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Pátria do cidadão: A concepção de pátria/nação em Frei Caneca

Resumos

O artigo aborda a temática da identidade nacional a partir da análise do texto escrito pelo pensador e agente político Frei Caneca no início do século XIX. Atentando para as implicações decorrentes da particularidade do processo de Independência, o artigo busca realçar a importância histórica do texto enfocado, demonstrando o quanto a problemática da identidade nacional já implicava nas relações sociais então estabelecidas. Procurou-se assim ressaltar o sentido histórico do abandono do modelo de unidade "luso-brasílica" ao tempo em que se buscava uma noção de coletividade do povo brasileiro dentro de uma concepção estritamente nacional.

Frei Caneca; Identidade Nacional; Independência; Frei Caneca


This article concerns the subject of the Brazilian national identity analysing a text written in the beginning of XIX Century by the scholar and political activist Frei [Friar] Caneca. Looking at the Independence process particularities, this article tries to accentuate the historical importance of the Frei Caneca's text, showing for how long the national identity matters involved the established social relationships. With this article we tried to emphasize the historical meaning of the abandon of the Brazilian-Portuguese union project in the same moment that a people collectivity idea was searched in a strictly Brazilian sense.

National Identity; Independence


"Pátria do cidadão": A concepção de pátria/nação em Frei Caneca

Maria de Lourdes Viana Lyra

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo

O artigo aborda a temática da identidade nacional a partir da análise do texto escrito pelo pensador e agente político Frei Caneca no início do século XIX. Atentando para as implicações decorrentes da particularidade do processo de Independência, o artigo busca realçar a importância histórica do texto enfocado, demonstrando o quanto a problemática da identidade nacional já implicava nas relações sociais então estabelecidas. Procurou-se assim ressaltar o sentido histórico do abandono do modelo de unidade "luso-brasílica" ao tempo em que se buscava uma noção de coletividade do povo brasileiro dentro de uma concepção estritamente nacional.

Palavras-chave: Frei Caneca; Identidade Nacional; Indepen-dência.

Abstract

This article concerns the subject of the Brazilian national identity analysing a text written in the beginning of XIX Century by the scholar and political activist Frei [Friar] Caneca. Looking at the Independence process particularities, this article tries to accentuate the historical importance of the Frei Caneca's text, showing for how long the national identity matters involved the established social relationships. With this article we tried to emphasize the historical meaning of the abandon of the Brazilian-Portuguese union project in the same moment that a people collectivity idea was searched in a strictly Brazilian sense.

Key words: Frei Caneca; National Identity; Independence.

Nos primeiros dias do ano de 1822, na província de Pernambuco, o frade carmelita Joaquim do Amor Divino Caneca, com o objetivo de melhor esclarecer aos habitantes da cidade do Recife e suas adjacências, elaborou um texto de excepcional qualidade e de importância inconteste ao estudo da questão da identidade nacional. Refletindo sobre o sentido da palavra pátria e sobre o sentimento dela proveniente, Frei Caneca escreveu este texto numa época em que ainda não se discutiam tais idéias na província, ou seja, como ele mesmo explica, numa época anterior à chegada a Pernambuco de "certos papéis em que se encontram algumas idéias nele consignados". Tal reflexão, receberia o título de Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria, e só seria publicado no ano seguinte, "por falta de tipografia no país", como nos informa o próprio autor, ao explicar as razões que o levaram a escrever sobre o tema:

É, portanto, levado do sincero desejo da perfeição dos meus compatriotas, afim de evitar para o futuro as ruinosas conseqüências de idéias inexatas e falsos juízos, que para desgraça deste ameno e fértil país foram a maior, por não dizer a única causa da luta entre os portugueses indígenas de Pernambuco e os portugueses europeus nele estabelecidos, que eu, a despeito da minha insuficiência, tomo esta pequena tarefa de nas horas vagas de meus deveres públicos elucidar uma matéria, em que vejo não se pensar com a devida retidão (...) eu não escrevo para os homens letrados; sim para o povo rude e que não tem aplicação às letras (...) mostra-se que a falsa idéia que se tem feito da pátria do cidadão tem sido uma das maiores causas da rivalidade entre os europeus estabelecidos no novo mundo e os indígenas dele1 1 Cf. "Dissertações sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria". In Obras Políticas e Literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Colecionadas pelo Comendador Antônio Joaquim de Mello. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1972 (fac-similar da primeira edição de 1875) pp. 177-221. .

Dirigida ao "povo rude", àquele sem "aplicação às letras", com a intenção objetiva de elucidar a noção correta do termo pátria, a Dissertação foi elaborada em consonância ao espírito das Luzes. Acreditando Frei Caneca que, "sendo dado ao homem e entendimento para, ao favor das suas luzes, saber marchar nos diversos caminhos da vida", deveria este ser "bem formado com as idéias das coisas humanas", para não cometer "erros absurdos" na formulação de "idéias falsas e inexatas das coisas sociais", que concorriam inevitavelmente para a "perturbação da sociedade e a sua ruína final". E, ensinava, também, ser essa a lição fundamental apreendida da razão e da experiência de muitos séculos. Para o autor da Dissertação, iluminar o pensamento do "povo rude" com as "luzes das ciências, artes e ofícios" era uma tarefa que competia não apenas ao governo, mas também aos "cidadãos mais sábios e eruditos" que desejassem ser úteis ao povo e à sociedade. Apoiado, portanto, nessa premissa, sentira-se ele imbuído da missão de esclarecer aos contemporâneos "a falsa idéia que se tem feito de pátria do cidadão", por ser ela "uma das maiores causas da rivalidade entre europeus estabelecidos no Novo Mundo, e os indígenas dele"2 1 Cf. "Dissertações sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria". In Obras Políticas e Literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Colecionadas pelo Comendador Antônio Joaquim de Mello. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1972 (fac-similar da primeira edição de 1875) pp. 177-221. .

O espírito de rivalidade que "traz inquietos em todo Brasil os portugueses europeus e os lusos indígenas do mesmo Brasil" inquietava sobremaneira o autor, por constatar ser esse "mau humor" mais forte em Pernambuco, onde já rebentara com ímpeto em 1710 e se mostrara "com toda ostentação e ufania em 1817", se fazendo presente "ainda hoje" numa verdadeira onda que "vai minando e solapando, quanto pode, as bases da sociedade"3 3 Idem. .

Alertando ser essa uma questão crítica, para a qual se devia dedicar toda a atenção, sobretudo após a independência das colônias inglesas e espanholas da América, Frei Caneca apontava a rivalidade sempre existente entre os ingleses e espanhóis europeus, de um lado, e os naturais da América, do outro lado, provocada pelo "gravames da metrópole e de seus mandatários", como a causa real da separação daquelas partes da América. E advertia que no Brasil esse mesmo espírito de antagonismo crescia a cada dia, apesar dos esforços de "uns e outros liberais", no sentido de levar os habitantes da Europa e da América portuguesas a

congraçarem-se os ânimos discordes, e amando-se cordialmente, darem-se as mãos recíprocas e reunirem as forças para o bem geral e comum4 3 Idem. .

Tendo, sobretudo, como quadro referencial de análise o cenário de antagonismos existentes entre os habitantes da província de Pernambuco, Frei Caneca procurava demonstrar o quanto a "falsa idéia" que se tinha até então de pátria - entendida apenas como "aquele lugar em que se viu a primeira luz do dia" - levara os "lusos europeus e os estabelecidos nesta província", em particular, a considerarem sempre o território do Brasil apenas como fonte de enriquecimento, "não amando o país em que estão estabelecidos" e nem olhando os seus naturais como:

seus irmãos compatriotas, não só negando-lhes o direito aos lugares e empregos úteis da nação, como até reputando-os inábeis para os mesmos do seu país natal; e o ser pernambucano foi ferrete da indignidade e inaptidão na sua pátria e fora dela no reino5 5 Idem, p. 187. .

Estes, ou seja, os pernambucanos, por sua vez, reagiam sempre à ação dos que ali chegavam, ou seja, dos "estranhos ao seu país", considerando-os "desfrutadores da sua riqueza e fertilidade". No entanto, alertava o frade, esta era uma forma errônea de pensar e agir porque impedia o estabelecimento de relações sociais estáveis e a criação de laços de afetividade exigidas entre "ramificações do mesmo tronco". Tornava-se, portanto, urgentemente necessário recuperar o real sentido da palavra pátria, e do real sentimento dela proveniente, para evitar "ruinosas conseqüências [e] desgraça deste ameno, fértil e rico país".

