Acessibilidade / Reportar erro

Imagens em conflito: infâncias em mudança e o estado de bem-estar social na Suécia. Reflexões sobre o século da criança

Resumos

Em 1900, Ellen Dey publicou o livro O Século da Criança, que antevia uma sociedade melhor e manifestava uma esperança que o século a se iniciar seria o século da criança. A Infância, de fato, adquiriu novos sentidos nas décadas seguintes. O objetivo deste artigo é esboçar as mudanças fundamentais do papel da criança na sociedade sueca, assim como do significado de infância. Procura-se ressaltar a estreita relação entre a implantação do Estado de bem-estar social e os seus novos e diversos grupos profissionais e instituições, e o desenvolvimento de novas noções de infância. Também se enfatiza as contradições inerentes às modernas noções de infância e como a ambição de dar forma à infância e realizar ideais por meio de medidas assistenciais de natureza diversa criou uma infância diferente daquela que se pretendia. A infância romântica foi substituída por uma infância planejada e racional.

História; Infância; Educação


During the very year of the 20th century, Ellen Key wrote the book The Century of the Child. The book presented a vision of a better society and expressed the hope that the 20 th century would be the century of the child. And childhood did indeed acquire new meanings in the decades to come. The overall aim of this paper is to outline fundamental changes in the role of children in Swedish society and the meaning of childhood. The paper points at the close relationship between the development of the welfare state and its different new professional groups and intitutions and the development new notions of childhood. The paper points at the contradictions inherent in modern notions of childhood. It also points at the how the ambitions to form childhood and realize ideals through welfare measures of different kinds created a different kind of childhood than was intended. The romantic childhood was replaced by a planned and rational childhood.

History; Childhood; Education


Imagens em conflito: Infâncias em Mudança e o Estado de Bem-Estar Social na Suécia. Reflexões sobre O Século da Criança* NOTAS

Bengt Sandin

Universidade de Linköping, Suécia

Resumo

Em 1900, Ellen Dey publicou o livro O Século da Criança, que antevia uma sociedade melhor e manifestava uma esperança que o século a se iniciar seria o século da criança. A Infância, de fato, adquiriu novos sentidos nas décadas seguintes. O objetivo deste artigo é esboçar as mudanças fundamentais do papel da criança na sociedade sueca, assim como do significado de infância. Procura-se ressaltar a estreita relação entre a implantação do Estado de bem-estar social e os seus novos e diversos grupos profissionais e instituições, e o desenvolvimento de novas noções de infância. Também se enfatiza as contradições inerentes às modernas noções de infância e como a ambição de dar forma à infância e realizar ideais por meio de medidas assistenciais de natureza diversa criou uma infância diferente daquela que se pretendia. A infância romântica foi substituída por uma infância planejada e racional.

Palavras-chave: História; Infância; Educação.

Abstract

During the very year of the 20th century, Ellen Key wrote the book The Century of the Child. The book presented a vision of a better society and expressed the hope that the 20 th century would be the century of the child. And childhood did indeed acquire new meanings in the decades to come. The overall aim of this paper is to outline fundamental changes in the role of children in Swedish society and the meaning of childhood. The paper points at the close relationship between the development of the welfare state and its different new professional groups and intitutions and the development new notions of childhood. The paper points at the contradictions inherent in modern notions of childhood. It also points at the how the ambitions to form childhood and realize ideals through welfare measures of different kinds created a different kind of childhood than was intended. The romantic childhood was replaced by a planned and rational childhood.

Keywords: History; Childhood; Education.

Em 1900, Ellen Key escreveu seu livro Barnets Århundrade, uma dura crítica em relação à maneira como a criança era tratada não só entre o proletariado mas também nas classes altas. A autora antevia uma sociedade melhor e manifestava a esperança, expressa no próprio título da obra, de que o século vinte seria "o século da criança". Outros compartilhavam desta visão. Durante as primeiras décadas do século vinte, os poderes públicos e entidades particulares mobilizaram-se para salvar as crianças de ambientes inadequados e para lhes oferecer melhores condições de vida. A discussão que então se estabeleceu evidencia a existência de conflitos entre diferentes posturas a respeito do que seria o ideal de infância pautada entre a infância romântica e a infância da criança trabalhadora.

O sentido atribuído a esse período da vida tem mudado bastante. Na Suécia contemporânea, a infância constitui-se numa longa fase da vida, a ponto do termo "desemprego juvenil" aplicar-se a indivíduos com até 26 anos. A infância hodierna está povoada de atividades de educação e lazer. A maioria das crianças, a partir de um ano de idade, já está envolvida com algum tipo de atividade pré-escolar, apesar da escola propriamente dita iniciar-se aos seis ou sete anos. Observa-se uma mudança significativa quanto às opiniões a respeito de como cuidar de crianças que, no começo do século XX, seriam consideradas delinqüentes, o mesmo ocorrendo com a definição e os cuidados prescritos para as deficiências físicas e mentais. Contudo, temos pouco conhecimento histórico acumulado acerca desses processos de transformação, bem como sobre as novas imagens de infância que deles resultaram.

É óbvio que novas idéias sobre onde e como as crianças deveriam passar sua infância foram formuladas tanto pelos novos grupos profissionais e políticos que emergiram no início do século XX, quanto por interesses comerciais - afinal, as crianças e seus pais constituíam-se em parte importante do mercado. Os velhos e os novos meios de comunicação, as imagens de crianças presentes na literatura a elas destinada, assim como as iniciativas do Estado para assegurar a saúde e o bem-estar infantil, também influíram poderosamente na maneira de olhar a criança.

Todas essas noções não devem, porém, ser tomadas como necessariamente verdadeiras. São imagens mutuamente conflitantes e noções que apresentam contradições internas. Muitas perguntas poderiam ser feitas: o que, de fato, significou para as crianças o desenvolvimento do século XX? Quais foram as conseqüências não intencionais dos programas de bem-estar social? Como a nova realidade e as novas visões sobre a infância foram moldadas e por quem? Como, por exemplo, a imagem da criança na literatura relacionou-se com a imagem infantil elaborada por médicos e psicólogos? Como a exposição comercial das crianças difere da construção da criança nas organizações escolares e de lazer? Como a imagem da criança elaborada na escola relaciona-se com a percepção da família e com a prática desenvolvida pelos serviços sociais?

