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A autogestão iugoslava: caminhos e dilemas (1950-1991)

The Yugoslav self-management: paths and dilemmas (1950-1991)

RESUMO

Este artigo apresenta um panorama histórico sobre o sistema de autogestão desenvolvido na Iugoslávia, abarcando desde a sua introdução em 1950 até o seu desmantelamento concomitante à restauração capitalista e à desintegração do país nos turbulentos anos de 1988 a 1991. Destacamos os resultados econômicos positivos obtidos ao menos até a introdução da reforma laissez-faire de 1965, bem como a ambiciosa tentativa de remodelação do sistema nos anos 1970, gradativamente colocado em xeque ao longo da crise terminal dos anos 1980

Palavras-chave:
Iugoslávia; autogestão; socialismo

ABSTRACT

This article presents a historical overview about the self-management system developed in Yugoslavia, ranging from its introduction in 1950 until its dismantling concomitant with capitalist restoration and the country’s disintegration in the turbulent years from 1988 to 1991. We highlight the positive economic results obtained at least until the introduction of the 1965 laissez-faire reform, as well the ambitious attempt to reshape the system in the 1970s, gradually challenged throughout the terminal crisis of the 1980s.

Keywords:
Yugoslavia; self-management; socialism

A experiência iugoslava com a autogestão recebeu grande atenção internacional nos anos 1960 e 1970, o que se reflete em volumosa bibliografia com estudos de economistas, sociólogos, cientistas políticos e historiadores. Apesar do declínio do interesse pela autogestão a partir dos anos 1980 e da desintegração da Iugoslávia, o singular projeto socialista iugoslavo permanece como um terreno fértil para a reflexão teórica acerca de problemáticas contemporâneas (como a questão da economia solidária), além de continuar a suscitar releituras históricas, a partir de novas questões e do uso de fontes ainda pouco ou nada exploradas.

Com isso, pretendemos contribuir para uma retomada do tema da autogestão na Iugoslávia, apresentando nesse artigo uma síntese histórica do período de funcionamento do sistema de autogestão, desde a sua introdução em 1950 até o seu desaparecimento concomitante à restauração capitalista e à desintegração da Iugoslávia entre 1988 e 1991. Faremos notar o caráter dinâmico da autogestão iugoslava, referida num projeto socialista que envolvia, sobretudo, a vanguarda comunista, as demandas dos trabalhadores das distintas repúblicas e a ascensão de gerentes profissionais, crescentemente atraídos pela liberalização econômica e cada vez menos vinculados a ideais socialistas. O artigo está subdividido em cinco partes: a introdução da autogestão, a afirmação do liberalismo econômico, a última reforma da autogestão, desintegração iugoslava e restauração capitalista e a conclusão.

A introdução da autogestão

Após uma luta de libertação nacional que conduzira à reunificação dos “eslavos do sul” ante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, nascia a República Socialista Federativa da Iugoslávia, reunindo Eslovênia, Croácia, Sérvia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia1 1 A luta fora travada sobretudo pelos partisans, os guerrilheiros comunistas, e pelos chetniks, soldados monarquistas, com hegemonia política e militar dos primeiros. Os comunistas organizaram um Conselho Antifascista da Libertação Popular Iugoslava (Avnoj), que se constituiu no parlamento provisório que deu origem à República Federativa Popular da Iugoslávia, posteriormente renomeada República Socialista Federativa da Iugoslávia. Antes da ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, a “primeira Iugoslávia” era uma monarquia, fundada em 1918 sob o nome de Reino dos Servos, Croatas e Eslovenos, e renomeada Reino da Iugoslávia em 1929. Ver a respeito COGGIOLA (1999). . Inicialmente, sob a liderança de Josip Broz Tito, o partido comunista dedicara-se à reconstrução material de um país devastado pela guerra, orientando-se pelo modelo soviético de “economia de comando” e sacrificando o consumo em favor de uma alta taxa de industrialização. Todavia, já em 1948, Stalin rompera com os comunistas reunidos em torno de Tito, não apenas em função da resistência dos dirigentes iugoslavos a subordinarem-se aos desfavoráveis acordos econômicos e políticos propostos, mas sobretudo em razão do conflito de estratégias na geopolítica internacional da nascente Guerra Fria, em que a intrincada e controversa questão da federação balcânica parece ter sido central.

Com o rompimento, adveio o bloqueio econômico do Cominform e a abertura para a busca de uma “via iugoslava” para o socialismo, na qual o stalinismo figurava como uma espécie de antimodelo do qual a Iugoslávia tinha de se afastar definitivamente. É nesse contexto que se gestou e nasceu a autogestão iugoslava2 2 A palavra autogestão é a tradução literal da palavra servo-croata samoupravljanje (samo equivale ao prefixo grego auto e upravlje significa aproximadamente gestão), criada pelos iugoslavos para designar o seu novo sistema político-econômico-social. Contudo, de acordo com múltiplas apropriações e reconstruções teóricas, bastante intensas sobretudo nos anos 1960 e 1970, seu conteúdo torna-se polissêmico, podendo expressar uma miríade de experiências e concepções anteriores e posteriores ao sistema iugoslavo. Se, nas suas primeiras conceituações, insiste-se na ideia de gestão das empresas pelos próprios trabalhadores, logo se desenvolveram concepções amplas de autogestão, abarcando toda a organização política e social, daí as expressões “autogestão social” e “autogestão plena”. Massimo Follis aponta que seus elementos prefigurativos podem ser encontrados no pensamento anárquico, particularmente em Proudhon, no sindicalismo revolucionário europeu e norte-americano, no socialismo de guildas, na crítica trotskista da burocracia e, sobretudo, no movimento dos conselhos operários, com destaque para os escritos de Karl Korsch e Anton Pannekoek (FOLLIS, 2007, p. 74-75). A bibliografia a respeito da autogestão é vasta, mas podemos destacar ROSANVALLON (1976), GUILLERM; BOURDET (1975), GEORGI (2003), FERREIRA (2004), e FARIA (2011). Devemos sinalizar ainda que as ideias de democracia industrial e democracia participativa, caras à reflexão anglo-saxã, podem ser aproximadas às teorias de autogestão. É o caso de PATEMAN (1992). . Sumarizando as análises de diversos autores, pode-se dizer que sob determinadas circunstâncias externas (bloqueio econômico do Cominform e ruptura com Stalin no princípio da Guerra Fria) e internas (insatisfação popular num Estado multiétnico de raízes frágeis, disfunções da economia de comando e da organização burocrática, pressão salarial de sindicatos e trabalhadores altamente qualificados no âmbito de um projeto de rápida industrialização, suporte da tradição da zadruga e do “modelo esloveno”3 3 A zadruga é a família extensiva comunitária, unidade de base na comunidade rural que, possuindo em comum os meios de produção, produzia, consumia e deliberava conjuntamente sobre a propriedade e a vida da comunidade. Para Roberto Venosa, ela seria um elemento fundamental para explicar a introdução da autogestão, já que esta encontraria compatibilidade com as “concepções que uma grande parte da população possuía sobre as formas de organizar o trabalho” (VENOSA, 1979, p. 122-126). Já o “modelo esloveno” refere-se ao conceito de autogoverno político e iniciativa local aplicado na resistência da Eslovênia durante a ocupação nazista. O modelo esloveno “foi baseado no ‘poder do povo’ expresso por meio de assembleias locais de votantes. Eles elegiam um corpo executivo, o comitê de libertação do povo, a partir de delegados de ativistas políticos dentro da frente de libertação e criaram um fundo, um tesouro e princípios de taxação. A frente insistiu em controle civil de todas as questões econômicas, por conselhos locais independentes de comandantes militares; e distribuíram circulares ao longo da guerra para fazer propaganda para o máximo de iniciativa local e popular” (WOODWARD, 1995, p. 58). ) o grupo dirigente do Partido Comunista da Iugoslávia pôde encontrar na teoria marxista sobre a associação dos trabalhadores uma alternativa ao modelo vigente na URSS que aparecia como viável ideológica e pragmaticamente.

Após uma experiência-piloto com 215 empresas compreendendo 8.230 trabalhadores, nas quais foram introduzidos conselhos eletivos formais de trabalhadores, a Assembleia Nacional aprovou em 27 de junho de 1950 o que ficou conhecido como a lei sobre a autogestão dos trabalhadores, pela qual os meios de produção deixavam de ser formalmente propriedade do Estado, passando a ser propriedade social. Por meio de órgãos coletivos (conselhos operários e comitês de gestão) criados em cada empresa, os trabalhadores tornam-se, em tese, administradores de uma parcela da propriedade social global (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 57-58; MEISTER, 1970MEISTER, Albert. Où va l’autogestion yougoslave? Paris : Anthropos, 1970., p. 36-37).

Todavia, manteve-se uma relativa separação entre um corpo administrativo - o collegium (formado pelo diretor geral, diretores de departamentos, chefes de seção e supervisores) - e a base operária, que em tese teria o poder de governar a empresa, controlando as decisões da gerência profissional por meio do conselho operário, do comitê de gestão e da assembleia geral. Assim, enquanto a administração rotineira ficaria a cargo dos gerentes profissionais, as decisões estratégicas deveriam ser submetidas à deliberação e aprovação dos trabalhadores por meio dos órgãos de autogestão (ADIZES, 1977ADIZES, Ichak. Autogestión: la práctica yugoslava: el efecto de la descentralización sobre los sistemas de organización. México: Fondo de Cultura Económica, 1977., p. 75-89; ILO, 1962ILO (International Labour Office). Workers’ management in Yugoslavia. Genebra: La Tribune de Genève, 1962., p. 107).