Assim, recorrendo ao conceito etimológico da palavra "pátria", cuja "acepção primitiva", acentuava o frade, "significa família, nação", e buscando nos autores clássicos (sobretudo Cícero) e modernos (Puffendorf o mais citado), o embasamento para a sua argumentação, Frei Caneca procurou ampliar - sempre baseado nos exemplos históricos e nos "escritores latinos, franceses e ingleses" - a concepção de pátria, entendendo-a não apenas como o lugar de nascimento mas, sobretudo, aquele lugar onde se fixava a residência, onde se estabeleciam os negócios. Ao evidenciar a sinonímia existente entre pátria e nação:

em todos os exemplos se vê claramente que a palavra pátria é tomada na acepção de gente, nação,

o autor denunciava o "erro universal" que restringia o real sentido dos termos pátria/nação para demonstrar a todos os habitantes da província, ou seja, aos ali nascidos e aos lusos europeus estabelecidos em Pernambuco, que a pátria consistia não apenas "a cidade ou o lugar em que nascemos mas aquele em que estamos estabelecidos". Por isso seriam todos eles "legítimos compatriotas desta província"6 5 Idem, p. 187. .

Mas, como entender a pertinência desse texto no contexto histórico dos primeiros anos do século XIX? A que se devia o empenho do Frei Caneca na aproximação entre os lusos europeus e os naturais da província, querendo-os identificados pelos laços de nacionalidade, desejando-os unidos pelos vínculos da solidariedade nacional? Como compreender esse esforço em prol da unificação dos interesses de portugueses e brasileiros, em plena conjuntura da Independência? Enfim, como entender essa reflexão, então desenvolvida por Frei Caneca, em torno da concepção de pátria/nação? Ou seja, como apreender o real nível de consciência da época - pelo menos por parte do autor, um dos agentes mais representativos da vertente do pensamento ilustrado, aquela que propunha transformações nas relações sociais - sobre a necessidade de uma urgente (re)definição do conceito desses dois termos, com o objetivo de dirimir o clima de rivalidade crescente entre "portugueses de Portugal e lusos do Brasil"?

Entendemos que refletir sobre as idéias embasadoras da ação política dos agentes envolvidos no precesso de organização da sociedade brasileira constitui um dos caminhos profícuos para a renovação das análises históricas. A questão, ainda hoje polêmica, da identidade nacional - questão esta só desenvolvida bem mais tarde na Europa, mais precisamente a partir da querela franco-alemã, iniciada em 1870, com a anexação da Alsácia-Lorraine, apresenta-se ainda plena de controvérsia7 7 Cf. A conferência pronunciada na Sorbonne, em 1882, por Ernest Renan, escritor dedicado ao estudo da semiótica e das religiões - Qu'est qu'une Nation - na qual o autor afirma que nação pode ser entendida como o resultado de um longo "passado comum" de esforços, sacrifícios, glórias e dedicação, através do qual se forma a vontade de preservar essa herança legada, o desejo de viver junto. Renan entendia a nação, como "uma alma" (a "posse de um legado de lembranças") , e como um "princípio espiritual" (o "presente" , o "consentimento atual de viver junto" , o "plebiscito de todos os dias"), e não como uma "coisa eterna". Fundamentava-se assim a concepção "voluntarista", que se contrapunha à "naturalista", alemã, apoiada em fatores naturais - o meio geográfico e os critérios étnicos - e que entende a nação "como um todo orgânico", uma "comunidade cultural e histórica". Cf. Discussão desenvolvida hoje sobre a questão nacional através de textos publicados In Communications - Éléments pour une théorie de la nation. Paris, Seuil, 1987; e Genèses - Le National 4. Paris, Calmann-Levy, 1991. . Portanto, verificar a pertinência da discussão sobre identidade nacional no contexto histórico no qual ela foi gerada; apreender as implicações ambíguas do discurso, no contexto geral do processo de formação do Estado brasileiro; enfocar o texto, no contexto da história política, buscando verificar os fatores que levaram à criação de vínculos de identidade do indivíduo com a coletividade a que pertence, no sentido de conseguir elaborar uma análise renovada do fenômeno nacional; ou seja, procurar entender os condicionamentos básicos ao forjamento do Estado nacional no Brasil, levando em conta as identendidades locais - são recursos que podem indicar um caminho fértil de análise da discussão sobre os elementos constitutivos da identidade do Estado-Nação, em vias de construção naquele momento vivido e enfocado por Frei Caneca. Acreditamos que a reflexão pontual sobre esse período inicial de formação do Estado do Brasil possa ampliar consideravelmente o estudo sobre a questão nacional em geral. Afinal, essa é uma questão que vem se tornando cada vez mais atual e constituindo, nos últimos anos, em "objeto de pesquisa legítima" para a história social8 7 Cf. A conferência pronunciada na Sorbonne, em 1882, por Ernest Renan, escritor dedicado ao estudo da semiótica e das religiões - Qu'est qu'une Nation - na qual o autor afirma que nação pode ser entendida como o resultado de um longo "passado comum" de esforços, sacrifícios, glórias e dedicação, através do qual se forma a vontade de preservar essa herança legada, o desejo de viver junto. Renan entendia a nação, como "uma alma" (a "posse de um legado de lembranças") , e como um "princípio espiritual" (o "presente" , o "consentimento atual de viver junto" , o "plebiscito de todos os dias"), e não como uma "coisa eterna". Fundamentava-se assim a concepção "voluntarista", que se contrapunha à "naturalista", alemã, apoiada em fatores naturais - o meio geográfico e os critérios étnicos - e que entende a nação "como um todo orgânico", uma "comunidade cultural e histórica". Cf. Discussão desenvolvida hoje sobre a questão nacional através de textos publicados In Communications - Éléments pour une théorie de la nation. Paris, Seuil, 1987; e Genèses - Le National 4. Paris, Calmann-Levy, 1991. .

Ao seguir esse caminho de análise, percebemos, por exemplo, o quanto o realce da discussão sobre distinções e semelhanças entre o que Frei Caneca chamou de "portugueses brasileiros" e "portugueses da Europa" no período de construção e de definição do "Império do Novo Mundo", bem como o aprofundamento do debate então existente sobre concepções diversas de governo, sobre a prática do poder, e sobre posturas administrativas, podem efetivamente contribuir para alargar o campo de reflexão sobre o fato histórico e, conseqüentemente, alargar o conhecimento do processo de formação do Estado nacional. Assim, apreendemos com clareza que, ao recorrer à acepção moderna da palavra pátria, entendendo-a como sinônimo de nação - e esta, por sua vez, já entendida no seu sentido moderno, ou seja, como unidade política - Frei Caneca buscava, objetivamente, forjar uma identidade entre os habitantes da província através do sentimento de pertencimento à nação, sentimento esse expresso tanto pela vontade de pertencer, como pela atitude de defesa necessária dos interesses comuns e dos deveres de cada um, em relação ao bem comum9 9 Utilizamo-nos das análises de VILAR, Pierre. "Reflexions sur les fondaments des structures nationales" - que entende a nação como categoria histórica, uma realidade construída em função da defesa dos interesses comuns - Histoire 16. Paris, avril 1978; e HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Trad. Maria C. Paoli e Anna M. Quirino, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, onde o autor aprofunda o estudo dos fenômenos históricos pertinentes à questão nacional. . Escrita no momento de definição no Brasil da identidade nacional, o teor da Dissertação exige um conhecimento mais preciso sobre o contexto histórico correspondente, sobre as bases do pensamento e da ação política do autor, enfim, um olhar mais objetivo sobre a trajetória do sentimento de pátria e sua imbricação ao de nação.

O Autor e sua Época

Descendendo de família modesta - o pai trabalhava numa oficina de tanoeiro, condição que lhe valeu a alcunha Caneca, adotada mais tarde por ele próprio - Joaquim do Amor Divino nasceu em Recife no bairro de Fora das Portas e cedo ingressou na vida religiosa, necessitando então de dispensa apostólica da idade para poder se ordenar frade na ordem dos carmelitas10 9 Utilizamo-nos das análises de VILAR, Pierre. "Reflexions sur les fondaments des structures nationales" - que entende a nação como categoria histórica, uma realidade construída em função da defesa dos interesses comuns - Histoire 16. Paris, avril 1978; e HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Trad. Maria C. Paoli e Anna M. Quirino, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, onde o autor aprofunda o estudo dos fenômenos históricos pertinentes à questão nacional. . Nenhuma notícia sobre a data de nascimento, apenas o registro no Convento de Nossa Senhora do Carmo quando tomou o hábito de frade, em 08 de outubro de 1796. Seu nome aparece na lista Alunos de fora do Seminário de Olinda instalado naquela cidade, em 1800, pelo bispo José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho, instituição centrada na divulgação do saber e na formação de uma camada dirigente na colônia, cuja idéia de criação e orientação ideológica encontravam-se intimamente ligadas às diretrizes do reformismo ilustrado luso-brasileiro11 11 Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política. 1798 - 1822. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994, pp. 88 e segs. . Em 1803, recebia do convento, ao qual pertencia, a patente de "leitor em retórica e geometria", ocupando também o cargo de "definidor" e mais tarde, 1809, o de "secretário do visitador da ordem".

