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Afinal, de que tradição eles estão falando?

Resumos

Após a queda do muro tem-se observado um constante e generalizado comportamento político de antigos membros da esquerda que agora tendem a admitir qualquer modelo ético-político como válido. Diante da vitória do pensamento neoliberal é importante conhecer a pluralidade de tradições que o socialismo desenvolveu entre nós, além de que, poder avaliar as idéias dos socialistas não-comunistas, têm servido para romper um limite a que nossos estudos políticos pareciam destinados: partia-se do princípio de que não houve no Brasil uma tradição intelectual de adesão às idéias democráticas. A história do pensamento político brasileiro parecia estar sempre marcada pelo autoritarismo.

socialismo; liberdade; democracia


After the fall of the wall it has been observing a constant and widespread political behavior of old members of the left that now tend to admit any ethical-political model as valid. Before the victory of the neoliberal thought it is important to know the plurality of traditions that the socialism developed among us, in addition, to evaluate the no-communist socialists' ideas, they have been being good to break a limit the one that our political studies were destined: he broke of the beginning that there was not in Brazil an intellectual tradition of adhesion to the democratic ideas. The history of the Brazilian political thought seemed to be always marked by the autoritarism.

socialism; freedom; democracy


Afinal, de que tradição eles estão falando?

Alexandre Hecker

Universidade Estadual Paulista - Campus de Assis

RESUMO

Após a queda do muro tem-se observado um constante e generalizado comportamento político de antigos membros da esquerda que agora tendem a admitir qualquer modelo ético-político como válido. Diante da vitória do pensamento neoliberal é importante conhecer a pluralidade de tradições que o socialismo desenvolveu entre nós, além de que, poder avaliar as idéias dos socialistas não-comunistas, têm servido para romper um limite a que nossos estudos políticos pareciam destinados: partia-se do princípio de que não houve no Brasil uma tradição intelectual de adesão às idéias democráticas. A história do pensamento político brasileiro parecia estar sempre marcada pelo autoritarismo.

Palavras-chave: socialismo, liberdade, democracia.

ABSTRACT

After the fall of the wall it has been observing a constant and widespread political behavior of old members of the left that now tend to admit any ethical-political model as valid. Before the victory of the neoliberal thought it is important to know the plurality of traditions that the socialism developed among us, in addition, to evaluate the no-communist socialists' ideas, they have been being good to break a limit the one that our political studies were destined: he broke of the beginning that there was not in Brazil an intellectual tradition of adhesion to the democratic ideas. The history of the Brazilian political thought seemed to be always marked by the autoritarism.

Keywords: socialism, freedom, democracy.

Constitui desafio interessante para o historiador contemporâneo tentar entender e buscar explicações para o comportamento e a ação política de ex-militantes da esquerda que hoje após a derrocada do socialismo real, dispersam-se nas mais diversas fileiras das organizações partidárias, inclusive naquelas que jogam um papel nitidamente de direita. O espírito de que "tudo passou a ser permitido, pois Marx nada mais explica", levou a uma revoada geral, principalmente no leste europeu. Mas, também entre nós, o fenômeno se manifestou e produziu experiências traumáticas. Ao que parece, esses militantes sofreram uma queda do estado divinal no qual um encantamento teórico os colocava, e aterrizaram violentamente num massacrante aqui-agora que transforma em parâmetro ético-político o vale-tudo cotidiano.

O desafio consiste em olhar para trás e perscrutar a história recente do socialismo a fim de verificar se existem modelos de comportamento que justifiquem as práticas atuais e, nesse sentido, o caso brasileiro encerra uma experiência sugestiva para conjecturar sobre o lugar da democracia no assim denominado socialismo do futuro.

Antes de passar ao terreno no qual a questão brasileira se desenvolveu - isto é, o período de dilemas vivido pela nossa esquerda após a 2ª grande guerra - permita-se uma digressão esquemática ao nível genérico dos fundamentos teórico-éticos do marxismo.