Nos anos seguintes, o sentido da transformação político-econômica em curso fica mais claro com reformas que concedem cada vez mais autonomia administrativa e financeira às empresas, sob uma estrutura de planificação estatal apenas indicativa, e não mais centralizada e compulsória. Por sua vez, a condução da política macroeconômica continuou sendo uma atribuição do poder central (federal), que manteve uma lógica igualitária na sua política fiscal e nos estímulos à produção via fundos de investimento e concessão de créditos bancários, favorecendo as regiões e os setores menos desenvolvidos da economia iugoslava. Combinavam-se, assim, as diretivas gerais macroeconômicas dadas aos bancos com critérios de rentabilidade que promoviam a concorrência por créditos entre as empresas (MILENKOVITCH, 1971MILENKOVITCH, Deborah. Plan and market in Yugoslav economic thought. New Haven: Yale University Press , 1971., p. 102-104; SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 126).

As conquistas e os problemas do sistema de autogestão se exprimiram no Primeiro Congresso dos Conselhos Operários realizado em 1957. Organizado pelos sindicatos e presidido por Djuro Salaj, presidente da Confederação dos Sindicatos, o congresso adotou resoluções que marcaram uma inflexão importante nos direitos autogestionários, com reflexos duradouros nos desenvolvimentos seguintes da política iugoslava. Por um lado apontava-se para a necessidade de melhor retribuir os esforços dos trabalhadores, aumentando o seu nível de vida e moderando o ritmo dos investimentos, e por outro se insistia que a via mais adequada para atingir a esse objetivo era conceder maior autonomia financeira às empresas e reformular o sistema salarial, recompensando-se materialmente tanto quanto possível o aumento de produtividade (Première Congrès des Conseils Ouvriers, 1957Première Congrès des Conseils Ouvriers. Belgrade: Edition du Conseil Central de la Confédération des Syndicats de Yougoslavie, 1957., p. 12 e p. 23 e 39).

Não obstante, nas resoluções adotadas no Congresso insistia-se no princípio de igualdade de condições para os diversos coletivos de trabalho no que se refere às suas possibilidades de remuneração. Isto é, queria-se que tanto quanto possível a remuneração dependesse exclusivamente do resultado da produção, da produtividade do trabalho e do sucesso alcançado na gestão econômica, eliminando-se as diferenças oriundas da posse de “meios de base” e das disparidades na formação de preços (Première Congrès des Conseils Ouvriers, 1957Première Congrès des Conseils Ouvriers. Belgrade: Edition du Conseil Central de la Confédération des Syndicats de Yougoslavie, 1957., p. 48-49).

De fato, existia um claro conflito em torno do critério de remuneração do trabalho. Nos debates que antecederam a Constituição de 1963Constitution of the Socialist Federal Republic of Yugoslavia. Beograd: Federal Executive Council, 1963., havia duas opiniões sobre a aplicação do princípio “a cada um de acordo com seu trabalho”: uma o traduzia como “a cada um de acordo com a intensidade, o esforço e o sacrifício no seu trabalho”; a outra, sustentada principalmente nas regiões mais desenvolvidas industrialmente, o entendia como “a cada um de acordo com os resultados (isto é, a produtividade) do seu trabalho” (BIĆANIĆ, 1973BIĆANIĆ, Rudolf. Economic policy in Socialist Yugoslavia. London: Cambridge University Press, 1973., p. 111). Evidentemente, a diferença é crucial. Quando o produto é tornado mercadoria, o resultado do trabalho não é diretamente mensurável - ele é mediado pelo mercado. Assim, todos os imperativos do mercado acabam por determinar os ganhos pessoais. A Constituição de 1963Constitution of the Socialist Federal Republic of Yugoslavia. Beograd: Federal Executive Council, 1963. acabou por estabelecer uma fórmula de compromisso (ver os artigos 7, 11, 12, 121 e 122), usando ambas as interpretações, embora a política governamental tenha dado ênfase à remuneração pela produtividade e pelos ganhos da empresa no mercado.

Tratando da modernização do processo de produção, o Congresso refletia o ímpeto da Confederação dos Sindicatos e dos altos dirigentes da Liga dos Comunistas em provocar ao máximo o aumento da produtividade, valendo-se de estímulos materiais em nível individual, mesmo que ao custo da igualdade substantiva no interior dos coletivos de trabalho. Assim, o Congresso “convidava” os conselhos operários a

assegurar, pela avaliação do rendimento, pela introdução do estímulo individual e coletivo à aplicação e à produtividade assim como pelo sistema dos prêmios, as diferenciações de salários segundo as qualificações e o rendimento obtido no trabalho; a proceder à avaliação analítica dos postos de trabalho e a servir-se dela para a organização do trabalho; e, em particular, a aperfeiçoar o sistema de repartição dos lucros no seio dos coletivos segundo o rendimento obtido e o trabalho realizado por cada produtor. (Première Congrès des ConseilsOuvriers, 1957Première Congrès des Conseils Ouvriers. Belgrade: Edition du Conseil Central de la Confédération des Syndicats de Yougoslavie, 1957., p. 51)

Não obstante, a tendência geral entre os trabalhadores era aspirar ao igualitarismo salarial4 4 Se antes da Segunda Guerra Mundial a gama salarial recobria a diferença de 1 a 16, com os primeiros anos da República Socialista a diferença caiu para 1 a 3,5 (SAMARY, 1988, p. 98). . Isso era visto como um problema para as autoridades, que estimavam serem importantes diferenciações salariais para estimular a qualificação, o progresso técnico e o aumento da produtividade. Com isso, a partir de 1958, sob a pressão de Tito, dos sindicatos e das comunas contra o igualitarismo salarial, o princípio da diferenciação das rendas começa a se impor, aos poucos convencendo os operários da necessidade de melhor remunerar os especialistas para assegurá-los nas empresas (MEISTER, 1964MEISTER, Albert. Socialisme et autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Seuil, 1964., p. 321). Após mais de dois anos de resistência, em 1961 as normas de bonificação por produtividade são adotadas, ainda a contragosto de muitos operários, que preferiam a segurança de uma remuneração por tempo de trabalho (MEISTER, 1970MEISTER, Albert. Où va l’autogestion yougoslave? Paris : Anthropos, 1970., p. 62).

Seguindo a orientação do 1º Congresso dos Conselhos Operários, em 1958 instaura-se um novo sistema de partilha da renda, com o qual se pretendia ter abolido o sistema salarial. Os trabalhadores não mais recebiam salários: eles assumiam os riscos da gestão e ao mesmo tempo controlavam a renda líquida da empresa (após deduções com matéria-prima, energia, depreciação, taxas, contribuição com o fundo de investimento geral etc.), definindo qual parte seria apropriada como renda pessoal, e qual parte iria para os fundos da empresa. Assim, em torno de 40% da renda bruta da empresa ficava em tese sob o controle dos trabalhadores, por meio de seus órgãos de autogestão. Quanto à distribuição dessa renda interna à empresa, a tendência observada foi de 70% para renda pessoal e 30% para os fundos da empresa (BIĆANIĆ, 1973BIĆANIĆ, Rudolf. Economic policy in Socialist Yugoslavia. London: Cambridge University Press, 1973., p. 107-110; SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 144 e 154).

Ainda de acordo com as resoluções do Congresso, os coletivos operários deveriam ampliar sua ação. Significativamente, estimava-se que a contratação, a demissão, a manutenção da disciplina no trabalho e a tomada de medidas disciplinares fossem tanto quanto possível uma questão a ser resolvida pelos próprios produtores, por meio de seus órgãos representativos (Première Congrès des Conseils Ouvriers, 1957Première Congrès des Conseils Ouvriers. Belgrade: Edition du Conseil Central de la Confédération des Syndicats de Yougoslavie, 1957., p. 52).

É assim que já em 1957, com a Lei sobre as Relações de Trabalho, a prerrogativa de contratar e de demitir foi transferida do diretor da empresa para o seu Conselho Operário, e posteriormente para as unidades constituintes, com a aprovação submetida ao conjunto dos trabalhadores da unidade produtiva nas reuniões mensais5 5 Diretores e dirigentes mostraram-se bastante temerosos sobre a perda de controle dos diretores sobre o coletivo de trabalho. Segundo a OIT, “deve ser enfatizado que o presente sistema de autogoverno nas relações de trabalho, pelo qual os poderes que normalmente fazem parte das prerrogativas da gerência são transferidos para o coletivo e seus órgãos de gestão, não se instituiu sem suscitar apreensão e mesmo oposição entre os especialistas e algumas das principais lideranças na vida política e econômica do país. Mesmo alguns proeminentes defensores dos princípios da gestão operária não dissimularam seu temor de que a autoridade de executivos, e especialmente do próprio diretor, seria dissolvida sob o impacto das mudanças que levaram à aprovação da presente Lei sobre as Relações de Trabalho em dezembro de 1957. Temia-se que um tão extenso autogoverno pudesse minar completamente a responsabilidade do diretor pela gestão eficiente, uma vez que ele não pudesse escolher seus subordinados” (ILO, 1962, p. 202). (ILO, 1962ILO (International Labour Office). Workers’ management in Yugoslavia. Genebra: La Tribune de Genève, 1962., p. 180-185; SUVIN, 2016SUVIN, Darko. Splendour, Misery, and Possibilities: An X-Ray of Socialist Yugoslavia. Leiden: Brill, 2016.). Esta importante prerrogativa pertencente aos trabalhadores nas empresas da autogestão significou uma fortíssima barreira contra demissões até a restauração capitalista6 6 Em 1969, apenas 19.983 pessoas tiveram fim no seu emprego, e dessas 7.142 eram devido ao fim do contrato, 4.084 eram devido ao absenteísmo no trabalho, 3.626 pela própria vontade do trabalhador, e apenas 1.719 foram demitidas da fábrica (WHITEHORN, 1975, p. 210). Pesquisadores do Banco Mundial destacaram essa lei como um mecanismo de salvaguarda contra a demissão econômica: “Os trabalhadores só podem ser demitidos, contudo, em casos de comportamento criminoso ou má conduta grave. Se os serviços de trabalhadores já não são mais necessários, eles não podem ser demitidos. A OBTA [Organização de Base do Trabalho Associado], a empresa ou o fundo solidário de um arranjo mais amplo precisa provê-los com um emprego substituto equivalente. A combinação da provisão de que todos os trabalhadores partilham do rendimento residual obtido e a exclusão de demissões (à exceção de casos de falta grave) leva a um padrão peculiar de ajuste às flutuações nos negócios: as empresas não se ajustam alterando o número de trabalhadores recebendo um salário definido; elas mudam os níveis de renda da força de trabalho inalterada” (SCHRENK; ARDALAN; TATAWY, 1979, p. 55-56). . Eram habituais arranjos entre empresas com trabalho excedente e empresas em expansão, carentes de mão de obra, uma absorvendo o excedente da outra (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 299 e 306-309).