Participou depois, como "patriota voluntário", da Revolução de 1817, movimento desencadeado na província de Pernambuco contra o governo despótico da Corte do Rio de Janeiro e inspirado no ideal de liberdade e de efetiva participação do homem em sociedade. Os líderes revolucionários de 1817 reivindicaram a criação de instituições representativas de governo, voltaram-se contra a "tirania real" de uma "corte insolente sobre toda sorte de opressão" e, revolucionariamente, proclamaram que, por considerarem-se "revestidos da soberania pelo povo em que ela só reside", a partir de então lutariam para que o povo entrasse "na posse dos seus legítimos direitos sociais". Após a derrota do breve governo revolucionário republicano, Frei Caneca ficou longo tempo encerrado na prisão da Bahia, para onde foi mandado junto com outros prisioneiros.

No início de fevereiro de 1821, um decreto das Cortes Gerais e Constituintes da Nação Portuguesa - instaladas com a Revolução Liberal rebentada no Porto em agosto de 1820 - anistiava os presos políticos de Pernambuco. Nos quatro anos de prisão Frei Caneca escreveu poesias e um Breve Compêndio de Gramática Portuguesa, deu aulas de Geometria e Cálculo aos companheiros de cárcere e leu, segundo seu primeiro biógrafo, "clássicos franceses". De volta a Pernambuco, Frei Caneca era indicado, em Janeiro de 1822, pela primeira Junta de Governo Constitucional, para regente da cadeira de Geometria Elementar na cidade do Recife.

Entre os anos de 1822 e 1824, Frei Caneca escreveu sermões, cartas, orações de sapiência, tratados de eloqüência, polêmicas partidárias, manifestos, votos para a Câmara Municipal, artigos de jornais, traduções do francês e inglês e, ainda, uma História da Província de Pernambuco. Alguns destes textos desapareceram, outros foram compilados e posteriormente publicados. E entre tais escritos, encontra-se a reflexão sobre a concepção de pátria, objeto do nosso estudo12 11 Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política. 1798 - 1822. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994, pp. 88 e segs. . A atividade política de Frei Caneca se encerraria em 1824, data em que novamente foi preso, sendo executado no ano seguinte, ao ser condenado pelo governo imperial centrado no Rio de Janeiro acusado do "horrendo crime" de atentar contra a "autoridade real", por liderar a Confederação do Equador. Este movimento revolucionário, desencadeado em reação ao fechamento arbitrário da Assembléia Constituinte de 1823, reivindicou a organização de um Estado confederado, no qual "cada província se valha dos próprios recursos", e de um "sistema análogo às luzes do século" substituto das "instituições oligárquicas, só cabidas na encanecida Europa"13 13 Cf. Manifesto de 02 de março de 1824. .

Situando a conjuntura que instigou Frei Caneca a escrever a Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão, observamos que ela se traduz num momento crítico do processo de institucionalização do Império luso-brasileiro. Ou seja, um momento em que o conflito entre "portugueses de Portugal e portugueses do Brasil" se acirrara face à política das Cortes Gerais e Constituintes da Nação Portuguesa. Reunidas em Lisboa, a partir de janeiro de 1821, para a institucionalização do Estado liberal, as Cortes Gerais exigiam a retirada do Rio de Janeiro da corte portuguesa, o que significava a perda do seu status de sede da monarquia, e impunha, às províncias do Brasil, submissão direta as suas diretrizes. Tal orientação significava a anulação de todas as prerrogativas anteriormente adquiridas pelo Brasil, desde 1808, quando perdeu a característica de colônia e se transformou em sede do governo português e foi elevado à condição de Reino Unido, ou seja, um Reino emancipado e em condições de igualdade com o velho Reino luso situado na Europa. As exigências feitas pelas Cortes Gerais e Constituintes contrariava a política que vinha sendo encaminhada pelo reformismo ilustrado, a partir dos últimos anos do século XVIII, política essa pautada na idéia inovadora de uma unidade atlântica que implicava na concepção de identidade nacional, entre as partes componentes do mundo português14 13 Cf. Manifesto de 02 de março de 1824. .

Ante a crise geral do sistema de dominação colonial, que tornava iminente a independência da colônia da América e a conseqüente perda das relações comerciais, a política reformista encetada pela Ilustração portuguesa encaminhara, em finais do século XVIII, a implantação dessa diretriz que propunha a reorganização do Estado monárquico lusitano. Segundo o "programa de reformas", anunciado pelo então ministro da Marinha e Ultramar, Rodrigo de Sousa Coutinho, a Europa portuguesa passava a ser concebida como o centro das decisões políticas e das relações comerciais, enquanto os territórios portugueses no ultramar passariam a constituir "províncias da Monarquia", reunidas todas num "mesmo sistema administrativo" e "sujeitas aos mesmos usos e costumes". O objetivo fundamental era o resguardo do

sacrossanto princípio da unidade, primeira base da Monarquia que se deve conservar com o maior ciúme a fim de que o português nascido nas quatro partes do mundo português se julgue somente português e não se lembre senão da glória e grandeza da Monarquia, a que tem a fortuna de pertencer15 15 Discurso pronunciado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho perante a Junta de Ministros e outra pessoas sobre assuntos referentes ao desenvolvimento econômico e financeiro de Portugal e Domínios Ultramarinos, principalmente o Brasil. Coleção Linhares. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. .

Observemos que o Estado monárquico imperial aparecia como o elemento unificador das partes distintas e dispersas do mundo português e o sentimento de pertencimento à nação lusa, então explicitamente evocado, exerceria também a função asseguradora da unidade do território português na América, até então reconhecido sob o "genérico nome de Brasil". As relações estabelecidas em bases recíprocas, porque interdependentes, realçariam os interesses comerciais. Estas cimentariam a unidade política das partes componentes do Império - centrado inicialmente na Europa e, após 1808 no Rio de Janeiro, face à disputa franco-inglesa pela hegemonia da Europa e a conseqüente transferência da sede da Corte portuguesa para o Brasil - o que, além de prevenir e afastar o perigo de movimentos separatistas, fortaleceria a nação portuguesa no contexto europeu.

É pertinente ainda observar que o modelo emancipador do mundo colonial, que não implicava em ruptura com a metrópole européia e era posto em prática pelo reformismo ilustrado luso-brasileiro, em verdade adaptava à realidade do Estado português a concepção de autonomia "voluntária" esboçada por Adam Smith, em 1776, ao aconselhar, este, ao governo inglês, a aceitação da autodeterminação das colônias da América, em favor da preservação dos laços de amizade e de "afeto natural" destas para com a "mãe-pátria". Este seria o caminho eficaz, argumentava Smith, na manutenção das relações comerciais - fonte imprescindível à riqueza das nações. Para o fundador da economia política, a permanência do domínio do comércio no Atlântico ocidental viabilizar-se-ia através da continuidade das relações de "afeição paternal de um lado" (por parte da Inglaterra) e do "respeito filial do outro" (por parte das colônias)16 15 Discurso pronunciado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho perante a Junta de Ministros e outra pessoas sobre assuntos referentes ao desenvolvimento econômico e financeiro de Portugal e Domínios Ultramarinos, principalmente o Brasil. Coleção Linhares. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. . Não nos resta dúvida de que essa idéia inspiraria a Ilustração portuguesa em relação ao delineamento dos novos rumos do Estado em crise.

No contexto da nova política, a reflexão sobre a concepção de pátria/nação se impôs e, nos esquemas teóricos então esboçados no mundo português, os sentidos de pátria e nação foram estrategicamente dissociados: pátria se identificou unicamente com o lugar de nascimento enquanto nação se reportou diretamente ao sentimento de pertencimento à monarquia portuguesa. Entre os ilustrados reformistas nascidos na colônia e agentes ativos na execução da política de edificação do Império luso-brasileiro, essa era a concepção corrente. Tanto nos textos do bispo Azeredo Coutinho - que em 1794 escreveria

porque tenho eu de expor ao meu soberano e a minha nação as riquezas que possui e de que é capaz a terra em que me viu nascer (...) e que por isso eu seria talvez considerado como um cego apaixonado pela minha pátria17 17 Cf. COUTINHO, J.J. da Cunha Azeredo. "Ensaio Econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias". In Obras Econômicas. Apresentação de S. B. Holanda. São Paulo, Cia Edt. Nacional, 1966. ,

quanto nos escritos de José Bonifácio, que em 1819 reconhecia o Brasil, sua pátria, na condição de "filha emancipada" de Portugal e, logo depois, em 1822, defenderia a permanência dos laços de nacionalidade entre os habitantes do Brasil e de Portugal:

sempre fomos portugueses e queremos ser irmãos dos da Europa18 17 Cf. COUTINHO, J.J. da Cunha Azeredo. "Ensaio Econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias". In Obras Econômicas. Apresentação de S. B. Holanda. São Paulo, Cia Edt. Nacional, 1966. ,

encontramos explicitada essa dissociação. Afinal, no sistema até então vigente não havia dúvidas quanto ao pertencimento de todos os "nascidos nas quatro partes do mundo português" à Monarquia lusa, nem tão pouco se podia negar que todos eram descendentes do povo português emigrado para o Brasil.