É importante ressaltar que a infância - talvez fosse mais adequado falar em infâncias - não é uma construção homogênea e sem ambigüidades; antes, possui contradições internas e sentidos conflitantes. Assim, a visão romântica da infância, que apregoava a inocência e a livre criação da criança, na realidade nunca dispensou longos anos de escolarização, requisito que dificilmente pode ser identificado com liberdade e ausência de regras. Há que considerar, ainda, as nítidas distinções na percepção da infância de meninas e meninos.

Sem perder de vista estes múltiplos aspectos da questão, pretende-se apresentar uma síntese das mudanças em relação à infância durante o século XX tal como foi construída pelos processos sociais, econômicos e políticos. O debate em torno das condições de vida das crianças e jovens continua na ordem do dia, sendo freqüentemente formulado nos mesmos termos com que o eram na Suécia do início do século XX: a crise da família, a inadequação do lar, as deficiências da escola, o comportamento dos jovens no espaço público e o suposto aumento da criminalidade. Hoje, tal como naquela época, clama-se por mais instituições devotadas às novas gerações, apoio e aconselhamento para as famílias e reformas na escola. É pertinente questionar, portanto, porque as crianças foram ou são distinguidas - de fato descobertas, - enquanto questão social e política. Assim, não se trata apenas de crianças que tinham problemas ou que eram encaradas como tal, mas de pontuar o surgimento de novos grupos profissionais e as transformações então verificadas nas relações entre as diversas classes sociais, entre homens e mulheres e entre adultos e crianças, além de levar em consideração as possibilidades das crianças obterem empregos e o fato de haverem se tornado objeto de interesses comerciais. Estas são as razões pelas quais os novos ideais a respeito da infância foram construídos.

O SÉCULO DA CRIANÇA - UMA PERSPECTIVA

No início do século XIX, as classes altas, tomadas de entusiasmo romântico, começaram a encarar a infância como um estado natural e indestrutivelmente genuíno e autêntico. Para as crianças das famílias abastadas, contudo, também era o período no qual deveriam aprender comportamentos e atitudes condizentes com sua futura posição social. Apenas tardiamente assumiam responsabilidades e, contrariamente ao que ocorria com os filhos dos operários, sua infância não possuía conexões com o mundo do trabalho nem com a transição para a fase adulta. No debate social e público, as classes altas censuravam os operários e os camponeses pela forma livre e pouco controlada de criar seus filhos, assim como pelo fato das crianças trabalharem ou perambularem pelas ruas. Estabeleceu-se uma conexão entre a forma de educar a criança e a cultura popular, da qual as classes altas desejavam manter-se distantes1 1 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden. Lund, 1986. . O comportamento dos aprendizes nas ruas, sempre barulhentos, foi visto como prova da existência de uma subcultura autônoma e da rejeição do mundo adulto. As classes dominantes consideravam tal cultura alheia e ameaçadora. As crianças dos cidadãos prósperos vivenciavam uma infância mais estrita, controlada pelas exigências e expectativas do mundo adulto2 1 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden. Lund, 1986. . Isto permite ilustrar que não há um único tipo de infância, isto é, que a infância difere entre meninos e meninas; entre habitantes do campo e das cidades; de uma para outra classe social.

No fim do século XIX, essas diferenças tornaram-se claramente visíveis. Crianças da cidade e do campo contribuíam para a renda familiar ao se tornarem responsáveis por seus irmãos e irmãs mais jovens, permitindo, desta forma, que suas mães pudessem trabalhar. Eles coletavam o carvão que havia caído no pátio da estrada de ferro; colhiam frutas e madeira; entregavam jornais ou trabalhavam como mensageiros. O dinheiro que amealhavam colaborava para o sustento da família e seu trabalho proporcionava-lhes status e auto-estima. Simultaneamente, as crianças encontravam-se, porém, sob o foco da opinião pública. Muitas pareciam ociosas e perambulavam pelas ruas sem supervisão de adultos pelas ruas. Um artigo publicado em 1888 no jornal Öresundsposten, afirmava que a atividade de juntar carvão prejudicava o desenvolvimento moral da criança na medida em que lhes incutia um sentido por demais tolerante de propriedade3 3 SANDIN, Bengt. "Education, Social Change and `the Discovery of Normality' in urban Sweden, 1850-1910". Paper presented at the SSHA conference in Chicago, 1992. .

Na Suécia, cedo propugnou-se que todas as classes sociais deveriam freqüentar a mesma escola - uma escola geral. Tal demanda partiu de uma classe média que enfrentava crescentes dificuldades para manter seus filhos nos dispendiosos estabelecimentos particulares. A nova infância tinha um preço para estes pais; instrutores particulares para os meninos, lições de piano para as meninas, que custavam muito dinheiro. A escola elementar pública teve que ser alterada para abrigar todas as classes sociais. Os próprios professores formulavam demandas, mostrando-se interessados em atender crianças de todas as classes. A presença de jovens das famílias abastadas imprimia status diferenciado para as instituições escolares.

Nos anos de 1860 e 1870, o debate concentrou-se em torno das diferentes estratégias para atrair os filhos do proletariado para a escola e da necessidade de desenvolver um sistema escolar que incluísse todos os jovens até a idade de 14 anos. Este limite não foi estabelecido em função do desenvolvimento da criança, mas tendo em vista o desejo de controlar o meio urbano e de adequar a educação da criança e sua idade escolar aos dispositivos legais de proteção e às prescrições do Código Penal. Já na década de 1880, as preocupações centram-se, em grande parte, na conveniência de uma escola geral para todas as classes sociais, a partir de argumentos políticos e práticos. Apesar de estar concentrado nas cidades, o debate trouxe conseqüências para o funcionamento das escolas rurais que, neste período, ainda eram encaradas como um problema particular e separado.

