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Por entre as arestas do inquérito: a circulação de informações na prisão e o interrogatório de Henri Pòmpignac, c. 1476-1477

Between the edges of the enquiry: the circulation of information in prison and the interrogation of Henri Pòmpignac, c. 1476-1477

RESUMO

A multiplicação da capacidade do poder real de levantar informações por meio de um aparato judicial cada vez mais complexo tornava a guerra da fixação de memórias por escrito bastante desigual na segunda metade do século XV. Os príncipes, por mais que se organizassem por meio de ligas, cartas, selos e promessas, estavam diante de um poder real cada vez mais intrusivo, bem informado por espiões e comissionados, economicamente hegemônico e militarmente muito superior. A despeito do esforço de preservação da honra alto-nobiliárquica e da razoável fidelidade demonstrada pelos fiéis de Nemours, a capacidade de produção de verdade jurídica do inquérito extraordinário era algo profundo. Inquirir, comparar, classificar, coagir, moldar percepções eram, em conjunto, uma poderosa arma do poder real.

Palavras-chave:
monarquias medievais; lesa-majestade; Revolta do Bem Público

ABSTRACT

The multiplication of the capacity of the royal power to raise information by means of an increasingly complex judicial apparatus made the writing war of memories very uneven in the second half of the fifteenth century. Princes, however organized by means of leagues, letters, seals, and promises, faced an increasingly intrusive royal power well informed by spies and commissioners, economically hegemonic and militarily far superior. Despite the effort to preserve the high-nobiliarchic honor and the reasonable fidelity shown by the faithful of Nemours, the ability to produce legal truth from the extraordinary inquiry was profound. Inquiring, comparing, classifying, coercing, shaping perceptions were, together, a powerful weapon in those of real power.

Keywords:
Medieval Monarchies; High treason; Revolt of the Public Well

O início do reinado de Luís XI (1461-1483) é marcado pelo esforço de estabelecer rupturas com o reinado precedente. Após período de exílio em Borgonha e da morte de Carlos VII (rei de 1422-1461), Luís XI retorna ao reino e, de forma quase instantânea, destitui boa parte dos oficiais régios. Altera, por exemplo, o chanceler, a administração local (bailios e senescais) e até mesmo os capitães das companhias de ordenança. Contudo, essa atitude leva a certa fragilização política da monarquia, na medida em que os ocupantes desses ofícios eram pessoas de peso em cada um dos setores de atuação (HAMON, 2009HAMON, Phillipe (ed.). Histoire de France. Les Renaissances. 1453-1559. Paris: Belin, 2009., p. 16-17).

Em concomitância, Luís XI leva adiante uma política deliberada de extensão territorial. Pelo preço da ajuda financeira que ofereceu ao rei de Aragão em conflito com revoltosos catalães, recebe com penhor a Cerdanha e o Roussilon. Logo, estende seu domínio também para o Perpignan em 1463 e, após um levante apoiado pelos catalães, retoma-o novamente em 1475.

Em 1463, Luís XI, de forma pacífica, compra do ducado de Borgonha as cidades do Somme, cedidas pela monarquia para o duque de Borgonha Felipe, O Bom (duque de 1419-1467), na ocasião do tratado de Arras de 1435. A despeito da forma pacífica de compra, a situação de tensão política com o ducado de Borgonha se perpetua por todo o reinado, saldando-se por guerras frequentes que, em certa medida, moldaram as relações político-estratégicas do espaço Europeu de boa parte da segunda metade do século XV. A essa situação de tensão somava-se a ameaça de nova invasão por parte da Inglaterra, que, a despeito da instabilidade do contexto da chamada Guerra das Rosas e da mediocridade de recursos econômicos, poderia, ao aliar-se com borgonheses e bretões, vassalos insubmissos, tornar-se uma ameaça significativa para a integridade do reino de França, tal como em parte ocorreu na expedição inglesa de 1475 ao continente.

Porém, era do ponto de vista do equilíbrio interno que a situação política do reinado de Luís XI era mais frágil. O crescimento constante do aparato militar, que levou ao aumento sucessivo de impostos, e a interferência mais intensiva de jurisdição régia nas jurisdições senhoriais formaram a base para certo descontentamento, com relação ao qual a alta-nobreza e o oficialato destituído em 1461 tentaram capitalizar em 1465 com a autoproclamada Liga do Bem Público. A principal bandeira era a abolição de direitos reais considerados abusivos e, em tese, a suspensão de cobrança da maior parte dos impostos, em um retorno idealizado aos bons tempos do rei São Luís, época reputada como aquela em que a realeza vivia apenas com seus próprios recursos. A despeito dos esforços da Liga, as principais cidades não aderiram à revolta, em particular Paris, cujo peso político era imenso.

Ao contrário das divisões da guerra civil entre Armanhaques e Borguinhões nas décadas de 1410 a 1430, havia certa união no âmbito das camadas superiores da nobreza por volta de 1465. De um lado, alguns dos principais nobres, como o duque de Bourbon e de Borgonha, se colocaram como partidários da liga do Bem Público em 1465. Por outro, a maioria das cidades e de setores medianos e baixos da nobreza permaneceram fiéis ao poder real por ocasião da revolta nobiliárquica de 1465.

A despeito do fracasso da liga, na ocasião de sua eclosão não era evidente que a revolta seria dissolvida, mais por meio da negociação de bens e pensões do que por meio de vitórias militares cabais. A ameaça à realeza era grande; uma larga coalizão unindo importantes casas principescas e alto-nobiliárquicas em 1465, com apoio dos ducados de Borgonha e Bretanha, tentou impor o governo colegiado do reino e a tutela sobre o rei como condição de reformar as práticas de governo em nome do bem comum, ou seja, o bem público, como alardeavam os seus participantes. A revolta de 1465 acabava por soçobrar, mas o clima de desconfiança entre rei e alta nobreza se perpetuou.

Por volta de 1474-75 foi esboçada outra iniciativa de revolta, paulatinamente descoberta e desmontada por ação de comissões de inquérito e por homens de confiança de Luís XI. Para controle e dissuasão de participação nessas revoltas, os processos de lesa-majestade foram fundamentais e contribuíram para uma espécie de governo por meio da atemorização, que deve ser entendido dentro de uma racionalidade própria que não é sinônimo de triunfo do irracional ou obscurantismo. A disseminação do medo aqui é entendida como uma técnica de governo dos homens e do reino, exercida principalmente por comissários que recebiam do poder real poderes extraordinários para atuar em questões pontuais, homens que, por sua vez, eram cuidadosamente fiscalizados pelo rei mediante cartas, relatórios, conversas privadas e outros comissionados.

Nesse contexto de intrigas e negociações ocultas destaca-se a figura de Jacques de Armagnac, duque de Nemours. Jacques de Nemours não pertencia à casa real Valois, mas tinha laços com ela. A sua avó paterna, Bonne de Berry (1362/1365 a 1435) casou-se com Bernardo VII d’Armagnac (1400 a 1462), era neta de João II o Bom (rei de 1350 a 1364) e sua trisavó, Eleonora de Bourbon, descendia em linha direta de Luís IX (rei de 1226-1270), por meio de seu pai Jacques II, conde de La Marche (1346 a 1417). O pai de Jacques de Amagnac, Bernard de Armagnac (1400 a 1462), conde de Pardiac, foi inclusive nomeado governador do delfim e futuro Luís XI, então com a idade de doze anos.

O futuro Duque de Nemours, Jacques de Armagnac, nasceu por volta de 1433. Após a ascensão de Luís XI em 1461 manteve uma relação de extrema proximidade com o novo rei, sendo considerado um de seus favoritos. Após, por exemplo, ter acompanhado Luís XI na Picardia no outono de 1463, imediatamente depois da compra-restituição das vilas do Somme ao reino - visto que estavam sob a posse do ducado de Borgonha desde o tratado de Aras de 1435 - o rei confiou a ele o governo do jovem René, filho do duque Jean II d’Alençon.

Contudo, a partir de 1465, crescem o distanciamento e a desconfiança entre o rei e seu antigo favorito. Em 13 de março de 1465, o manifesto do duque de Bourbon dá o sinal para a eclosão de uma revolta armada, na qual se destaca o papel ambíguo de Jacques de Armagnac que, apesar de manifestar fidelidade ao poder real, se reúne logo à coalizão nobiliárquica da Revolta do Bem Público. A ambiguidade de Jacques de Armagnac era extrema, pois propunha se colocar como intermediário entre os príncipes e o rei e, ao mesmo tempo, insuflava os príncipes, a despeito de não participar de nenhuma batalha contra os exércitos reais. Além disso, algumas das principais informações sobre as ações de Nemours sabemos, sobretudo, pela análise crítica de seu processo de lesa-majestade.

A “maquinaria” judiciária cumpre um papel político importante no fortalecimento do poder monárquico na segunda metade do século XV, em particular na instrumentalização de processos extraordinários como estratégia de subordinação dos príncipes e da alta-nobreza de uma maneira geral. O inquérito é uma arma fundamental na luta contra as ligas nobiliárquicas.

O desenvolvimento do processo por meio de inquéritos. Breves considerações:

(...) Para evitar grandes inconvenientes que poderiam advir a nós e a toda coisa pública de nosso reino, por causa de numerosas práticas, inteligências e entendimentos que Jacques de Armagnac, duque de Nemours, conde de La Marche nosso primo tinha no tempo passado e ainda tem com os nossos inimigos e outros seus aderentes e cúmplices rebeldes e desobedientes a nós e as maquinações e conspirações que faziam e fizeram em conjunto contra nós, nossa prosperidade e a coisa pública de nosso reino (...).1 1 “(...) pour obvier aux grans incoveniens qui povoient avebir a nous et a toute chose publicques de nostre royaulme, a cause de plusiers pratiques, intelligences et entendemens que Jacques d’Armignac, duc de Nemours, conte de la Marche nostre cousin avoit eu le temps passé et encores avoit avecques noz ennemy et autres les adherans et complixes rebelles et desobeissans a nous et des machinacions et conspiracions qu’ilz avoient faiz et faisoient a nous et des machinations et conspiracions qu’ilz avoient faiz et fasoient ensemble contre nous, nostre prosperité et la chose publicque de nostredit royaulme (...)”. (Processo Nemours, p.2).

Na carta de apresentação do processo de Nemours2 2 Consideramos mais prático abreviar em português a referência bibliográfica do processo que é BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques de Armanhaque. Genève: Libraire, Droz, 2012. Daqui por diante nos referiremos à fonte por Processo Nemours seguida da página da edição. , são apontadas formalmente as justificativas para o estabelecimento desse processo extraordinário. O bem público estaria em perigo devido a inteligências e maquinações de súditos rebeldes e desobedientes, que assim cooperavam para a instabilidade política e contra a prosperidade do rei e do reino. A declaração nega por completo o direto formal de revolta dos vassalos baseado na perspectiva feudal, o desafio. O texto é uma proclamação cabal da soberania, do direito real em reprimir de forma clara qualquer questionamento à autoridade régia. O arsenal de conceitos, instrumentos jurídicos e práticas que permitiram que essa declaração fosse formulada e compreendida por eventuais ouvintes/leitores deve-se a um lento processo de formação de uma cultura de inquérito. Esse procedimento brotou sobretudo ao longo dos séculos XII-XV e será objeto de breves considerações neste segmento do texto.

A despeito de existirem diferenças importantes entre o procedimento ordinário e extraordinário, ambos estão ligados à efetiva extensão da jurisdição régia sobre o reino e sua eventual superposição sobre outras esferas de poder. Gostaríamos de esclarecer alguns pontos relativos a essa questão antes de analisar uma das importantes consequências do desenvolvimento do procedimento inquisitorial, a disseminação dos discursos sobre a graça real e seu díptico implícito, o crime de lesa-majestade.

Tomaremos como ponto de partida dessa discussão certo ponto de vista. Foucault, ao refletir sobre as consequências de longo prazo da implantação do procedimento de inquérito, afirma que a sua estruturação teve impactos profundos no desenvolvimento da cultura ocidental. Nesse sentido, o inquérito se torna um verdadeiro modo de produção dos saberes que interfere na forma como indivíduos e coletividades interagem em justiça. No procedimento do inquérito devemos destacar ao menos quatro pontos, nos quais se destaca o papel do “procurador”, um terceiro personagem que, ao representar um poder mais abrangente, senhorial ou monárquico, mudará a forma como a verdade jurídica é produzida. Além disso, segundo o referido autor, deve-se destacar no processo do inquérito, segundo certas diretrizes (FOUCAULT, 2003FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora NAU, 2003., p. 53-79):

  1. A justiça segundo o autor passa a não ser mais a protestação entre indivíduos/grupos. As comunidades perderiam o direito de regular os seus litígios e se submeter a um poder exterior as mesmas.

  2. Aparece um curioso personagem que o autor denomina por procurador, representando o soberano, seja ele um rei ou senhor. Havendo crime, delito ou contestação entre os dois, ele representa um poder lesado pelo único fator de ter ocorrido um delito em certa localidade. Em certa medida, o poder político/soberano vem dublar e substituir a vítima, na medida em que chama para si o julgamento do delito ofensa e, em certa medida, assume seu lugar em um pleito.

  3. O aprimoramento da noção de infração, na medida em que essa noção deriva não do dano cometido de um indivíduo contra outro. É uma ofensa ou lesão do indivíduo contra a ordem, contra o Estado, contra a Lei, contra a sociedade, contra a soberania e contra o soberano. Na perspectiva de Foulcault, o poder estatal vai confiscando todo o procedimento judiciário. Logo, as monarquias ocidentais foram fundadas sobre a apropriação que lhes permitia a aplicação desses mecanismos de confiscações, não apenas de bens, mas também de outras formas de soberania exercidas por senhores e príncipes, ao menos parcialmente, segundo nossa perspectiva.

  4. Por fim, o poder soberano não é apenas a parte lesada, mas a que exige reparação. Quando o indivíduo perde o processo e é declarado culpado, deve ainda reparação para a sua vítima, mas esta reparação não é a do antigo direito germânico ou feudal, não se trata mais de resgatar sua paz, dando satisfação a seus adversários, pois passa a dever também reparação para o Estado.

As assertivas de Foulcaut certamente merecem vários reparos. Desde o peso que o termo indivíduo encontra em suas declarações - tendo em vista que, muitas vezes, as questões judiciais na prática mobilizavam coletividades - até a visão implícita de que a soberania estatal suplanta todas as outras formas de soberania de forma quase que inevitável. Suas declarações fazem certo sentido para um intelectual que se dedicou, sobretudo, ao estudo do século XVII ao XIX e devem ser relidas com cautela ao pensarmos a segunda metade do século XV.