Todavia, a instalação do Congresso Constituinte em Lisboa, que significava a entrada em cena de um outro projeto político, o da organização de um Estado liberal, trouxe à baila a discussão sobre a questão nacional. O antagonismo entre grupos de força, com propósitos distintos, girava em torno da defesa dos "genuínos interesses nacionais" e essa era uma das questões mais delicadas e de difícil solução, no contexto da política que continuava defendendo a existência do império atlântico, ou seja, de um Estado imperial luso-brasleiro, só que, a partir de então, sob a forma de Estado liberal.

Para os nascidos no Brasil, as prerrogativas da pátria deveriam ser resguardadas tanto quanto o sentir-se português, condição entendida pelos ilustrados como natural, encarada como elogiosa e cobiçada pela identidade civilizadora e, ainda, requisitada pelos grupos sociais ligados ao comércio e à produção em geral pela defesa dos interesses comerciais já estabelecidos. Mas para os liberais vintistas - como são chamados os constitucionais de Lisboa, aqueles que, tocados pela situação de inferioridade do Reino europeu, haviam se mobilizado em prol da sua regeneração -, os interesses nacionais referiam-se aos interesses específicos do Reino de Portugal. Abandonados, desde 1807, pelo seu rei e vendo-se marginalizados das benesses da Corte; governados por protetores ingleses e em condição desvantajosa no comércio com o ultramar; e, ainda, submetidos à administração centralizadora do governo instalado no Rio de Janeiro, os portugueses europeus haviam finalmente reagido, em 1820, à condição "do estado colônia a que Portugal em realidade se achava reduzido", situação que afligia os cidadãos "que ainda conservavam e prezavam o sentimento de dignidade nacional"19 19 Cf. Manifesto de Portugal aos soberanos e povos da Europa. 15 de dezembro de 1820. .

Percebe-se então que, naquele momento, colocava-se de forma determinante a questão da redefinição dos papéis atribuídos às partes componentes do Estado, o que implicava no aprofundamento da discussão sobre a composição do Estado-Nação português, ou seja, numa maior clareza do debate sobre os componentes básicos à identidade da nacionalidade portuguesa como um todo. Ao mesmo tempo, a questão dos direitos naturais do homem e do cidadão, em contraposição aos privilégios senhoriais, bem como a do princípio de liberdade e igualdade de todos perante a lei, eram colocadas como princípios fundamentais e essenciais à nova ordem estabelecida, o que exigia definição precisa quanto às partes componentes do Estado português. Assim, em maio de 1821, as Cortes Gerais definiam:

Nós seremos com o Brasil uma só família em direitos e em deveres, e tendo a mesma religião e o mesmo pai, nenhum poder conseguirá jamais dividi-la (...) O reino unido de Portugal, Brasil e Algarves é agora mais do que nunca concentrado em sua união mística. A representação nacional carece ser perfeita20 19 Cf. Manifesto de Portugal aos soberanos e povos da Europa. 15 de dezembro de 1820. .

Observemos o quanto estavam todos atentos à questão nacional. No entanto, enquanto os deputados das províncias do Reino de Portugal faziam profissão de fé quanto à unidade do Estado luso-brasileiro e aos laços fraternais com irmãos do ultramar, conclamando os "sentimentos patrióticos e liberais dos brasileiros", em relação aos "irmãos portugueses" e em favor da conservação da unidade dos "destinos do Brasil relativamente a nós", ao mesmo tempo exerciam eles uma política de supressão dos órgãos administrativos e do centro de poder no Rio de Janeiro, contrariando os interesses do Reino do Brasil21 21 Proclamação das Cortes Gerais. 13 de Julho de 1821. .

Os representantes das províncias do Brasil, por sua vez, cobravam coerência da política liberal, que ensinava ser a Constituição "um pacto social, em que se expressavam e declaravam as condições pelas quais uma nação se quer constituir em corpo político", acusando aqueles que constituíam "mera fração da grande nação portuguesa", de atentarem contra "o bem geral da parte principal da mesma, qual o vasto e riquíssimo reino do Brasil", e também reivindicando "a igualdade de direitos e venturas" como esteio da unidade nacional "a única base que deve assentar o pacto social de toda nação lusitana"22 21 Proclamação das Cortes Gerais. 13 de Julho de 1821. . E, ao mesmo tempo, definiam como estratégia de defesa dos "interesses nacionais de ambos os hemisférios" a permanência do príncipe-regente na corte do Rio de Janeiro e a conseqüente continuidade da condição de Reino emancipado ao Brasil23 23 Manifesto do povo do Rio de Janeiro. 2 de janeiro de 1822. . Essa seria a única condição possível para a subsistência de

uma grande família irmã, um só povo, uma só nação, um só império24 23 Manifesto do povo do Rio de Janeiro. 2 de janeiro de 1822. .

Essa era a problemática vivida nos primeiros dias do ano de 1822, momento em que Frei Caneca sentiu necessidade de elaborar uma reflexão aprofundada sobre a questão nacional e centrar a sua análise, a partir do reconhecimento dos "honrados sentimento" dos lusos europeus que haviam encaminhado "a atual revolução dirigida a melhorar a nação portuguesa, degradada do seu antigo esplendor e grandeza". Argumentando sobre a justeza da defesa patriótica dos interesses nacionais, Frei Caneca buscava definir com clareza o sentimento de pertença, para maior justificativa da ação de defesa dos interesses definidos como interesses nacionais.

A situação da província de Pernambuco era bastante particular no contexto geral do Reino do Brasil. Recentemente liberto do governo interventor do capitão-general, o lusitano Luís do Rego Barreto, nomeado desde 1817, para acabar com os vestígios das idéias e das ações revolucionárias, a província encontrava-se regida por uma Junta de Governo composta de ex-prisioneiros políticos, homens que haviam participado da Revolução de 1817, e ainda não demonstrava interesse em se unir ao movimento das "províncias coligadas" da parte Sul do Brasil, em apoio ao príncipe regente, D. Pedro. Naquele momento, em Pernambuco, os esforços se concentravam na reorganização dos grupos locais de força política e na defesa da adoção plena do sistema monárquico constitucional adotado pelas Cortes Gerais de Lisboa. Daí o distanciamento em relação à política da corte do Rio de Janeiro, ainda regida sob o antigo sistema. O que pode explicar a presteza de Frei Caneca em refletir com precisão os elementos definidores do sentimento de pátria, discussão pertinente naquela conjuntura decisiva aos interesses locais e aos destinos nacionais.

A Concepção de Pátria/Nação em Frei Caneca

A demonstração do sentimento de pátria é uma constante na história dos povos. Referência permanente na Antigüidade, o sentimento de amor à pátria - então entendido como o lugar de origem, a província, a vila ou a aldeia natal, a terra dos pais, - perdeu força com a queda do Império Romano, mas ressurgiu nos últimos séculos da Idade Média e readquiriu importância no Mundo Moderno, quando foi retomada como valor fundamental no nível da teoria política, servindo então de suporte ao poder dos reis absolutistas - os representantes de Deus na terra e a encarnação do Estado - os quais passaram a exigir dos súditos, em iguais medidas, os deveres a Deus, ao rei e à pátria25 25 Em relação à discussão sobre os deveres devidos à pátria ver KANTOROWICZ, Ernest. "Mourir pour la patrie". In Communications.Paris, Seuil, 1987, p. 147; e sobre a noção de pátria e sua força através da história ver: Philippe CONTAMINE. "Mourir pour la patrie: Xème - XXème siècle". In NORA, Pierre. Les lieux de mémoire II. La Nation. Paris, Gallimard, vol. 03, 1986, pp. 11-43. . Entre os iluministas o sentimento de pátria, freqüentemente referenciado à Antigüidade greco-romana, passou a ser visto como uma "virtude política" própria das democracias26 25 Em relação à discussão sobre os deveres devidos à pátria ver KANTOROWICZ, Ernest. "Mourir pour la patrie". In Communications.Paris, Seuil, 1987, p. 147; e sobre a noção de pátria e sua força através da história ver: Philippe CONTAMINE. "Mourir pour la patrie: Xème - XXème siècle". In NORA, Pierre. Les lieux de mémoire II. La Nation. Paris, Gallimard, vol. 03, 1986, pp. 11-43. .