Ao adotar uma ética que considerava as circunstâncias, mantinha uma relação dialética entre interior e exterior, ou se quisermos entre o pensado e o vivido, ou mais genericamente, entre o material e o espiritual, o marxismo acrescentou à fórmula do imperativo categórico kantiano a exigência da observação do concreto social. Daí ter criado um modelo de preocupações éticas no qual elementos do cristianismo apareciam secularizados (cristianismo como imperativo interno; secularização como exigência lógica da observação histórica). No século XX, tal modelo produziu construções morais híbridas, como: a conversão do intelectual burguês ao socialismo, a redenção da história pelo proletariado, o martírio do trabalhador sob o capitalismo, a espera pelo reino da liberdade etc. Assim, tornou-se possível a existência de algumas formas marxistas ortodoxas nas quais o enrigecimento da teoria deu lugar à dogmatização da história. Nesses casos estabeleceu-se um paralelismo entre as duas concepções de mundo acima referidas, enunciável da seguinte forma: enquanto no cristianismo os ideais éticos foram identificados como religião, no marxismo o foram como materialismo histórico.

Entretanto, é quase escusado dizer, o marxismo não foi religião. Ao menos não o foi sempre, pois houve expressões suas que se mantiveram muito mais adstritas à racionalidade do que à fé, embora parcelas deste sentimento desfrutassem, por vezes, de um lugar especial na teoria. É aqui neste ponto que se encontram interessantes sugestões para a contemporaneidade.

Adam Schaff, famoso teórico marxista, líder comunista polonês por mais de 60 anos de sua longa vida, ao proceder a um balanço desta, num livro publicado pouco antes de sua morte, Meu Século XX,1 tratou do assunto tão simples quanto magistralmente. Ao responder à questão que se autoimpusera, "qual foi a causa de minha adesão ao comunismo?", afirmou:

Penso que em meu caso - e o considero muito representativo - desempenhou um grande papel a minha sensibilidade diante da injustiça social que me rodeava... e a aceitação de um determinado sistema de valores que encabeçava o princípio judeu-cristão do amor ao próximo (o ágape do rabino Hillel e de São Paulo). Esta sensibilidade teve um peso decisivo em minha orientação(...) Sem o amor ao próximo, sem um fundamento moral e sem a disposição de combater toda a injustiça que causa sofrimentos aos homens, a idéia do socialismo se transforma em algo estéril que facilmente pode degenerar-se, como nos demonstraram as deformações do chamado socialismo real(...) O humanismo socialista e o cristão podem aproximar-se mutuamente, adquirindo formas de um humanismo ecumênico(...) (Assim) de acordo com minha experiência pessoal posso afirmar de maneira categórica que o socialismo sem `coração', perde todo o seu sentido e conduz diretamente ao socialismo do Gulag.

Pois bem, para a esquerda brasileira, essa alma socialista - expressão advinda de outro renomado intelectual, o português Saramago - foi proscrita pela política implacável do PCB durante os anos de estrito servilismo ao culto da personalidade de Prestes e de seus fiéis seqüazes. No entanto, coube a outra agremiação filiada ao mesmo ambiente teórico manter viva uma relação positiva entre ética e ideologia: o pequeno, insignificante eleitoralmente e quase desconhecido, Partido Socialista Brasileiro. A forma política que o amor ao próximo tomou através do PSB ficou evidenciada na construção e experimentação de dois conceitos pioneiros no âmbito da esquerda brasileira: os de liberdade e democracia.