Merece também destaque o número de trabalhadores que participou nos conselhos operários. A OIT estimou que em torno de 800.000 trabalhadores tivessem sido membros de órgãos de gestão operária até 1962 (ILO, 1962ILO (International Labour Office). Workers’ management in Yugoslavia. Genebra: La Tribune de Genève, 1962., p. 192 e 303). Ainda que se trate de uma parcela minoritária, o percentual está longe de ser desprezível. Se no setor agrícola a participação não ultrapassou os 7%, no setor industrial ela chegou a 20%, e no setor terciário alcançou o alto índice de 45% (VENOSA, 1981VENOSA, Roberto. A evolução da participação nas organizações autogeridas iugoslavas. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, v.21, n.1, p. 47-54, 1981., p. 48-49).

Enquanto a solidariedade e o avanço do controle operário podem ser assinalados como traços positivos do sistema de autogestão tal como funcionara nos anos 1950, os resultados econômicos não foram menos satisfatórios. Muito pelo contrário, do ponto de vista econômico global, os números da Iugoslávia nesse período são bastante impressionantes. Tendo uma das taxas de crescimento industrial mais alta do mundo (13,2% no período de 1950-1960 e 11,4% no período de 1960-1964), o Produto Social mais do que dobrou entre 1953 e 1964, e o consumo aumentou à taxa anual de 9,3% entre 1957 e 1961, com destaque para os bens de consumo duráveis (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 120-121; HORVAT, 1976HORVAT, Branko. The Yugoslav Economic System: the first labor-managed economy in the making. Nova Iorque: International Arts and Sciences Press, 1976., p. 47). A produtividade também cresceu significativamente: entre 1947 e 1952 precisava-se de 10 dinares de investimento bruto nos fundos fixos para fazer aumentar o produto social em 1 dinar, já entre 1953 e 1963 eram suficientes 3 dinares para obter o mesmo resultado7 7 Uma das consequências importantes do aumento da produtividade para o mundo do trabalho foi a progressiva redução da jornada de trabalho. Em 1963, a jornada de trabalho semanal oficial foi reduzida de 48 para 42 horas, entrando para o padrão dos países europeus mais desenvolvidos (DUDA, 2010, p. 311). Depois, em 1965, para 40 horas (com uma hora extra permitida); em seguida, em 1966-1969, para 38 horas (mais uma hora extra), e finalmente para 36 horas (mais uma hora extra) em 1970 (WOODWARD, 1995, p. 272). Garantia-se também a aposentadoria com pensão plena à idade de 60 anos para os homens e 55 anos para as mulheres, com um tempo de trabalho mínimo respectivamente de 20 e 15 anos (ou após 40 anos de trabalho para homens e 35 para mulheres). Após 11 meses de trabalho, todos tinham direito a férias remuneradas, variando normalmente de 14 a 30 dias de acordo com o tempo de trabalho e as profissões (excepcionalmente, as férias podiam durar até 60 dias) (DRULOVIĆ, 1973, p. 108-109). (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 122). O “milagre iugoslavo”8 8 Embora com problemas de desequilíbrios entre setores e regiões, com excesso de investimentos e gargalos, a maior parte das ambiciosas metas do plano quinquenal de 1957-1961 foi não apenas atingida como também ultrapassada já em 1960 (SAMARY, 1988, p. 129-143; HORVAT, 1976, p. 47). O Produto Social cresceu 62% entre 1957 e 1960 (a uma taxa de 12,7% por ano, comparada à meta de 9.5%), e o consumo privado de bens e serviços aumentou em 49% (a taxa anual de 10,5% contra a expectativa de 7.3%). ficava atrás apenas do “milagre japonês”, ostentando a segunda maior taxa de crescimento do mundo nesse período (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 102).

Podemos observar na Tabela 1 (SCHRENK; ARDALAN; TATAWY, 1979SCHRENK, Martin; ARDALAN, Cyrus; TATAWY, El; Nawal A. (coord.). Yugoslavia: self-management socialism and the challenges of development. Report of a mission sent to Yugoslavia by the World Bank. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1979., p. 32) como os indicadores macroeconômicos atestam o sucesso do sistema de autogestão, sobretudo até 1964. No período seguinte (sobre o qual trataremos em seguida), houve significativa queda nesses indicadores, fruto de mudanças importantes na orientação político-econômica e também de dificuldades externas e internas dificilmente evitáveis. Mesmo assim, o balanço geral resta bastante positivo. Como ressaltam diversos autores, este balanço sugere ao menos que a performance econômica do sistema de autogestão não fica atrás da performance das economias em desenvolvimento no sistema capitalista.

Tabela 1:
Taxas de crescimento de indicadores macroeconômicos, 1954-1975 (percentuais)

Além da política de investimentos (com grande sacrifício do consumo) e do estímulo à produtividade com a introdução do sistema de autogestão, o acelerado desenvolvimento econômico pode ser atribuído em parte ao fluxo de crédito dos EUA (e de outros países do bloco capitalista) aberto desde o rompimento da Iugoslávia com a URSS de Stalin. Nos anos 1950, fontes externas proveram em torno de 33% dos fundos para investimento doméstico. Somente os EUA forneceram um total de 598,5 milhões de dólares em assistência econômica entre 1949 e 1955. Por outro lado, a crescente dependência de empréstimos estrangeiros e de importação de maquinaria e materiais intermediários para a produção doméstica tornou a economia iugoslava bastante suscetível aos reveses externos. Assim, enquanto parte do fulgurante crescimento dos anos 1950 se explica em razão do forte aporte de capital externo, as recessões dos anos 1960 e, com toda a evidência, a grave crise econômica dos anos 1980 são diretamente determinadas pelas quedas na economia estadunidense e na Europa ocidental (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 224-226; RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 44-47; WILSON, 1979WILSON, Duncan. Tito’s Yugoslavia. London: Cambridge University Press , 1979., p. 84). De todo modo, a política de não alinhamento se constituiu em uma linha central do desenvolvimento iugoslavo. Com grande esforço, mantinha-se a relativa independência política, econômica e militar, conferindo aos iugoslavos o acesso aos mercados do ocidente e do oriente, o financiamento à sua rápida industrialização, a importação de tecnologia e a manutenção da sua “via autogestionária”.

O sucesso econômico e o bom termo das relações internacionais da Iugoslávia contribuíram para fortalecer a convicção na “via iugoslava para o socialismo”, dando centralidade ainda maior para o sistema de autogestão associado ao projeto comunista de findar com a necessidade do Estado. Nesse sentido, os anos 1957 e 1958 marcam uma consolidação da tese da autogestão e ao mesmo tempo uma inflexão para a descentralização e a ampliação do escopo das relações de mercado - entendido como mecanismo necessário (embora temporário) para se combater o “intervencionismo estatal burocrático”.

Paradoxalmente, o sucesso econômico obtido sob um modelo que mantinha a política macroeconômica sob a tutela do poder central (federal) parece ter contribuído para suscitar por um lado uma aspiração por autonomia por parte dos órgãos da autogestão, acompanhada de um aumento de poder dos gerentes de empresa, e por outro a defesa da descentralização política e fiscal, especialmente por parte das repúblicas mais ricas: Eslovênia e Croácia. O debate econômico sobre a estratégia de investimentos mais adequada ao desenvolvimento global da Iugoslávia expressava, implícita e explicitamente, uma crescente disputa entre as repúblicas do norte, Eslovênia e Croácia, e as repúblicas do sul, tendo à frente a Sérvia (WILSON, 1979WILSON, Duncan. Tito’s Yugoslavia. London: Cambridge University Press , 1979., p. 140-148). Ainda que houvesse economistas “desenvolvimentistas” no norte e “liberais” no sul, a predominância e a apropriação política do debate econômico alinharam os “liberais” com o norte e os “desenvolvimentistas” com o sul.