Mas foi a partir da Revolução Francesa que a noção de pátria adquiriu valor absoluto no contexto da guerra iniciada em 1792, quando, sob o lema da "pátria em perigo", o cidadão francês foi chamada "às armas" para defender a dignidade nacional. O sentimento nacional - antes ligado apenas ao rei e à religião - adquiriu o sentido de um novo "corpo místico", que era a nacionalidade. O movimento reivindicador de um novo contrato social levara à ruptura revolucionária com o passado arcaico e os homens, libertos do poder opressor do Ancien Régime, foram chamados, como cidadãos, a se constituírem em nação27 27 Cf. CONTAMINE, Philippe. op. cit., pp. 35 e segs.; ver também LE GOFF, Jaccques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão (et al.) 2ª ed; Campinas, Ed. UNICAMP, 1992, pp. 74-75. .

As noções de pátria e de nação passaram então a ser confundidas indicando ambas o mesmo sentido de local de origem e de comunidade de indivíduos que vivem num mesmo território. Na luta pela defesa da pátria, os elementos identificadores da nacionalidade foram sendo realçados e, por sua vez, estabelecendo o encadeamento necessário à promoção da identidade, ou seja, os esforços, os sacrifícios e as glórias comuns estimulando a vontade de viver junto e o desejo de preservação da herança legada por um passado comum. Assim, a concepção de nação foi se impondo ao adquirir originalidade, por se identificar com o novo conceito de Estado. Isto é, um Estado que unia e decidia em função dos interesses dos seus cidadãos, um Estado-Nação que identificava os indivíduos a ele interligados pelos laços de nacionalidade. É certo que o sentimento de nação se impunha, mas vale anotar que o vocábulo pátria, como identificador do sentimento nacional, continuou freqüente e preferentemente utilizado no século XIX.

No contexto do mundo luso-brasileiro as noções de pátria e nação continuavam, em finais do século XVIII e início do XIX, dissociadas no contexto do projeto de unidade do Estado atlântico português, como vimos anteriormente. A situação de impasse criada pelo conflito entre os interesses da pátria e os da nação instigou a intervenção do frade filósofo, Joaquim do Amor Divino Caneca, o qual, sintonizado com o espírito do seu tempo, esforçou-se em demonstrar a sinonímia entre os dois termos na tentativa de despertar os cidadãos livres residentes em Pernambuco, quanto ao encargo de se constituírem em nação e a empenharem suas vidas e seus bens na defesa dos interesses da pátria.

Para embasar a sua argumentação, Frei Caneca recorreu ao "grande orador e filósofo romano", Cícero - que já reconhecia a existência de duas pátrias "uma de natureza, outra de direito do cidadão" - para igualmente defender que ao homem era dada a condição de possuidor de duas pátrias: uma por natureza - "nascendo em um lugar, a que se chama pátria de natureza"; outra por direito - "porque foi admitido nessa outra ao direito de cidadão, se ele é de nação diferente". E para maior convencimento da sua idéia, Frei Caneca buscou exemplos na própria história portuguesa - enumerando personagens ilustres que, nascidos em Portugal haviam se tornado posteriormente em cidadãos da Inglaterra ou da Espanha28 27 Cf. CONTAMINE, Philippe. op. cit., pp. 35 e segs.; ver também LE GOFF, Jaccques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão (et al.) 2ª ed; Campinas, Ed. UNICAMP, 1992, pp. 74-75. -, para demonstrar a validade do princípio defendido:

os portugueses europeus estabelecidos em Pernambuco, só pelo fato de nele virem habitar e estabelecer-se, são legítimos compatriotas desta província, e ela sua pátria de direito; e como taes devem ser reconhecidos pelos indígenas de Pernambuco, e amando-se fraternalmente, mostrarem que são cidadãos do mesmo foro e direito, uma só família de irmãos legais, sem jamais se distinguirem pela fútil, prejudicial e insubsistente diversidade de solo natal, detestando e alongando de si a mal entendida paixão de nação ou paisanismo29 29 CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. op. cit., p. 199. .

Mostrando-se atento não apenas à problemática da unidade luso-brasileira, mas principalmente à questão da composição dos cidadãos do Estado-Nação em vias de construção, Frei Caneca enfocou o tema sob o ângulo do sentimento de pertencimento, buscando despertá-lo, ou construí-lo, através de um sentimento de fraternidade entre os portugueses lusos e os naturais da província, sentimento este ainda bastante tênue, ou não existente, mas extremamente necessário, alertava o frade, à consolidação do Estado liberal que se queria edificar. Isto porque Frei Caneca entendia que a "paixão de nação", que também chamou de "paisanismo", deveria ser orientada na direção do lugar onde estavam estabelecidos os seus próprios negócios, ou seja, a "pátria de direito", devendo ser essa "preferível à pátria de lugar". E, argumentando que a preferência pela "pátria de direito" era uma "conseqüência bem natural", porque interligada à preeminência dos interesses a defender no caso de conflito entre os interesses de ambas as pátrias, Frei Caneca, anotava, ainda, que:

A autoridade, a razão, e os exemplos são as fontes em que devemos beber a solução do problema.

Observemos que, a partir desse tripé - autoridade = tradição /razão = especulação / exemplos = vida -, o frade-filósofo centrava a base do seu pensamento, formulava a sua concepção de conduta social, e ensinava que cabia ao cidadão distinguir "sem receio algum de errar", o quanto a defesa dos interesses da "pátria de direito" se colocava como questão prioritária e conseqüente. Assim sendo, a "paixão de nação" deveria, sem nenhuma dúvida, ser orientada na direção do lugar de residência, ou seja, do lugar onde estavam estabelecidos os próprios negócios:

O ser natural de um país é o efeito de um puro acaso, mas ser cidadão de um lugar, em que não nascemos, é uma ação do nosso arbítrio, é uma obra da nossa escolha, um fato que, mais do que outro qualquer, prova ser existência da liberdade, a mais digna qualidade do homem, e que se distingue plenamente das bestas30 29 CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. op. cit., p. 199. .

Percebe-se então, o quanto Frei Caneca encontrava-se sintonizado com a forma moderna de pensar a pátria e, mais ainda, com o conceito revolucionário de nação. Para ele o sentimento de pátria se originava a partir do livre arbítrio dos seus cidadãos e este era um conceito revolucionário de nação - naquele momento utilizado sobretudo nos Estados Unidos da América - entendendo-a como criação da livre escolha dos seus cidadãos. O frade carmelita entendia que da "pátria forçada", o lugar de nascimento, resultava imposição, enquanto da "pátria forçosa", de onde se sentia cidadão e fato decorrente da livre escolha, da vontade de pertencimento, resultava um sentimento de "afeto" do cidadão para com a "mãe-pátria", a quem o cidadão concedia livremente o direito de sua própria existência. A escolha, portanto, deveria recair sobre aquela pátria/nação a quem "lhe damos direito sobre o nosso ser e liberdade". Só assim os cidadãos esclarecidos pela razão e detentores do próprio arbítrio possuiriam a liberdade de romper "com suas lealdades anteriores" e poderiam optar, livre e politicamente, pela cidadania da "pátria de direito"31 31 Cf. HOBSBAWM, Eric J. op. cit., p. 108. .

Ora, se atentarmos para a relevância atribuída à liberdade de escolha do cidadão e ao dever deste para com a "pátria de direito", como elementos fundamentais à constituição da nação; e se ligarmos estes elementos ao momento político correspondente, no qual a ruptura da unidade luso-brasileira começava a ser anunciada como alternativa possível - verificaremos o quanto Frei Caneca pensava e agia em consonância com o momento de passagem de uma identidade nacional portuguesa, para uma identidade nacional brasileira.

Mostrava-se Frei Caneca bastante consciente da necessidade de ressaltar a importância dos interesses comuns a serem defendidos em situações de confronto, como a então vivida e na qual se debatiam tanto os portugueses europeus, como os lusos indígenas radicados no Brasil. Atravessava-se um momento político crítico e tornava-se necessário criar, principalmente, entre os europeus residentes em Pernambuco, em particular, e nas demais províncias do Brasil, em geral, o sentimento de pertencimento à pátria de direito, fazendo neles despertar a consciência dos deveres de cidadão, os quais não deveriam medir esforços na tarefa de promover "o aumento, o lustre e a glória, tanto no físico como no moral da pátria". Isto porque, tendo "o homem nascido para a sociedade dos outros homens", o que indicava a prevalência da esfera pública sobre a privada, cabia ao "verdadeiro patriota" trabalhar "com desvelo e adiantamento do bem público e preferi-lo ao seu cômodo particular", ou seja, não medir esforços para promover o bem geral da nação.