Porém, no que se refere à questão da jurisdição sobre o crime de lesa-majestade, é possível nos apropriarmos de certos aspectos do referido autor. Em certa medida, a construção da soberania passa pelo confisco de parte da jurisdição de outros poderes, e o crime de lesa-majestade passa a ser considerado, sobretudo, uma ofensa contra o soberano/Estado. Mas essa prática, por sua vez, está ligada a uma técnica apropriada pelas monarquias da Igreja: a prática do inquérito.

O desenvolvimento do inquérito está ligado à transformação dos procedimentos judiciários que, por sua vez, está ligada à emergência de estruturas de governo mais concentradas nas mãos do soberano e seus representantes diretos. Logo, a disseminação do inquérito é uma alteração profunda nos procedimentos de construção da verdade jurídica. Entendemos o inquérito como o registro por escrito de um conjunto de palavras, de relatos, de gestos, obedecendo a um rito de fórmulas suscetíveis de serem mobilizadas para servir a pacificação das diferenças e/ou imposição de uma sentença (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 113). Além disso, essa prática está intrinsecamente ligada às apropriações do direito romano nos séculos centrais da Idade Média.

No curso do século XIII, as monarquias se beneficiaram da disseminação do ensino do direito romano e da imitação do que já ocorria nas cortes eclesiásticas em termos de procedimentos, fossem eles ordinários ou extraordinários (CHIFFOLEAU, 2006CHIFOLLEAU, Jacques. Ecclesia de occultis non iudicat. L’Eglise, le secret et l’occulte du XIIe au XVe siècle. Micrologus, Natura Scienza e Società Medievali, XIV. Firenze, SISMEL, Edizioni del Galluzzo, 2006, p. 359-481., p.359-481). O procedimento de inquérito favoreceu crescente abandono do sistema probatório secular por meio de ordálios e juramentos, em benefício de provas consideradas mais fiáveis, tais como testemunhos, enquetes e a confissão. E foi igualmente a partir do século XIII que proliferou com mais frequência o procedimento ordinário para todo tipo de delitos. Já o procedimento extraordinário surgiu inicialmente no seio dos tribunais eclesiásticos, em razão da luta contra a heresia (ECKERT, 2011ECKERT, Raphael. Peine judiciaire, pénitence et salut entre droit canonique et théologie (XIIe s. - début du XIIIe s.). Revue de l’histoire des religions, v. 228, n. 4, p. 483- 508, 2011, p. 483-508).

A promoção de sistemas judiciários fundados na lógica inquisitorial se explica pela vontade de não deixar nenhum crime impune e de fazer da justiça um instrumento político a serviço da ordem pública, tanto secular como eclesiástica, levando com que, em médio prazo, os processos (sobretudo o mais tardio de lesa-majestade) funcionassem como um componente fundamental da ordenação da sociedade. O processo de lesa-majestade se torna peça fundamental de um verdadeiro sistema de governo (CHIFOLLEAU, 2009CHIFOLLEAU, Jacques. Le procès comme mode de gouvernement In L’età dei processi. Inchieste e condanne tra politica e ideologia nel ‘300. Atti del Convegno di Ascoli Piceno (30 nov. 1er dic. 2007), Roma, Istituto Storico Italiano per il Medioevo, 2009., p. 317-348). A despeito da existência de uma grande distância entre a prática e discurso, tal como na elevação de pelourinhos e cadafalsos que funcionavam mais como força de dissuasão, como símbolos de poder, do que como instrumentos de aplicação concreta do castigo (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012. p. 163).

Os limites da implantação de uma justiça soberana não esbarravam apenas na superposição de esferas de jurisdição que tornavam difícil, muitas vezes, impor uma sentença real. Devemos igualmente destacar o âmbito de uma infra-justiça que buscava exercer no plano local a mediação de conflitos sem que questões fossem levadas para além das comunidades locais pelos os diretamente envolvidos nas disputas.

Existiu uma gama ampla de formas de resolução dos conflitos e é difícil estipular uma tipologia claramente delimitada para os mesmos. Frequentemente a resolução local/pontual do conflito passava por processos que eram ritualizados como forma de consolidação da paz que se desejava alcançar. O regramento amigável dos conflitos permaneceu mesmo com a disseminação da prática inquisitorial de processo. Seu sucesso repousava na sua ligação a um sistema de valores que laicos e eclesiásticos partilhavam, tal como os de proteção da honra e da fama. E a defesa desses valores frequentemente incorria em violência, julgada sob certas condições como legítima. O retorno à paz ocorria também seguindo certo conjunto de regras reconhecidas pelas partes (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 163).

A extensão concreta de uma jurisdição régia de apelo interferiu nas formas comunitárias, privadas e senhoriais de resolução dos conflitos. A disseminação do apelo e da prática de inquérito se deu conjuntamente.

Logo, desde o fim do século XIII, os tribunais de bailiados e senescalias são absorvidos e o rei decide instalar procuradores e advogados junto a esses tribunais. Estes últimos estavam encarregados de defender os interesses régios e supervisionar a ação de outros oficiais (LOT, 1958LOT, Ferdinand; FAWTIER, Robert. Histoires des instituitions françaises au Moyen Age. Instituitions Royales (Les droits du roi exercé par ler roi). Paris: PUF, 1958. Tome II, p. 302). Em paralelo, bailios e senescais se desencarregam de parte de seus assuntos e se fazem representar localmente por lugar-tenentes assentados em várias localidades3 3 Com certa frequência, o fato de representar localmente o rei ou um grande senhor eram funções que acabavam por ser enredadas nas disputas políticas das elites locais. Podemos tomar como exemplo certas declarações que se referem às rondas feitas pelos homens de Aurillac, partidários do rei em 1475, reputados como os “burgueses de Carlat. Na verdade, estamos diante de dois registros que, na prática, se entrecruzam: os conflitos na própria elite da comunidade e os conflitos entre os oficiais e apoiantes de Nemours com os oficiais e apoiantes reais. No mínimo, cerca de dois anos antes da comissão Le Viste em Aurillac (ocorrida em 1475), essa localidade já estava sob atenção de informantes régios, que apresentaram testemunhos sobre certas ações que se reportavam até 1468-69, época em que o conflito pelo controle da municipalidade de Aurillac teria dividido a vila e os notáveis da região. No depoimento de Charles de Barbu, então prisioneiro no castelo de Amboise, colhido no dia 6 de junho de 1473, na presença do chanceler Pierre d’Oriole e de Michel Herbeye, comissionado pelo rei, foram enfatizadas as supostas ações de Nemours e seus homens na época em que o rei estivera prisioneiro em Peronne (1468), bem como da atuação de Pierre de Tordes, lugar-tenente do bailio das montanhas do Auvergne. (Processo Nemours, p. 39-46). No relato de Pierres de Cordes, lugar-tenente dos bailio das montanhas do Auvergne, para a comissão Le Viste em 1475, é enfatizada ainda a relação entre a ação dos Ingleses no norte do reino e o partidarismo local dos servidores de Nemours que teriam supostamente se regozijado com a invasão dos ingleses no norte do reino em 1475, e teriam dito que Nemours “bien bref il aura des moiens pour faire grandemente des biens a ses serviteurs”. Processo Nemours, p. 43. , o que em geral era pouco apreciado pelos que buscavam a justiça régia. Numerosas queixas na instância judicial plena de apelo, o Parlamento, criticavam isso, e como inúmeras ordenanças reais proibiam tal subdelegação de poder, mas os protestos não alcançaram efeitos práticos (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 94 e 105).

Porém, a partir de finais do século XIV os lugares-tenentes do bailios passaram a ser nomeados diretamente pelo poder real, pessoas que eram ligadas/enviadas para localidades específicas, tais como as vilas mais importantes de cada bailiado. Logo, sob a autoridade de lugar-tenentes se organizaram tribunais sedentários e permanentes, compostos de homens prudentes reconduzidos de uma sessão a outra. Esses homens prudentes se tornam verdadeiros juízes e ofereceram a justiça em nome do bailio. Todavia, bailios e lugar-tenentes com frequência não faziam mais do que presidir os tribunais muitas vezes sem participar efetivamente do julgamento (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 96). A justiça real, mesmo quando interfere profundamente nas estruturas locais de poder, precisa na prática realizar um acordo informal para que sua autoridade seja aceita de forma mais plena.

Na base dessa maior inserção do poder real e sua justiça está a disseminação do direito erudito. A reflexão jurídica sobre a monarquia se aprofunda principalmente sob a influência de juristas e canonistas, mesmo quando visavam refletir mais sobre o direito feudal em seus aspectos técnicos, em particular sobre as tenures e serviços específicos.

Porém, o desenvolvimento, sobretudo, do direito romano forneceu um manancial de modelos e conceitos que contribuíram para reformular a imagem e as práticas do poder real e seu aparelho administrativo.

Melhor estudado e mais conhecido após fins do século XII, o direito romano invade progressivamente a esfera do político em todos os níveis para se transformar em um eficaz instrumento de construção do Estado. O seu ensino se disseminou tanto no Midi quanto no norte do reino, como indica o prodigioso sucesso da Universidade de Orléans desde o início do século XIII, atraindo todo o interesse da realeza. Além disso, a despeito das oposições eventuais ao poder real, ela oferece modelos no âmbito da teoria e conceitos que interferiram na prática cotidiana de governo (GULLIOT; RIGAUDIÈRE; SASSIER, 1994GULLIOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la france Médiévale. Des temps féodaux aux temps de l’État. Paris: Armand Colin , 1994, Tome II., p. 60).

A edificação de um direito escrito inspirado no direito justinianeu, acessível, codificado e aplicado a todas as esferas, técnico e rigoroso, de certa forma, se opunha a certo empirismo político e administrativo que predominou até o século XII. A disseminação desses modelos e práticas acelerou o fortalecimento de autoridades mais centralizadas, em particular do Estado monárquico. Na falta de termo melhor, pode-se afirmar que se tratava de um direito “transnacional”, ignorando fronteiras. Ele transcendeu progressivamente o conjunto dos costumes e das práticas de governo, ofereceu às entidades políticas existentes as bases de uma estrutura coerente remodelada em torno de regras e princípios herdados do sucesso plurissecular do sistema político romano (GULLIOT; RIGAUDIÈRE; SASSIER, 1994GULLIOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la france Médiévale. Des temps féodaux aux temps de l’État. Paris: Armand Colin , 1994, Tome II., p. 61). Em certa medida, a disseminação do direito romano permitiu o fortalecimento de uma linguagem política comum entre governantes e governados, com particular incidência na noção de soberania.

De um universo amplo de questões que podem ser exploradas, o que nos interessa no momento são as técnicas de governo oferecidas pela disseminação do referido direito, em particular no que se refere aos procedimentos de inquérito e suas consequências para a afirmação da soberania monárquica.

Imbuídos dos comentários do Corpus de Justiniano, os juristas reais retomaram inúmeros conceitos segundo a necessidade da época. A noção de utilitas publica frequentemente invocada pelos imperadores do Baixo Império é largamente retomada pelos canonistas, especialmente no decreto graciano que definia a lei justa como aquela editada “para utilidade comum dos cidadãos” (GULLIOT; RIGAUDIÈRE; SASSIER, 1994GULLIOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la france Médiévale. Des temps féodaux aux temps de l’État. Paris: Armand Colin , 1994, Tome II., p. 63). A utilidade pública, o bem comum e comum proveito eram termos comumente assumidos como causa de intervenções e como justificativa de atitudes por parte do oficialato real no âmbito central e nas localidades.

Mesmo nas administrações municipais, o direito romano teve importância fundamental na medida em que o conceito de universitas permite também reforçar teoricamente as autonomias conquistadas nos séculos XIV e XV e nos séculos anteriores. Adicionalmente, a noção de universitas interfere em todas as instâncias e permitiu qualificar as coletividades tal como a dos Estados e cidades, reconhecendo que a ação das coletividades se distinguia da ação de seus membros (GULLIOT; RIGAUDIÈRE; SASSIER, 1994GULLIOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la france Médiévale. Des temps féodaux aux temps de l’État. Paris: Armand Colin , 1994, Tome II., p. 63). Logo, tratava-se de oferecer aos grupos juridicamente constituídos uma personalidade própria e totalmente independente.

A essas coletividades do ponto de vista conceitual é agregada a noção de fiscus, que se referia originalmente ao tesouro imperial, baseado nos Institutes (2.1.6) e do Digeste (em particular 1. 8.6, 1.1.6 e 50.16.17) (GULLIOT; RIGAUDIÈRE; SASSIER, 1994GULLIOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la france Médiévale. Des temps féodaux aux temps de l’État. Paris: Armand Colin , 1994, Tome II., p. 64). Com base nesses princípios, elabora-se lentamente a distinção conceitual entre domínio público e domínio privado, a despeito de, na prática, o limite entre uma e outra esfera serem muitas vezes porosos. As res universitatis, possuídos por cidades e Estados, estão submetidos ao uso público para o bem da res publicae (GULLIOT; RIGAUDIÈRE; SASSIER, 1994GULLIOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la france Médiévale. Des temps féodaux aux temps de l’État. Paris: Armand Colin , 1994, Tome II., p. 63), apontado como fim último dos governos, cuja responsabilidade os governantes assumem como objetivo último de suas ações.

No que se refere à afirmação da monarquia, a categorização do que se considerava como pertencente aos casos reais - baseada na ideia que todo atentado à soberania deveria entrar na categoria dos casos reais - foi um elemento fundamental para a afirmação do aparelho judicial monárquico. Esse princípio afirmou-se particularmente a partir do primeiro quarto do século XIV por influência dos legistas. Segundo estes, todo atentado à pessoa ou aos direitos de um oficial real entrava obrigatoriamente na categoria de casos reais, simplesmente porque o oficialato era concebido como um prolongamento natural da pessoa do rei. Logo, os servidores régios deveriam estar sob salvaguarda real. Dessa forma, rapidamente foi considerado que todo crime ou delito cometido por um oficial exercendo suas funções era um caso real que só poderia ser conhecido por juízes reais (GULLIOT; RIGAUDIÈRE; SASSIER, 1994GULLIOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions dans la france Médiévale. Des temps féodaux aux temps de l’État. Paris: Armand Colin , 1994, Tome II., p. 197).