No último decênio do século XIX, a temática deslocou-se para as condições internas e os aspectos administrativos da escola, pontos que certamente deitam raízes nas mudanças ocorridas anteriormente. Afinal, quais as conseqüências de colocar, na mesma escola, crianças de diferentes classes sociais? Para compreender este ponto, é preciso analisar o programa da escola geral, tal como o desenvolvido por Fr. Berg e outros. Como seria possível juntar crianças da classe trabalhadora com crianças ricas? Havia, de fato, a intenção de colocar todas as crianças na chamada nova escola? Os administradores escolares claramente percebiam a questão como um problema. Um inspetor de Malmö fez, nos primeiros anos de 1880, o seguinte comentário a respeito do assunto no seu relatório sobre a educação e os orfanatos em países estrangeiros:

A escola pública não pode escolher seus alunos, deve aceitá-los tal como são, não importando sua condição; ela não tem o direito de rejeitar nem a criança com deficiências intelectuais nem aquelas moralmente corrompidas. Pelo contrário, é sua obrigação procurar reunir as referidas crianças caso não freqüentem voluntariamente a escola. Qualquer pessoa que tenha contato com a escola pública sabe o quão danosa é esta circunstância para o sucesso do trabalho escolar, pois a criança intelectualmente limitada retarda o progresso da talentosa e as corrompidas exercem uma influência deletéria sobre as demais.

Estes incômodos estão aumentando em todas as sociedades, de acordo com o ritmo do seu crescimento; eles são naturalmente mais sérios nas grandes cidades, nas quais existe uma população comparativamente maior de indivíduos desajustados. Aí tem sido geralmente necessário valer-se de medidas especiais, não só para facilitar o trabalho da escola pública, mas também para tratar o elemento anormal da maneira enérgica que requer o seu desenvolvimento. Desta forma, tem aparecido escolas de segregação, escolas penais, casas para crianças, e casas de emergência, todas com a intenção de cuidar das crianças que, por deficiências morais, não podem ser ensinadas na escola elementar pública; enquanto as crianças que não podem conviver com outros estudantes devido a deficiências intelectuais, têm sido enviadas para casas destinadas a idiotas ou reunidas em classes especiais, conhecidas como classes de repetência ou segregacional4 3 SANDIN, Bengt. "Education, Social Change and `the Discovery of Normality' in urban Sweden, 1850-1910". Paper presented at the SSHA conference in Chicago, 1992. .

Na conclusão, o autor afirmava que a administração escolar julgara necessário separar dos demais alunos os delinqüentes, as crianças que conviviam com depravação moral e material, aquelas privadas da boa influência da educação e cedo iniciadas no crime. Durante os anos de 1890 foram criados comitês nos quais os professores primários desempenhavam importante papel, a fim de estabelecer uma legislação a respeito da delinqüência. A conseqüência foi a lei de 1902, regulamentando os comitês escolares que possuíam autoridade para separar as crianças dos pais que viessem a colocá-las em situações de depravação moral e/ou criminal. Naturalmente, a adesão à normalidade, definida por meio da educação obrigatória, tornou-se o critério para evitar a delinqüência.

Deve-se ter presente que a escola obrigatória e geral deveria, segundo seus mentores, preparar as crianças para ocupar diferentes posições sociais. Não era uma questão de circulação geral de bens, pois esta continuava assentada nos talentos individuais. Reivindicava-se a melhoria da qualidade das escolas gerais, o que implicava que as "crianças anormais", ou seja, as que apresentassem deficiências intelectuais ou as mal ajustadas socialmente, deveriam ser excluídas, tendo em vista a diminuição do tamanho das salas de aula e a introdução de uma educação voltada para a cidadania nacional. A habilidade para seguir os ensinamentos escolares tornou-se critério para definir a normalidade e a deficiência.

O ideal de criar uma escola para todas as classes não só requeria a reconciliação nacional - um novo curriculum nacional - como colocava na ordem do dia a questão da necessidade da melhoria do ensino, classes menores, treinamento dos professores, novos materiais didáticos e a segregação dos estudantes que, de acordo com os valores burgueses, apresentavam problemas sociais e intelectuais. A cidadania nacional era concebida em termos de um organismo facilmente moldável no sentido da construção de um código comum para todas as classes sociais, no qual cada um teria o seu papel. A nação seria constituída por todos os suecos que, entretanto, ocupassem lugares diferenciados no sistema social.

No interior das escolas foi implementado um grande número de programas sociais para crianças carentes, com destaque para a distribuição de merendas e a higiene individual, como os banhos nos sábados à tarde e o tratamento das roupas com gás para eliminar vários tipos de vermes. Argumentava-se que não se poderia esperar que os pais mandassem seus filhos para a escola se havia o perigo de voltarem para casa com doenças. Crianças famintas, por sua vez, contribuíam para um ambiente escolar pouco ordeiro. Para aqueles cujos pais ficavam fora de casa o dia todo, foram organizadas brincadeiras após o horário escolar. Nas férias de verão havia, para preencher o tempo livre, os campos de férias e aulas extras, que objetivavam reduzir o número de crianças nas ruas.

Estamos, portanto, muito distantes da escola da primeira metade do século XIX. Os dispositivos da lei escolar de 1882 começavam a se fazer sentir no cotidiano. Meninos e meninas permaneciam na escola dos sete anos aos quatorze anos e as diferenças entre a educação de uns e outros, perceptível durante os anos 1860 e 1870, foram praticamente eliminadas. Os desvios em relação à nova normalidade podiam ser descritos e medidos. O fato de crianças de diferentes classes conviverem juntas nas escolas contribuía para tornar ainda mais nítida a distância que as separavam. Num discurso para filantropos de Estocolmo, a organização responsável pelos campos de férias referiu-se às visíveis diferenças entre as crianças, acreditando que tal fato cortaria o coração das mães abastadas, que fariam doações para os pobres. Os filhos dos pobres tornaram-se identificáveis não só para fins de discurso ou de registros escolares, mas publicamente, num contraste evidente com as demais crianças. Professores, médicos e filantropos tentaram transformar as crianças pobres em crianças da nação, sujeitos da nova nação. Nesta empreitada, valeram-se das vantagens que, no final do século XIX, provinham das técnicas derivadas das novas ciências médicas e psicológicas, então emergentes. As crianças, tanto nas escolas como nos campos de verão, começaram a ser analisadas e avaliadas de múltiplas formas, com o objetivo de descobrir os efeitos da política e dos planos de ação desenvolvidos para ajudá-las. A imagem clássica era a da criança antes e depois de participar dos programas. O "antes e depois" abriu caminho para uma definição médica e psicológica de normalidade, fundada na noção de uma infância sem trabalhos físicos, típica de uma família de classe média, e que apresentasse aproveitamento escolar médio.