E como fecho da sua reflexão, o autor indicava, ainda, o grande mal resultante das "paixões taes que fecham as portas da alma às luzes da razão", o que agravava, sobremaneira, o conflito entre "europeus e brasileiros", apontando a dificuldade histórica em criar:

nações que podiam já ter tocado o cúmulo da sua perfeição e grandeza, pelos infinitos recursos que lhes liberalizou a natureza, e pelo prolongado decurso de três séculos ainda estão em princípio tão acanhado32 31 Cf. HOBSBAWM, Eric J. op. cit., p. 108. .

Donde se apreende que, preocupado em aprofundar a discussão sobre a noção de pátria/nação, com o propósito de amenizar o sentimento de rivalidade entre "duas ramificações do mesmo tronco" - rivalidade propiciadora de um clima de confronto que inquietava todo o Brasil -, Frei Caneca se revelava sempre bem sintonizado com a problemática daquele momento de incertezas, quanto à oportunidade de afirmação da nação brasileira.

Ao se deter na análise pormenorizada da concepção correta de pátria, Frei Caneca, por exemplo, deixava de fazer uma crítica mais pontual sobre a dissociação da noção dos termos pátria e nação, anteriormente concebida pelos ilustrados reformistas, ou deixava de explicitar uma reação mais direta ao sentimento de nacionalidade lusa então existente. Assumia, então, uma postura que pode ser entendida como endosso da proposta de edificação do império luso-brasileiro, o que implicava no desejo de afirmação da identidade nacional portuguesa. O fato do autor se referir sempre a "portugueses europeus e lusos indígenas", e apenas no final do texto utilizar algumas poucas vezes o termo "brasileiro", como identificador da nova nacionalidade dos naturais do Brasil, pode também indicar uma aceitação anterior do pertencimento à nação portuguesa e demonstrar ainda o quanto hesitava, no início de 1822, em relação à proposta de institucionalização de um Estado brasileiro independente e de definição de uma nova nação a ser constituída - a brasileira.

É preciso, no entanto, lembrar que nos primeiros dias do ano de 1822, ainda não era clara, ou aceita, a possibilidade de ruptura da união com Portugal. Ao contrário, persistia o entusiasmo em relação à queda do absolutismo monárquico e à adoção do sistema constitucional, em fase de institucionalização pelas Cortes Gerais e Constitucionais reunidas em Lisboa, o que pode explicar o posicionamento e a iniciativa de Frei Caneca ao abrir a discussão sobre o que deveria ser entendido por pátria/nação. Ou seja, o autor da Dissertação agia na esperança de resolver o conflito que afligia não apenas a província de Pernambuco, mas a todo o Reino do Brasil. Sem que ninguém tivesse lhe "encomendado o sermão", como fez questão de afirmar, agia na condição de um "liberal" empenhado no congraçamento entre "portugueses europeus e lusos indígenas" e firme em combater o "erro universal" que restringia a noção de pátria e nação, através do esclarecimento das "luzes da razão". Daí a expectativa bem modesta de "conseguir a conversão" de, pelo menos, dois indivíduos entre os "muitos milhares" de leitores da Dissertação, o que já representaria uma

grande ventura e daremos parabéns a nossa sorte porque lucramos dois homens para o reino da razão e por conseqüência para a virtude. Praza ao supremo motor de tudo, que escruta nossas entranhas e conhece perfeitamente o nosso coração, praza a Deus, repetimos, que suceda como desejamos33 33 Idem, p. 221. .

Ao mesmo tempo, vale anotar o quanto Frei Caneca se mostrou enfático na argumentação a favor da tomada de decisão, ou seja, da opção pela "pátria de direito" por parte daqueles a quem principalmente se dirigia, ou seja, o "povo rude sem aplicação às letras" e, principalmente, os "lusos europeus" estabelecidos na província, o que parece apontar mais na direção da construção de um sentimento de nacionalidade brasileira.

Observemos que o momento era de completa indefinição quanto à validade do endosso incondicional à política de unidade luso-brasileira. As Cortes Gerais e Constitucionais de Lisboa, que de início foram aplaudidas com entusiasmo em todos os recantos do Novo Mundo português, iniciaram seus trabalhos sem a presença dos representantes das províncias do Reino do Brasil e já tomavam iniciativas contrárias aos interesses desse novo reino, o que já vinha provocando reação objetiva, principalmente dos grupos ligados aos interesses da corte do Rio de Janeiro. Estes lideravam um movimento - vitorioso em 09 de janeiro, o dia do Fico -, contra a exigência inaceitáveis das Cortes Gerais - a extinção do cargo de príncipe regente exercido por D. Pedro e a sua conseqüente retirada do Brasil -, como forma de assegurar as prerrogativas já adquiridas pelo Reino do Brasil. Frei Caneca também já protestava com veemência contra a nomeação exclusiva de lusos europeus para o cargo de governadores das armas nas províncias do novo Reino, cuja função seria exercida sem qualquer ligação ou submissão às Juntas de Governo recém eleitas, ligado diretamente às Cortes Gerais, em Lisboa. E também já questionava sobre as condições da proclamação de "união e fraternidade" feita pelas mesmas Cortes Constitucionais, aos habitantes do Brasil34 33 Idem, p. 221. .

O momento era, portanto, de acirramento do confronto entre as partes componentes do Estado-Nação português, e urgia uma atitude firme em defesa dos interesses em jogo. Grande era o número de residentes vindos de fora, de Portugal principalmente, e estabelecidos não apenas na província de Pernambuco, como em todo o Brasil. No cenário desse conflito entre os interesses gerais do Reino do Brasil e os do Reino de Portugal - e, particularmente, de definição das prerrogativas dos grupos políticos da província de Pernambuco, tornava-se extremamente importante uma definição consciente e objetiva quanto aos verdadeiros interesses a serem defendidos.

Daí o empenho do liberal Frei Caneca, quanto à necessidade de definição do direito de cidadão e do dever deste cidadão em relação à pátria, a quem, por livre arbítrio, optou pertencer e cujos interesses deveria defender até a morte. Afinal, lembrava o frade carmelita, este era o sentimento compartilhado por filósofos e poetas dignos da imortalidade, como o poeta latino Horácio que um dia proclamara "Não há maior doçura e glória do que morrer pela pátria". Frei Caneca evocava Horácio para enfaticamente instruir que essa deveria ser a atitude correta do "verdadeiro patriota", aquele que não deveria medir esforços para:

empregar todas as suas forças no aumento, lustre e glória tanto no físico, como no moral da pátria35 35 Idem, p. 208. .

Resta ainda observar o quanto os laços da afetividade fraterna, como fundamentação necessária à construção da nação, foram evocados pelo autor, tanto quanto o despertar da consciência dos indivíduos em relação à liberdade de opção ou à vontade de pertencer à coletividade nacional. E também anotar, o quanto se impõe, no estudo específico sobre os fundamentos da nacionalidade brasileira, as implicações decorrentes da particularidade do processo de independência e de formação do Estado no Brasil. A adoção inicial de um modelo emancipador, baseado na "nação luso-brasílica", resultou numa identificação anterior dos naturais do Brasil com a nacionalidade portuguesa, quadro que só seria alterado nos meses finais de 1822, quando se fez a opção pelo modelo corrente de "independência absoluta" em relação à "mãe-pátria", ou seja, a Portugal36 35 Idem, p. 208. . A impossibilidade de realizar a "independência moderada pela unidade nacional", em face do acirramento do conflito entre interesses opostos - "sem igualdade de direitos em tudo e por tudo não há união"37 37 Cf. Carta de D. Pedro ao pai D. João VI. 21 de maio de 1822 e Proclamação de D. Pedro aos brasileiros e amigos. 1º de junho de 1822. - levou ao redirecionamento do processo histórico, no sentido da construção do "sistema de união brasílica", o que implicaria no esforço renovado de identificação dos cidadãos-membros do novo Estado-Nação a ser constituído.

Registremos que o pensador e doutrinador de idéias Frei Caneca, um dos representantes mais expressivos da vertente avançada da Ilustração e que logo se revelaria um ardente defensor da idéia liberal - aquela que propunha real transformação na estrutura do pacto social e só concebia a soberania como um "poder que emana dos povos e reside na nação" -, foi mais tarde, em novembro de 1823, o primeiro a denunciar com contundência a "perfídia" e o "perjuro" do imperador pela "dissolução arbitrária e despótica da soberana Assembléia Constituinte". Frei Caneca foi também o primeiro a se posicionar, em 1824, contra a aceitação pelas Câmaras Municipais - e o conseqüente juramento das mesmas - ao projeto de lei, enviado pelo governo imperial, para que fosse transformado em Carta Constitucional, o texto outorgado pelo imperador:

eu sou de voto que não se adote e muito menos jure o projeto de que se trata, por ser inteiramente mau, pois não garante a independência do Brasil, ameaça a sua integridade, oprime a liberdade dos povos, ataca a soberania da nação38 37 Cf. Carta de D. Pedro ao pai D. João VI. 21 de maio de 1822 e Proclamação de D. Pedro aos brasileiros e amigos. 1º de junho de 1822. .