Apesar da relativa pobreza, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia oscilavam na sua posição sobre a descentralização política e econômica. Ellen Comisso comenta sobre a capacidade de lideranças das repúblicas mais desenvolvidas para conseguirem apoio de outras lideranças em áreas mais pobres, numa aliança contra a suposta política hegemonista da “grande Sérvia”9 9 Rusinow sublinha que os liberais eslovenos e croatas foram hábeis no discurso, mudando a ênfase da “descentralização” para a “desestatização”, aproveitando da desconfiança das demais repúblicas com relação às ambições da Sérvia, e utilizando-se de evidência estatística para convencer macedônios e bósnios de que somente os montenegrinos (tradicionalmente próximos à Sérvia) eram consistentemente beneficiados pela redistribuição central. Já em 1964 jovens líderes macedônios, como Krsto Crvenkovski e Kiro Gligorov, eram declaradamente favoráveis à “desestatização” (RUSINOW, 1977, p. 135-136). (COMISSO, 1979COMISSO, Ellen Turkish. Workers’ Control under Plan and Market: Implications of Yugoslav Self-Management. New Haven: Yale University Press, 1979., p. 70-71). Com isso, os grupos defensores da descentralização política e econômica passaram a predominar, o que colocou em xeque o modelo de planificação macroeconômica centralizada em nível federal pela Liga dos Comunistas10 10 No que se refere às repúblicas, com a maior autonomia orçamentária é significativa a diminuição dos critérios igualitários de redistribuição fiscal e de investimentos nos diferentes ramos da produção, embora sempre tenham se mantido políticas redistributivas. É claro que o esforço de convencimento teórico nesse debate entre repúblicas não era o único meio de pressionar o governo federal. As burocracias e lideranças locais frequentemente jogavam com os sentimentos nacionalistas (que se supunham superados) para amealhar suporte popular e usá-lo como ferramenta de pressão nas negociações com as autoridades centrais (RUSINOW, 1977, p. 251-252). (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 122).

Como o discurso predominante identificava autogestão com autonomia das unidades produtivas, descentralização, desestatização e, crucialmente, despolitização da economia, é o mercado que aparece como agente racionalizador e democrático. Assim, em 1961 uma reforma mercantil é tentada e no ano seguinte abortada, devido aos resultados econômicos desastrosos11 11 Tratou-se de uma liberalização do comércio exterior, com a desvalorização do dinar, visando a uma maior eficiência da organização do mercado e a um aumento da qualidade dos bens produzidos. E, além disso, do fim do controle sobre a renda pessoal (“salários”) por parte dos sindicatos. O resultado foi uma queda pela metade da taxa de crescimento industrial, aumento das importações com estagnação das exportações e um aumento das rendas pessoais muito além da produtividade. Para se recuperar da recessão gerada, o governo injetou muito dinheiro na economia, do que resultou uma retomada da alta taxa de crescimento. O efeito colateral, contudo, veio em 1964 com uma alta taxa de inflação e um grande déficit na balança de pagamentos (HORVAT, 1976, p. 20-21). .

Apesar do insucesso da reforma de 1961 e das críticas de economistas avessos à liberalização da economia, um consenso entre os principais dirigentes do país se formou sob a indicação de economistas que insistiam que as medidas liberalizantes eram necessárias para tornar a economia iugoslava competitiva no mercado internacional, aumentando a produtividade, a qualidade e as exportações dos produtos (HORVAT, 1976HORVAT, Branko. The Yugoslav Economic System: the first labor-managed economy in the making. Nova Iorque: International Arts and Sciences Press, 1976., p. 22-25).

A afirmação do liberalismo econômico

A forma de descentralização estabelecida com a Constituição de 1963 e com a reforma de 1965 foi, em vários aspectos, desestruturadora dos mecanismos de equilíbrio do desenvolvimento, atomizando importantes decisões de investimento12 12 Houve uma coalização de interesses, ainda pouco diferenciados, que pressionou pelas transformações importantes que o sistema político-econômico iugoslavo sofreu ao longo dos anos 1960. A posteriori, pode-se perceber que o grupo que lutou contra o centralismo mostrava duas tendências, uma que aspirava a um processo de decisões pluralístico por meio de mecanismos essencialmente sindicalistas ou corporativistas, por delegados escolhidos pelos trabalhadores, agrupados de acordo com funções econômicas e sociais. Essa tendência encontrou expressão na Constituição de 1963. A outra tendência, que se expressou nas emendas seguintes, aspirava ao processo de decisões pluralístico numa base territorialmente focada em grupos étnicos (RUSINOW, 1977, p. 254). Embora ambas as tendências tenham contribuído para o avanço da liberalização econômica, a diferenciação é importante, pois será a segunda tendência que em longo prazo ganhará força, por conseguir arregimentar e canalizar as aspirações populares para propósitos nacionalistas. . Por exemplo, com a reforma de 1965, a comuna deixa de participar junto às empresas da nominação dos diretores, da definição dos salários e das gratificações, passando a se limitar às áreas da saúde, da cultura e da educação. Sobretudo, perde o poder de planificar o desenvolvimento, pois deixa de gerir os fundos de investimentos que lhe conferiam uma função econômica e política importante junto às empresas locais13 13 Alegava-se que tais medidas eram necessárias para fazer frente ao chamado “localismo econômico”. Um dos fenômenos mais criticados na imprensa iugoslava era o das “fábricas políticas”, criadas e mantidas com o apoio do poder local, a despeito de seu caráter não lucrativo, já que a comuna se beneficiava das taxas e dos empregos criados em seu território (RUSINOW, 1977, p. 128). (MEISTER, 1970MEISTER, Albert. Où va l’autogestion yougoslave? Paris : Anthropos, 1970., p. 25-27).

Já em 1964 os Fundos Sociais de Investimento e o Fundo Geral de Investimento foram abolidos, sendo seus recursos transferidos aos bancos. O Fundo de Ajuda ao Desenvolvimento, criado em substituição, tinha muito menos recursos que os fundos anteriores. Assim, a acumulação financeira foi descentralizada para as empresas (em grande medida aliviadas de contribuições fiscais) e para o sistema bancário (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 167-168; WILSON, 1979WILSON, Duncan. Tito’s Yugoslavia. London: Cambridge University Press , 1979., p. 151).

Os bancos passaram também por uma reforma que lhes permitiu maior autonomia na política de crédito, limitando o poder das “comunidades sócio-políticas” e do plano econômico do governo federal. A gestão das instituições bancárias tornou-se um misto de princípios de autogestão com princípios de interesse privado mercantil14 14 Em cada instituição bancária e comercial havia uma Assembleia Geral, em que os membros fundadores (empresas sozinhas, ou juntamente a “comunidades sociopolíticas”) tinham direito de voto em proporção aos fundos investidos (com o limite de 10% das vozes para cada membro). Quanto aos representantes das “comunidades sociopolíticas” (comunidades territoriais, como comunas, distritos e repúblicas), o limite era de 20% das vozes. Já os bancários podiam deter até 10% dos votos. O órgão executivo, composto de experts e do diretor do banco, era o Comitê de Crédito (SAMARY, 1988, p. 168-169). De acordo com Wilson, nos grandes bancos (impulsionados por processo de fusão) o poder dessa gerência profissional era maior (WILSON, 1979, p. 176-177). . A lógica nesse sistema favorecia os grandes “acionistas”15 15 A expressão “acionista” deve ser entendida como uma analogia, dado que não havia ações a serem comercializadas num mercado de capitais. De fato, a recusa das autoridades iugoslavas em adotar um mercado de capitais era alvo de severas críticas de diversos autores que viam na adoção do mercado para os fatores de produção “capital” e “trabalho” a solução para todos os problemas econômicos enfrentados. Como jamais fora introduzido um mercado de capitais nem um mercado de trabalho (a força de trabalho não era mercadoria a ser realocada por meio de demissões), parece haver algum equívoco em falar em “socialismo de mercado” para o período 1965-1971. e o comitê executivo dos bancos:

Até lá [1971], parece antes que as relações de força financeiras tenham desempenhado um amplo papel entre os membros dos bancos: alguns poderosos “acionistas” tendo um papel determinante face à infinidade dos pequenos portadores de títulos sem poderes - além disso, com um peso decisório importante do comitê de gestão dos bancos. (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 196)

Woodward pontua que

Em todo caso, o sistema de proporcionalidade na tomada de decisão deu aos grandes produtores com grandes contas a influência primária sobre a política bancária. Como membros dos conselhos de administração dos bancos, os gerentes das grandes empresas eram frequentemente pessoalmente (e politicamente, por meio de membros do partido ou de conexões) vulneráveis à pressão política de lideranças nas repúblicas para tomar decisões ditas necessárias para proteger a economia da república, ao invés de decidir apenas com critérios bancários. (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 230)

Em suma, embora os membros fundadores dos bancos não pudessem receber dividendos como renda pessoal, sendo obrigados a reinvestir nos fundos de investimento, não havia controle social sobre esses fundos, que portanto poderiam beneficiar injustificadamente determinadas empresas em detrimento de outras (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 168-170). Como destaca Meister, a reforma pró-liberalismo econômico de 1965 é marcada pela reabilitação do lucro e do dinheiro como medida de valores; autonomia das empresas e substituição do plano econômico federal por mecanismos mais leves de intervenção; fim da fixação administrativa dos preços e das subvenções de todas as sortes; desvalorização do dinar e integração do país em todas as formas de cooperação internacional16 16 Woodward enfatiza o peso da adequação da Iugoslávia às exigências do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio; General AgreementonTariffsand Trade, em inglês) e às orientações do FMI. A autora aponta que desde 1958 os liberais iugoslavos pressionaram pelas mudanças liberalizantes da economia em busca de acesso aos mercados ocidentais e ao financiamento internacional (WOODWARD, 1995, p. 222-259). (MEISTER, 1970MEISTER, Albert. Où va l’autogestion yougoslave? Paris : Anthropos, 1970., p. 268).