As novas exigências em relação às crianças traziam conseqüências palpáveis para as famílias da classe trabalhadora. Esperava-se que as mães mandassem seus filhos para a escola limpos, com saúde e na hora certa. Os homens, por sua vez, deveriam prover o sustento de sua esposa e filhos, o que presumivelmente reforçava as pressões no sentido de que precisavam receber um salário suficiente para torná-los o único arrimo da família. De outra parte, tal contexto pode ter contribuído para diminuir o tamanho das famílias, cuja manutenção era ainda mais dificultada pelo alongamento da infância, período no qual as crianças dependiam dos pais.

O ideal da maternidade, componente do sentimento nacional fortemente enfatizado na virada do século XIX para o XX, já correspondia a esta nova compreensão da infância, ou seja, de uma criança dependente de um pai provedor e de uma mãe carinhosa. O novo sentimento de responsabilidade e cuidado que passou a envolver a noção de família também resultou destas mudanças, que impuseram limites morais a partir do momento em que uma nova infância "normal" e com validade geral foi estabelecida. Todos deveriam beneficiar-se das "bênçãos da infância". Ao mesmo tempo, difundiu-se uma outra maneira de olhar a família que estipulava, de acordo com uma dada normalidade, novos papéis para todos os seus membros, inclusive as crianças. O padrão desejado nem sempre correspondia à realidade, mas pelo menos poderia ser usado como parâmetro para avaliar o quanto a família se distanciava do ideal esperado5 5 SANDIN, Bengt. op. cit., 1992. . Uma série de medidas foram tomadas não só para mudar o currículo e para controlar as ausências, mas também para separar os "delinqüentes" e "moralmente corrompidos" e para livrar as crianças dos piolhos6 5 SANDIN, Bengt. op. cit., 1992. .

Crianças e mulheres trabalhadoras foram vistas, neste período, como ameaças para a concepção de infância forjada pelas classes altas. O lugar da mulher era em casa e o da criança na escola. A existência de mães solteiras era tomada como fonte de perigos morais e eugênicos, além se constituir num problema racial e social.

As crianças deveriam ser preservadas de ambientes perigosos e impedidas de trabalhar. O trabalho infantil era, por definição, um abuso. Zelizer7 7 Weiner, Department of Child Stuides, Linköping University, Sweden. Forthcoming. , valendo-se de exemplos provenientes dos EUA na passagem do século XIX para o XX, assinalou o conflito entre a idéia de uma criança economicamente útil e a sua valorização emocional. Diferentes concepções de infância afloravam nos casos que envolviam seguro, adoção e compensação pela perda de uma criança. Referindo-se ao último ponto, Zelizer ressaltou como a noção de valor de uma criança mudou. Inicialmente, a sua morte poderia ser medida em termos do quanto a criança iria ganhar ou contribuir para a renda familiar antes de deixar a casa paterna. Esta avaliação tornou-se controversa no início do século XX e, num caso famoso, um juiz decidiu que uma criança não possuía nenhum valor econômico. Logo tornou-se claro, porém, que era possível atribuir um preço para a perda emocional que a morte de uma criança representava, o que abria a possibilidade dos pais solicitarem compensações, em termos econômicos, para reparar seus danos sentimentais.

Mudanças correspondentes ocorreram em relação à adoção. O trabalho infantil, tradicionalmente valorizado do ponto de vista econômico, não só determinava o preço mas também o sexo da criança que seria adotada - meninos com idade para trabalhar eram preferidos às meninas. Entretanto, a nova maneira de olhar a infância opunha-se a avaliações desta natureza; as crianças deveriam ser cuidadas em razão de seu próprio bem-estar e não por sua utilidade em termos de trabalho. Na Suécia, o debate a respeito do leilão de crianças pobres e de órfãos contribuiu para levar à sua proibição. Na realidade, a prática desaparecera, mas a sua proibição legal evidencia a nova atitude.

A nova maneira de encarar a infância foi ilustrada no romance Rasmus and the Vagabond, escrito por Astrid Lindgren. O livro trata do desespero de um pequeno órfão, Rasmus, que ninguém deseja adotar. Os possíveis pais não mostravam interesse em meninos morenos com cabelos lisos, querem meninas loiras com cabelos encaracolados. Se o romance tivesse sido escrito algumas décadas antes, Rasmus - um bom trabalhador para a lavoura - provavelmente seria a primeira criança escolhida. (Compare-se esta obra com Anne of Green Gables, escrita em 1908, na qual um velho casal procura um rapaz para ajudar em seu sítio). O menino Rasmus consegue escapar do orfanato com a ajuda de um vagabundo, cuja moral é ressaltada ao longo das aventuras que vivem nas ruas. Uma família rica, proprietária de terras e sem herdeiros, interessa-se em adotar Rasmus por gostar dele, ou melhor, "amá-lo". Depois de hesitar, o herói escolhe seguir o exemplo do querido vagabundo e volta às ruas. Porém, o vadio tem esposa e uma casa pequena. Rasmus decide então permanecer com estas pessoas que só têm amor para lhe oferecer. Os novos ideais não poderiam ser melhor ilustrados. As dificuldades de Rasmus, porém, não eram apenas invenção literária. Nos anos 1920, um funcionário de uma repartição de Solna queixava-se de possuir muito mais meninos do que famílias para criá-los, enquanto as poucas meninas disponíveis não eram suficientes para satisfazer a demanda8 7 Weiner, Department of Child Stuides, Linköping University, Sweden. Forthcoming. .

Estas mudanças não aconteceram repentinamente. Já foram mencionadas as transformações no interior da escola, lugar no qual conviviam crianças provenientes de diferentes mundos, tornando evidentes as distâncias que as separavam. Outros fatores devem ser mencionados. A virada do século XIX para o XX foi caracterizada por conflitos sociais. O debate a respeito da infância ocorreu num contexto marcado pela emergência dos movimentos de trabalhadores e suas reivindicações. A atenção foi dirigida para as condições dos destituídos, com a burguesia entendendo que a classe trabalhadora deveria ser incorporada à sociedade por meio da diminuição dos abismos sociais, forma eficiente de prevenir desordens políticas. O nacionalismo surgia como o ideal capaz de unir a todos, proprietários e trabalhadores.