Em São Paulo, o PSB contou com uma plêiade de intelectuais cujas idéias cultivaram e promoveram uma vivência prática desses princípios fundamentais. Primeiro, o interesse pela construção da liberdade do indivíduo, acreditando que esta aumentaria na medida em que o militante se conscientizasse dela, embora salientassem que a aquisição da consciência da liberdade não fosse senão um passo para a liberdade efetiva. Socialismo e Liberdade não era apenas o lema, mas a diretriz básica para um Partido que em suas fileiras abrigava o mais variado grupo de tendências esquerdistas da época: ex-comunistas, ex-trotskistas, socialistas cristãos, liberais-socialistas, cristãos-democratas, republicanos radicais etc. E todos podendo defender em alto e bom som suas visões particulares. A liberdade interna no PSB era contrapartida necessária da proposta externa, da proposta para a sociedade. Para que se tenha uma breve noção do ambiente em suas fileiras, recorra-se às palavras de um de seus mais importantes líderes, Hermes Lima, que foi até mesmo um efêmero primeiro-ministro do governo João Goulart. Através delas observa-se a dificuldade em manter a união mas não se nota nenhuma intenção em diminuir a liberdade de cada um dos militantes:

Num partido como o nosso, em que é livre a todos os seus membros manterem seus pontos de vistas pessoais, filosóficos e religiosos, o problema da unidade orgânica das deliberações reveste-se da mais alta importância. É muito fácil comprometer esta unidade se os pontos de vista pessoais... tomarem... uma atitude de intransigência, de desinteresse ou mesmo de oposição às deliberações partidárias". Trata-se de um apelo à unidade, e não de cerceamento das diferenças.

Uma segunda diretriz socialista fundamental, também manejada pelos membros do PSB tanto no âmbito de suas fileiras como na relação com a sociedade, foi a orientação para a democracia. Nesse campo, o PSB tornou-se também pioneiro dentro da esquerda brasileira, já que atribuiu a este conceito uma valoração que só recentemente ganhou preeminência. Antônio Cândido de Mello e Souza, hoje um dos mais eminentes professores brasileiros, foi destacado militante do PSB paulista durante os anos 40. A ele coube, no primeiro número do jornal Folha Socialista, em 1947, redigir um artigo no qual a questão democrática ficasse logo definida como parâmetro partidário. Para consignar seu objetivo, o autor traçou um paralelo entre o Partido Comunista e a sua própria organização. Parecia-lhe necessário ressaltar a "espantosa incoerência teórica e prática" do PCB, resultado da mistura de "estalinismo, oportunismo e misticismo caboclo". Os comunistas pareciam querer ora uma coisa ora outra: revolução nacional, linha de Moscou, colaboração de classe. "Seu conteúdo revolucionário está praticamente comprometido, dizia ele, quer pela subserviência às ordens da Rússia - dessa Rússia que não representa mais a causa do proletariado mundial, e sim os seus interesses nacionais - quer pela tendência golpista e antidemocrática. É preciso não confundir mudança revolucionária com golpe político... O PCB está tornando impossível a consciência revolucionária e criando ambiente para o golpismo dirigido de cima para baixo".

A identificação do PSB vinha em oposição a tudo isso. Do PCB, o Partido diferia" nos métodos e na concepção política", pois baseava-se num conceito diverso de democracia no qual - e aqui Antônio Cândido expressava uma releitura do princípio marxista de revolução vulgarmente adotado pelas esquerdas na época - "o ato não se separa do objeto", isto é, o PSB não poderia tomar o lugar do "proletariado consciente", pois essa inversão acabaria por eliminar "qualquer preocupação de democracia proletária". Ia ainda mais longe o analista: explicava que o desrespeito à ligação entre ato e objeto levara os comunistas a incorrerem em erros crassos como o emprego do centralismo despótico na organização partidária da Rússia, intolerância ideológica, a tática golpista e a compressão da vida civil, e, como os PCs "obedecem cegamente as instruções emanadas de lá", o PCB devia ser rejeitado. Estava assim suficientemente assinalada a fronteira de princípios entre dois diferentes socialismos, entre dois marxismos.