O resultado econômico imediato foi negativo. Embora a renda dos trabalhadores tenha aumentado com a forte redução da fiscalidade estatal sobre as empresas (de 49% para 29% do rendimento líquido das empresas), a situação econômica geral deteriorou-se. Em 1965, os preços aumentaram em 24% com relação ao ano anterior, fazendo crescer significativamente o custo de vista da população (com um aumento de 32% nos preços agrícolas e 26% nos transportes). Ante a elevação da taxa de inflação, o governo tomou medidas deflacionistas, restringindo o crédito para consumo e investimento, além de adotar emergencialmente o congelamento de preços. Com isso, a inflação foi temporariamente contida, mas adveio um ciclo de deflação com estagnação e crescimento do desemprego. Então, do início de 1965 até a metade de 1967, a taxa anual de crescimento industrial afundou de 12% para -1%. As empresas manufatureiras mais prósperas enfrentaram dificuldades com o forte aumento de 45% dos preços de matérias-primas e semiprocessados, enquanto as indústrias menos prósperas entraram em crise, produzindo demissões (sobretudo de mulheres e jovens). Em resumo, o déficit da balança de pagamentos aumentou, a taxa de poupança diminuiu, as perdas e os endividamentos das empresas aumentaram, o aumento da produtividade do trabalho foi ligeiramente retardado e o desemprego cresceu (HORVAT, 1976HORVAT, Branko. The Yugoslav Economic System: the first labor-managed economy in the making. Nova Iorque: International Arts and Sciences Press, 1976., p. 25-26; WILSON, 1979WILSON, Duncan. Tito’s Yugoslavia. London: Cambridge University Press , 1979., p. 155-158). Além da recessão e do desemprego, registrou-se o aumento das desigualdades sociais (um efeito colateral já esperado pelos defensores da reforma econômica, mas que seria um mal menor diante dos benefícios econômicos generalizados que adviriam).

Samary destaca quatro fatores políticos que tiveram peso no sentido da liberalização econômica que culminou com a reforma mercantil de 1965: a chegada da tecnocracia ao poder político e da economia ao político (quer dizer, economistas dominando o debate político), o peso das Repúblicas ricas nas questões nacionais, o conflito autogestão/plano administrativo e as pressões exteriores (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 145). No que se refere à chamada tecnocracia, a sua força político-econômica se (re)produziu tanto na sua atuação legislativa17 17 Sobre o crescente envolvimento dos gerentes de empresa com a vida parlamentar e partidária, ver (PROUT, 1985, p. 54-55) e COHEN (1989, 192-194). quanto no interior das empresas, que passaram por um processo de modernização pressionado pela abertura à competição externa. Esta tecnocracia era formada por experts e por gerentes profissionais de perfil distinto dos antigos diretores de empresa dos anos 1950. Houve uma evidente renovação nas empresas, com diretores mais jovens e frequentemente mais escolarizados (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 144).

Vale pontuar que não havia um controle significativo, centralizado e uniforme da Liga dos Comunistas sobre as atividades internas às empresas. Isso fica bastante claro dado os frequentes conflitos e desacordos entre os diversos segmentos da Liga (membros que trabalhavam na empresa, incluindo diretores, e membros que eram autoridades locais ou regionais ou ainda federais), além da dificuldade em fazer valer as orientações gerais do governo (como bem ilustra a tendência ao aumento das rendas pessoais para além do aumento da produtividade) (DIRLAM; PLUMMER, 1973DIRLAM, Joel B. e PLUMMER, James L. An introduction to the Yugoslav economy. Columbus: Charles E. Merrill Publishing, 1973., p. 52-53). Ademais, vários são os estudos sobre a percepção da distribuição do poder interno às empresas que apontam para a fraca influência da Liga relativamente ao poder dos diretores, embora organizações como sindicatos e comitês de fábrica da Liga atuassem nos bastidores para definir acordos por fora dos órgãos da autogestão. Deve-se observar ainda que muitos dos mais influentes membros dos conselhos operários e dos comitês de gestão eram comunistas que acumulavam cargos na Liga ou em outras organizações sócio-políticas, ou ainda no aparelho governamental da comuna. Assim, as hierarquias do partido, da empresa e do Estado cruzavam-se e reforçavam-se mutuamente, produzindo oligarquias em diversos níveis, internas e externas às empresas, derrogando o poder formal dos órgãos da autogestão e da base operária da Liga dos Comunistas (CARTER, 1982CARTER, April. Democratic reform in Yugoslavia: the changing role of the party. London: F. Pinter, 1982., p. 232-243).

Portanto, é de se supor que a escalada do poder tecnocrático não tenha significado uma substituição do poder político dos quadros dirigentes, pois esses, em parte, consentiram com a virada mercantil. Provavelmente houve uma disputa no seio do alto escalão da Liga, sendo que as principais lideranças políticas, como Tito, Edvard Kardelj e Vladimir Bakarić, decidiram por uma aliança com os tecnocratas e com aqueles favoráveis à liberalização da economia, visando à aceleração da industrialização, entendida como base fundamental para o desenvolvimento da “face política” do socialismo, isto é, a autogestão (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 145).

Samary supõe que, no contexto de aumento das aspirações democráticas provocadas pela introdução da autogestão, os dirigentes iugoslavos optaram pela descentralização econômica como estratégia de manutenção do poder político:

uma tal descentralização era mesmo a condição de um monopólio de poder político estável: ela iria legitimar mais um regime que se definisse como anti-stalinista e autogestionário. E ela iria atomizar a classe operária, desviando suas aspirações de gestão para objetivos locais. Assim fazendo, o poder respondia também às pressões crescentes dos tecnocratas, das Repúblicas ricas e do mercado mundial - enquanto oferecia aos camponeses um “enriqueçam” supostamente para compensar o traumatismo da coletivização forçada e das intimidações burocráticas. (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 147; grifos da autora).

Para que se compreenda a dinâmica de conflitos e alianças entre os dirigentes da Liga dos Comunistas e os gerentes de empresa é importante sublinhar que havia de fato um setor da Liga, cujo núcleo era o topo da sua hierarquia (principalmente Tito, Edvard Kardelj e Vladimir Bakarić), que atuava real ou presumidamente como vanguarda revolucionária e cuja legitimidade enquanto tal baseava-se necessariamente em algum tipo de compromisso com um projeto socialista, o que o distinguia dos gerentes de empresa, mesmo que estes tenham assumido também a atividade partidária e parlamentar. É ainda nesse sentido que se pode destacar o papel da mudança na composição da Liga dos Comunistas para a derrocada do próprio projeto socialista iugoslavo, com a significativa e crescente penetração do poder gerencial. Ilustra bem esta mudança o perfil de grandes lideranças do partido nos anos 1980, que se mostraram particularmente incapazes ou descompromissadas com a defesa do socialismo e da autogestão. Por exemplo, no complexo industrial de Rakovica, na Sérvia, Ivan Stambolić (chega à presidência da república da Sérvia em 1986) e Slobodan Milošević (chega à presidência da Sérvia em 1989) trabalharam na Tehnogas (companhia de extração de gás natural), o primeiro como gerente executivo e o segundo como diretor geral (MUSIĆ, 2016MUSIĆ, Goran. ‘They came as workers and left as Serbs’: The role of Rakovica’s blue-collar workers in Serbian social mobilizations of the late 1980s. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.). Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge , 2016b, p. 132-154.b).

É importante notar ainda que a profissionalização da política acompanha o processo de profissionalização da gerência empresarial. O fato de que o topo da burocracia dirigente optou por bloquear a democratização da Liga dos Comunistas, mesmo que isso lhe custasse uma relativa perda de poder diante das novas tendências fragmentadoras e “tecnocráticas”, revela bastante sobre a lógica da estratégia vanguardista. Podemos assinalar, nesse sentido, a recusa de Vladimir Bakarić para aprovar uma proposta, surgida no 6º Congresso da Liga dos Comunistas da Croácia em dezembro de 1968, que defendia que – do total de membros dos fóruns e órgãos da Liga dos Comunistas fossem comunistas dos coletivos de trabalho nas esferas econômica e social que continuassem a exercer seus trabalhos, ou seja, trabalhadores que efetivamente trabalhassem, seja nas fábricas ou nos serviços. Com a insistência de Bakarić, a maioria do plenário desaprovou a moção (COHEN, 1989COHEN, Lenard J. The Socialist Pyramid: elites and power in Yugoslavia. Oakville: Mosaic Press, 1989., p. 406-407).

Finalmente, Musić aponta que a classe trabalhadora interpretou o movimento formal para a descentralização econômica como um aumento no seu próprio poder em comparação com as situações anteriores (MUSIĆ, 2008MUSIĆ, Goran. 1968 Movements in Belgrade and Mexico City: A Comparative Analysis. Master Tesis, Universität Wien, Universität Leipzig, Vienna, 2008., p. 38). Houve, portanto, praticamente um consenso entre as principais forças políticas em favor da descentralização econômica que prometia autonomia aos conselhos operários, racionalização mercantil aos tecnocratas e liberdade às repúblicas.

Todavia, isso não significa ausência de conflito entre essas forças. Até a desintegração da Iugoslávia, várias são as manifestações de descontentamento dos diferentes grupos sociais e correntes políticas (os nacionalistas, os centralistas, os operários, os estudantes etc.) que, crescentemente, não podiam mais encontrar consenso entre si. Os anos 1970, período de agudo conflito das autoridades com o grupo Praxis18 18 O grupo Praxis foi uma escola do pensamento iugoslavo que propôs um socialismo humanista, publicando a revista Praxis de 1964 a 1974. Destacou-se por sua ação político-intelectual contestadora de certas orientações tomadas ao longo da experiência iugoslava, reclamando por uma radicalização da autogestão, criticando a burocratização, a reforma mercantil e a escalada dos nacionalismos com base numa análise de classes. Sobre isso, ver MIGUEL (2018). , foram marcados pela escalada e o represamento dos grupos nacionalistas e uma tentativa de retomada de controle pelo poder central e de limitação da liberalização econômica. No que se refere aos trabalhadores, destacamos o recurso às greves (eufemisticamente chamadas de “paradas de trabalho”) como um sintoma de que a autogestão era consideravelmente limitada (SAMARY, 1988aSAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 34).

