortal que permanece ligado ao mundo feérico.

Este mesmo padrão repete-se em todos os relatos de Walter Map e Gervais de Tilbury: note-se que os cavaleiros que se casam com as fadas conseguem manter junto de si (isto é, deste lado do mundo) pelo menos um herdeiro, o que também se verifica no caso de Melusina e sua prole.

Há ainda algumas considerações a serem feitas sobre as formas de se representar estas mulheres feéricas nos mitos e sagas célticas. Mencionamos acima que Rhiannon é associada à forma eqüídea por derivação da deusa Epona. Esta mesma relação pode ser observada em Macha. Ela é equiparada aos cavalos contra os quais deve competir. Aliás, é justamente sua habilidade em superar os cavalos na corrida que revela sua natureza ambígua. Parece que a associação entre a mulher e os eqüídeos achava-se presente entre os celtas não apenas nos mitos. Giraud de Berri, outro dos clérigos agregados à corte de Henrique II, descreve - horrorizado - em sua Topographia Hiberniae um ritual praticado numa remota parte do Ulster, onde o rei é consagrado unindo-se carnalmente a uma égua branca que depois é sacrificada. Os pedaços do animal são fervidos e a água utilizada na preparação de um banho para o rei, sendo estes pedaços cozidos partilhados entre o rei e seus súditos30 27 Pwyll recebe como presente do Outro Mundo os porcos de Annwfyn, que são mantidos com seu filho na quarta rama do "Mabinogi", voltado à história de Math, filho de Mathonwy ( Mabinogion, op. cit., p. 62). Na mesma história, o personagem principal, Gwydyon, encontra seu filho Lleu, que fora ferido e transformara-se numa águia (isto é, saíra da esfera da realidade humana) seguindo um porco que toma um caminho "como se fosse abaixo da terra" ( Idem, p. 79). Já no conto "Kulhwch e Olwen" ( Idem, pp. 99-141), o animal monstruoso associado ao Outro Mundo é o monstruoso javali Twrch Trwyth. Em bretão armoricano, "tourch" significa porco, e nas línguas celtas o javali é um porco selvagem, como ocorre com o inglês atual ("wild boar", javali, porco selvagem). . Isto parece indicar que a relação entre as mulheres do Outro Mundo e os eqüídeos achava-se presente nas tribos celtas a partir de todo um complexo mítico-ritual. Corrobora esta hipótese o fato de que apenas as mulheres do Outro Mundo são associadas aos eqüídeos nos mitos e sagas celtas. Nos entes do Outro Mundo do sexo masculino, tal relação não se verifica.

É neste ponto que se observa o peso da cultura clerical sobre estes relatos de fundo céltico. O significado simbólico desta associação mulher-eqüídeo, demasiado elíptico mesmo nas tradições folclóricas medievais, acha-se substituído pela duplicidade da mulher-dragão ou serpente. O próprio papel de provedoras de bens e riquezas de origem não natural, essencialmente mágica, assumido por estas mulheres, impele-as para a ordem das entidades diabólicas, concepção que se vê reforçada através do simbolismo do dragão/serpente, criaturas inequivocamente demoníacas na tradição literária clerical. No entanto, as estruturas de significado cristalizadas nos substratos arcaicos raramente desaparecem de forma brusca. Podemos percebê-lo nos próprios exemplos citados acima. Na história de Gwestin Gwestiniog, a fada que se deixou apanhar por ele (pelo conteúdo da narrativa, é exatamente este o caso) serve-o voluntariamente até o dia em que ele lhe bate com o arreio. A referência ao arreio ajusta-se perfeitamente à dupla natureza mulher-eqüídeo observada nos casos de Rhiannon e Macha. Neste ângulo de análise, a questão do interdito na história de Eadric, o Selvagem também merece ser examinada. Eadric captura a fada pela força, mas depois esta declara que eles seriam felizes e prósperos desde que ele não reprovasse suas irmãs, as matas e o lugar de onde ela veio. Em outras palavras, Eadric não deve dirigir imprecações ao Outro Mundo, local onde se encontram forças que excedem os poderes humanos e não podem ser controladas pelos mortais. Na história de Hennon dos Grandes Dentes, por sua vez, onde a diabolização da fada apresenta-se completa através da imagem do dragão, não se verifica nenhuma espécie de interdito. A jovem que Hennon desposa simplesmente não assiste aos ofícios litúrgicos integralmente, o que levanta suspeitas sobre ela. Observe-se que neste caso há uma clara oposição entre os símbolos e referenciais litúrgicos (a celebração eucarística que a jovem não assiste, a água benta que a expulsa junto com sua serva, o padre que se encarrega de administrar-lhe a água benta etc.) e a característica ambígua da jovem e sua serva, revelada justamente através dos referenciais litúrgicos. Mas, por princípio, o modelo da mulher do Outro Mundo não se achava completo nesta historieta. Ele só vai se completar nos Otia Imperialia de Gervais de Tilbury, produzido décadas depois e receptivo à influência do escrito de Map. No relato de Gervais encontra-se não apenas a promessa de prosperidade da parte da fada como também a proibição que ela faz a seu marido de jamais vê-la no banho (o que revelaria sua dupla natureza, à semelhança dos referenciais litúrgicos da história de Hennon). Entretanto, a imagem do dragão/serpente ainda não se mostra definitivamente constituída. Segundo a narrativa, a fada tinha a forma de serpente somente na metade inferior do corpo, e ao ser surpreendida, ela mergulha na água do banho e desaparece; ela não sai voando impelindo grandes gritos sob a forma de um dragão, desfecho da história de Hennon que é retomado na lenda de Melusina de Jean de Arras.