Frei Caneca foi, ainda, o primeiro a denunciar com veemência a ausência, no texto da Constituição de 1824, de garantia explícita quanto à separação definitiva do Brasil, ou seja, a inexistência de um artigo específico no texto constitucional determinando os limites do território do Império brasileiro. Tal omissão, denunciava o frade carmelita, punha em risco a Independência do Brasil, uma vez que

No projeto não se determina positiva e exclusivamente o território do Império, como é de razão, e o tem feito sabiamente as constituições mais bem formadas da Europa e América; e com isto se deixa fisgar para se aspirar a união com Portugal; o que não só trabalham por conseguir os déspotas da Santa Aliança e o rei de Portugal, como o manifestam os pródigos mais apreciáveis da mesma Europa, e as negociações do ministro português com o Rio de Janeiro e correspondência daquele rei com o nosso imperador, com o que Sua Majestade tem dado fortes indícios de estar de acordo (...) pois que o executivo, pela sua oitava atribuição (art. 102) pode ceder ou trocar o território do Império ou de possessões, a que o Império tenha direito, e isto independentemente da Assembléia Geral39 39 Idem, p. 41. .

De onde se conclui que o apoio do liberal Frei Caneca ao projeto de império atlântico dependia da plena institucionalização de um sistema político alicerçado na efetiva participação dos membros da sociedade nacional, ou seja, dependia da adoção plena dos princípios liberais como esteio do Estado-Nação soberano. Se no início do processo de edificação da unidade luso-brasileira Frei Caneca aplaudira o "príncipe justo e magnânimo", aquele que optara pela "pátria forçosa" - ao decidir pela permanência no Brasil e se tornar o seu "defensor perpétuo" -; aquele que se dispusera a defender os interesses fundamentais dessa nova pátria, enfim, aquele que acatara com euforia os princípios constitucionais, no momento em que a atitude desse mesmo príncipe, já então imperador, contradizia todas estas aspirações, o apoio anterior deveria ser retirado ao mesmo tempo em que se impunha a denúncia dos verdadeiros interesses da política imperial praticada pela corte do Rio de Janeiro, os quais não eram os mesmos defendidos pelos "patriotas" de Pernambuco.

Vale aqui lembrar que, se o fechamento arbitrário da Assembléia Constituinte de 1823 punha em dúvida a profissão de fé liberal do jovem imperador, bem como a ausência de definição do território do Império do Brasil, na Constituição de 1824, deixava em aberto a possibilidade de reunificação a Portugal, a rejeição decisiva de Frei Caneca a essa política também se deveu ao golpe de Estado acontecido em Portugal - o da Vila-Francada, ocorrido em maio de 1823 - que arbitrariamente interrompeu a experiência liberal e fez retornar ao Reino de Portugal o sistema monárquico absolutista40 39 Idem, p. 41. . Fôra, portanto, convencido do dever de um "verdadeiro patriota", o de defender até a morte os interesses da pátria, e persuadido da supremacia do novo princípio de soberania - "isto é, aquele poder, sobre o qual não há outro, reside na nação essencialmente" e segundo o qual a nação "é quem se constitui" através dos "seus povos" - que Frei Caneca não hesitou em afrontar o governo imperial do Rio de Janeiro, sendo, por tal atitude, acusado de disseminador de "incendiária doutrina", processado como chefe de "insurreição e rebeldia", e condenado à "pena de morte natural" pelo crime de "provocar os povos a desobedecer ao governo de Sua Majestade Imperial"41 41 Cf. "Sentença" . In Obras Políticas... op. cit., pp. 89-93. .

É pertinente anotar, por fim, o posicionamento de Frei Caneca quanto ao sentido de dever do cidadão para com a pátria e quanto à percepção das reais diretrizes encaminhadas pelos agentes políticos mais proeminentes e atuantes no círculo de poder junto à corte do Rio de Janeiro. O texto abaixo transcrito pode revelar traços mais nítidos do seu pensamento e de sua ação no contexto do processo de construção do Estado independente e do esforço em prol da criação do sentimento de pertença, tão necessários à formação da nacionalidade brasileira. Neste fragmento do artigo de abertura do primeiro número do seu jornal, O Typhis Pernambucano, editado em 25 de dezembro de 1823, Frei Caneca expressou com precisão e objetividade a forma como concebia o sentimento de amor à pátria e como entendia ser o dever conseqüente do cidadão patriota:

Quando a nau da pátria se acha combatida por ventos embravecidos; quando, pelo furor das ondas, ela ora se sobe às nuvens, ora se submerge nos abismos; quando levada pelo furor dos euripos, feita o ludibrio dos mares, ela ameaça naufrágio e morte, todo cidadão é marinheiro; um dever sustentar o timão, outro por a cara ao astrolábio, ferrar o pano outro, outro alijar ao mar os fardos que a sobrecarregam e afundam, cada um prestar a diligência ao seu alcance, e sacrificar-se pelos cidadãos em perigo. Firme neste princípio, eu levanto a voz do fundo da minha pequenez e te falo oh Pernambuco, pátria da liberdade, asilo da honra e alcance da virtude! (...) tu me deste o berço, tu ateaste no meu meu coração a chama celeste da liberdade, contigo ou descerei aos abismos da perdição e deshonra, ou a par da tua glória voarei à eternidade42 41 Cf. "Sentença" . In Obras Políticas... op. cit., pp. 89-93. .

Notas

2Idem, p. 185.

4 Idem.

6Idem, pp. 194 e 199.

8 Sobre a atualidade do tema ver: NOIRIEL, Gérard. "La question nationale comme objet de l'histoire sociale". In Genèses - le National 4.Paris, Calman-Levy, 1991, pp. 72-94.

10 Cf. MELLO, Antônio Joaquim de. "Notícia bibliográfica sobre Frei Joaquim do Amor Divino Caneca"; e PORTO, Costa. "Revisão imperiosa", ambos nas páginas introdutórias de Obras Políticas e Literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. op. cit.

12 Tais textos compõem a obra organizada pelo Comendador Antônio Joaquim de Mello e publicada sob o título Obras Políticas e Literárias, citada anteriormente. Estes escritos constituem fonte inestimável para análise do pensamento do autor e do contexto político da época.

14 Uma análise mais abrangente e aprofundada dessas questões aqui enfocadas e a indicação das fontes utilizadas podem ser encontradas em: LYRA, Maria de Lourdes Viana. op. cit., pp. 191 e segs.

16 SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. trad. Luiz J. Baraúna. São Paulo, Abril Cultural, vol. II 1983., cap. VII, p. 343 (Os economistas); ver também a análise desse projeto em LYRA, Maria de Lourdes Viana. op. cit., pp. 37 e segs., 61 e segs.

18 Cf. Discurso de José Bonifácio na Academia Real de Ciências de Lisboa. 1819; e Representação aos mineiros. por SILVA, José Bonifácio de Andrada e. 24 de dezembro de 1821

20 Manifesto citado por SERRÃO, Joel. "Vintismo". In Dicionário da História de Portugal. Porto, Iniciativas Editoriais, 7º vol., 1971, p. 325.

22Representação da Junta de São Paulo. 24 de dezembro de 1821.

24 Discurso do presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro. 9 de janeiro de 1822

26 Este é o sentido do verbete sobre pátria na Encyclopédie, como analisa CONTAMINE, Philippe. op. cit., pp. 31 e segs.

28 Citando, inclusive, o exemplo do "grande Antônio, português, é patriota de Pádua, não obstante ter nascido em Lisboa", evocando o exemplo do venerado santo, entre outros personagens do mundo diplomático. Cf. CANECA, Frei. op. cit., pp. 197-199.

30Idem, pp. 203-204.

32 CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino. op. cit., p. 219.

34 Idem, p. 186.

36 Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. op. cit., p. 191 e segs.