Ao mesmo tempo, a história do século XX tem sido caracterizada pela crescente profissionalização do cuidado infantil, aspecto que se fez sentir no interior da própria família. Os amplos objetivos sociais da escola, dos conselhos de família, da educação dos pais são expressões deste processo, assim como os centros para maternidade e as creches, o que permite perguntar a respeito da capacidade da família em satisfazer as elevadas demandas sociais que envolvem a criação de uma criança. O interesse pelo planejamento social e pela infância, formulados por especialistas durante todo o século XX, também aponta para o fato da criação dos filhos haverem transcendido os limites que separam o público e o privado. Na Suécia, os cuidados dispensados à criança no âmbito familiar são, definitivamente, também um assunto de interesse público. Alguns estudiosos chegaram mesmo a afirmar que, durante o século XX, o Estado e os especialistas colonizaram a família9 9 Barnstugor, Barnavårdsmannaskap, Barnolycksfall. In SOU., Stockholm, Emil Kihlströms tryckeri aktiebolag, 1967, nº 08, p. 46. . Independentemente da forma como se possa descrever esse processo, um ponto parece assente: o surgimento de novos grupos profissionais alterou as relações sociais e de poder entre pais, crianças e instituições, criando novas imagens da infância. Em várias oportunidades, o desamparo da criança e a sua dependência dos especialistas foi apontada, tal como ocorreu com a comissão governamental relativa aos cuidados com as crianças:

A Psicologia e a psicologia infantil ensinaram-nos que distúrbios adquiridos muito cedo podem perdurar por anos a fio, com sintomas variados e diferenciados. Danos de natureza séria nos primeiros anos de vida podem manifestar-se sob a forma de dificuldade de relacionamento e agressividade em crianças com idade pré-escolar; indisciplina e dificuldades na aprendizagem em crianças maiores; comportamentos anti-sociais e criminalidade na adolescência e doenças de natureza psico-físicas entre adultos. Esta é uma das mais poderosas e notáveis reações em cadeia. As ciências do comportamento têm mostrado que muitos distúrbios da personalidade e do caráter, assim como doenças, têm sua origem nas condições emocionais insatisfatórias de uma infância desamparada, época em que a personalidade e o caráter se formam10 9 Barnstugor, Barnavårdsmannaskap, Barnolycksfall. In SOU., Stockholm, Emil Kihlströms tryckeri aktiebolag, 1967, nº 08, p. 46. .

O fato da freqüência escolar obrigatória haver sido estendida até idades mais avançadas contribuiu para a segregação das crianças em relação ao mundo adulto e a vida produtiva. Um dos propósitos da reforma escolar levada a efeito nos anos 1950 foi criar uma escola para todas as classes sociais e oferecer oportunidades iguais para todas as crianças. Torsten Husén argumentou que as crianças tinham pouco contato com os adultos dentro e fora da família; afinal as mães trabalhavam e, depois das aulas, as crianças não encontravam adultos em casa:

O dever das famílias em relação à criação dos filhos tem diminuído e o setor público (as escolas) tem assumido maiores responsabilidades. Entretanto, se compararmos a escola e a casa no que respeita à criação dos filhos, torna-se óbvio que o sistema educacional cumpre um papel essencial na educação social e moral das crianças... pois as escolas estão, sob certos aspectos, melhor preparadas para cuidar da criança do que a família, com seus contatos sociais limitados a um ou dois parentes11 11 ARNMAN, Göran & JÖNSSON, Jönsson. Barns villkor - samhällets spegel. Stockholm, Allmänna Barnhuset, 1987. .

Entretanto, mesmo no interior da estrutura da nova escola, crianças de classes diferentes continuavam a seguir caminhos educacionais distintos. Foi criada uma única escola para todas as crianças, mas ela abriga mundos infantis e culturas diferenciadas12 12 No original: To finance the emotional child is an expensive endevour. . O que essas crianças compartilham é a dependência, tornada mais longa, em relação aos adultos e o fato da escola haver assumido uma importância decisiva para o futuro desses jovens.

A longo prazo, percebe-se que o início da vida produtiva foi postergado e que o trabalho infantil foi qualificado de inadequado. Ironicamente, isso aconteceu exatamente no momento em que a escola também era concebida, em programas direcionados para experiências no trabalho, como uma espécie de portal de entrada para o mundo da produção, sendo a renda obtida pelas crianças repassada para o chefe da família.

No decorrer do século XX, o Estado assumiu, numa escala crescente, a tarefa de proteger e cuidar das crianças. Nos inquéritos governamentais a respeito da educação dos pais e da necessidade de creches etc, deparam-se vários pontos de vista a respeito da criança, da infância e da família, esta última entendida como uma unidade problemática de socialização. As atividades dos comitês governamentais, que analisavam o ambiente das crianças e suas brincadeiras, também mostram claramente a posição do poder público enquanto protetor dos direitos das crianças frente à negligência e abusos dos pais. Desde os anos 1970, não só os pais foram proibidos de bater nos filhos como as crianças também foram cuidadosamente informadas sobre os seus direitos. O menor passou a ser encarado como um ser individual protegido frente aos maus tratos de pais, professores, interesses comerciais etc. Ocasionalmente, era possível ouvir vozes que propunham antecipar o direito de voto para 14 anos; pagar salários pela freqüência das crianças à escola como forma de torná-las independentes, além de defender o direito dos jovens divorciarem-se de seus pais, caso não se relacionassem bem com os mesmos. Numa palavra, as crianças deveriam gozar de direitos idênticos aos dos adultos.

A postura do Estado não esteve, porém, livre de ambigüidades; diferentes repartições apresentavam propostas que, não raro, eram conflitantes. Assim, os conselhos apresentados pelo órgão responsável pela segurança nas estradas insistia na necessidade de supervisionar as crianças; enquanto outros comitês públicos lembravam aos pais que era preciso deixá-las brincar livremente. Em geral, uma grande parte da institucionalização e supervisão adulta objetivava criar condições adequadas para brincadeiras "livres", porém dentro de certos limites institucionais. Para andar de bicicleta, por exemplo, todas as crianças seriam obrigadas a usar capacete.

A implantação de medidas visando o bem-estar infantil resultou em sensível melhoria das condições materiais das crianças suecas. Na segunda metade do século XX, aumentou o número de mulheres trabalhando fora da casa e, atualmente, o país detém uma das maiores proporções mundiais de força de trabalho feminina, situação que, em grande parte, deve-se às novas formas de cuidar da infância. Paralelamente, na vida das crianças havia diminuído o significado do lar e da família em favor de outras instituições, como creches, escolas e centros de lazer, o que tem conseqüências no comportamento adulto - controle de emoções, pontualidade, capacidade de adaptar-se em grandes grupos etc - pois atitudes que antes eram aprendidas apenas quando as crianças adentravam na escola, tornaram-se agora perceptíveis em idade inferior. Outra conseqüência está no fato das escolas infantis e pré-escolas recrutarem, quase que exclusivamente, mulheres, o que significa que, atualmente muito mais do que antes, as crianças compartilham ambientes marcadamente femininos.