O que queremos demonstrar com a análise destes relatos é que, no caso dos inter-relacionamentos entre a cultura folclórica e a cultura clerical na Idade Média a partir da produção literária e artística em geral do período, há toda uma estrutura de significados já consolidada que tende a permanecer enquanto unidades de sentido estratificadas em nível de mensagem. Ao mesmo tempo, o próprio processo de atualização do discurso cultural inerente à interação de referenciais culturais distintos tem como resultado a constituição de padrões interpretativos voltados à realidade social vivida pelos organizadores deste discurso. É esta dialética entre estruturas de significado já consolidadas a nível semiológico e padrões de significado que vão se consolidando a partir das condições sociais vigentes no momento da elaboração da mensagem que determina o teor e o conteúdo específicos de uma dada produção cultural.

Deste modo, o fundo céltico presente nas literaturas latina e cortesã dos séculos XII-XIII não pode ser inteiramente apreendido dentro da dicotomia sobrevivência mítica de tempos imemoriais/reflexo inevitável das condições de existência da sociedade medieval. Este é um ponto de capital importância para os estudos que se voltam à análise dos textos literários do período. É arriscado, por exemplo, atribuir a Marie de France uma concepção inovadora e supostamente subversiva do amor tomando por base o "lai de Milon", onde a heroína fica grávida do cavaleiro, seu amante. Não se pode ignorar que a autora está adaptando a uma platéia cortesã histórias de fundo céltico. E nestas histórias, normalmente o relacionamento entre um mortal e um ser feérico, independente do sexo do mortal, termina na geração de um descendente31 31 J. Flori cita o "lai de Milon" em apoio à sua tese de que Marie de France adota uma postura "inovadora e subversiva" em relação ao ideal amoroso da época, o que nos parece exagerado ainda que tal "lai" não se refira a um ser feérico (FLORI, J. "Amour et societé aristocratique au XIIe. siècle. L'exemple des lais de Marie de France". In Moyen Age, t.XCVII, 1992, pp. 17-34). . Não há nada de claramente inovador neste motivo, tanto mais que na época em que Marie escrevia, o ideal de "cortesia" não se achava ainda definido de forma ampla. Frente às condições impostas pelo embate entre a cultura clerical e a cultura folclórica, a metodologia que se afigura mais consistente parece ser a análise dos substratos arcaicos que permanecem nos textos medievais, o registro daqueles substratos que desapareceram por se revelarem inconciliáveis com o texto, e a explanação dos substratos arcaicos que permanecem no texto mas se apresentam modificados enquanto unidades de sentido.

NOTAS

2 LOOMIS, R. S. Arthurian tradition and Chrétien de Troyes. New York, Columbia University Press, 1949. Toda uma linha de estudos semelhante à de Loomis mas voltada aos ciclos mitológicos celtas, foi realizada por autores como C.-J. Guyonvarc'h e F. Leroux, entre outros.

3 MAP, Gautier. Contes pour les gens de cour (Trad. do De Nugis Curialium por A. K. Bate), Belgique, Brepols Turnhout, 1993, pp. 145-146.

4Idem, pp. 148-150.

5Idem, pp. 255-257.