A última reforma da autogestão

Como reação à mudança nas condições financeiras e comerciais internacionais, aos efeitos negativos da reforma mercantil e às crescentes pressões oriundas da dinâmica de descentralização e liberalização política dos anos 1960 inicia-se a última tentativa importante de reformar o sistema político-econômico. Assim, no início dos anos 1970, Tito engenhosamente aprovou emendas constitucionais que, associadas à nova constituição de 1974Constitucion de la Republica Socialista Federativa de Yugoslavia. Beograd: Borba, 1974., adotaram seletivamente algumas das reivindicações dos movimentos que foram reprimidos (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 317-318; WILSON, 1979WILSON, Duncan. Tito’s Yugoslavia. London: Cambridge University Press , 1979., p. 213-216).

Respondendo às críticas do movimento estudantil de 1968 e do grupo Praxis, Tito promoveu uma “minirrevolução cultural” antiburocrática contra a “burguesia vermelha”; atendeu à reivindicação pela ressocialização dos bancos e por medidas planificadoras contra o critério mercantil, com uma autogestão contratual das empresas autogeridas e com um sistema de delegações nas câmaras de autogestão (limitadas ao nível comunal, provincial e republicano, não chegando ao nível federal); e criou comunidades de interesse autogestionário associando os usuários e trabalhadores de serviços. Atendeu igualmente às demandas dos nacionalistas croatas reprimidos em 1971, descentralizando os direitos de comércio exterior, incluindo a absorção de divisas. Atendeu ainda às reclamações dos albaneses reprimidos em 1968, concedendo ao Kosovo o estatuo de uma quase república (SAMARY, 2008SAMARY, Catherine. Du juin 1968 yougoslave aux impasses du titisme. Contretemps, n. 22, p. 85-93, 2008., p. 91; SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 235-267).

Por outro lado, o aspecto repressivo do regime restringia o liberalismo político (CALIC, 2011CALIC, Marie-Janine. The Beginning of the End - The 1970s as a Historical Turning Point in Yugoslavia. In: CALIC, Marie-Janine; NEUTATZ, Dietmar; OBERTREIS, Julia (eds.). The Crisis of Socialist Modernity: The Soviet Union and Yugoslavia in the 1970s. Göttingen: Vandenhoeck& Ruprecht, 2011.; MARKOVIĆ, 2011MARKOVIĆ, Predrag. Where have all the flowers gone? Yugoslav culture in the 1970s. In: CALIC, Marie-Janine; NEUTATZ, Dietmar; OBERTREIS, Julia (eds.). The Crisis of Socialist Modernity: The Soviet Union and Yugoslavia in the 1970s. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011, p. 118-133.). Com os purgos dos liberais e nacionalistas croatas e dos liberais sérvios, houve um retorno ao “centralismo democrático”, expresso também no combate aos “cominformistas” e ao grupo Praxis (WILSON, 1979WILSON, Duncan. Tito’s Yugoslavia. London: Cambridge University Press , 1979., p. 241-243; LUTARD-TAVARD, 2005LUTARD-TAVARD, Catherine. La Yougoslavie de Tito écartelée: 1945-1991. Paris: Editions L’Harmattan, 2005., p. 250-255).

Já no plano da organização produtiva, a década de 1970 é certamente inovadora, ao menos no que se refere ao intento normativo-jurídico. Em 1971, um dos aspectos da mudança de orientação político-econômica ficou claro com as resoluções do 2º Congresso dos autogestionários realizado em Sarajevo entre os dias 5 e 8 do mês de maio, e com a adoção das emendas 21, 22 e 23 (dentre um total de 22 novas emendas) à Constituição de 1963 já em 30 de junho (MENEGHELLO-DINCIC, 1972MENEGHELLO-DINCIC, Kruno. Evolution récente des conseils ouvriers Yougoslaves. Revue de l’Est. v. 3, n. 2, p. 137-168, 1972., p. 154-168; GJIDARA, 1972GJIDARA, Marc. Les récentes réformes constitutionnelles et les problèmes de l’Etat en Yougoslavie. Revue de l’Est. v. 3, n. 2, p. 41-42, 1972., p. 64-66). Tendo uma importante participação dos trabalhadores das mais diversas áreas da economia (da indústria, da agricultura e dos serviços), o Congresso de 1971, que reuniu cerca de 2.000 delegados, preconizava o reforço da autogestão “partindo de suas unidades de base”, ampliando os acordos de autogestão e os acordos sociais, baseados na concertação e na socialização. A ideia expressa no Congresso em favor do desenvolvimento das “comunidades de interesse” e da introdução generalizada de “unidades de base de trabalho associado” como célula fundamental da autogestão foi central na Constituição de 1974. Antes mesmo, sob a forma de emendas constitucionais, a orientação do 2º Congresso dos autogestionários já se institucionalizara19 19 Cabe destacar as emendas 21 e 23. A emenda 21 estabelecia a unidade de base de trabalho associado e as atribuições gerenciais dos trabalhadores que a constituem, e a apropriação da renda individual proporcional aos resultados de seu trabalho e sua contribuição pessoal ao sucesso e ao desenvolvimento da empresa por seu trabalho presente e passado. Na definição do volume de tributação paga ao Estado sobre a renda das empresas e a renda individual, a emenda estabelecia ainda a prioridade ao atendimento das necessidades pessoais e comuns dos trabalhadores e às necessidades de investimentos. Finalmente, ficava estabelecida a obrigação das empresas de ajudar aquelas que se encontrem em dificuldades excepcionais, bem como aos operários demitidos em razão de medidas econômicas. Já a emenda 23 estabelecia o princípio de concertação social, por meio de acordos de autogestão entre organizações de trabalho associado e os outros tipos de organizações (comunidades de interesse, comunidades sociopolíticas etc.), passíveis de se tornarem obrigatórios por prescrição legal (MENEGHELLO-DINCIC, 1972, p. 154-168; GJIDARA, 1972, p. 64-66). . As emendas pavimentaram o caminho para a Constituição de 1974, saudada por Serge-Christophe Kolm como a Carta Magna do socialismo associacionista:

É também, pela sua novidade e extensão de suas aplicações da ideia gestionária, pelas suas análises subjacentes dos processos possíveis de traição e desvio deste princípio, uma dos grandes obras-primas da filosofia política, e a Carta Magna do socialismo associacionista. (KOLM, 1977KOLM, Serge-Christophe. La transition socialiste: la politique économique de gauche. Paris: Les Éditions du Cerf, 1977.a, p. 85)

No que se refere à organização produtiva, o cerne da Constituição de 1974 é a introdução de um novo sistema associativo de Organizações de Base do Trabalho Associado (OBTA), com o qual se pretendia redimensionar o espaço da autogestão para torná-la mais efetiva. Definida como a célula produtiva mais básica (que realiza um produto ou um serviço passível de troca), cada OBTA deveria ter seu próprio conselho operário. Novamente, limitava-se a dois anos o mandato (revogável) dos delegados eleitos. Esses deveriam continuar realizando o seu trabalho original, assim evitando-se a profissionalização da função de gestão. Cada OBTA tinha o direito de se associar livremente a outras OBTAs e assim constituir uma empresa ou Organização do Trabalho Associado (OTA), ou ainda se reagrupar em associações maiores e mais complexas, sempre sob o princípio do livre acordo associativo. Com isso, esperava-se conferir à autogestão a capacidade de se realizar como uma verdadeira alternativa à atomização mercantil e à ingerência estatal. A produção seria organizada por meio de múltiplos acordos entre diversas OBTAs, priorizando o princípio do consenso (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 239-240; MUSIC, 2016aMUSIĆ, Goran. ‘They came as workers and left as Serbs’: The role of Rakovica’s blue-collar workers in Serbian social mobilizations of the late 1980s. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.). Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge , 2016b, p. 132-154., p. 83-88).

Vários autores insistiram que o problema com esse sistema é que ele aumentou a burocratização, tornando o processo decisório extremamente difícil, lento e ineficiente (MARKOVIĆ, 2011MARKOVIĆ, Predrag. Where have all the flowers gone? Yugoslav culture in the 1970s. In: CALIC, Marie-Janine; NEUTATZ, Dietmar; OBERTREIS, Julia (eds.). The Crisis of Socialist Modernity: The Soviet Union and Yugoslavia in the 1970s. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011, p. 118-133.). Para Samary, o problema central não resolvido pelo novo sistema de OBTAs é a ausência de autogestão no nível central e mais alto (em que restava o domínio do Estado), para que se produzissem acordos autogestionários macroplanificadores, encontrando estratégias coletivas para a superação do desemprego, para a redução do tempo de trabalho, para uma distribuição dos rendimentos individuais que não estivesse submetida ao livre jogo das “leis” de mercado (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 240-247). Esta transformação fundamental do Estado (mas também do partido) jamais foi considerada pelos mais altos dirigentes iugoslavos. Kardelj, o principal criador da nova Constituição de 1974, promoveu uma autogestão que reduzia o papel do Estado em nível federal, mas o reforçava no nível das repúblicas e províncias, ao mesmo tempo em que se recusava a levar a cabo uma transformação democrática do partido (no sentido da institucionalização do pluralismo interno). A possibilidade de pluralismo partidário foi sempre rechaçada em nome da ideia de que a verdadeira democracia encontrava-se na autogestão, em que haveria efetivo espaço para a manifestação do pluralismo de interesses dos trabalhadores.