Na percepção primeva do direto romano, segundo o jurista Gaius (CUTTLER, 1981CUTTLER, S. H. The law of treason and treason trials in later medieval France. Cambridge: Cambridge University Press, 1981., p. 4-27)4 4 Tendo vivido entre cerca de 130 e 180 d.C., escreveu alguns importantes tratados tais como o Édito Romano dos magistrados e os Comentários sobre as doze tábuas. , para o inimigo externo, o termo utilizado era hostis. Já o termo Perduellis designava um traidor interno. Este último era, na antiguidade latina, frequentemente utilizado para caracterizar os crimes contra o Estado. Em sua concepção primeira, esse termo referia-se essencialmente a traição no âmbito militar, logo estendida a partir do século XIII para um conjunto de ações que se considerava que atentavam contra a soberania régia.

O raio de extensão do que seria considerado da esfera dos casos reais tende crescentemente a se expandir ao longo dos séculos XIV e XV. Esse movimento de expansão tomou como base conceitual elementos que já apareciam na legislação romana, em particular a atribuída a Júlio César, que foi de importância cardinal no contexto tardo-medievo do Reino de França. O texto atribuído a Júlio César foi objeto de cuidadosa reflexão por parte dos juristas do reino a partir do século XIII (CUTTLER, 1981CUTTLER, S. H. The law of treason and treason trials in later medieval France. Cambridge: Cambridge University Press, 1981., p. 4-27). Contudo, não existe uma única visão sobre essa legislação e são conhecidos apenas extratos da legem Juliani maiestatis no livro 48 do Digesto. Segundo uma análise preliminar, é possível reconstituir um conjunto de crimes que seriam descritos como traição, logo, automaticamente da esfera exclusiva dos casos reais.

A acusação de usurpação de casos reais aparece frequentemente na base das acusações nos processos de lesa-majestade ao longo da segunda metade do século XV5 5 A ênfase dos comissionados era recorrente na identificação de ajuda que Nemours poderia ter prestado aos que se colocavam contra o poder real no âmbito das ligas principescas. As cartas entre Nemours e o irmão do rei, o duque de Guienne, recebem particular atenção, na medida em que o referido irmão real poderia eventualmente ser colocado no trono no lugar do próprio Luís XI. Foi indagado a Nemours se “S’il se nommoit em la soubzscripcion des lectres, dit que tousjours, quant il escripvoit a monseigneur de Guienne, il mectoit son nom entier et le mist a ladicte foiz comme lluy semble et n’y avoit pas lors cause par quoy il deust changer (...) Bien dit que aucunesfoiz quant il escripvoit a d’autres et il y avoit peu d’espace ou papier il ne mectoit que J. qu’il avoit accoustumé de faire (...)”. (Processo Nemours, p. 429). “Foi indagado a Nemours se ele se nomeava na subscrição de cartas, diz que sempre, e que quando escrevia ao senhor de Guienne, sempre colocava seu nome inteiro e sempre colocava quando lhe parecia necessário e quando ele escrevia a outros e havia pouco espaço no papel que ele colocava um J como tinha costume de fazer”. O trânsito de cartas em branco, com assinaturas cifradas, pequenos acordos assinados de forma extensa ou com aposição de simples iniciais era uma verdadeira obsessão dos comissionados. Efetivamente, a troca de cartas seladas ou não entre os conspiradores foi, ao que parece, bem significativa, tendo algumas delas sido apropriadas pelos agentes reais que as guardavam na manga para utilizá-las nas condenações. Importava identificar o padrão de atuação de Nemours, para que fosse possível imputar ao mesmo cartas autênticas ou forjadas que comprovariam em tese sua culpabilidade. . Portanto, consideramos necessário apresentarmos em destaque alguns desses pontos que refletem em boa parte a apropriação da dita Legem Juliani. Com base nessa lei, seria considerado como traição (CUTTLER, 1981CUTTLER, S. H. The law of treason and treason trials in later medieval France. Cambridge: Cambridge University Press, 1981., p. 4-27):

  1. Portar armas contra o Estado

  2. Sedição armada ou de outra forma

  3. Dar assistência material ou financeira ao inimigo

  4. Comunicação com o inimigo em detrimento do Estado

  5. Deserção

  6. Recusa em lutar na guerra

  7. Entrega de praças fortificadas

  8. Liderar exército em uma emboscada inimiga

  9. Levantar tropas ou fazer guerra sem a autoridade do príncipe

Essas questões aparecem como verdadeiros guias dos interrogatórios dos processos6 6 Podemos tomar como exemplo concreto no processo em questão a nomeação da comissão de inquérito conduzida por Aubert le Viste entre de 21 de março e 2 de setembro de 1475. A ênfase da comissão residia em uma grade de leitura que superenfatizava as ações dos homens de Nemours como necessariamente abusivas no exercício dos direitos senhoriais que supostamente usurpariam as atribuições régias. O fundamental na narrativa da inquirição é que as atitudes dos oficiais de Nemours e de seus apoiantes são tratadas como uma violação dos direitos reais com prejuízo para a monarquia. A ação dos homens do duque de Nemours na localidade de Aurillac - situada na região do Auvergne, centro-sul da França, no Viscondado de Carlat - representava, do ponto de vista dos oficiais régios, um sério atentado contra a majestade real, pois estradas públicas teriam se tornado locais de ação de “banditismo”; homens teriam sido aprisionados mediante pagamento de resgate; e os habitantes de Aurillac, por exemplo, teriam sido pressionados pelos homens do duque à revolta contra o poder real. Os homens de Nemours são acusados, ainda, de terem cooperado para a prisão de dependentes de oficiais reais. Podemos tomar como exemplo a citação da atuação dos homens de Nemours nas estradas, segundo a comissão “Et primo ledict Balsant par lesdictes informacions est charge d’avoir l’anne LXIX espié sur les chemins par plusiers et diverses foiz Jaquet Comart et ung nommé Violart, lors consulz de ladicte ville, qui estoient alléz empruncter a toloez Vc escuz pour les porter au roy [...]” Et aussi paar lesdictz informacions ledict Balsant est charge d’avot toujours tenu oridairemente les champs avec autres ses complixes pour guecter, espier et destrousser les marchants et autres habitans [...] (Processo Nemours, p. 77). Atentado em estradas públicas, ataques a mercadores que também eram considerados homens do rei eram graves violações da jurisdição régia, consistindo em um crime de lesa-majestade. Nesse caso, cita-se um evento do ano de 1469, ocasião em que o dinheiro que seria levado para o rei havia sido tomado por Balsant, homem do duque de Nemours, configurando na narrativa igualmente um sério atentado contra as prerrogativas régias. Balsant era lugar-tenente no viscondado de Carlat, respondendo diretamente ao referido duque. em acréscimo a outras presentes na lei romana Lex Quisquis, que por sua vez, influenciou muito as leis tardo-medievais quanto à temática da traição contra o poder soberano. Essa lei foi originalmente promulgada pelos imperadores Arcádio e Honório em 397 e também aparece no contexto do código teodosiano. Basicamente tocava nos seguintes temas (CUTTLER, 1981CUTTLER, S. H. The law of treason and treason trials in later medieval France. Cambridge: Cambridge University Press, 1981., p. 4-27):

  1. O Assassinato do conselheiro do imperador era um ato de traição, pois este fazia parte do corpo dos próprios imperadores.

  2. O traidor deveria ser executado e suas propriedades confiscadas pelo fisco imperial.

  3. Os filhos deveriam ser executados por causa da corrupção do sangue, e na ocasião em que suas vidas fossem poupadas, os filhos não receberiam herança de nenhuma propriedade, permanecendo pobres devido à infâmia paterna.

  4. As esposas, entretanto, manteriam o dote e as filhas poderiam receber ¼ da propriedade materna segundo a lex falicidia.

Logo, em nome da utilitas publica, do equilíbrio da res publica, dos atentados contra os casos reais, a aplicação de comissões extraordinárias se generaliza ao longo da segunda metade do século XV. Torna-se necessário explicitar as distinções entre procedimentos ordinários e extraordinários para caracterizar as comissões extraordinárias no contexto de Luís XI.

A inquisitio tem seus antecedentes, a despeito de ter se desenvolvido e se generalizado no decorrer do século XIII. A legislação franca já conhecia o inquérito criminal para estabelecer responsabilidades em caso de homicídio. Os imperadores carolíngios igualmente previram um procedimento de inquérito em instrução confiada aos missi. Esse inquérito jurado tinha por função provar os direitos do imperador sobre o fisco e os testemunhantes que prestavam juramento eram citados pelo juiz, e não pelas partes em litígio. A ideia era substituir o procedimento do testemunho unilateral por um outro modo de prova, para amenizar o risco de falso testemunho a serviço do mais forte. Dessa forma, o imperador buscava garantir a colaboração das populações locais, sem excluir, todavia, um compromisso final (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 127). O inquérito carolíngio podia ser dirigido pelo próprio conde ou pelos seus representantes. Os testemunhantes, detentores de uma memória comum, iam até o lugar em disputa, para eventualmente fazer conhecer a extensão das terras em litígio (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 127-128).

Podemos tomar ainda com referência de antecedente o inquérito angevino por volta do ano 1000. Antes de 1011, na época do conde Foulques Nerra, para se pronunciar um veredicto, para dizer a “verdade”, os membros da corte se moviam para realizar in loco (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012.), de forma ligeiramente semelhante ao inquérito carolíngio.

Entretanto, foi, sobretudo, a partir do procedimento romano-canônico que o inquérito e o que os medievais chamavam de sistema de provas legais se desenvolveram como forma privilegiada de estabelecimento da verdade jurídica7 7 Quando nos referimos à verdade jurídica, estamos nos remetendo à verdade produzida pelo discurso por meio de práticas, ritos e regras definidas a partir do campo do direito. . Os magistrados recorriam a esse método para todos os tipos de contenda, desde causas matrimoniais até as criminais. O inquérito comportava a audição de testemunhos pelo juiz com o objetivo de confirmar ou não o que havia sido dito por eventuais queixantes. Além disso, nesse tipo de justiça existia ainda um lugar formal para o sagrado, na medida em que o juramento - ato sagrado por excelência - era utilizado para corroborar as declarações do acusado e dos testemunhantes8 8 Nos procedimentos judiciários, era comum citar no início da compilação dos testemunhos o juramento de dizer a verdade por parte dos testemunhantes. Em situações particulares, poderiam recorrer a relíquias, como no caso de composições judiciais de pessoas importantes ou mesmo na ocasião de organização de ligas nobiliárquicas, tal como no caso do juramento feito por Nemours e outros grandes senhores em 1469 em Conflans contra o rei, onde teriam jurado sobre os santos evangelhos, tocando corporalmente o missal de se manterem unidos e se entreajudarem de forma que ninguém fizesse acordo com o rei sem os demais membros da conspiração. “(...) assemblezz em l’ostel de mondict seigneur |charolays a Conflans leez Paris ont juré et promis sur les sainctes evangilles et touché corporellement le messel, de bien et loyaument euls entretenir les ung avec les autres em bonne union et amour (...) avec ce ne prendront quelque appoinctement, traicté avec le roy les ungs sans les autres (...). (Processo Nemours, p.4). (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 128).

Diante das cortes eclesiásticas, o recurso a testemunhos primava para as causas matrimoniais e criminais, nas quais o juiz adicionava por si os testemunhos. Os servos, menores de 14 anos, as pauperes personae não poderiam depor, bem como as mulheres no que se referia aos casos criminais. Todos depunham sob o juramento de dizer a verdade e todas as deposições, attestationes, eram registradas e colocadas por escrito, e nas causas civis, ligadas, por exemplo, a obrigações senhoriais, a prova escrita era dominante (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012.).

Nos costumes, o testemunho também era estritamente enquadrado. Era especificado o número de testemunhos a produzir, bem como era precisado o momento em que o testemunho devia interferir no procedimento. Era valorizado o testemunho daqueles considerados dignos de fé, mas também de pessoas que eram suscetíveis de escapar ao testemunho. De uma maneira geral, os testemunhantes deviam especificar se eles falavam por conhecimento (exscitu) ou por ouvir dizer (exauditus) (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012.) e o número de testemunhos requisitados é, sem dúvida, ligado à importância e à complexidade da contenda. Era raríssimo que se consultasse apenas um testemunho. Logo, o trabalho dos magistrados consistia em verificar o conteúdo e a concordância das narrativas, as irregularidades, os possíveis laços de parentesco, as possíveis alianças entre as partes e se os relatos eram verossímeis.

No inquérito, o relato escrito era aceito como prova, contanto que fosse garantido por uma assinatura e/ou um selo e uma lista de testemunhantes. Até século XIII, os testemunhos tendiam a ser mais orais que escritos, e foi, sobretudo, a partir de 1254, por decisão do papa Inocêncio IV, que passou a ocorrer o recurso ao um colégio de experts para os casos mais graves. Médicos, barbeiros, cirurgiões, matronas poderiam ser eventualmente mobilizados, inclusive nos processos da inquisição (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 129). Nas cortes eclesiásticas ordinárias, em tese, o testemunho deveria ser livre e espontâneo.

Nas justiças seculares, a confissão de um crime poderia tomar duas formas. No primeiro, se o acusado fugia ou não se apresentava em juízo para se defender no momento indicado, essas atitudes eram consideradas confissão de culpabilidade. Logo, era julgado como contumaz e condenado. Outra forma de confissão era uma declaração feita diante dos juízes que poderia ser espontânea ou obtida após o acusado ser colocado sob prova. Mas se o recurso à tortura era feito, era necessário que declarações fossem posteriormente confirmadas em juízo (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 130).

Mesmo a utilização da tortura obedecia a uma ratio bem regulada. No caso de um crime oculto, o papado teria autorizado que fosse utilizada de forma legítima para obtenção de provas. Já Inocêncio III teria tornado legítimo o recurso ao braço secular para a execução de uma sentença de morte, no caso de pessoas consideradas portadoras de condutas incorrigíveis (CHIFOLLEAU, 1990). Desde 1214-1215, o costume meridional de Saint-Gilles mencionava a possibilidade de recorrer à tortura judiciária. Logo, essa prática foi legalizada pelas ordenanças reais, tais como a de São Luís em 1254, no caso das senescalias do Languedoc. A primeira Carta de diretos dos Normandos de 1315 precisa que um homem livre não poderia ser colocado em questão no ducado sem presunção veemente que o tornasse suspeito de crime capital (BILLORÈ; MATHIEU; AVINGNON, 2012BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris: Armand Colin, 2012., p. 131).