Tal fronteira, no entanto, restringia-se aos meios, uma vez que os fins almejados eram comumente os mesmos. Porém, é preciso que se note, talvez resida justamente nesse aspecto o essencial, já que segundo a definição dos socialistas "o fim não é mais do que a cristalização dos meios e sua projeção definitiva". A mesma idéia foi exposta pelo socialista Norberto Bobbio, em Qual socialismo?2, para justificar o porquê da democracia: "Trata-se de saber, uma vez dada como certa a máxima de que o fim justifica os meios, se não se deve parar um momento para refletir sobre a máxima inversa, de que os meios condicionam o fim".

O conhecimento das propostas e comportamentos adotados pelos socialistas democráticos no Brasil têm servido para romper um limite a que pareciam destinados os estudos políticos: partia-se do princípio de que não havia, entre nós, uma tradição intelectual de adesão às idéias democráticas; o autoritarismo, ao contrário, impunha-se como uma constante no pensamento nacional, até mesmo no âmbito da esquerda. Com o PSB, o marxismo não foi autoritarismo, nem religião, mas humanismo socialista que não desprezando o humanismo cristão, nem fazendo dele um rol de dogmas, serve de patamar para pensar "formas de um humanismo ecumênico", como o velho Schaff sugeriu.

Assim, fica aqui indicado que o modelo de comportamento político contemporâneo pode ter raízes no passado recente, já que a um socialismo dogmático de antes correspondem" heresias" de hoje enquanto a outro correspondem redefinições de meios e objetivos que respeitam a vida pública e privada de seus aderentes.

Outra questão, paralela ao assunto acima analisado mas a ele perfeitamente interligada, refere-se a uma certa simplificação e reducionismo histórico elaborado sobre a tradição crítica do socialismo brasileiro. Há algum tempo3, o professor Ruy Fausto condenou as interpretações que Roberto Schwarz e Emir Sader fizeram do assim chamado "Seminário do Capital" - uma reunião de intelectuais, como Fernando Henrique Cardoso, José Artur Giannotti e outros, que no fim dos anos cinquenta teriam, pela primeira vez no interior da esquerda brasileira, colocado em cheque as certezas das propostas e dos caminhos preconizados pelo Partido Comunista. Ruy Fausto chama a atenção para os seguintes pontos: o equívoco em não distinguir a" história das ideologias da esquerda, que depende da história dos grupos e partidos de esquerda(...) [da] história do pensamento universitário"; e o perigo de tornar a segunda preeminente em relação à primeira. Investindo principalmente contra Schwarz, o entrevistado continua:

Roberto não diz nada sobre o fato de que, fora dos partidos comunistas, no Brasil como no mundo, havia grupos militantes em que se desenvolvia um pensamento de crítica tanto à URSS como à política dos PCs e a sua visão do desenvolvimento capitalista - havia também socialistas democráticos. Que o pensamento de tais grupos era esquemático, claro que sim. Mas ele existia. Ora, Roberto descreve o Seminário como um centro em que se desenvolvia um pensamento alternativo em relação às teorias e às políticas do PCB, mas não diz nenhuma palavra sobre o que já existia de paralelo, na mesma época, num plano que se pode chamar ideológico.

É preciso acrescentar algumas considerações e reparos. O historiador que se dedique a entender o significado e os desdobramentos do pensamento socialista alternativo às teorias e às políticas hegemônicas do comunismo no Brasil, vê-se compelido a:

- de acordo com Ruy Fausto, insistir sobre a antecedência do referido debate, e acrescentar que suas raízes podem ser encontradas nos "tempos remotos" da República Velha, quando o grupo de socialistas reunido em torno de Antonio Piccarolo, em São Paulo, procurou dar vida a um "socialismo possível" que não se subordinasse ao marxismo-leninismo ou a outras formas abarcadas pelo termo comunismo; por outro lado, fosse outra a ocasião, seria interessante conjeturar sobre o valor negativo atribuído pelo entrevistado à expressão "plano ideológico", em correlação com um seu ideal hipotético absoluto, mais completo, o filosófico;