Muitos dos problemas e impasses observados no processo de introdução da reforma dos anos 1970 são produzidos e/ou amplificados principalmente pelo contexto de grave crise econômica (inserida num processo global). A dinâmica política mais ampla repercutia no próprio desenvolvimento interno dos conflitos de classe no interior das empresas20 20 Na IMR, uma empresa do ramo de automóveis, por exemplo, houve um grande revigoramento da participação operária em 1984, instada por uma campanha da Liga dos Comunistas em todo o país. Chamados a apresentarem as suas críticas e propostas para enfrentar a crise, os operários apontaram para a desigualdade entre os trabalhadores de colarinho azul e os de colarinho branco, mas também para dificuldades em se alcançar decisões entre departamentos isolados. Todavia, como suas críticas não encontraram eco em nenhuma formulação concreta por parte dos altos dirigentes, advieram uma grande frustração e apatia no seio da classe trabalhadora (MUSIC, 2016a, p. 173-177). . Outra mudança importante foi a ressocialização do sistema bancário. Os fundos anônimos de crédito dos bancos foram suprimidos, bem como os depósitos permanentes. A autonomia das instituições bancárias e comerciais se reduziu com o objetivo de impedir uma acumulação própria a expensas dos fundos sociais. Fundamentalmente, as instituições bancárias deixam de ser entidades independentes das empresas produtivas para tornarem-se associações financeiras dos membros do trabalho associado21 21 Assim, o serviço financeiro deveria cobrir os custos de gestão, mas não mais subtrair lucro. A alocação dos seus recursos ficava inteiramente submetida aos objetivos planificados pela Assembleia Geral das empresas membros, o que deveria conferir maior previsibilidade na confecção dos planos individuais de cada empresa. Além disso, diferentemente do sistema anterior, no qual o poder de voto era proporcional aos fundos aportados, agora cada membro da associação financeira tinha direito de voto igual (SAMARY, 1988, p. 238-239; SCHRENK; ARDALAN; TATAWY, 1979, p. 61-62). .

Devemos ainda destacar a sistematização das Comunidades de Interesse Autogestionadas (Samoupravne interesne zajednice - SIZ), pelas quais se organizaria a oferta e demanda de bens e serviços sem a mediação do mercado. Sob os princípios da mutualidade e da solidariedade trabalhadores dos campos da educação, da cultura, da saúde pública, da previdência social e da habitação deveriam exercer o intercâmbio livre do trabalho com os usuários de tais serviços, decidindo equitativa e coletivamente (por meio da representação de delegados revogáveis) sobre o seu desempenho e sobre a sua política de desenvolvimento e de fomento (artigos 52 a 54 e 110 a 113 da Constituição de 1974Constitucion de la Republica Socialista Federativa de Yugoslavia. Beograd: Borba, 1974.). De modo similar, abria-se também a possibilidade de constituição de SIZs em outros setores, como transporte, energia, gestão da água e comércio (artigo 55 da Constituição de 1974Constitucion de la Republica Socialista Federativa de Yugoslavia. Beograd: Borba, 1974.). Estabelecidas por convênios de autogestão, as SIZs operavam por meio de assembleias com peso igual para as suas partes constitutivas, incluindo os usuários e as OBTAs que realizavam o trabalho. As transações financeiras para cobrir as despesas dos fornecedores dos bens e serviços podiam se dar de diversas formas mutuamente acordadas, como por “contribuições dos consumidores como indivíduos ou grupos organizados, por preços de transferência ou taxas de acordo com os bens e serviços prestados, ou por alguma combinação de ambos” (SCHRENK; ARDALAN; TATAWY, 1979SCHRENK, Martin; ARDALAN, Cyrus; TATAWY, El; Nawal A. (coord.). Yugoslavia: self-management socialism and the challenges of development. Report of a mission sent to Yugoslavia by the World Bank. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1979., p. 59-60).

No relacionamento tanto entre consumidores finais e produtores/fornecedores de bens e serviços, como entre fornecedores e produtores finais de bens e serviços (constituídos em OBTAs, OTAs e múltiplas formas de organizações complexas), incluindo ainda as comunidades sócio-políticas como representantes dos cidadãos organizados territorialmente (em comunas, repúblicas etc.), o princípio operativo deveria ser a autogestão do planejamento, ratificado em acordos sociais e convênios de autogestão (artigos 69 a 74, 105 e 120 a 128 da Constituição de 1974). Visava-se, assim, um ganho de eficiência e transparência por meio de um procedimento democrático em que todas as partes interessadas partilhariam informações e decidiriam de comum acordo, possibilitando uma solução de equilíbrio ex ante, idealmente eliminando os problemas advindos da incerteza de mercado. Contrariamente ao planejamento indicativo do período anterior, uma vez ratificado um convênio de autogestão as decisões de planejamento eram legalmente obrigatórias. Como sublinham os autores do relatório do Banco Mundial sobre o sistema iugoslavo:

Claro, os ganhos em comparação com uma economia de mercado ou uma economia planificada de forma centralizada são potenciais. O grau em que se realizam dependerá inteiramente da eficiência e racionalidade com que o planejamento é organizado e realizado. Necessariamente, uma boa dose de aprendizado pelo fazer prático deve ser investida durante um longo período antes que esse potencial possa ser totalmente explorado. (SCHRENK; ARDALAN; TATAWY, 1979SCHRENK, Martin; ARDALAN, Cyrus; TATAWY, El; Nawal A. (coord.). Yugoslavia: self-management socialism and the challenges of development. Report of a mission sent to Yugoslavia by the World Bank. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1979., p. 78)

Parece-nos razoável supor que justamente a falta desse longo período de tempo na experimentação do novo arranjo da autogestão ajude a explicar a sua ineficácia verificada num contexto de grave crise política, econômica e social. Com isso, a ineficácia da autogestão pós-1974 não seria, a nosso ver, uma variável independente, isto é, uma das causas da crise e consequente dissolução da Iugoslávia. Antes, ela seria uma consequência de tal crise.

Samary sublinha que, embora o novo sistema tivesse o “direito” de se estender até uma complexa rede de planejamento autogestionário global, a experiência, os estímulos e as instituições não incitavam isso:

Não havia à escala da economia inteira nenhum “lugar” onde se pudesse comparar as despesas de trabalho (autogestão de ramo), onde se pudesse confrontá-las a escolhas alternativas e às exigências dos usuários (autogestão territorial em todos os níveis do país), onde se pudesse unificar os critérios ou fazer os balanços dos desperdícios. Também não havia a publicidade e a pluralidade das “medidas” permitindo a redução dos “vieses” introduzidos pelos interesses parciais. Não havia enfim as instituições sócio-políticas independentes permitindo iluminar e confrontar as questões em jogo. O horror ao “vazio” existe também neste nível: outras instituições ocuparam o lugar - e pesaram em contrapartida sobre a forma prática como iria funcionar o conjunto do sistema. (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 246-247)

Devemos insistir ainda em todo o conjunto de desigualdades que comprometia a unidade de interesses entre trabalhadores de diferentes regiões e de diferentes ramos, operando um corte que se apresentava crescentemente como étnico-nacional. Romper com a lógica de parcelamento dos interesses implicava avançar na superação do princípio de remuneração segundo os resultados do trabalho verificados no mercado, responsável pela perpetuação das desigualdades. Embora o sistema de 1974 abrisse algumas possibilidades nesse sentido, a inércia da busca de interesses particulares, a falta de um impulso político radicalmente democrático seja entre as lideranças da Liga dos Comunistas, seja no seio da classe trabalhadora, e a inexistência de instituições capazes de orgânica e democraticamente absorver e unificar a pluralidade dos vieses acabaram por conduzir a última reforma da autogestão ao fracasso. O lema socialista “unidade e fraternidade” deu lugar à fragmentação e à guerra.

Conquanto do ponto de vista da população em geral e sobretudo da classe média em particular a década de 1970 tenha sido percebida como o ápice da prosperidade, grande parte da rápida expansão no nível de consumo (aumento de mais de 50% entre 1970 e 1979) estava baseada em empréstimos junto às instituições financeiras internacionais, que aumentaram drasticamente suas taxas de juros no final da década. No contexto da recessão internacional iniciada em 1973, rapidamente deterioraram-se as condições de rolagem da dívida e de manutenção de um relativo equilíbrio na balança de pagamentos. Somente a alta do preço do petróleo foi responsável pelo aumento do déficit comercial em 22% no ano de 1974. Entre 1973 e 1979, essa alta representou em torno de um bilhão de dólares, aproximadamente ¼ da alta do déficit comercial no referido período (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 260).

Imediatamente a crise repercutiu no fluxo migratório iugoslavo e portanto no seu mercado de emprego. A emigração de trabalhadores iugoslavos para a Europa ocidental, especialmente para a Alemanha Ocidental, vinha sendo um importante fator de controle do desemprego, diminuindo a pressão para a criação de novos postos. Além disso, esses trabalhadores emigrados representavam uma das fontes principais de remessa de divisas estrangeiras para o governo iugoslavo. Contudo, com a recessão internacional que atingiu a Alemanha Ocidental em 1975-1976, esse fluxo migratório foi revertido, o que colocou a economia iugoslava sob forte pressão para prover novos postos de trabalho e também obter divisas estrangeiras, num quadro de crescente desequilíbrio da balança de pagamentos (MAGID, 1991MAGID, Alvin. Private lives/public surfaces: grassroots perspectives and the legitimacy question in Yugoslav socialism. New York: Columbia University Press, 1991., p. 38).