Os próprios juristas consideravam que para além de certo grau de violência não seria possível chegar à verdade. A verdade jurídica não era obtida por simples deturpação dos fatos. Logo, mesmo nos processos extraordinários, em que o acusado não tinha direito de saber quem o acusou ou de contar com quem o auxiliasse na defesa ou o defendesse em juízo, existia um esforço de seguir certas regras processuais. No caso de um processo extraordinário, além da negativa de auxilio técnico ao acusado, era vedado também ter maiores informações sobre quem o acusava9 9 Em interrogatório datado de 8 de novembro de 1476, Nemours, por exemplo, teria requisitado confrontar quem o acusava ou quem teria testemunhado sobre determinado assunto em seu prejuízo, algo que foi cabalmente negado pelos comissionados, pois comissários afirmaram que primeiro se tomava a confissão do processado e que apenas após isso seria confrontado com outros testemunhos. (...) surquoyillui a este respondu que la forme de justice est prendrela confession voluntaire de ceulx a quil’onbesoingne et puis apré, scelon que lescaslerequierent, leurporduite et confrontes ceulxqui em ontdepposéainsi que onveoit que cestmieulx pourvenir a laverité”. (Processo Nemours, p. 366). Esse tipo de pedido por Nemours foi recorrente no processo, bem como a negativa dos comissionados em sair do rito estipulado. . O objetivo do processo inquisitorial era chegar à verdade, mas uma verdade gerada por um conjunto de normas processuais que deveriam produzir uma verdade jurídica.

No final da Idade Média, a preocupação da teoria política e das práticas jurídicas se unificam, na medida em que a justiça tinha como objetivo conhecer a verdade. No Songe du vieuil Pelerine, em 1389, Phillipes de Mézières tomava a rainha verdade como intermediária, e ela forçaria os grandes da Igreja a revelar seus pensamentos secretos antes de julgar e condenar (GAUVARD, 2010GAUVARD, Claude. De grace especial. Crime, État et Socété em france à la fin du Moyen Âge. 2e édititon. Paris: Publications de la Sorbonne, 2010., p. 145). Alguns anos mais tarde, Nicolas de Clamanges, teria demonstrado ao delfim Luís de Guienne (c. 1397-1415) como a justiça deveria acompanhar a verdade na condução do reino, bem como dele próprio, e teria se referido à verdade em alusão ao modelo de Salomão. Nesse modelo, a verdade junto com a misericórdia seriam virtudes necessárias ao príncipe (GAUVARD, 2010GAUVARD, Claude. De grace especial. Crime, État et Socété em france à la fin du Moyen Âge. 2e édititon. Paris: Publications de la Sorbonne, 2010., p. 146).

A busca da verdade estaria, portanto, no coração da justiça repressiva assim como da justiça moderadora. Essa busca poderia mesmo ser invocada quando a contenda acabava por acordo entre as partes. Na justiça repressiva, sobretudo, estaria subentendida a busca da verdade. Segundo Gauvard (2010GAUVARD, Claude. De grace especial. Crime, État et Socété em france à la fin du Moyen Âge. 2e édititon. Paris: Publications de la Sorbonne, 2010., p. 147), oficialmente todos os meios eram colocados a serviço de se tentar chegar ao objetivo superior da verdade. E no processo a verdade era, sobretudo, fruto da confissão (MOOS, 1996VON MOOS, Peter. Occulta cordis. Contrôle de soi et confession au Moyen Âge (II). Médiévales, n. 30, p. 117-137, 1996., p. 117-137), obtida por meio de regras estritas que a conduziam, ou seja, em larga medida a verdade jurídica era produto das formalidades do processo, sendo que este frequentemente tinha como objetivo máximo a confissão.

Ao invés da palavra vernácula aveu (no sentido de declaração), segundo Gauvard (2010GAUVARD, Claude. De grace especial. Crime, État et Socété em france à la fin du Moyen Âge. 2e édititon. Paris: Publications de la Sorbonne, 2010., p. 154 e 155), era bem mais frequente o termo aveu (no sentido de confissão). Os homens dos séculos XIV e XV eram íntimos do termo confissão. A confissão auricular dos pecados sistematizada e disseminada a partir de Latrão IV (1215) contribui para vulgarizar essa prática e torná-la um dos tópicos da cultura medieval. Logo, a confissão do crime tomou como modelo a confissão religiosa. A confissão no sentido lato se torna, de certa forma, a preocupação tanto da Igreja quanto do Estado. A confissão permite uma manipulação da subjetividade, as autoridades religiosas e políticas permitiriam, assim, o castigo ou a remissão, aterrorizariam ou liberariam, concederiam a morte ou a vida.

A inserção da confissão no cotidiano das pessoas é fundamental para entendermos certas nuances do processo. A obrigação de confissão anual, de certa maneira, acentua o controle da Igreja, pois ela permite teoricamente aos curas proceder a um inquérito secreto sobre a vida de suas ovelhas. Ao mesmo tempo, a confissão anual permite por meio do exame de consciência uma interiorização da falta e do pecado. Nesse aspecto, a confissão anual obrigatória representa uma espécie de rito de purificação anual (MOOS, 1996VON MOOS, Peter. Occulta cordis. Contrôle de soi et confession au Moyen Âge (II). Médiévales, n. 30, p. 117-137, 1996.). Nesse rito se impuseram novas formas de moralidade, em particular na sua recorrência na coletividade por ocasião da páscoa. Em acréscimo à confissão auricular, era ainda relativamente comum a confissão comunitária, cuja raiz se encontra na Alta Idade Média (CHIFFOLEAU, 1988CHIFOLLEAU, Jacques. (dir). Histoire de La France religieuse. Du christianisme flamboyant à l’aube des lumières. (XIVe- XVIIIe siècle). Paris: Èditions du Seil, 1988., p. 67), o que, por outra via, reforça igualmente o controle social por meio da confissão.

A confissão pública e auricular encontra seu lugar também se levarmos em conta o papel dos pregadores nessa questão e sua importância na cultura Tardo-medieva. Pregação e confissão eram estritamente ligadas, a palavra do pregador conduzia à confissão. E a confissão estava por certo no centro da instituição penitencial e, segundo Chiffoleau, era mais fácil para o pregador de passagem que para o cura familiar provocar certas reações coletivas (CHIFFOLEAU, 1988CHIFOLLEAU, Jacques. (dir). Histoire de La France religieuse. Du christianisme flamboyant à l’aube des lumières. (XIVe- XVIIIe siècle). Paris: Èditions du Seil, 1988.).

As confissões provocadas pelos pregadores tinham um caráter de purificação excepcional e eram menos numerosas que as cotidianas auriculares. Todavia uma longa produção de manuais de confissão contribuiu para o exame das consciências e era perfeitamente destinado a preparar a pregação. Na cultura religiosa tardo-medieval, os interrogatórios tendem a se tornar cada vez mais precisos e, por consequência, os pecados parecem então proliferar de maneira inquietante para os contemporâneos. Logo, todas as faltas possíveis são descritas em repertórios, mesmo aquelas que os fiéis jamais pensaram. Além disso, de uma maneira geral, os interrogatórios buscam identificar uma árvore de vícios, em certa medida produzida pelo próprio olhar dos confessores, informados pelos manuais e pela cultura religiosa dos pregadores (CHIFFOLEAU, 1988CHIFOLLEAU, Jacques. (dir). Histoire de La France religieuse. Du christianisme flamboyant à l’aube des lumières. (XIVe- XVIIIe siècle). Paris: Èditions du Seil, 1988.).

Aqui temos uma analogia com a tradição legal dos processos de lesa-majestade que paralelamente pululam cronologicamente à culpabilização das consciências (DELUMEAU, 2003DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo. A culpabilização no Ocidente. São Paulo, EDUSC, 2003.), o esforço de fixar por escrito a falta cometida, de precisar suas nuances, de elaborar por meio do inquérito um repertório das faltas que se sabe que teriam sido cometidas, na medida em que o mundo mergulha no pecado. Existe uma aproximação entre traição do poder soberano ao pecado contra a majestade divina no discurso sobre o poder real na segunda metade do século XV (CHIFOLLEAU, 2009CHIFOLLEAU, Jacques. Le procès comme mode de gouvernement In L’età dei processi. Inchieste e condanne tra politica e ideologia nel ‘300. Atti del Convegno di Ascoli Piceno (30 nov. 1er dic. 2007), Roma, Istituto Storico Italiano per il Medioevo, 2009.). Esse é um processo que se dá não apenas no plano das ideias, mas também das práticas jurídicas, na medida em que o Estado traz para si atribuições que, em tese, caberiam ao exclusivo da Igreja, tal como a perseguição da heresia e o combate ao papel de satã e sua ação hic mundus (CHIFOLLEAU, 2006CHIFOLLEAU, Jacques. Ecclesia de occultis non iudicat. L’Eglise, le secret et l’occulte du XIIe au XVe siècle. Micrologus, Natura Scienza e Società Medievali, XIV. Firenze, SISMEL, Edizioni del Galluzzo, 2006, p. 359-481.).

O demônio e suas hostes tornaram-se, ao longo do século XV, uma obsessão das elites cultivadas, logo na angústia de tantos os demônios e seus nomes proliferam, e a atuação dos mesmos é considerada um atentado à ordem política. Esse processo se aprofunda a tal ponto que os juízes terminam por efetivamente, por volta de 1480, a acreditar na realidade do sabbat, e por sua vez tentavam inculcar essa crença nas vítimas de seus interrogatórios. Logo, não é casual que a caça às bruxas se implante em paralelo à construção dos Estados principescos e do Estado monárquico (CHIFOLLEAU, 1988CHIFOLLEAU, Jacques. (dir). Histoire de La France religieuse. Du christianisme flamboyant à l’aube des lumières. (XIVe- XVIIIe siècle). Paris: Èditions du Seil, 1988., p.163). De certa forma, o diabo e os demônios são os inimigos invisíveis do poder. O combate ao mal e seus desdobramentos hic mundus está na ordem do dia para juízes e poderes soberanos, por conseguinte é verossímil a assimilação parcial do crime de lesa-majestade como algo ligado também à atuação de satã - algo sugerido no processo pela preocupação dos inquiridores em relacionar certas práticas com a atuação dos acusados, tais como a de geomancia, necromancia ou mesmo da polêmica e tão usual astrologia, conforme surge no âmbito do processo de Nemours10 10 Cf. No processo de Nemours, a questão dos malefícios, nas páginas 5, 518 e 520; a questão da bruxaria de homens ligados intimamente a Nemours, tal como nas páginas 65, 263, 275, 397 e 496; bem como na polêmica questão da astrologia, tal como nas páginas: 169, 221, 307, 478, 479, 297 e 302; ou ainda no caso de geomancia, como nas páginas 132, 133 e 307. .

Logo, acreditamos que existem aproximações implícitas entre a proliferação do mal, a desobediência e o crime de lesa-majestade, na medida em que este fere o que se considerava a ordem monárquica, que, segundo a perspectiva do poder real e seus apoiantes, seria a ordem natural do mundo, com certas ressonâncias da ordem sobrenatural. Todavia, do ponto de vista da perspectiva poliárquica11 11 No contexto da poliarquia, os valores afetivos entre os envolvidos cumpriam um papel importante como elementos que contribuíam para soldar as relações entre os grupos e indivíduos. As expectativas do cumprimento do serviço, do lado do senhor, e da proteção, por parte do dependente, jogam um papel crucial. Logo, as relações não são apenas guiadas pelo cálculo puro e simples de interesse, mas também por valores de adesão que nutrem até mesmo a conduta de servidores, tal como os impulsionados pelas noções de honra e fidelidade, recorrentes nas atitudes dos que gravitavam, por exemplo, em torno da casa senhorial de Nemours. A perspectiva de poliarquia em que nos pautamos tem sua orientação teórica na releitura de certos aspectos do historiador Otto Brunner. A influência de Brunner na historiografia política do pós-guerra foi fundamental, destacando a ênfase no estudo das relações de clientela, de domesticidade, das obrigações morais de ajuda recíproca, da disciplina informal das casas senhoriais, das relações afetivas intra-nobiliárquicas. A amizade seria um dos elementos fundadores da paz nas ligas nobiliárquicas, aqueles que estivessem incluídos nesse campo de alianças estabeleceriam mutuamente obrigações morais que os tornavam solidários. No caso em que os grandes vassalos sentiam sua justiça denegada, a insurreição era de partida considerada legítima por eles. A rebelião era uma das estratégias escolhidas para pressionar a negociação em termos considerados mais justos. (Cf. BRUNNER, 1992) , a rebelião contra a autoridade instituída seria considerada legítima, importante como elemento de manutenção da honra, ao menos no âmbito da ótica alto-nobiliárquica. Os valores implícitos de honra e desonra são fundamentais para a perspectiva de Nemours no decorrer do processo.

Os testemunhos produzidos a partir de cartas e narrativas de Henri Pompiganc foram fundamentais na construção de memória do processo para reforçar a versão de culpabilidade de Nemours estruturada pelos inquiridores. A compilação que utilizamos do processo busca lapidar essa perspectiva.

Em paralelo ao mundo jurídico-político registrado por escrito na documentação oficial dos processos, existia todo um mundo de acordos informais que orbitava ao redor dos prisioneiros e carcereiros. Produção de cartas, disseminação de informação sobre o ambiente externo, trocas de informações entre os acusados, tudo isso envolvia um pequeno mundo que, com certa frequência, escapava à alçada dos que conduziam o processo. Analisaremos a seguir uma situação de exceção, na medida em que a memoria escrita do processo preservou e enfatizou um pouco desse mundo muitas vezes subentendido, mas não claramente verbalizado na documentação oficial.

A circulação de novas no interior da cadeia: o caso de Henry Pompignac e a questão da tentativa de fuga de Nemours

Gostaríamos, por fim, de discutir, a partir de um conjunto de relatos, os canais informais de comunicação escrita e oral que permitiram que certos presos se comunicassem entre si, mesmo em um local em que deveriam ficar teoricamente isolados devido ao processo extraordinário. Trabalharemos nesse texto com informações relativas a Henri Pompiganc, que oferece acidentalmente ao inquérito uma prova material de que de fato existia uma conspiração. O que não significa dizer que a estrutura narrativa do processo reflita em todos os seus aspectos uma verdade efetiva, mas apenas a verdade jurídica construída por um conjunto de procedimentos, que tem como pano de fundo o afrontamento entre monarquia e poliarquia.