- em desacordo com o professor Fausto, ponderar que o pensamento socialista acima referido não se fez merecedor da pecha de esquemático, mesmo que a observação advenha de um professor de filosofia afeito a exigentes, e abstratas, digressões. Note-se, do ponto de vista formal, que muitos dos professores uspianos dos participantes do Seminário do Capital, estavam na base do interesse pela matéria: esses, em bom número, eram membros do Partido Socialista em São Paulo e levavam às salas de aula o resultado de embates vividos como militantes. Assim, Azis Mathias Simão, Lourival Gomes Machado, Arnaldo Pedroso D'Horta, Antônio Cândido, entre outros, eram dirigentes de cadeiras que tinham o marxismo como temática privilegiada; outros ainda exerceram alguma influência sobre a geração Seminário, tais como Paulo Emílio Salles Gomes, Sérgio Buarque de Holanda, Décio de Almeida Prado. No entanto, parece mais proveitoso assinalar, como acima ensaiamos, o uso de instrumental conceptual pioneiro e perceber a sementeira, para política contemporânea, em que as discussões no seio do Partido se converteram. Nesse sentido, vale a pena tirar da sombra em que jaziam documentos socialistas fundamentais que poderão servir para estabelecer, em bases firmes, uma nova tradição democrática para a esquerda brasileira. O documento, abaixo transcrito, se inscreve nesse propósito.

Em seu número de 20 de janeiro de 1949, a Folha Socialista, órgão oficial do Partido Socialista Brasileiro, seção São Paulo - quinzenário que circulou entre os anos de 1947 e 1965, com interrupções principalmente na década de 1950 - publicava um artigo intitulado Pró e anti-marxismo. Seu autor, o advogado Antônio Costa Corrêa, fora um dos fundadores da Esquerda Democrática, organização que se tornou, no primeiro ano de publicação do jornal, o Partido Socialista Brasileiro. Como aluno da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, Costa Corrêa pertenceu ao grupo de estudantes que estreou na vida política desafiando a ditadura getulista e, posteriormente, notabilizou-se como intelectual socialista democrático.

No texto, transparece a tentativa de levar o conceito de militância dentro das correntes de esquerda ao limite possível de liberdade de ação e assim fundamentar as bases para a construção de um partido no qual o modelo de democracia" externa", aberta à imprevisibilidade do amanhã, contasse com o necessário respaldo de autonomia no plano da organização interna. Cada socialista deveria agir como um adepto auto-responsável, e só dessa forma seria capaz de bem exercitar o seu papel.

Uma análise palmar levaria a confundir as idéias expostas por Antônio Costa Corrêa com um conjunto mais ou menos banal de noções sobre a fraternidade humana e o idealismo social. Entretanto, respeitada a sua historicidade, elas contêm um pluralismo antimítico que, mesmo encontrando barreiras para ser assimilado à época, favorecia a libertação da crítica política de esquemas rigidamente pré-estabelecidos. Suas análises continham um entendimento histórico que se apoiava no acontecimento irrepetível, inimitável, que pode ter contribuído para a formação de um pensamento de esquerda menos arraigado a normas fixas e imutáveis. Por fim, contemplavam um relacionamento íntimo entre a origem das decisões políticas individuais e o nível afetivo, algo que incorporava, no mínimo superficialmente, características de uma análise psico-política. E nesse caminho Costa Corrêa entendia o indivíduo como uma pluralidade em si, como um campo aberto ao conflito de valores, diferentemente do chavão comunista então admitido, o do "novo homem socialista". Por tudo isso, Costa Corrêa merece ser lido e avaliado como representante de um grupo político cuja pertinência das propostas não se extingüiria no curto prazo.