8 LECOUTEUX, C. Mélusine et le chevalier au lion. Paris, Payot, 1982, p. 24.

9 MARKALE, J. Mélusine. Paris, Albin Michel, 1993, pp. 13-22. Sobre Melusina, há ainda o estudo de CLIER-COLOMBANI, F. La fée Mélusine au Moyen Age. Images, mythes et symboles. Paris, Le Léopard d'Or, 1991. De todo modo, uma análise das estruturas de significado presentes em Melusina não foi realizada em profundidade.

10 ARRAS, J. op. cit., pp. 14-17.

11 LECOUTEUX, C. op. cit., pp. 184.

12Idem, pp. 185-186.

15 CIRLOT, V. (trad.). Mabinogion. Madrid, Siruela, 1988, pp. 10-26.

16 Sobre o Outro Mundo céltico, ver CANA, P. Mac. Celtic Mythology. Hong Kong, Chancellor Press, 1983, pp. 122-131, VRIES, J. De, op. cit., pp. 256-268 e ELLIS, P. B. A dictionary of Irish Mythology. London, Oxford University Press, 1987 (verbete "Otherworld"). As ilhas distantes também eram um dos sítios de eleição do "Sid".

17 PUHVEL, J. Comparative Mythology. Baltimore and London, John Hopkins University Press, 1987, p. 174. VRIES, J. De. op. cit., pp. 134-135.

18 Sobre o ciclo diurno dos povos celtas ver REES, A. e REES, B. Rees. Celtic Heritage. London, Thames and Hudson, 1961, pp. 83-94.

20 GUBERNATIS, A. de. Mythologie zoologique ou les legendes animales. Paris, A. Durand et Pedone Lauriel, 1874, p. 307.

21 Sobre a ideologia trifuncional dos indo-europeus e o "Mahabharata" ver DUMÉZIL, G. Mythe et epopée. L'idéologie des trois fonctions dans les epopées des peuples indo-européens. Paris, Gallimard, 1968.

22 Sobre a Macha como divindade trifuncional ver DUMÉZIL, G. op. cit., pp. 602-612.

23 GANTZ, J. (trad.). Early Irish Myths and Sagas. London, Penguin, 1981, pp. 128-129.

24 A transcrição completa desta versão acha-se em DUMÉZIL, G., op. cit., pp. 608-610.

26 GANTZ, J. (trad.). op. cit., pp. 52-57.

28 JACKSON, K. H. (trad.). A Celtic Miscellany. London, Penguin, 1971, pp. 159-160.

29Idem, pp. 159-160.