Consideramos que, no contexto dos afrontamentos entre poliarquia e monarquia, os grandes senhores sabiam que as acusações contra eles eram suficientes para condená-los. Era relativamente simples acumular provas encontradas/forjadas ou extraídas mediante inquérito ou mesmo tortura (ou apenas ameaça da mesma). Dessa forma, um membro da alta nobreza corria o risco de perder a vida, e mesmo apenas o confisco de seus bens poderia ocasionar a ruína de sua casa ou mesmo de sua linhagem (CARON, 1994CARON, Marie-Thérese. Noblesse et pouvoir em france. XIIIe-XVIe siécle. Paris: Armand Colin , 1994., p. 226-227). O medo generalizado, como sugere Herrs (2003HEERS, Jacques. Louis XI. Paris: Tempus, 2003.), era recorrente. Mas o que consideramos mais relevante, parcialmente inspirados no referido autor, é que esse medo não era o triunfo do irracional sobre o racional. Temos como hipótese central que a imposição do medo tinha uma racionalidade própria, constituindo mesmo uma espécie de técnica de governo, de disciplinização dos corpos e concomitantemente de governo das almas (SENELLART, 2004SENELART, Michel. As artes de Governar. Do regimen medieval ao conceito de governo. São Paulo: Editora 34, 2004). O medo não era uma técnica com fins a pura simples dominação/coerção, mas era uma forma eficaz de moldagem das vontades/percepções. Logo, nesse aspecto, o discurso sobre a majestade real e a traição era algo fundamental. A disseminação do medo se torna um dos instrumentos mais eficazes para a afirmação da soberania real, que deveria ser temida de forma análoga à fúria divina.

Segundo relato do processo, Henry Pompignac, dito Pallamides (Processo Nemours, p. 244-245), cavaleiro e senhor de Pompígnac, na diocese de Saint-Flour e senescal de Castres, a despeito de não saber exatamente qual era sua idade, diz se recordar do coroamento do antigo rei Carlos VII. De fato, nega cabalmente que sabia se Nemours teria feito algo contra o rei. Mas o fato de ter servido a casa de Armagnac, do ramo secundário de La marche, desde a época de Bernardo de Armagnac, pai de Jacques de Nemours, levou com que com que comissários investissem particularmente em seu interrogatório (Processo Nemours, p. 244-245).

Pompignac declara em testemunho datado de 25 de outubro de 1476 que foi pajem e escudeiro do Senhor de La Marche (Bernard de Armagnac, pai de Nemours), e diz que foi para o serviço de Nemours um ano ou dois antes da conquista da Normandia, ou seja, por volta de 1449. Ele, Pompignac, e um outro de que não ser recorda o nome, mas que se chamava senhor de Avalon, tiveram o governo e o encargo da pessoa e dos assuntos do senhor de Nemours. Após a morte de Avalon, Pompignac teria ficado como uma espécie de tutor de Nemours e de seus assuntos durante a vida do senhor de La Marche. Logo, tornou-se o principal responsável pelas despesas e pela condução do hotel de Nemours. Afirma em testemunho ainda que Nemours tomava conselho também de outros, mas que, sobretudo, ele permaneceu continuamente no seu conselho (Processo Nemours, p. 244-245).

A despeito dessa grande proximidade com relação a Nemours, ao ser interrogado se estava presente na época da Revolta do Bem Público, em 1465, disse que não estava, exceto algumas vezes em que foi até a casa de Nemours e que ocorreu o mesmo após ter se casado (Processo Nemours, ibdem). Essa assertiva possivelmente representa uma estratégia de, ao alegar ignorância, combater indiretamente as acusações reiteradas de traição contra Nemours. adespeito de as atitudes do duque contra o rei nessa rebelião terem sido perdoadas condicionalmente em 1465 e reforçadas em 1470 com o tratado de Saint-Flour. Esse tratado foi selado por Dammartin em nome do rei com Nemours, que deveria, daí por diante, relatar ao rei qualquer informação sobre traições, ou perderia terras, privilégios e o direito de ser julgado como par-de-França.

O fato é que, no início do interrogatório, os comissionados advertiram Pompignac que, se ele não falasse francamente e liberalmente a verdade de tudo que ele sabe do que fez pelo senhor de Nemours contra o rei e seu reino, eles procederiam contra ele na forma de processo (forma de aludir ao uso de tortura judicial) e, caso tudo informasse, poderia inclusive retornar em grande proveito e honra junto ao rei (Processo Nemours, ibdem). Em outras palavras, ou ele permanecia fiel a Nemours e poderia eventualmente até ser torturado e condenado por lesa-majestade, ou se comportava como bom súdito do rei. No limite, este poderia ser rigoroso ou poderia agir com o inquirido por meio da graça. O fato é que afirma cabalmente que “il n’avoit sceu que monseigneur eust fait ne traicté aucune chose ou prejudice du roy ne de son royaume [Disse que não sabia se o senhor tinha feito alguma coisa em prejuízo do rei e de seu reino]” (Processo Nemours, idem). E foi para provar o quanto essa última afirmação seria falsa que os comissionados articularam seu interrogatório.

Segundo relato datado do dia 26 de outubro de 1476, os comissionados centraram suas indagações na circulação de informações entre Nemours, o duque de Bretanha e o condestável de Saint-Pol. O interrogado, por exemplo, enfatiza que a troca de informações entre Saint-Pol12 12 O condestável de Saint-Pol é personagem central na luta de setores da nobreza contra o fortalecimento do poder real e sua jurisdição. e Nemours se restringia ao casamento que ocorreria entre seus filhos (Processo Nemours, ibdem). Mas, se, por um lado, o interrogado tenta tornar a ligação de Nemours como o condestável menos passível de suspeição, por outro, involuntariamente, ao confirmar a aliança por casamento alimenta a ideia de quanto os dois poderosos estavam afinados. O casamento de seus filhos configurava uma aliança formal entre as famílias.

Em acréscimo reputa o envio de Jehan Bonnet13 13 Secretário de Nemours que foi enviado diversas vezes ao duque de Borgonha, bem como ao condestável de Saint-Pol. Foi responsável pela oferta de Dinheiro a Villeret, enviado pelo irmão do rei Charles de Guienne, presumivelmente para conspirar. Em encontro secreto chegou a ofertar a Villeret, segundo o processo, cerca de 30 escudos. (Processo Nemours, p. 200-204). - nessa ocasião também como um elemento de ligação entre o condestável e Nemours, supostamente devido a uma possível transação de terras na região do Haynault. Essa transação, se consumada, seria uma espécie de empréstimo com terras tomadas por Saint-Pol como garantia, algo que não teria sido aceito na ocasião por Nemours (Processo Nemours, p. 244 e 245).

O interesse dos comissionados no interrogatório se estende também para as relações mantidas com Jean de Armagnac14 14 A partir de 1469, Jean V de Armagnac é acusado de acordos secretos com Ingleses devido à confissão de um arauto aprisionado pelo rei Luís XI. Logo, o referido nobre é condenado em 1470 por contumácia. Graças ao irmão do rei Carlos de Guienne (que, na ocasião, havia recebido o apanágio de Guiene), acabou por influência do príncipe por receber de volta os seus bens. Jean de Armagnac acaba por morrer durante a invasão dos homens do rei na fortaleza de Lecture em 6 de março de 1473. . Dessa forma, Pompignac foi interrogado também sobre outras relações de solidariedade entre ambos os ramos da família Armagnac. Foi indagado sobre outras possíveis trocas de informações orais e por escrito por meio de Domingo, a despeito de o mesmo ter sido supostamente preso por ter ido até Lecture sem autorização do duque, tendo inclusive teoricamente escapado da prisão. Ambas as colocações foram postas em dúvida pelos comissionados, na medida em que se descobre posteriormente que o referido Domingo teria inclusive sido aquele que teria dado notícias da tomada de Lecture para o duque (Processo Duque Nemours, p. 249).

Porém, o aspecto mais importante da trajetória de Pompignac no processo é o relato de uma carta que teria escrito para Nemours, peça que, ao fim e ao cabo, serviu para fortalecer a convicção dos comissionados e contribuiu bastante para a condenação de Jacques de Nemours.

A carta teria sido entregue a Nemours já preso, por meio de Guillaume de Bonnes, arqueiro, um dos guardas que ofereceram possibilidade de circulação de informações no âmbito da cadeia. Essa última carta merece ao menos transcrição parcial devido à centralidade de suas informações para os acusadores; posteriormente procederemos uma análise pormenorizada. Na carta apreendida pelos comissionados é dito que:

Não acuseis ninguém nem acrediteis em ninguém por qualquer coisa que seja dita.(..) nem nomeeis ninguém de vosso conselho (...) algumas vezes eles dirão que sabem de tudo; mestre Jehan Bonnet, Domingo Micheu não estão por aqui, vos dirão então qualquer coisa, Perdiac não disse nada ainda que cause mal, eles dirão que Brianson é acusado de Bruxaria, seja bem advertido, não acredite em nada que dizem, e se eles fizerem vir algumas personagens diante de vós sejais firme em palavra, fui examinado durante quatro dias e fui até torturado, não vos preocupeis de minha parte (...) Champaignac está nessa cidade [Paris] cuida da provisão dos senhores vossos filhos que estão em boa graça de Deus; Barthelemieu, Cabannes, Bonnet de Salles, Jacques de Montamat, senhor de Geou, Jacques Balsant, Brianson de Salles estão todos presos e outros não tem nada que vos possa prejudicar.15 15 “Ne chargéz ne n’accuséz nul, ne voust emectéz a nulz pourchose qu’onvous die, (...) ne jamais ne nomméz ceulx de vostre conseil (..) Aucunes foiz ilz diront que’ilz scevent tout; maistre Jeahn Bonnet , Domingo de Micheune sont pa deça, quelque chose qu’on vous dye, Perdiac n’a encores riens dit de mal; ilz disent que briansons est fort baptu de sorecerie; soyéz bien adverty, ne les croyéz de riens, que’ilz facent venir les personnaiges devant vous; soyez seur em parole; j’ayest examine quatre jours de rang, et jusques a la gehaine; ne vous socieéz de moy; (...) Champaignac est em ceste ville [Paris], qui pousuit provisions de messeigneurs les enffans qui son em trés bom graces a Dieu; Barthelemieu, Cabannes, Bonnet de Salles, Jacques de Montamat, senhor de Jeou, Jacques Balsant, Brianson de Salles sont tous prins et d’autres beaucoup; ilz ne tien ne tiens qui vous puisse nuyre (...).” (Processo Nemours, p. 263, 264 e 397). A palavra entre colchetes é nossa.

A expressão que afirma que nada possuíam que o “o possa prejudicar” contida na carta sequestrada é ambígua ao não indicar cabalmente a inocência de Nemours. Essa ambiguidade é ainda reforçada pela forma como são referidos os homens do duque, uma lista que continha: Barthelemieu16 16 Provavelmente se refere a Bathelemy Cousinet, secretário de Nemours. Em outro segmento do processo, chega ser interrogado sobre qual era o secretário mais próximo de Nemours, diz que não sabe, mas diz que tinha um homem chamado mestre Jehan Bonnet e um outro mestre Anthoine de Confort que havia casado em Orleans e que de 3 anos pra então tinha falecido. (Processo Nemours, p. 156). , Cabannes17 17 Pierre de Résigade ou Rogade, dito Cabannes, foi valete de câmara da duquesa de Nemours e anteriormente alfaiate e confidente do referido duque. Supostamente teria deixado de frequentar o duque a partir do momento em que passou para o serviço da esposa de Nemours. (Processo Nemours, p. 145 e 365). , Bonnet de La Salles18 18 Jean Bonnet, secretário de Nemours, enviado diversas vezes para o duque de Borgonha e intermediário entre o condestável de Saint-Pol e o referido duque. , Jacques de Montamat19 19 Jacques de Montmat, escanção de Nemours, da idade de 33 anos, nascido em Pompingac, teve, segundo o processo, certo papel na conspiração. Destacaremos apenas o que consideramos central na narrativa processual: segundo esta Montamat apresentou certas informações sobre o arqueiro Miquelot, principal canal de comunicação entre Nemours e Saint-Pol;. Apresentou informações sobre o abastecimento de Carlat e disse que a artilharia de Nemours deveria ser dividida entre as suas praças fortes que deveriam ser cedidas ao rei; A sua irmã esposou Bonnet de La Salles. (Processo Nemours, p. 92, 148-152, 203, 369, 544). , senhor de Geou20 20 Pierre Geou, cavaleiro, senhor de Geou, no Auvergne, na diocese de Saint-Flour, nativo do condado de Venise do bispado de Cavaillhon, de cerca de 45 anos, teria servido a casa de Nemours por 28 anos, tendo sido seu pajem, Louis de Pouzol, encarregado por Nemours de Negociar com Pierre de Urphé. Fez com que Pouzol se colocasse no serviço do Bispo de Castres, irmão de Nemours. Enviado por Nemours ao rei, que se recusa a recebê-lo. Enviado por Nemours junto como Montamat ao rei. Supostamente presente à cerimônia de Tonsura de Nemours. (Processo Nemours, p. 153-155; 286, 316; 563, 598). Aparentemente em menor grau que Jean Bonnet de La Salles, era um dos homens de confiança de Nemours. Note-se que seu pajem vai para o serviço do Bispo de Castres indicando como os diversos homens com certa frequência deviam circular entre os membros da mesma casa, mas ao mesmo tempo guardavam provavelmente laços afetivos com relação àqueles que já não serviam tão diretamente. Serviços pontuais para outros membros da casa, ao que parece, eram relativamente frequentes. Apresentamos aqui algumas informações que nos parecem centrais sobre tal personagem. Guy Brianson, mestre em teologia da ordem dos franciscanos no convento de Aurillac, de aproximadamente 57 anos. Nascido em Aurillac, teria estudado em Toulouse. Implicado em geomancia, astrologia e profecias que, em tese, seriam prejudiciais ao rei, teria sido ainda um dos confessores de Nemours, logo, alguém de muita confiança. Teria predito ainda o sucesso futuro do duque. Teria interpretado ainda, por meio da geomancia, os rumores sobre a morte do rei, algo tratado com grande suspeição pelos comissionados. Posteriormente, teria previsto a ruína de Nemours e sua reconciliação com o rei (Processo Nemours, p. 169, 221, 306, 307, 308, 309, 310, 313, 477). , Jacques Balsant21 21 Jacques Balsant, que anteriormente foi escudeiro e lugar-tenente de Begot de Perrice, capitão de Carlat, pelo senhor de Nemour, morador em Sier em Quercy, nativo de Murat em Carlade, de idade de cerca de 45 cinco anos por ocasião do processo (Processo Nemours, p. 129 e 130). , Brianson de La Salles22 22 Apresentamos aqui algumas informações que nos parecem centrais sobre tal personagem. Guy Brianson era mestre em teologia da ordem dos franciscanos no convento de Aurillac, de cerca de 57 anos. Nascido em Aurillac, teria estudado em Toulouse. Implicado em geomancia, astrologia e profecias que, em tese, seriam prejudiciais ao rei, teria sido ainda um dos confessores de Nemours, logo, alguém de muita confiança. Teria predito ainda o sucesso futuro do duque. Teria interpretado ainda, por meio da geomancia, os rumores sobre a morte do rei, algo tratado com grande suspeição pelos comissionados. Posteriormente, teria previsto a ruína de Nemours e sua reconciliação com o rei (Processo Nemours, p. 169, 221, 306, 307, 308, 309, 310, 313, 477). . Logo, supostamente, se esses nada sabiam, todavia, indiretamente é indicado que alguns poderiam saber algo de comprometedor, a começar pelo próprio Pallamides. Este, ao indicar que resistiu a tortura após ter sido examinado por quatro dias, evidencia implicitamente que era ainda detentor de informações valiosas, mas que nada tinha revelado.