"Pró e Anti-Marxismo"A Comissão Municipal do Partido, em São Paulo, propôs para discussão aos grupos, visando a elevação do nível político dos militantes, a seguinte tese: ser sistematicamente contra o marxismo hoje é tão antiquado quanto ser sistematicamente pró-marxismo. A tese, evidentemente, é defeituosa em sua formulação, mas serve como incentivo para que se movam discussões em torno de um dos pontos fundamentais do programa de nosso partido - aquele em que se declara não adotarmos, como partido, nenhuma concepção filosófica da existência, deixando, nesse terreno, ampla liberdade a todos os militantes, para seguirem a própria consciência.

Já se tem acentuado reiteradamente, em artigos, manifestos e manifestações públicas, que o Partido Socialista Brasileiro não adota o marxismo como base de seu programa e de sua ação política. A repetição dessa afirmação, porém, poderá dar a impressão de que somos visceralmente anti-marxistas, de que nada temos em comum com o marxismo. E isso representará uma impressão falsa da orientação do Partido.

Quando se inseriu no nosso programa o direito de cada membro do partido seguir, no tocante a concepções filosóficas, a sua própria consciência, isso representou o fruto da experiência e da observação dos movimentos socialistas contemporâneos. Representou, essencialmente, a convicção que animava os fundadores do partido, de que para ser socialista não é necessário que o cidadão possua uma determinada ideologia, tenha seu espírito formado em uma das várias correntes de idéias que tem constituído até o presente as doutrinas socialistas. Mas isso não significa que os socialistas brasileiros tenham a intenção de deixar de lado e ignorar todas essas doutrinas, como se fossem velharias inaproveitáveis.

Nenhum socialista, especialmente ocupando posição destacada no partido, pode ignorar as idéias básicas das várias doutrinas socialistas, porque elas representam, pelo menos, tentativas de racionalização e sistematização das velhas aspirações de justiça social e liberdade para todos os seres humanos, de acordo com as condições de evolução do mundo moderno. Especialmente em relação ao marxismo não é possível que qualquer militante socialista medianamente capaz possa ignorar sua existência ou proclamar-se declaradamente anti-marxista. O marxismo, quaisquer que sejam as restrições que se lhe façam, é a doutrina que mais poderosa influência exerceu e exerce no mundo contemporâneo e que mais conseguiu abalar os alicerces do regime capitalista. Ninguém poderá negar, em sã consciência, que até o presente não surgiu crítica mais candente e fundamentada ao capitalismo que a da doutrina marxista. Ignorar o marxismo ou declarar-se sistematicamente anti-marxista, portanto, equivale a não ter noção alguma do que seja socialismo, permanecer no simples humanitarismo sentimental e vulgar. O mínimo que se deve exigir do militante de um partido socialista, no tocante à educação política, é que saiba explicar, numa discussão, porque o regime capitalista escraviza a grande maioria dos seres humanos, constituída de trabalhadores, porque a propriedade privada dos meios de produção é uma forma de escravidão e porque o socialismo é um regime superior, destinado a acabar com essa forma de opressão reinante na sociedade. E para isso ninguém poderá deixar de recorrer ao marxismo como o mais poderoso subsídio.