A grande importância das instituições públicas não significa, porém, que as crianças perderam sua importância para os homens e as mulheres. De fato, observa-se o contrário. Na sociedade sueca hodierna quase todas as mulheres adultas têm filhos, o que não acontecia no início século XIX, quando muitas mulheres permaneciam solteiras e sem filhos. Hoje mais mulheres têm filhos, ainda que em menor quantidade. De fato, a maternidade adquiriu, no ciclo de vida de uma mulher, maior importância do que possuía no passado. Os filhos passaram a fazer parte da expectativa de mulheres e homens e os desvios são considerados excepcionais, evidenciando um critério de normalidade. É provavelmente por isso que os centros de adoção suecos podem cobrir os altos custos de trazer crianças do exterior. Financiar a "criança emocional" é uma tentativa dispendiosa13 12 No original: To finance the emotional child is an expensive endevour. . Para os casais homossexuais de ambos os sexos, a luta pelo direito de adotar uma criança ou para fertilizar-se, no caso do casal homossexual feminino, tornou-se importante símbolo de aceitação social e de normalidade familiar.

Os centros e as associações estão organizando cada vez mais o tempo das crianças e o lazer, no sentido de realmente ser um tempo livre, já que este tem diminuído. São os adultos que organizam e planejam as atividades infantis. As autoridades municipais encorajam o lazer com conteúdo educacional sob a justificativa de que assim afastam crianças e jovens das ruas. Pais normalmente mobilizam razões similares para os esportes e as atividades nos clubes, encaradas como preparação para o futuro. O tempo livre tem sido organizado e preenchido com conteúdos educacionais, afinal, as crianças não podem permanecer inativas. A prática de esportes tem sido recomendada para idades cada vez menores e as creches apreciadas pelo seu valor educacional. Um estudo recente sobre as atitudes dos pais frente às diferentes formas de cuidar dos filhos pequenos sugeriu a preferência por instituições profissionais do tipo escolar em detrimento das casas particulares, sob o argumento de que as primeiras aumentavam a competência das crianças e preparavam-nas para sua futura vida estudantil.

Nas últimas décadas, as escolas assumiram grande parte da responsabilidade de ocupar o tempo livre das crianças, tomando como sua tarefa propiciar-lhes atividades apropriadas de lazer. Observa-se aqui, pois, uma extensão do papel da escola enquanto importante instituição para a política social que, por sua vez, para definir o que é a criança, apóia-se em considerações médicas e de caráter preventivo14 14 SOLBERG, Anne. "Negotiating Childhood. Changing construction of age for Norwegian Children". In JAMES, Allison, & FROUT, Alan (orgs.). Constructing and reconstructing childhood. London, Farmer Press, 2ª ed., 1997. . A integração cultural das crianças, inclusive no seu tempo livre, é gerenciada pelo sistema educacional.

A institucionalização da vida da criança constitui-se num dos elementos mais significativos da infância hoje, processo que foi acompanhado pelo crescimento de novos grupos profissionais -professores de pré-escola, profissionais de recreação, pediatras, psicólogos infantis e familiares, funcionários estatais e municipais que podem suplementar, apoiar e, ainda mais importante, questionar a forma como os pais cuidam de seus filhos. Esses grupos têm interesse em mostrar que são importantes para assegurar o bem-estar das crianças: os profissionais de recreação são especialistas em organizar o tempo do lazer; os profissionais do estudo infantil, em cuidar do bom desenvolvimento intelectual das crianças. Todos estes grupos, que têm seus interesses corporativos, precisam definir sua competência em relação à maneira como os pais tratam seus filhos, assim como em relação a outros especialistas. Cabe-lhes, por ofício, questionar a competência dos pais a fim de proteger os direitos das crianças. O Estado, por sua vez, atribuiu-lhes a tarefa de descobrir, prematuramente, os comportamentos desviantes e socialmente mal ajustados, dada a importância de prevenir o desenvolvimento de criminosos em potencial já nos jardins de infância. Rotinas profiláticas têm sido desenvolvidas para descobrir famílias potencialmente problemáticas e prevenir a criação de crianças sob risco.

O sistema escolar sueco considera fundamental a cooperação dos pais na realização das lições de casa, na difusão das instruções escolares e na aceitação, por parte das crianças, do sistema disciplinar da escola. Em alguns casos, os pais são encarados como auxiliares pedagógicos ou educacionais, devendo seguir regras e métodos definidos pelas escolas. A família é definida como uma entidade educacional para fins das necessidades do sistema escolar e aquelas que não conseguem cumprir os requisitos são encaradas como negligentes ou, pelo menos, como indiferentes e com pouco ou nenhum interesse pelo bem-estar dos filhos. Assim, por exemplo, recentes práticas educacionais adotadas no primeiro grau prescrevem atividades de leitura que devem ser desenvolvidas em estreita cooperação com os pais, que são obrigados a preencher relatórios dando conta das leituras diárias realizadas com os filhos.

Ironicamente, enquanto a infância tende a ser mais e mais organizada, as figuras mais populares da literatura infantil são as crianças que se revoltam e resistem a obedecer e seguir as regras e normas da sociedade adulta. Como argumentam alguns sociólogos, o crescimento das instituições devotadas à infância e à socialização precoce criam crianças capazes de encontrar brechas no sistema de integração e espaço livre para si próprias15 15 TÄNNSJÖ, Torbjörn. Göra Barn. Stockholm, Sesam, 1991. .