Entretanto, ao analisar a proximidade de cada um com Nemours, fica-se com a impressão que a avaliação de Pallamide teria sido de certa forma equivocada e teria subestimado o papel potencial de cada um dos citados como potenciais fontes de informação, ou buscava minimizar os riscos diante de um momento de aflição para ele e para o duque. Ao fim e ao cabo, o esforço de consolar o possível estado de aflição de Nemours apenas serviu para consolidar nos comissionados a convicção da culpa do duque.

A prisão que, em tese, deveria isolar os prisioneiros entre si e do mundo externo apresentava muitas fissuras. E isso não era necessariamente negativo para os comissionados, na medida em que elementos passíveis de serem utilizados no processo eventualmente vinham à tona, tal como a tentativa de fuga de Nemours que em breve abordaremos.

Contudo, o que nos chama mais a atenção na carta relatada diante do próprio Pompignac é a recomendação do mesmo para que Nemours nada falasse, pois mesmo que comissionados dissessem que sabem de algo, supostamente nada saberiam de fato. Nada saberiam exatamente do quê? Vale ressaltar igualmente que a recomendação de Pompiganc para que o duque persistisse negando tudo era provavelmente para os comissionados quase uma declaração indireta de culpabilidade do duque.

A carte lida diante de Pompignac (feita anteriormente pelo próprio) ainda é contundente em outros aspectos; não apenas menciona o medo do rei que acossava o chanceler - e isso moldaria as atitudes deste diante do processo - como é citado ainda que a melhor estratégia seria reportar possíveis conspirações como da época do bem público (1465), bem como qualquer informação comprometedora que viesse à tona.

O que estava em jogo não era a verdade stricto sensu, mas a capacidade dos comissionados de produzir a verdade jurídica, ainda que muito provavelmente já soubessem por meio de boatos e informações informais de muito mais coisas que apareceram na memória escrita do processo.

A despeito da suposta crença de Pompignac na ignorância dos comissionados, o fato é que boatos, canais informações de novidades eram bem possivelmente alcançados também por agentes reais. Basicamente era sabido que os homens referidos na carta eram servidores leais do duque. Logo, as informações possuídas pelos homens do duque deveriam ser extraídas a todo custo.

De qualquer forma, a captura da carta levou de imediato à investigação das circunstâncias em que a mesma foi escrita e como foi entregue. A recomendação de Pallamides para que não nomeasse ninguém de seu conselho foi acolhida com particular mal-estar pelos comissionados. Afinal, isso seria negar-se não apenas a cooperar no inquérito, mas uma afronta contra a autoridade régia, na medida em que, por esta altura do processo, bem provavelmente os membros do conselho de Nemours, ao menos os mais importantes, já deviam ser bem conhecidos.

A resposta de Pompignac para justificar os conselhos oferecidos ao duque por escrito na cadeia é, mesmo para os padrões da época, absurda, pois alega que teria ouvido falar que alguém nunca deveria nomear alguém de seu conselho em processo (Processo Nemours, p. 262-268), o que teria sido veementemente refutado pelos comissionados. O fato é que Pompignac foi pego de surpresa e, possivelmente, suas reações foram de certa perplexidade, como podemos aferir pela inverossimilhança de suas afirmativas.

Porém, para os comissionados, era importante identificar esse circuito de informações e indagar como foi possível que tivesse tanto acesso a informações estando preso.

A própria descrição de como supostamente teria recebido informações externas da prisão é paradoxal. Pois, se por um lado, a explicação de como havia obtido informações especificas era absurda, por outro, indicava certamente um dos meios correntes de entrega de cartas e informações, por meio das janelas da própria prisão, a despeito do óbvio, os serviços prestados pelos carcereiros. E é esse universo de circulações de informações que desejamos ainda tratar com mais atenção. Ao ser indagado, Pompignac teria dito que teria recebido as informações da seguinte forma:

Interrogado sobre como soube das coisas acima ditas, disse que, quando ele estava na câmara onde foi colocado pela primeira vez (...) na qual existe uma janela que está sobre um fosso diante da porta de Saint-Anthoine, um dia deitado ele ouviu senhores que falavam diante da porta e ali tinham pessoas apoiadas na borda do fosso à direita da pequena janela, e que era possível os ver em conjunto e diziam que havia bastante pessoas traidoras dentro da bastilha, e outros diziam que eram homens do senhor de Nemours, (...) e um dizia que sabia sobre dois que não sabia nomear, mas que sabia que Jehan Bonnet, Domingos, Micheul não estavam e mais alguns outros (...).23 23 Interrogué comment il a sceu les choses dessudictes, dit que, durant qu’il estoit em la chambre ou il fut premierement mis (...) em laquelle chambre a une fenestre qui respond sur le fosse devers la porte Sanit Anthoine; a ung soir couchant il y avoit de sseigeneurs qui se pourmenoient hors la porte et y avoit de leus gens appuiéz sur le bort du fosse a l’endroit de la petite fenestre, lesquelz gens divisoient ensemble et disoient que’il avoit beaucoup de feuz dedans la bastille, et les autres disoient que c’estoient gens de monseigneurs de Nemoux (...)et l’um disoit que l’on em serchoit deux que’on ne pouvoit trouver et ne nommoient point maistre jehan Bonnet, Domingo, Michau unes autres (...). (Processo Nemours, p. 397 e 398).

Efetivamente indicar que ouviu comentários de meros transeuntes parados nas janelas da Bastilha, a despeito do esforço em detalhar a forma pela qual isso teria acontecido, era algo que carecia inteiramente de credibilidade. Apenas o desespero de causa poderia explicar uma afirmativa tão claramente fantasiosa, mesmo para os padrões da época, algo que evidentemente não convenceu os inquiridores. Afinal, que o mesmo deduzisse que certos não estavam presos a partir de simples comentários feitos a certa distância é algo de muito pouca credibilidade. É muito mais provável ter sabido dessas informações, verdadeiras ou não, por parte dos próprios carcereiros.

E foi na perspectiva de explorar por quais meios Pompignac teria escrito a carta e por meio de quem a mesma teria sido entregue a Nemours que se voltaram às atenções dos comissionados.

Ao ser indagado, Pompignac, como escreveu a referida carta, indica que tinha tinta em papel em sua gibicier, ou seja, uma bolsa carregada à cintura, e a tinta teria sido refrescada com vinho e água (Processo Nemours, p.263 e 397). Mas restava indagar o meio de entrega e o porquê de ter sido tão categórico em certas afirmações.

Nesse aspecto, a escolha dos comissionados recai sobre a tortura judicial, e eles fazem questão de registrar por escrito os cuidados que tomariam ao proceder com ela. O fundamental era que, devido à avançada idade de Pompignac e ao fato de o mesmo ter sido doente de gota, os comissionados decidem tomar cautela para a aplicação da tortura (Processo Nemours, p.263 e 397).

Em relato datado de 20 de novembro de 1476, os comissionados consideram que apenas a tortura o faria dizer a verdade, conclusão explicitamente dita pelo chanceler que dirigia os trabalhos. A reação de Pompignac revela certo desespero, na medida em que teria jurado que o diabo deveria levar seu corpo e alma caso estivesse mentindo. Após terem chamado os “questionadores” (torturadores) Jehan Loiset, Jehan Mahé, dito o Orfevre, Jeand Doublet, Hugues Chantereau e Jacobin Bourdon, eles teriam realizado uma pequena reunião cujas deliberações mandaram fixar por escrito:

(...) E foi discutido quais das duas torturas deveriam ser aplicadas (...) se este deveria ser esticado ou ter o calcanhar apertado, que era mais doloroso e próprio a fazer o criminoso falar a verdade, e sobre isso respondeu então o questionador [torturador] e os sargentos que era então melhor esticar o corpo do prisioneiro do que torturá-lo no calcanhar, coisa que se fazia comumente com uma mulher ou uma criança (...).24 24 (...) demande laquelle de ces deux questions, c’est a ssavoir la courtepoincte et les brayes au mareshal, estoit la plus doloreuse et propre a plustost et plus facilmente faire dire verité a ung crimineulx, et su ce on três pondui ceulx questionneur et sergens que c’estoti la question de la courte poiincte, et auregard de la question de brayes n’estoit guere schose et que’on baulloit comuneement a une femme et a umg enffant (...)

O cuidado dos comissionados com a fundamentação do processo é minucioso. Buscam fixar certos procedimentos por escrito para a posteridade e deixar claro que seguiram as regras processuais, na medida em que uma tortura abusiva, em tese, poderia levar mesmo à perda de um oficio público. O que discutem é que tipo de tortura seria adequada diante, de um lado, da idade e fragilidade do prisioneiro e, de outro, da resistência do mesmo em revelar informações que incriminassem Nemours.

Normalmente, a tortura tinha como fase inicial a exibição dos instrumentos de suplício. A expressão curte poincte se refere à prática de extensão dos membros do prisioneiro, e, conforme as respostas, o corpo era estendido por meio de um cavalete. Em seguida, o supliciado era submetido à ingestão forçada de água ou óleo - o que levava como que se evitasse a tortura se o tempo estivesse muito frio -, geralmente davam intervalos de meia hora para que o prisioneiro confessasse. Com certa frequência, o courte poincte era julgado inadequado devido ao risco de o frio causar maiores danos para o interrogado. Já na tortura dos “braies du marechal”, os sapatos do interrogado são retirados, ele é colocado sobre os joelhos (courtepointe) e tem as mãos amarradas e consiste em apertar os calcanhar paulatinamente.

Corpo disciplinado, discurso controlado, verdade jurídica construída e, como método de persuasão, nesse caso e em muitos outros, o medo. Este funcionava como um instrumento racionalmente codificado e aplicado metodicamente. O medo é dos componentes estruturadores do controle social e um dos meios de construção do discurso jurídico sobre o crime de lesa-majestade.

Porém, a despeito de todo esforço de controle sobre os prisioneiros, esforço no qual o discurso sobre o crime de lesa-majestade é estruturador, muitos aspectos aconteciam à revelia dos comissionados, apesar de que, ao virem à tona, os fatos ocultados cooperavam muito para a consolidação da convicção da culpabilidade de Nemours. No caso, referimo-nos à situação de tentativa de fuga do duque.

As declarações de Pompignac sobre uma conspiração para a fuga de Nemours praticamente indicavam a culpabilidade do prisioneiro na ótica dos comissionados. Nemours, ao planejar a sua fuga, que de fato jamais foi tentada, assumia indiretamente que era culpado de todas as acusações.

Em uma narrativa datada de 10 de fevereiro de 1477, chega até os comissionados a denúncia de um entre eles, Bouffile de Juges, encarregado da guarda do duque, vice-rei no Roussilon. Ele afirmava que Nemours estava tentando planejar sua fuga junto com alguns carcereiros. Diante da denúncia, foi decidido pelos comissionados que os guardas seriam ouvidos e que seria colocado por escrito o testemunho dos mesmos. É interessante nos perguntarmos se Nemours teria de fato preparado a fuga, ou teria sido induzido a prepará-la pelos próprios guardas, a mando dos próprios comissionados. Estes tinham expectativa na condenação do duque e na distribuição breve de seus despojos, o que efetivamente foi feito durante e após o processo entre os homens da casa real.

Inclusive antes da finalização do processo, Bouffile já era chamado informalmente de Conde de Castres, uma das possessões de Nemours. Os bens de Armagnac foram alvo de distribuição significativa de despojos e o condado de Castres foi entregue posteriormente a Boufille, e rendia cerca de 7.000 libras anuais, uma boa quantia. Outros tantos ainda receberam parte dos despojos de Nemours inclusive antes da conclusão do processo (Cf. BLANCHARD, 2012BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques de Armanhaque. Genève: Libraire, Droz, 2012.).

Citaremos a seguir alguns dos principais beneficiários. O principal beneficiário foi Pierre Beajeau, genro do rei, que recebeu para si e para os seus descendentes o condado de La Marche com a baronia de Montaigut-en-Combraille, que representava cerca de 5.000 libras de renda. Outro aliado do rei que se beneficiou dos despojos foi Antoine de Chourses, senhor de Maigné, cujo casamento com Gillete de Coétivy foi preparado por Luís XI (a noiva era filha da meia-irmã do rei, Marie). Outros ainda se beneficiaram dos despojos, tal como os senhores d’Antraigues, Donzenac e Roussy, no alto Auvergne e Limousin, rendendo cerca de 1.040 libras. Um dos primos de Nemours, Jean de Foix, visconde de Narbonne, recebeu o condado de Pardiac, entorno de Monlezun, valendo 2.400 libras de renda (Cf.BLANCHARD, 2012BLANCHARD, Joel. Louis XI. Paris: Perrin, 2012.).

A lista dos beneficiários dos bens de Nemours é extensa e envolve ainda outros membros da casa real, tais como Imbert de Batarnay, que recebeu as terras de Bouzols, Fay, Servissas, no Velay, e aquelas de Châteauneuf Mallet, Turlande e Anglard, no Alto Auvergne, as de Biran, Ordan e Peyrusse-Grande, em Armagnac, por fim as de Clary e Dargies com as florestas de d’Ailly, na Picardia (Cf.BLANCHARD, 2012BLANCHARD, Joel; BRUNNER, Otto. Land and lordship. Structures of governance in medieval Austria. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992.).