Estamos de pleno acordo em que ser sistematicamente pró-marxismo hoje não tem sentido construtivo algum para o militante socialista. Não é possível transpor a luta pela realização do socialismo, que representa um programa social e um sistema de organização da sociedade, para o plano puramente ideológico. Aqueles que assim procederam, só conseguiram retardar e deturpar o socialismo. Todos nós conhecemos a tragédia das grandes polêmicas e lutas encarniçadas travadas no seio do movimento operário, em torno da pureza marxista. Partidos e agrupamentos têm-se degladiado cruentamente na disputa pelo direito de se proclamarem uns e outros, em primazia, os mais fiéis intérpretes do pensamento de Marx e de Engels. E com isso muito se prejudicou a luta prática pelo socialismo. Pensar que só se pode combater pela consecução do socialismo dentro de um corpo de doutrina organizado conservando intangível a fidelidade a essa doutrina, significa permanecer no velho espírito racionalista que dominou os pensadores do século passado. Nenhum indivíduo medianamente sensato pode hoje ignorar a enorme influência dos fatores afetivos na formação das idéias, sobretudo idéias que dizem respeito à organização da sociedade e à luta política, em cuja composição os impulsos sentimentais ocupam grande parte. O essencial para o indivíduo se transformar num batalhador da causa socialista não é aprender e aceitar as idéias de qualquer mestre do socialismo e sim possuir qualidades morais e afetivas que o habilitem a lutar por um sistema de organização da sociedade em bases de justiça social e liberdade para o maior número. O que importa não é tanto ser marxista, bakuninista, saint-simoniano, reformista ou leninista e sim possuir formação moral e afetiva em concordância com os princípios de libertação social e política que se quer defender e levar à prática na organização da sociedade. Um religioso do movimento católico Economia e Humanismo pode estar muito mais próximo dos princípios socialistas do que qualquer dos chefes onipotentes do stalinismo, que são proclamados os teóricos máximos das doutrinas socialistas e os fiéis intérpretes do pensamento do Marx. Não é difícil encontrar por aí comunistas exaltados, plenos de conhecimento de doutrina marxista que, no entanto, trazem na sua formação psicológica, em lugar dos impulsos de fraternidade humana e do idealismo social libertário que formam a base das ideologias socialistas, apenas recalques de fracassos individuais, no mundo árduo da competição capitalista, ambição de mando frustrada ou sentimentos primários de idolatria em torno de um chefe. E tais indivíduos, com toda a superioridade de sua ideologia, serão sempre a negação viva dos princípios socialistas que pretendem defender em nome desta mesma ideologia.

A posição que nos parece mais justa, para um militante socialista, consciente de suas responsabilidades, em face do marxismo, da mesma forma que em relação às demais doutrinas socialistas, é a do estudioso que procura capacitar-se para o exercício do mister que abraçou. Tais doutrinas não podem deixar de ser estudadas e utilizadas como o fruto de uma longa e dura experiência de muitos e grandes batalhadores e pensadores da causa socialista. Elas são as bases racionais em que podemos apoiar a nossa ação e obter meios mais eficientes para atingirmos o socialismo. Mas daí à posição de devotamento místico a uma doutrina, observada em alguns partidos da II Internacional de há 50 anos e observada ainda hoje entre os comunistas de todos os matizes, vai enorme distância.

O fato de pretendermos batalhar pelo socialismo sem apoio de uma doutrina filosófica exclusiva poderá apresentar-se, para muitos sectários do marxismo, como sendo um ecletismo pequeno-burguês ou mesmo uma forma de política empírica, do tipo do tipo burguês. Mas essa será a única forma de nos libertarmos da mentalidade bitolada e padronizada que cedo ou tarde acaba por dominar os partidos de ideologias fechadas, acarretando terríveis deformações da idéia de socialismo. Em nome mesmo da liberdade ampla que pretendemos instalar no seio da sociedade, suprimindo toda a opressão que o regime capitalista traz em si, para a grande maioria dos seres humanos, devemos preservar, no seio do nosso Partido, que é, para nós, o instrumento dessa libertação social e política, a mais ampla liberdade de consciência. De outra forma, dificilmente poderíamos evitar a idolatria em torno de uma doutrina personificada em alguns chefes e pensadores de vulto, idolatria essa que representa a base psicológica sobre a qual se apoiam os modernos sistemas totalitários, qualquer que seja a sua coloração".

NOTAS

  • 1 SCHAFF, Adam. Meu século XX. Madrid, Editorial Sistema, 1993.
  • 2 Bobbio, Norberto. Qual socialismo? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
  • 3
    3 Folha de São Paulo, 06/10/1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 1998
  • Data do Fascículo
    1998
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