38 Cf. "Voto dado na Câmara Municipal da codade do Recife". In Obras Políticas .... op. cit., pp. 39-47.

40 Cf. SERRÃO, Joel. op. cit., 4º vol., pp. 626-628.

42 Cf. O Typhis Pernambucano. 25 de dezembro de 1823. In Obras Políticas e Literárias... op. cit., p. 419.

  • 1
    1Cf. "Dissertações sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria". In Obras Políticas e Literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Colecionadas pelo Comendador Antônio Joaquim de Mello. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1972 (fac-similar da primeira edição de 1875) pp. 177-221.
  • 7 Cf. A conferęncia pronunciada na Sorbonne, em 1882, por Ernest Renan, escritor dedicado ao estudo da semiótica e das religiőes - Qu'est qu'une Nation - na qual o autor afirma que naçăo pode ser entendida como o resultado de um longo "passado comum" de esforços, sacrifícios, glórias e dedicaçăo, através do qual se forma a vontade de preservar essa herança legada, o desejo de viver junto. Renan entendia a naçăo, como "uma alma" (a "posse de um legado de lembranças"), e como um "princípio espiritual" (o "presente", o "consentimento atual de viver junto", o "plebiscito de todos os dias"), e năo como uma "coisa eterna". Fundamentava-se assim a concepçăo "voluntarista", que se contrapunha ŕ "naturalista", alemă, apoiada em fatores naturais - o meio geográfico e os critérios étnicos - e que entende a naçăo "como um todo orgânico", uma "comunidade cultural e histórica". Cf. Discussăo desenvolvida hoje sobre a questăo nacional através de textos publicados In Communications - Éléments pour une théorie de la nation. Paris, Seuil, 1987;
  • 8Sobre a atualidade do tema ver: NOIRIEL, Gérard. "La question nationale comme objet de l'histoire sociale". In Genčses - le National 4.Paris, Calman-Levy, 1991, pp. 72-94.
  • 9 Utilizamo-nos das análises de VILAR, Pierre. "Reflexions sur les fondaments des structures nationales" - que entende a naçăo como categoria histórica, uma realidade construída em funçăo da defesa dos interesses comuns - Histoire 16. Paris, avril 1978;
  • 10Cf. MELLO, Antônio Joaquim de. "Notícia bibliográfica sobre Frei Joaquim do Amor Divino Caneca"; e PORTO, Costa. "Revisăo imperiosa", ambos nas páginas introdutórias de Obras Políticas e Literárias de Frei Joaquim do Amor Divino Caneca op. cit.
  • 11Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política. 1798 - 1822. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994, pp. 88 e segs.
  • 15Discurso pronunciado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho perante a Junta de Ministros e outra pessoas sobre assuntos referentes ao desenvolvimento econômico e financeiro de Portugal e Domínios Ultramarinos, principalmente o Brasil Coleçăo Linhares Seçăo de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
  • 16SMITH, Adam. A riqueza das naçőes: investigaçăo sobre sua natureza e suas causas. trad. Luiz J. Baraúna. Săo Paulo, Abril Cultural, vol. II 1983., cap. VII, p. 343 (Os economistas);
  • 17Cf. COUTINHO, J.J. da Cunha Azeredo. "Ensaio Econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias". In Obras Econômicas. Apresentaçăo de S. B. Holanda. Săo Paulo, Cia Edt. Nacional, 1966.
  • 20Manifesto citado por SERRĂO, Joel. "Vintismo". In Dicionário da História de Portugal. Porto, Iniciativas Editoriais, 7ş vol., 1971, p. 325.
  • 13
    21Proclamação das Cortes Gerais. 13 de Julho de 1821.
  • 22Representação da Junta de São Paulo. 24 de dezembro de 1821.
  • 23 Manifesto do povo do Rio de Janeiro. 2 de janeiro de 1822.
  • 24 Discurso do presidente do Senado da Câmara do Rio de Janeiro 9 de janeiro de 1822
  • 25Em relaçăo ŕ discussăo sobre os deveres devidos ŕ pátria ver KANTOROWICZ, Ernest. "Mourir pour la patrie". In Communications.Paris, Seuil, 1987, p. 147;
  • e sobre a noçăo de pátria e sua força através da história ver: Philippe CONTAMINE. "Mourir pour la patrie: Xčme - XXčme sičcle". In NORA, Pierre. Les lieux de mémoire II. La Nation Paris, Gallimard, vol. 03, 1986, pp. 11-43.
  • 27Cf. CONTAMINE, Philippe. op. cit., pp. 35 e segs.; ver também LE GOFF, Jaccques. História e Memória Trad. Bernardo Leităo (et al.) 2Ş ed; Campinas, Ed. UNICAMP, 1992, pp. 74-75.
  • 1
    Cf. "Dissertações sobre o que se deve entender por pátria do cidadão e deveres deste para com a mesma pátria". In
    Obras Políticas e Literárias de
    Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Colecionadas pelo Comendador Antônio Joaquim de Mello. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1972 (fac-similar da primeira edição de 1875) pp. 177-221.
  • 3
    Idem.
  • 5
    Idem, p. 187.
  • 7
    Cf. A conferência pronunciada na Sorbonne, em 1882, por Ernest Renan, escritor dedicado ao estudo da semiótica e das religiões -
    Qu'est qu'une Nation - na qual o autor afirma que nação pode ser entendida como o resultado de um longo "passado comum" de esforços, sacrifícios, glórias e dedicação, através do qual se forma a vontade de preservar essa herança legada, o desejo de viver junto. Renan entendia a nação, como "uma alma"
    (a "posse de um legado de lembranças")
    , e como um "princípio espiritual" (o "presente"
    , o "consentimento atual de viver junto"
    , o "plebiscito de todos os dias"), e não como uma "coisa eterna". Fundamentava-se assim a concepção "voluntarista", que se contrapunha à "naturalista", alemã, apoiada em fatores naturais - o meio geográfico e os critérios étnicos - e que entende a nação "como um todo orgânico", uma "comunidade cultural e histórica". Cf. Discussão desenvolvida hoje sobre a questão nacional através de textos publicados In
    Communications - Éléments pour une théorie de la nation. Paris, Seuil, 1987; e
    Genèses - Le National 4. Paris, Calmann-Levy, 1991.
  • 9
    Utilizamo-nos das análises de VILAR, Pierre. "Reflexions sur les fondaments des structures nationales" - que entende a nação como categoria histórica, uma realidade construída em função da defesa dos interesses comuns
    - Histoire 16. Paris, avril 1978; e HOBSBAWM, Eric J.
    Nações e nacionalismos
    desde 1780: programa, mito e realidade. Trad. Maria C. Paoli e Anna M. Quirino, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, onde o autor aprofunda o estudo dos fenômenos históricos pertinentes à questão nacional.
  • 11
    Cf. LYRA, Maria de Lourdes Viana.
    A utopia do poderoso império. Portugal e Brasil: bastidores da política. 1798 - 1822. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994, pp. 88 e segs.
  • 13
    Cf. Manifesto de 02 de março de 1824.
  • 15
    Discurso pronunciado por D. Rodrigo de Sousa Coutinho perante a Junta de Ministros e outra pessoas sobre assuntos referentes ao desenvolvimento econômico e financeiro de Portugal e Domínios Ultramarinos, principalmente o Brasil.
    Coleção Linhares. Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
  • 17
    Cf. COUTINHO, J.J. da Cunha Azeredo. "Ensaio Econômico sobre o comércio de Portugal e suas colônias". In
    Obras Econômicas. Apresentação de S. B. Holanda. São Paulo, Cia Edt. Nacional, 1966.
  • 19
    Cf.
    Manifesto de Portugal aos soberanos e povos da Europa. 15 de dezembro de 1820.
  • 21
    Proclamação das Cortes Gerais. 13 de Julho de 1821.
  • 23
    Manifesto do povo do Rio de Janeiro. 2 de janeiro de 1822.
  • 25
    Em relação à discussão sobre os deveres devidos à pátria ver KANTOROWICZ, Ernest. "Mourir pour la patrie". In
    Communications.Paris, Seuil, 1987, p. 147; e sobre a noção de pátria e sua força através da história ver: Philippe CONTAMINE. "Mourir pour la patrie: Xème - XXème siècle". In NORA, Pierre.
    Les lieux de mémoire
    II. La Nation. Paris, Gallimard, vol. 03, 1986, pp. 11-43.
  • 27
    Cf. CONTAMINE, Philippe.
    op. cit., pp. 35 e segs.; ver também LE GOFF, Jaccques.
    História e Memória. Trad. Bernardo Leitão (et al.) 2ª ed; Campinas, Ed. UNICAMP, 1992, pp. 74-75.
  • 29
    CANECA, Frei Joaquim do Amor Divino.
    op. cit., p. 199.
  • 31
    Cf. HOBSBAWM, Eric J.
    op. cit., p. 108.
  • 33
    Idem, p. 221.
  • 35
    Idem, p. 208.
  • 37
    Cf.
    Carta de D. Pedro ao pai D. João VI. 21 de maio de 1822 e
    Proclamação de D. Pedro aos brasileiros e amigos. 1º de junho de 1822.
  • 39
    Idem, p. 41.
  • 41
    Cf. "Sentença"
    . In
    Obras Políticas... op. cit., pp. 89-93.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Maio 1999
    • Data do Fascículo
      1998
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