Podemos citar ainda Jean Blosset, senhor de São Pedro, um dos comissionados no processo, que recebeu o Viscondado de Carlat, valendo 3.600 libras de renda. Jean du Mas, senhor de l’Isle, bailio du Contentin, recebeu o Viscondado de Murat, que rendeu cerca de 2.400 libras. São indicados também Jean Daillon, que tomou posse das terras de Leuze e de Condé, no Hainaut, e Louis de Malet de Gravilles, que recebeu as terras de Nemours, sem o respectivo título ducal, Grès-en-Gâtinais, Pont-sur-Yonne, Flagry, Férolles, Metz-le-maréchal, Cheroy, Bretencourt et Albi. Vale citar ainda o loreno Jean de Wiss, que recebeu o Viscondado de Saint-Florentin com Evry-le-Châtel. Também foi beneficiário Thierry de Lenoncourt, bailio de Vitry, que recebeu as senhorias de Beaufort, Larzicourt, Soulaines et Villeaheu na Campagne, e Jean d’Avandaignon, dito Vedage, servidor de origem espanhola, recebeu Nogent, Pont-Sur-Seine et Coulommier. Ainda se beneficiaram Guillaume de Sou Plainville, Bailio de Monatargis, que recebeu Château-Landon, e Pierre de Rohan, que já havia recebido abundantemente os despojos do condestável de Saint-Pol, recebeu Bar-sur-Aube. (Cf. BLANCHARD, 2012BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques de Armanhaque. Genève: Libraire, Droz, 2012.). Como pode se perceber, os bens de Nemours eram de certa envergadura no centro-sul do reino.

Efetivamente a distribuição de despojos era um modus operandi nos processos judiciais no reinado de Luís XI. Os despojos funcionavam como uma forma rápida de remunerar os serviços, e a expectativa de recebê-los poderia também funcionar como incentivo para que as comissões extraordinárias acelerassem o processo e, principalmente, efetivamente condenassem os desafetos reais (Cf. BLANCHARD, 2012BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques de Armanhaque. Genève: Libraire, Droz, 2012.). Todavia, algumas dessas doações renderam longos processos, tal como no caso de Commynes, cujos descendentes ainda estavam às voltas com a justiça em inícios do século XVI (Cf. BLANCHARD, 2006BLANCHARD, Joel. Philippe de Commynes. Paris: Fayard, 2006.), devido à contestação de doações outrora confiscadas.

Contudo, o confisco foi um dos principais instrumentos de consolidação de fidelidades no núcleo do conselho real, funcionando como um verdadeiro instrumento de combate à poliarquia. Tendo em vista também a distribuição dos despojos do processo de Saint-Paul (1475) (Cf.BLANCHARD, 2008BLANCHARD, Joel. Commynes et les procès politiques de Louis XI. Du nouveau sur la lèse-majesté. Paris: Picard, 2008.) - em tempo recente ao processo de 1477. Acreditamos que seja lícito nos perguntarmos até que ponto Nemours, ao abordar ou ser abordado pelos carcereiros, não caiu em uma armadilha premeditada por parte de Bofille de Juge, que, por sinal, recebeu parte dos bens do aprisionado. Vale a pena conferir os testemunhos sobre a potencial tentativa de fuga de Nemours e as questões subjacentes à perpetuação da narrativa sobre a tentativa de fuga.

Em uma narrativa datada de 10 de fevereiro de 1477, mandaram vir Charles Calabris, nativo de Cotone, na Calábria, da companhia do vice-rei, Boffile de Juge. Calabris era um dos que guardavam Nemours, tendo segundo a narrativa de 34 anos ou em torno, e o mesmo teria afirmado diante dos comissionados que:

(...) depois afirmou que na última sexta-feira Nemours na prisão no dito lugar da Bastilha lhe disse se ele desejava o ajudar a fugir e que ele lhe daria então um escudo e o faria mestre de seu hotel; o qual que fala, tendo em vista que o senhor vice-rei lhe teria ordenado que se o dito Nemours lhe falasse de algumas coisas, que ele ouvisse e lhe dissesse o que havia sido dito para ele [carcereiro] para saber a coragem, que tinha o referido Nemours, que perguntasse ao dito Nemours como pretendia escapar e o referido Nemours lhe respondeu que era necessário achar um meio de romper o chão da prisão onde ele estava, por tal abertura ele subiria na parte de cima da gaiola de ferro até o teto por meio de uma corda de 25 passos para descer dentro da fossa da bastilha (...).25 25 (...) a dit et depposé que vendredi derrenier passé ledict Nemoux en as prison au dict lieu de la Bastille luy dist que s’illuy vouloit aider a soy escchapper, qu ‘illuy donneroit Vim escuz et le feroit son maistre d’ostel; a quoy il qui parle, pource que monseigneur li visse roy luy avoit ordonné qui si ledit Nemoux luy parloit d’aucune chose, que’iloisct ce qu’illuy diroit pour savoir quel coraige avoit le dict Nemoux, demanda audict de Nemoux, comment se pourroit faire leditz eschappement; et icelluy de Nemoux luy respondit qu’il failloit trouver moien de rompre le plancher de dessus la prison ou lui estoit, par laquelle rompture il monteroit par dessus as caige au dessus du dicit plancher une corde XVV pas de long pour descendre dedans les fosséz d’icelle Bastille (...). (Processo Nemours, p. 262-268.)

Não podemos provar cabalmente que tenha sido arquitetada uma armadilha para Nemours, mas ao explicitar a recomendação de Bouffile de Juge para o que carcereiro ficasse atento a qualquer fala de Nemours para saber qual “coragem” ele teria - no caso se refere implicitamente à fuga - fica-se com a impressão de que a fuga poderia ter sido sugerida pelo carcereiro em ocasião anterior. Efetivamente, Nemours provavelmente estava desesperado na medida em que já tinha notícias dos depoimentos e testemunhos que se avolumavam contra ele. A possível fuga pelo chão de madeira da gaiola de ferro que o guardava, seguida pela escalada até o fosso da Bastilha, era a atitude de um homem desesperado. Desespero induzido possivelmente também por comentários informais por parte dos carcereiros e inquiridores.

Considerações Finais

Em certa medida, Nemours já se sabia condenado ao menos desde a preparação de sua fuga, se não antes, e isso pode ter sido deixado claro pela própria postura dos comissionados durante os interrogatórios diante dele. O que podemos afirmar de fato é que a prioridade na condenação foi uma orientação cabal do rei, sobre a qual temos informações em uma carta pouco anterior ao início do processo propriamente dito.

Em uma instrução enviada para o chanceler Pierre d’Oriole, datada erroneamente de 22 de novembro de 1476, mas que era provavelmente de 22 de setembro do mesmo ano, tendo em vista que o manuscrito em que a carta está inserida segue a ordem cronológica. Na apresentação do texto, Samaran e Favier (1966SAMARAN, Charles & FAVIER, Lucie. Louis XI et Jacques d’Armagnac, duc de Nemours. Les instructions secrètes du roi au chancelier Pierre Doriole pour la conduite du procès. Journal des savants, v. 2, n. 1, p. 65-77, 1966., p. 65-77) afirmam que, ao menos desde 7 de agosto de 1476, o chanceler e D’Oriole, Charles de Gaucourt et Jean Blosset, senhor de Saint-Pierre, começaram a recolher testemunhos dos que eram considerados comparsas de Nemours pelo poder real. Os nomes coincidem com alguns dos principais inquiridos no processo.

Talvez o clima de medo e suspeição reforçado pelos interrogatórios tenha contribuído bastante para acentuar o aspecto punitivo do poder real. Uma espécie de cultura do conspiracionismo contribuiu em muito para acentuar o rigor das punições na segunda metade do século XV.

Acreditamos que a multiplicação da capacidade do poder real em levantar informações por meio de um aparato judicial cada vez mais complexo tornava a guerra da fixação de memórias por escrito bastante desigual. Os príncipes, por mais que se organizassem por meio de ligas, cartas, selos e promessas, estavam diante de um poder real cada vez mais intrusivo, bem informado por espiões e comissionados, economicamente hegemônico e militarmente muito superior. A despeito do esforço de preservação da honra alto-nobiliárquica e da razoável fidelidade demonstrada pelos fiéis de Nemours, a capacidade de produção de verdade jurídica do inquérito extraordinário era algo profundo. Inquirir, comparar, classificar, coagir, moldar percepções eram, em conjunto, uma poderosa arma nas mãos do rei. Em certa medida, a estrutura racional-coercitiva organizada no reinado de Luís XI prefigurava o despertar do Leviatã Hobbesiano.

Referências

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  • BLANCHARD, Joel. Philippe de Commynes Paris: Fayard, 2006.
  • BLANCHARD, Joel. Commynes et les procès politiques de Louis XI. Du nouveau sur la lèse-majesté Paris: Picard, 2008.
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  • BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques de Armanhaque Genève: Libraire, Droz, 2012.
  • BLANCHARD, Joel; BRUNNER, Otto. Land and lordship. Structures of governance in medieval Austria Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992.
  • BRUNNER, Otto. Land and lordship Structures of governance in medieval Austria Philadelphia: University of Pennsylvania Press , 1992.
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  • CHIFOLLEAU, Jacques. Le procès comme mode de gouvernement In L’età dei processi. Inchieste e condanne tra politica e ideologia nel ‘300 Atti del Convegno di Ascoli Piceno (30 nov. 1er dic. 2007), Roma, Istituto Storico Italiano per il Medioevo, 2009.
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  • VON MOOS, Peter. Occulta cordis. Contrôle de soi et confession au Moyen Âge (II). Médiévales, n. 30, p. 117-137, 1996.