Neste final do século XX, aumentaram as demandas e expectativas em relação às crianças. Os pais aprendem em relatórios científicos e artigos publicados na imprensa que devem, para propiciar o desenvolvimento de talentos musicais, deixar seus filhos ouvirem música quando ainda estão no ventre materno. Especialistas em psicologia afirmam que o bebê possui muito mais competência do que acreditamos. Essa nova concepção - a de bebê competente - recoloca o processo de desenvolvimento infantil num outro contexto científico. Os velhos modelos de mudança no desenvolvimento e crescimento são revisados e talvez alterados - esta é uma especulação minha que justifica as experiências com interação infantil em ambientes institucionais. Uma lição que pode ser extraída deste processo é que a aprendizagem pode iniciar-se em idade muito precoce, o que é quase um imperativo moral. A mensagem é: não desperdicem os talentos e as habilidades dos seus filhos na escola nem na quadra de tênis. Em nome da criança, do orgulho familiar e para melhor exportação e importação, é importante desenvolver as habilidades da criança.

A moeda também possui o outro lado. Nem todos conseguem seguir os padrões idealizados. Alguns usam óculos e não são brilhantes nos esportes; outros apresentam deficiências que criam ainda mais dificuldades para enfrentar a sociedade da forma como está constituída hoje. A nova ciência médica possibilita que pessoas sem filhos tornem-se pais; mas ela também instaura outros dilemas. Má formação congênita é passível de diagnose nos estágios iniciais da gestação, que pode então ser interrompida. Crianças incapacitadas ou portadoras de doenças incuráveis não precisam ver a luz do dia, elas podem ser salvas de uma vida de sofrimento, mas também serão privadas do prazer de viver. Escolher quem deve ou não viver e os critérios para o gozo do direito à vida não é tarefa fácil para os futuros pais, médicos e poderes públicos1616 HALLDÉN, Gunilla. Föräldrars tankar om barn. Uppfostringsideologi som kultur. Stockholm, Carlssons, 1992.17 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In.

Estamos diante de um difícil problema moral que, resolvido ou não, evidencia as conseqüências das novas técnicas científicas. O critério de normalidade pode ser estabelecido e acredito que ele o será de forma mais intensa e restrita com a ajuda da nova ciência.

A mudança no papel das mulheres trouxe outras conseqüências. No início do século XX, o pai ausente era encarado simplesmente como um problema material - como fazer para que ele arcasse com a manutenção da mãe e dos seus filhos a fim de que não se tornassem um peso social? A necessidade da presença paterna para as crianças, assim como a dos homens em relação aos seus filhos, não eram alvo de atenção. Com a construção do ideal de modernidade do século XX e o estabelecimento de um forte laço entre a mãe e seus filhos, é óbvio que os homens que não viviam juntos com suas crianças passaram a ser marginalizados. Só recentemente a ausência paterna foi reconhecida como questão em termos emocionais e de identidade. A transformação do papel masculino foi, pelo menos em parte, conseqüência da crescente participação das mulheres no mundo do trabalho. A nova identidade masculina teve que ser definida levando-se em conta sua relação com os filhos. O ausente pai adquiriu um novo significado: deixou de ser um problema de cunho econômico para transformar-se em dilema emocional.

Temos nos distanciado do sonho romântico de uma infância idílica - uma longa infância, livre de obrigações e semelhante a longas férias de verão, como as descritas na obra Noisy Village, de Astrid Lindgren. Esta ideologia foi criada em contraste com a dura realidade e a breve infância das crianças da classe trabalhadora. Inicialmente, foi um dos alicerces da construção do nacionalismo sueco, um elemento da ambição liberal e conservadora para, por meio das iniciativas estatais e de voluntários, melhorar o cotidiano das pessoas. Foi parte da arte de engenharia social que, posteriormente, tornou-se o ideal da social democracia e seu estado de bem-estar. Este desenvolvimento, por seu turno, criou os profissionais de infância que, mais uma vez, alteraram o significado e o sentido da infância. Agora nós temos condições diferentes e uma infância diferente: a criança cientificamente planejada, vivenciando uma infância de horários estabelecidos por pais que trabalham fora e por um corpo de profissionais e especialistas da infância. Mas esta também é uma infância com qualidade garantida e protegida por várias agências do Estado. Cada criança tem direito a uma infância, o que também significa mudança profunda no sentido da infância: ser criança não é meramente uma questão de ser, de existir. Em vez disso, ser criança é transformar-se no maior projeto da vida, tanto para as próprias crianças quanto para seus pais1716 HALLDÉN, Gunilla. Föräldrars tankar om barn. Uppfostringsideologi som kultur. Stockholm, Carlssons, 1992.17 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In. Nestes termos, detectam-se os contornos da infância hoje: maturidade precoce; compartilhamento das experiências adultas por meio da mídia; aprendizagem rápida dos comportamentos adultos e de seus códigos, propiciada pela participação em instituições para além da casa. Uma vida de brincadeiras e de lazer, porém destituída de inocência; agora a infância é um planejamento consciente para a vida adulta. Trata-se de uma infância plena de requisitos para obter realizações e preencher expectativas - a criança competente, interativa. Se as crianças devem ser bem sucedidas, elas têm que começar cedo. Assim como a inocente e romântica noção da infância contribuiu, no século XIX, para um novo tipo de maternidade; a hodierna visão da infância também pressupõe pais de um novo tipo, educacionalmente conscientes, responsáveis e planejadores. Vagarosamente, a infância romântica, que jamais foi uma realidade, está se esvanecendo também enquanto ideal.

* Tradução: Marianne Wifvesson.

2 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden. Lund, 1986. EDGREN, Lars. Lärling, gesäll, mästare. hantverk och hantverkare i Malmö, 1750-1847. Lund, 1987. OHLANDER, Kajsa. I barnens och nationens intresse. Socialliberal reformpolitik, 1903-1930. Stockholm, Studies in Education and Psychology, 1992.

4 STENKULA, A.O. Om folkskolor och barnhem. Anteckningar under en resa (Malmö 1879).

6 LÖKKE, Anne. Vildfarende börn- om forsömte og kriminelle börn mellem filantropi og stat, 1880-1920. Holte, Forlaget SocPol, 1990. SANDIN, Bengt. "Varför skoltvång? En essä om social och kulturell förändring, barns villkor och 1842 års skolstadga,". In Forskning om utbildning. Tidskrift för analysis och debatt, nummer 4, 1991. SUNDKVIST, Maria. Sämre lottade än fader- och moderlösa barn? Mötet mellan Norrköpings barnavårdsnämnd och dess klienter, 1906-1910. Stencil. Linköpings Universitet, Tema Barn, 1989.