30 PUHVEL, J. op. cit., p. 237.

Artigo recebido em ago./98 e aprovado em out./98

  • 1 KÖHLER, E. L'aventure chevaleresque Paris, Gallimard, 1974.
  • Para uma visăo dos seguidores de Köhler ver KELLOGG, J. L. "Economic and social tensions reflected in the romance of Chrétien de Troyes". In Romance Philology, vol. 39, 1985, pp. 01-21.
  • 2 LOOMIS, R. S. Arthurian tradition and Chrétien de Troyes. New York, Columbia University Press, 1949.
  • 3 MAP, Gautier. Contes pour les gens de cour (Trad. do De Nugis Curialium por A. K. Bate), Belgique, Brepols Turnhout, 1993, pp. 145-146.
  • 6TILBURY, Gervais de. Le livre des merveilles (Trad. parcial dos Otia Imperialia por A. Duchesne), Paris, Les Belles Lettres, 1992, pp. 148-150.
  • 7 ARRAS, J. de. Mélusine. (Trad. em francęs moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979.
  • 8 LECOUTEUX, C. Mélusine et le chevalier au lion. Paris, Payot, 1982, p. 24.
  • 9 MARKALE, J. Mélusine. Paris, Albin Michel, 1993, pp. 13-22.
  • 13Sobre esta questăo ver MELETINSKY, E. M. "Du mythe au folklore". In Diogčne, t. 99, 1977, pp. 117-142,
  • ponto que está implícito ainda que num viés completamente distinto, nas teses de M. Eliade (ver ELIADE, M. Mito e realidade. Săo Paulo, Perspectiva, 1972).
  • 14 Episódio relatado em SJOESTEDT, M. L. Dieux et Héros des Celtes. Paris, PUF, 1940, p. 56;
  • 15 CIRLOT, V. (trad.). Mabinogion. Madrid, Siruela, 1988, pp. 10-26.
  • 16 Sobre o Outro Mundo céltico, ver CANA, P. Mac. Celtic Mythology Hong Kong, Chancellor Press, 1983, pp. 122-131,
  • VRIES, J. De, op. cit, pp. 256-268 e ELLIS, P. B. A dictionary of Irish Mythology. London, Oxford University Press, 1987
  • 17 PUHVEL, J. Comparative Mythology. Baltimore and London, John Hopkins University Press, 1987, p. 174.
  • 18 Sobre o ciclo diurno dos povos celtas ver REES, A. e REES, B. Rees. Celtic Heritage. London, Thames and Hudson, 1961, pp. 83-94.
  • 19 STURLUSON, Snorri. Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62.
  • 20 GUBERNATIS, A. de. Mythologie zoologique ou les legendes animales. Paris, A. Durand et Pedone Lauriel, 1874, p. 307.
  • 21 Sobre a ideologia trifuncional dos indo-europeus e o "Mahabharata" ver DUMÉZIL, G. Mythe et epopée. L'idéologie des trois fonctions dans les epopées des peuples indo-européens. Paris, Gallimard, 1968.
  • 23 GANTZ, J. (trad.). Early Irish Myths and Sagas. London, Penguin, 1981, pp. 128-129.
  • 28 JACKSON, K. H. (trad.). A Celtic Miscellany London, Penguin, 1971, pp. 159-160.
  • 31J. Flori cita o "lai de Milon" em apoio ŕ sua tese de que Marie de France adota uma postura "inovadora e subversiva" em relaçăo ao ideal amoroso da época, o que nos parece exagerado ainda que tal "lai" năo se refira a um ser feérico (FLORI, J. "Amour et societé aristocratique au XIIe. sičcle. L'exemple des lais de Marie de France". In Moyen Age, t.XCVII, 1992, pp. 17-34).
  • 1
    KÖHLER, E.
    L'aventure chevaleresque. Paris, Gallimard, 1974. Para uma visão dos seguidores de Köhler ver KELLOGG, J. L. "Economic and social tensions reflected in the romance of Chrétien de Troyes". In
    Romance Philology, vol. 39, 1985, pp. 01-21.
  • 6
    TILBURY, Gervais de.
    Le livre des merveilles (Trad. parcial dos
    Otia Imperialia por A. Duchesne), Paris, Les Belles Lettres, 1992, pp. 148-150.
  • 7
    ARRAS, J. de.
    Mélusine. (Trad. em francês moderno por M. Perret), Paris, Stock, 1979.
  • 13
    Sobre esta questão ver MELETINSKY, E. M. "Du mythe au folklore". In
    Diogène, t. 99, 1977, pp. 117-142, ponto que está implícito ainda que num viés completamente distinto, nas teses de M. Eliade (ver ELIADE, M.
    Mito e realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972).
  • 14
    Episódio relatado em SJOESTEDT, M. L.
    Dieux et Héros des Celtes. Paris, PUF, 1940, p. 56; e VRIES, J. de.
    La religion des Celtes. Paris, Payot, 1963, p. 238.
  • 19
    STURLUSON, Snorri.
    Edda Meno. (Trad. de Luis Lerate). Madrid, Alianza, 1984, p. 41 e 62.
  • 25
    LECOUTEUX, C.
    op. cit., pp. 161-162.
  • 27
    Pwyll recebe como presente do Outro Mundo os porcos de Annwfyn, que são mantidos com seu filho na quarta rama do "Mabinogi", voltado à história de Math, filho de Mathonwy (
    Mabinogion,
    op. cit., p. 62). Na mesma história, o personagem principal, Gwydyon, encontra seu filho Lleu, que fora ferido e transformara-se numa águia (isto é, saíra da esfera da realidade humana) seguindo um porco que toma um caminho "como se fosse abaixo da terra" (
    Idem, p. 79). Já no conto "Kulhwch e Olwen" (
    Idem, pp. 99-141), o animal monstruoso associado ao Outro Mundo é o monstruoso javali Twrch Trwyth. Em bretão armoricano, "tourch" significa porco, e nas línguas celtas o javali é um porco selvagem, como ocorre com o inglês atual ("wild boar", javali, porco selvagem).
  • 31
    J. Flori cita o "lai de Milon" em apoio à sua tese de que Marie de France adota uma postura "inovadora e subversiva" em relação ao ideal amoroso da época, o que nos parece exagerado ainda que tal "lai" não se refira a um ser feérico (FLORI, J. "Amour et societé aristocratique au XIIe. siècle. L'exemple des lais de Marie de France". In
    Moyen Age, t.XCVII, 1992, pp. 17-34).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2000
    • Data do Fascículo
      1999

    Histórico

    • Recebido
      Ago 1998
    • Aceito
      Out 1998
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