Notas

  • 1
    “(...) pour obvier aux grans incoveniens qui povoient avebir a nous et a toute chose publicques de nostre royaulme, a cause de plusiers pratiques, intelligences et entendemens que Jacques d’Armignac, duc de Nemours, conte de la Marche nostre cousin avoit eu le temps passé et encores avoit avecques noz ennemy et autres les adherans et complixes rebelles et desobeissans a nous et des machinacions et conspiracions qu’ilz avoient faiz et faisoient a nous et des machinations et conspiracions qu’ilz avoient faiz et fasoient ensemble contre nous, nostre prosperité et la chose publicque de nostredit royaulme (...)”. (Processo Nemours, p.2).
  • 2
    Consideramos mais prático abreviar em português a referência bibliográfica do processo que é BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques de Armanhaque. Genève: Libraire, Droz, 2012BLANCHARD, Joël. (Ed. Crit.). Procès de Jacques de Armanhaque. Genève: Libraire, Droz, 2012.. Daqui por diante nos referiremos à fonte por Processo Nemours seguida da página da edição.
  • 3
    Com certa frequência, o fato de representar localmente o rei ou um grande senhor eram funções que acabavam por ser enredadas nas disputas políticas das elites locais. Podemos tomar como exemplo certas declarações que se referem às rondas feitas pelos homens de Aurillac, partidários do rei em 1475, reputados como os “burgueses de Carlat. Na verdade, estamos diante de dois registros que, na prática, se entrecruzam: os conflitos na própria elite da comunidade e os conflitos entre os oficiais e apoiantes de Nemours com os oficiais e apoiantes reais. No mínimo, cerca de dois anos antes da comissão Le Viste em Aurillac (ocorrida em 1475), essa localidade já estava sob atenção de informantes régios, que apresentaram testemunhos sobre certas ações que se reportavam até 1468-69, época em que o conflito pelo controle da municipalidade de Aurillac teria dividido a vila e os notáveis da região. No depoimento de Charles de Barbu, então prisioneiro no castelo de Amboise, colhido no dia 6 de junho de 1473, na presença do chanceler Pierre d’Oriole e de Michel Herbeye, comissionado pelo rei, foram enfatizadas as supostas ações de Nemours e seus homens na época em que o rei estivera prisioneiro em Peronne (1468), bem como da atuação de Pierre de Tordes, lugar-tenente do bailio das montanhas do Auvergne. (Processo Nemours, p. 39-46). No relato de Pierres de Cordes, lugar-tenente dos bailio das montanhas do Auvergne, para a comissão Le Viste em 1475, é enfatizada ainda a relação entre a ação dos Ingleses no norte do reino e o partidarismo local dos servidores de Nemours que teriam supostamente se regozijado com a invasão dos ingleses no norte do reino em 1475, e teriam dito que Nemours “bien bref il aura des moiens pour faire grandemente des biens a ses serviteurs”. Processo Nemours, p. 43.
  • 4
    Tendo vivido entre cerca de 130 e 180 d.C., escreveu alguns importantes tratados tais como o Édito Romano dos magistrados e os Comentários sobre as doze tábuas.
  • 5
    A ênfase dos comissionados era recorrente na identificação de ajuda que Nemours poderia ter prestado aos que se colocavam contra o poder real no âmbito das ligas principescas. As cartas entre Nemours e o irmão do rei, o duque de Guienne, recebem particular atenção, na medida em que o referido irmão real poderia eventualmente ser colocado no trono no lugar do próprio Luís XI. Foi indagado a Nemours se “S’il se nommoit em la soubzscripcion des lectres, dit que tousjours, quant il escripvoit a monseigneur de Guienne, il mectoit son nom entier et le mist a ladicte foiz comme lluy semble et n’y avoit pas lors cause par quoy il deust changer (...) Bien dit que aucunesfoiz quant il escripvoit a d’autres et il y avoit peu d’espace ou papier il ne mectoit que J. qu’il avoit accoustumé de faire (...)”. (Processo Nemours, p. 429). “Foi indagado a Nemours se ele se nomeava na subscrição de cartas, diz que sempre, e que quando escrevia ao senhor de Guienne, sempre colocava seu nome inteiro e sempre colocava quando lhe parecia necessário e quando ele escrevia a outros e havia pouco espaço no papel que ele colocava um J como tinha costume de fazer”. O trânsito de cartas em branco, com assinaturas cifradas, pequenos acordos assinados de forma extensa ou com aposição de simples iniciais era uma verdadeira obsessão dos comissionados. Efetivamente, a troca de cartas seladas ou não entre os conspiradores foi, ao que parece, bem significativa, tendo algumas delas sido apropriadas pelos agentes reais que as guardavam na manga para utilizá-las nas condenações. Importava identificar o padrão de atuação de Nemours, para que fosse possível imputar ao mesmo cartas autênticas ou forjadas que comprovariam em tese sua culpabilidade.
  • 6
    Podemos tomar como exemplo concreto no processo em questão a nomeação da comissão de inquérito conduzida por Aubert le Viste entre de 21 de março e 2 de setembro de 1475. A ênfase da comissão residia em uma grade de leitura que superenfatizava as ações dos homens de Nemours como necessariamente abusivas no exercício dos direitos senhoriais que supostamente usurpariam as atribuições régias. O fundamental na narrativa da inquirição é que as atitudes dos oficiais de Nemours e de seus apoiantes são tratadas como uma violação dos direitos reais com prejuízo para a monarquia. A ação dos homens do duque de Nemours na localidade de Aurillac - situada na região do Auvergne, centro-sul da França, no Viscondado de Carlat - representava, do ponto de vista dos oficiais régios, um sério atentado contra a majestade real, pois estradas públicas teriam se tornado locais de ação de “banditismo”; homens teriam sido aprisionados mediante pagamento de resgate; e os habitantes de Aurillac, por exemplo, teriam sido pressionados pelos homens do duque à revolta contra o poder real. Os homens de Nemours são acusados, ainda, de terem cooperado para a prisão de dependentes de oficiais reais. Podemos tomar como exemplo a citação da atuação dos homens de Nemours nas estradas, segundo a comissão “Et primo ledict Balsant par lesdictes informacions est charge d’avoir l’anne LXIX espié sur les chemins par plusiers et diverses foiz Jaquet Comart et ung nommé Violart, lors consulz de ladicte ville, qui estoient alléz empruncter a toloez Vc escuz pour les porter au roy [...]” Et aussi paar lesdictz informacions ledict Balsant est charge d’avot toujours tenu oridairemente les champs avec autres ses complixes pour guecter, espier et destrousser les marchants et autres habitans [...] (Processo Nemours, p. 77). Atentado em estradas públicas, ataques a mercadores que também eram considerados homens do rei eram graves violações da jurisdição régia, consistindo em um crime de lesa-majestade. Nesse caso, cita-se um evento do ano de 1469, ocasião em que o dinheiro que seria levado para o rei havia sido tomado por Balsant, homem do duque de Nemours, configurando na narrativa igualmente um sério atentado contra as prerrogativas régias. Balsant era lugar-tenente no viscondado de Carlat, respondendo diretamente ao referido duque.
  • 7
    Quando nos referimos à verdade jurídica, estamos nos remetendo à verdade produzida pelo discurso por meio de práticas, ritos e regras definidas a partir do campo do direito.
  • 8
    Nos procedimentos judiciários, era comum citar no início da compilação dos testemunhos o juramento de dizer a verdade por parte dos testemunhantes. Em situações particulares, poderiam recorrer a relíquias, como no caso de composições judiciais de pessoas importantes ou mesmo na ocasião de organização de ligas nobiliárquicas, tal como no caso do juramento feito por Nemours e outros grandes senhores em 1469 em Conflans contra o rei, onde teriam jurado sobre os santos evangelhos, tocando corporalmente o missal de se manterem unidos e se entreajudarem de forma que ninguém fizesse acordo com o rei sem os demais membros da conspiração. “(...) assemblezz em l’ostel de mondict seigneur |charolays a Conflans leez Paris ont juré et promis sur les sainctes evangilles et touché corporellement le messel, de bien et loyaument euls entretenir les ung avec les autres em bonne union et amour (...) avec ce ne prendront quelque appoinctement, traicté avec le roy les ungs sans les autres (...). (Processo Nemours, p.4).
  • 9
    Em interrogatório datado de 8 de novembro de 1476, Nemours, por exemplo, teria requisitado confrontar quem o acusava ou quem teria testemunhado sobre determinado assunto em seu prejuízo, algo que foi cabalmente negado pelos comissionados, pois comissários afirmaram que primeiro se tomava a confissão do processado e que apenas após isso seria confrontado com outros testemunhos. (...) surquoyillui a este respondu que la forme de justice est prendrela confession voluntaire de ceulx a quil’onbesoingne et puis apré, scelon que lescaslerequierent, leurporduite et confrontes ceulxqui em ontdepposéainsi que onveoit que cestmieulx pourvenir a laverité”. (Processo Nemours, p. 366). Esse tipo de pedido por Nemours foi recorrente no processo, bem como a negativa dos comissionados em sair do rito estipulado.
  • 10
    Cf. No processo de Nemours, a questão dos malefícios, nas páginas 5, 518 e 520; a questão da bruxaria de homens ligados intimamente a Nemours, tal como nas páginas 65, 263, 275, 397 e 496; bem como na polêmica questão da astrologia, tal como nas páginas: 169, 221, 307, 478, 479, 297 e 302; ou ainda no caso de geomancia, como nas páginas 132, 133 e 307.
  • 11
    No contexto da poliarquia, os valores afetivos entre os envolvidos cumpriam um papel importante como elementos que contribuíam para soldar as relações entre os grupos e indivíduos. As expectativas do cumprimento do serviço, do lado do senhor, e da proteção, por parte do dependente, jogam um papel crucial. Logo, as relações não são apenas guiadas pelo cálculo puro e simples de interesse, mas também por valores de adesão que nutrem até mesmo a conduta de servidores, tal como os impulsionados pelas noções de honra e fidelidade, recorrentes nas atitudes dos que gravitavam, por exemplo, em torno da casa senhorial de Nemours. A perspectiva de poliarquia em que nos pautamos tem sua orientação teórica na releitura de certos aspectos do historiador Otto Brunner. A influência de Brunner na historiografia política do pós-guerra foi fundamental, destacando a ênfase no estudo das relações de clientela, de domesticidade, das obrigações morais de ajuda recíproca, da disciplina informal das casas senhoriais, das relações afetivas intra-nobiliárquicas. A amizade seria um dos elementos fundadores da paz nas ligas nobiliárquicas, aqueles que estivessem incluídos nesse campo de alianças estabeleceriam mutuamente obrigações morais que os tornavam solidários. No caso em que os grandes vassalos sentiam sua justiça denegada, a insurreição era de partida considerada legítima por eles. A rebelião era uma das estratégias escolhidas para pressionar a negociação em termos considerados mais justos. (Cf. BRUNNER, 1992BRUNNER, Otto. Land and lordship. Structures of governance in medieval Austria. Philadelphia: University of Pennsylvania Press , 1992.)
  • 12
    O condestável de Saint-Pol é personagem central na luta de setores da nobreza contra o fortalecimento do poder real e sua jurisdição.
  • 13
    Secretário de Nemours que foi enviado diversas vezes ao duque de Borgonha, bem como ao condestável de Saint-Pol. Foi responsável pela oferta de Dinheiro a Villeret, enviado pelo irmão do rei Charles de Guienne, presumivelmente para conspirar. Em encontro secreto chegou a ofertar a Villeret, segundo o processo, cerca de 30 escudos. (Processo Nemours, p. 200-204).
  • 14
    A partir de 1469, Jean V de Armagnac é acusado de acordos secretos com Ingleses devido à confissão de um arauto aprisionado pelo rei Luís XI. Logo, o referido nobre é condenado em 1470 por contumácia. Graças ao irmão do rei Carlos de Guienne (que, na ocasião, havia recebido o apanágio de Guiene), acabou por influência do príncipe por receber de volta os seus bens. Jean de Armagnac acaba por morrer durante a invasão dos homens do rei na fortaleza de Lecture em 6 de março de 1473.
  • 15
    “Ne chargéz ne n’accuséz nul, ne voust emectéz a nulz pourchose qu’onvous die, (...) ne jamais ne nomméz ceulx de vostre conseil (..) Aucunes foiz ilz diront que’ilz scevent tout; maistre Jeahn Bonnet , Domingo de Micheune sont pa deça, quelque chose qu’on vous dye, Perdiac n’a encores riens dit de mal; ilz disent que briansons est fort baptu de sorecerie; soyéz bien adverty, ne les croyéz de riens, que’ilz facent venir les personnaiges devant vous; soyez seur em parole; j’ayest examine quatre jours de rang, et jusques a la gehaine; ne vous socieéz de moy; (...) Champaignac est em ceste ville [Paris], qui pousuit provisions de messeigneurs les enffans qui son em trés bom graces a Dieu; Barthelemieu, Cabannes, Bonnet de Salles, Jacques de Montamat, senhor de Jeou, Jacques Balsant, Brianson de Salles sont tous prins et d’autres beaucoup; ilz ne tien ne tiens qui vous puisse nuyre (...).” (Processo Nemours, p. 263, 264 e 397). A palavra entre colchetes é nossa.
  • 16
    Provavelmente se refere a Bathelemy Cousinet, secretário de Nemours. Em outro segmento do processo, chega ser interrogado sobre qual era o secretário mais próximo de Nemours, diz que não sabe, mas diz que tinha um homem chamado mestre Jehan Bonnet e um outro mestre Anthoine de Confort que havia casado em Orleans e que de 3 anos pra então tinha falecido. (Processo Nemours, p. 156).
  • 17
    Pierre de Résigade ou Rogade, dito Cabannes, foi valete de câmara da duquesa de Nemours e anteriormente alfaiate e confidente do referido duque. Supostamente teria deixado de frequentar o duque a partir do momento em que passou para o serviço da esposa de Nemours. (Processo Nemours, p. 145 e 365).
  • 18
    Jean Bonnet, secretário de Nemours, enviado diversas vezes para o duque de Borgonha e intermediário entre o condestável de Saint-Pol e o referido duque.
  • 19
    Jacques de Montmat, escanção de Nemours, da idade de 33 anos, nascido em Pompingac, teve, segundo o processo, certo papel na conspiração. Destacaremos apenas o que consideramos central na narrativa processual: segundo esta Montamat apresentou certas informações sobre o arqueiro Miquelot, principal canal de comunicação entre Nemours e Saint-Pol;. Apresentou informações sobre o abastecimento de Carlat e disse que a artilharia de Nemours deveria ser dividida entre as suas praças fortes que deveriam ser cedidas ao rei; A sua irmã esposou Bonnet de La Salles. (Processo Nemours, p. 92, 148-152, 203, 369, 544).
  • 20
    Pierre Geou, cavaleiro, senhor de Geou, no Auvergne, na diocese de Saint-Flour, nativo do condado de Venise do bispado de Cavaillhon, de cerca de 45 anos, teria servido a casa de Nemours por 28 anos, tendo sido seu pajem, Louis de Pouzol, encarregado por Nemours de Negociar com Pierre de Urphé. Fez com que Pouzol se colocasse no serviço do Bispo de Castres, irmão de Nemours. Enviado por Nemours ao rei, que se recusa a recebê-lo. Enviado por Nemours junto como Montamat ao rei. Supostamente presente à cerimônia de Tonsura de Nemours. (Processo Nemours, p. 153-155; 286, 316; 563, 598). Aparentemente em menor grau que Jean Bonnet de La Salles, era um dos homens de confiança de Nemours. Note-se que seu pajem vai para o serviço do Bispo de Castres indicando como os diversos homens com certa frequência deviam circular entre os membros da mesma casa, mas ao mesmo tempo guardavam provavelmente laços afetivos com relação àqueles que já não serviam tão diretamente. Serviços pontuais para outros membros da casa, ao que parece, eram relativamente frequentes. Apresentamos aqui algumas informações que nos parecem centrais sobre tal personagem. Guy Brianson, mestre em teologia da ordem dos franciscanos no convento de Aurillac, de aproximadamente 57 anos. Nascido em Aurillac, teria estudado em Toulouse. Implicado em geomancia, astrologia e profecias que, em tese, seriam prejudiciais ao rei, teria sido ainda um dos confessores de Nemours, logo, alguém de muita confiança. Teria predito ainda o sucesso futuro do duque. Teria interpretado ainda, por meio da geomancia, os rumores sobre a morte do rei, algo tratado com grande suspeição pelos comissionados. Posteriormente, teria previsto a ruína de Nemours e sua reconciliação com o rei (Processo Nemours, p. 169, 221, 306, 307, 308, 309, 310, 313, 477).
  • 21
    Jacques Balsant, que anteriormente foi escudeiro e lugar-tenente de Begot de Perrice, capitão de Carlat, pelo senhor de Nemour, morador em Sier em Quercy, nativo de Murat em Carlade, de idade de cerca de 45 cinco anos por ocasião do processo (Processo Nemours, p. 129 e 130).
  • 22
    Apresentamos aqui algumas informações que nos parecem centrais sobre tal personagem. Guy Brianson era mestre em teologia da ordem dos franciscanos no convento de Aurillac, de cerca de 57 anos. Nascido em Aurillac, teria estudado em Toulouse. Implicado em geomancia, astrologia e profecias que, em tese, seriam prejudiciais ao rei, teria sido ainda um dos confessores de Nemours, logo, alguém de muita confiança. Teria predito ainda o sucesso futuro do duque. Teria interpretado ainda, por meio da geomancia, os rumores sobre a morte do rei, algo tratado com grande suspeição pelos comissionados. Posteriormente, teria previsto a ruína de Nemours e sua reconciliação com o rei (Processo Nemours, p. 169, 221, 306, 307, 308, 309, 310, 313, 477).
  • 23
    Interrogué comment il a sceu les choses dessudictes, dit que, durant qu’il estoit em la chambre ou il fut premierement mis (...) em laquelle chambre a une fenestre qui respond sur le fosse devers la porte Sanit Anthoine; a ung soir couchant il y avoit de sseigeneurs qui se pourmenoient hors la porte et y avoit de leus gens appuiéz sur le bort du fosse a l’endroit de la petite fenestre, lesquelz gens divisoient ensemble et disoient que’il avoit beaucoup de feuz dedans la bastille, et les autres disoient que c’estoient gens de monseigneurs de Nemoux (...)et l’um disoit que l’on em serchoit deux que’on ne pouvoit trouver et ne nommoient point maistre jehan Bonnet, Domingo, Michau unes autres (...). (Processo Nemours, p. 397 e 398).
  • 24
    (...) demande laquelle de ces deux questions, c’est a ssavoir la courtepoincte et les brayes au mareshal, estoit la plus doloreuse et propre a plustost et plus facilmente faire dire verité a ung crimineulx, et su ce on três pondui ceulx questionneur et sergens que c’estoti la question de la courte poiincte, et auregard de la question de brayes n’estoit guere schose et que’on baulloit comuneement a une femme et a umg enffant (...)
  • 25
    (...) a dit et depposé que vendredi derrenier passé ledict Nemoux en as prison au dict lieu de la Bastille luy dist que s’illuy vouloit aider a soy escchapper, qu ‘illuy donneroit Vim escuz et le feroit son maistre d’ostel; a quoy il qui parle, pource que monseigneur li visse roy luy avoit ordonné qui si ledit Nemoux luy parloit d’aucune chose, que’iloisct ce qu’illuy diroit pour savoir quel coraige avoit le dict Nemoux, demanda audict de Nemoux, comment se pourroit faire leditz eschappement; et icelluy de Nemoux luy respondit qu’il failloit trouver moien de rompre le plancher de dessus la prison ou lui estoit, par laquelle rompture il monteroit par dessus as caige au dessus du dicit plancher une corde XVV pas de long pour descendre dedans les fosséz d’icelle Bastille (...). (Processo Nemours, p. 262-268.)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2017
  • Aceito
    03 Jul 2019
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