8 HATJE, Ann-Katrin. Befolkningsfrågan och välfärden. Stockholm, 1974. HALLDÉN, Gunilla. Forskningsprogram. Uppfostringsrådgivning och föräldrarföreställningar. Ett närhistoriskt och kulturellt perspektiv. Ansökan till HSFR, 1988. OLIN LAURITZEN, Sonja. Hälsovård som rutin eller relation. Svensk mödra- och barnhälsovård möter invandrarfamiljer. Stockholms Universitet, Pedagogiska institutionen, 1990. SIDEBÄCK, Göran. Kampen om barnets själ. Barn- och ungdomsorganisationer för fostran och normbildning, 1850-1980. Stockholm, Carlsson, 1992.

10HUSÉN, Torsten. Vad har hänt med skolan? Stockholm, Verbum Gothia Stockholm, pp. 12-14, 1987.

13 SANDIN, Bengt. op. cit., 1992. JOHANNISSON, Karin. "Folkhälsa: Den svenska projektet från 1900 till 2:a världskriget". In Lychnos. Årsbok för idéhistoria och vetenskapshistoria, 1991.

______. Välja barn. Stockholm, Sesam, 1991.

Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden. Lund, 1986.

Artigo recebido em nov./98, aprovado em jan./99

  • 1 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden Lund, 1986.
  • 2 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden Lund, 1986.
  • EDGREN, Lars. Lärling, gesäll, mästare. hantverk och hantverkare i Malmö, 1750-1847 Lund, 1987. OHLANDER, Kajsa. I barnens och nationens intresse. Socialliberal reformpolitik, 1903-1930 Stockholm, Studies in Education and Psychology, 1992.
  • 3 SANDIN, Bengt. "Education, Social Change and `the Discovery of Normality' in urban Sweden, 1850-1910". Paper presented at the SSHA conference in Chicago, 1992.
  • 4 STENKULA, A.O. Om folkskolor och barnhem. Anteckningar under en resa (Malmö 1879).
  • 6 LÖKKE, Anne. Vildfarende börn- om forsömte og kriminelle börn mellem filantropi og stat, 1880-1920. Holte, Forlaget SocPol, 1990.
  • SANDIN, Bengt. "Varför skoltvĺng? En essä om social och kulturell förändring, barns villkor och 1842 ĺrs skolstadga,". In Forskning om utbildning Tidskrift för analysis och debatt, nummer 4, 1991.
  • 7 Weiner, Department of Child Stuides, Linköping University, Sweden. Forthcoming.
  • 8 HATJE, Ann-Katrin. Befolkningsfrĺgan och välfärden Stockholm, 1974.
  • HALLDÉN, Gunilla. Forskningsprogram. Uppfostringsrĺdgivning och föräldrarföreställningar. Ett närhistoriskt och kulturellt perspektiv Ansökan till HSFR, 1988. OLIN LAURITZEN, Sonja. Hälsovĺrd som rutin eller relation. Svensk mödra- och barnhälsovĺrd möter invandrarfamiljer Stockholms Universitet, Pedagogiska institutionen, 1990.
  • 9Barnstugor, Barnavĺrdsmannaskap, Barnolycksfall. In SOU., Stockholm, Emil Kihlströms tryckeri aktiebolag, 1967, nş 08, p. 46.
  • 10HUSÉN, Torsten. Vad har hänt med skolan? Stockholm, Verbum Gothia Stockholm, pp. 12-14, 1987.
  • 11 ARNMAN, Göran & JÖNSSON, Jönsson. Barns villkor - samhällets spegel Stockholm, Allmänna Barnhuset, 1987.
  • 13 SANDIN, Bengt. op. cit., 1992. JOHANNISSON, Karin. "Folkhälsa: Den svenska projektet frĺn 1900 till 2:a världskriget". In Lychnos Ĺrsbok för idéhistoria och vetenskapshistoria, 1991.
  • 14 SOLBERG, Anne. "Negotiating Childhood. Changing construction of age for Norwegian Children". In JAMES, Allison, & FROUT, Alan (orgs.). Constructing and reconstructing childhood. London, Farmer Press, 2Ş ed., 1997.
  • 15 TÄNNSJÖ, Torbjörn. Göra Barn Stockholm, Sesam, 1991.
  • ______. Välja barn Stockholm, Sesam, 1991.
  • 16 HALLDÉN, Gunilla. Föräldrars tankar om barn. Uppfostringsideologi som kultur. Stockholm, Carlssons, 1992.
  • 17 SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden Lund, 1986.
  • NOTAS
  • 1
    SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In
    Över Gränser, Festskrift till Birgitta Oden. Lund, 1986.
  • 3
    SANDIN, Bengt. "Education, Social Change and `the Discovery of Normality' in urban Sweden, 1850-1910". Paper presented at the SSHA conference in Chicago, 1992.
  • 5
    SANDIN, Bengt.
    op. cit., 1992.
  • 7
    Weiner, Department of Child Stuides, Linköping University, Sweden. Forthcoming.
  • 9
    Barnstugor, Barnavårdsmannaskap, Barnolycksfall. In
    SOU., Stockholm, Emil Kihlströms tryckeri aktiebolag, 1967, nº 08, p. 46.
  • 11
    ARNMAN, Göran & JÖNSSON, Jönsson.
    Barns villkor - samhällets spegel. Stockholm, Allmänna Barnhuset, 1987.
  • 12
    No original: To finance the emotional child is an expensive endevour.
  • 14
    SOLBERG, Anne. "Negotiating Childhood. Changing construction of age for Norwegian Children". In JAMES, Allison, & FROUT, Alan (orgs.).
    Constructing and reconstructing childhood. London, Farmer Press, 2ª ed., 1997.
  • 15
    TÄNNSJÖ, Torbjörn.
    Göra Barn. Stockholm, Sesam, 1991.
  • 16 HALLDÉN, Gunilla. Föräldrars tankar om barn. Uppfostringsideologi som kultur. Stockholm, Carlssons, 1992.
    17
    SANDIN, Bengt. "Om skolans nu svaga makt: Barnarbetslagstiftning och folkundervisning i Sverige under 1860- 1870 talen". In
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Out 1999
    • Data do Fascículo
      Set 1999

    Histórico

    • Aceito
      Jan 1999
    • Recebido
      Nov 1998
    Associação Nacional de História - ANPUH Av. Professor Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, Caixa Postal 8105, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel. / Fax: +55 11 3091-3047 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rbh@anpuh.org