Com o abandono unilateral do tratado de Bretton Woods pelos EUA, o primeiro choque no preço do petróleo dos países da OPEC em 197322 22 Embora toda a Europa tenha perdido competitividade com o declínio do dólar após 1973 e o primeiro choque no preço do petróleo, aqueles países cujas moedas eram menos valorizadas (caso da Iugoslávia) foram os mais afetados (EICHENGREEN, 2008, p. 152). De acordo com Eric Hobsbawm, “sob pressão do cartel de produtores de petróleo, a OPEP, o preço do produto, então baixo e, em termos reais, caindo desde a guerra, mais ou menos quadruplicou em 1973, e mais ou menos triplicou de novo no fim da década de 1970, após a Revolução Iraniana. Na verdade, a gama real de flutuações foi ainda mais sensacional: em 1970 o petróleo era vendido a um preço médio de 2,53 dólares o barril, mas em fins da década de 1980 o barril valia 41 dólares” (HOBSBAWM, 2014, p. 459). , e o aumento do protecionismo na Europa ocidental, a Iugoslávia foi levada a redirecionar suas exportações para os países do COMECON e a buscar fornecedores no Leste Europeu e nos países não alinhados, além de iniciar um processo de substituição de importações por produção doméstica, procurando tornar-se menos dependente de matérias-primas e derivados do petróleo que tiveram seus preços fortemente elevados (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 251). Todavia, dificuldades técnicas (como a reconversão dos equipamentos e das fábricas para a utilização do carvão iugoslavo em vez do petróleo importado) e as vantagens aduaneiras dos setores produtores de manufaturados num sistema descentralizado de financiamento atrapalharam a reconversão produtiva que visava ao aumento da produção nacional de matérias-primas e bens intermediários. Com isso, os estágios finais de transformação na cadeia produtiva frequentemente caracterizavam-se pela supercapacidade, enquanto os estágios iniciais eram subdesenvolvidos. Ao mesmo tempo, a substituição de importações por produção nacional foi mitigada com o aumento da dependência externa no setor petroquímico (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 260-262). O saldo final foi uma economia com uma taxa elevada de investimentos, mas com eficácia decrescente. Com um sistema de formação descentralizada dos preços e das rendas (isto é, sem o constrangimento, seja de um mercado unificado, seja da operação de uma racionalidade unificadora via coordenação democrática direta), os custos crescentes dessa eficácia decrescente geraram pressão inflacionária e endividamento interno e externo (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 255).

No plano político, podemos verificar o acirramento das tensões entre os operários e a gerência profissional. O diagnóstico do alto escalão da Liga dos Comunistas era de que o avanço do poder “tecnocrático”, com a conivência e/ou apoio de dirigentes comunistas (que a literatura anglo-saxã tende a chamar de “ala liberal”23 23 Há uma tendência na literatura anglo-saxã a enxergar o conflito político em termos da oposição “liberais/conversadores”. Assim, no caso iugoslavo, diversos autores identificam um conflito entre as lideranças “liberais” e “conservadoras”, os primeiros favoráveis à descentralização política e econômica (entendida como democratização), e os segundos defensores da centralização do poder político e econômico na Liga dos Comunistas. Consideramos essa divisão problemática por fundir liberalismo político com liberalismo econômico e por não considerar as orientações políticas no campo socialista de acordo com seus próprios termos. Essas orientações eram mais diversas, extrapolando essa dicotomia. Entre os chamados “liberais”, havia desde convictos defensores da economia de mercado laissez-faire até aqueles que desejavam apenas a utilização parcial e temporária de alguns mecanismos de mercado. Sob a etiqueta de “liberais”, havia ainda aqueles que queriam democratização da Liga dos Comunistas e mais poder operário no sistema de autogestão, as formas e a velocidade das mudanças variando de caso a caso. Já entre os “conservadores” havia desde aqueles adeptos da concentração de poder e da forma monolítica de partido, nos moldes vigentes antes da ruptura de Tito com Stalin, até aqueles que simplesmente insistiam no igualitarismo e na manutenção da alocação centralizada de recursos visando à aceleração do desenvolvimento das repúblicas mais pobres. ), tinha ido longe demais. De acordo com Rusinow, a perda de controle do centro do partido sobre seus órgãos subordinados permitiu e encorajou o retorno de nacionalismos centrífugos ou hegemônicos e a ascensão de uma elite tecnocrático-gerencial controlando e “reprivatizando” a economia por meio da “propriedade de grupo”. Nas palavras do autor,

Portanto, ao invés de uma maior expansão da autogestão, o relaxamento gradual do firme controle do Partido e da disciplina do Partido centralizado levou à tomada do poder por políticos locais que eram frequentemente mais nacionalistas que comunistas, e por ‘tecnocratas’ na indústria, no comércio e nos bancos que admiravam as técnicas gerenciais ocidentais mais do que a classe trabalhadora iugoslava. (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 322)

As reformas dos anos 1970 se deram em parte no intuito de enfrentar essa tendência “tecnocrática-gerencial”, além da renovada busca por eficiência produtiva num novo arranjo democrático24 24 Thomas Oleszczuk mostra que, embora se falasse na tecnocracia já em 1957, é somente em 1967 que se inicia uma campanha aberta contra a dominação tecnocrática (OLESZCZUK, 1980). No plano legislativo, pode-se apontar, por exemplo, para os artigos 101 e 102 da Constituição de 1974, que estabeleciam um controle da composição dos conselhos operários para frear a penetração tecnocrática. No artigo 101, determina-se que a “composição do Conselho operário deve ser adequada à estrutura social da comunidade de trabalho da Organização de Base do Trabalho Associado”, e no artigo 102 especifica-se a interdição daqueles que exercem autonomamente funções gerenciais determinadas pelos Estatutos e pela Lei de serem eleitos para o conselho operário (Constituição de 1974). (OLESZCZUK, 1980OLESZCZUK, Thomas. Convergence and counteraction: Yugoslavia’s “antitechnocratic” campaign and electoral results, 1957-1974. Comparative Political Studies, v. 13, n. 2, p. 205-233, 1980.). Com a Lei sobre o Trabalho Associado de 1976, o pessoal administrativo e os gerentes sentiram-se diretamente atingidos, na medida em que o seu aumento salarial fora indexado ao aumento salarial dos operários. A reação gerencial logo se fez sentir. Já sob a pressão do FMI para a estabilização econômica, parte da legislação do trabalho foi revertida já em 1981, concedendo maior poder à gerência para regular os salários e dispor da mão de obra (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 276-280).

Talvez o problema decisivo do ponto de vista da desintegração da Iugoslávia seja que os anos 1970 marcaram a consolidação de um desenho institucional confederativo que não era apenas extremamente descentralizador, mas era, sobretudo, desprovido de qualquer chave unitária capaz de contrabalançar o particularismo nacional de cada república e província. Do ponto de vista socialista, essa chave unitária deveria fundamentar-se na unidade de classe dos trabalhadores. Como insistiam os intelectuais do grupo Praxis, a autogestão deveria incluir algum tipo de mecanismo centralizador que promovesse a concertação entre os interesses dos trabalhadores fragmentados pela concorrência mercantil. O fato de que o sistema de delegações instituído com a Constituição de 1974 não tenha estabelecido uma Câmara do Trabalho Associado no Parlamento Federal, como reivindicavam trabalhadores e sindicatos no auge da crise dos anos 1980, é revelador do limite fundamental do regime ante a autogestão.

Aqui nos interessa apontar para a posição dos dirigentes iugoslavos que compunham a vanguarda política, de origem revolucionária. Edvard Kardelj, já nessa fase em que a vanguarda política tenta reagir à perda de controle sobre tendências fragmentadoras e sobre o poder da “tecnocracia”, argumentava em favor do papel do Estado e da Liga dos Comunistas como mantenedores do processo revolucionário, isto é, como protetores do sistema da autogestão. O líder iugoslavo explicava que não se tratava de defender “um regime de mão forte”, com uma burocracia autoritária, mas sim uma “cooperação do Estado e dos órgãos de autogestão num sistema de mútua responsabilidade democrática”. O problema com a redução do papel do Estado, de acordo com Kardelj, era que, embora isso pudesse beneficiar a classe trabalhadora, a “tecnoburocracia”, formada por especialistas nas empresas e instituições, também levaria vantagem. O temor era que uma aliança entre os trabalhadores e os tecnocratas ameaçaria não apenas o futuro da autogestão mas também o próprio partido. Por outro lado, a concorrência no mercado (mesmo com as consequentes desigualdades) seria o contrapeso necessário, se se quisesse evitar um retorno à propriedade estatal (COHEN, 1989COHEN, Lenard J. The Socialist Pyramid: elites and power in Yugoslavia. Oakville: Mosaic Press, 1989., p. 62). Assim, é notório que a estratégia vanguardista consistia na busca de um equilíbrio das forças políticas indesejáveis que, não obstante, deveriam ser toleradas para que se evitasse tanto a via do estatismo quanto a via do capitalismo. Ao menos teoricamente, até que a classe trabalhadora estivesse apta a levar a cabo a dissolução do Estado.

Desintegração iugoslava e restauração capitalista

No plano econômico, a década de 1980 foi marcada pela escalada da inflação, do endividamento e do desemprego. No plano político, verifica-se a crescente resistência da classe trabalhadora à deterioração das condições de vida e a ascensão e vitória dos nacionalismos no final do decênio, articulada à restauração capitalista. Como resume Catherine Samary:

A crise aberta significou a implementação de uma política de austeridade e de reembolso da dívida que colocava em causa ao mesmo tempo os direitos autogestionários, os poderes cada vez mais autônomos das repúblicas e províncias e a melhoria do nível de vida: o “socialismo iugoslavo” viu assim derreter seus ingredientes ao mesmo tempo em que se agudizava a crise de legitimidade do partido único. (SAMARY, 1992SAMARY, Catherine. La fragmentation de la Yougoslavie: une mise en perspective. Cahiers d’étude et de recherche, n. 19-20, p. 3-59, 1992, ., p. 19)

Com a morte das principais lideranças da vanguarda política (Tito em 1980, Kardelj em 1979 e Bakarić em 1983), o setor cada vez mais minoritário da burocracia do partido/Estado comprometido com algum projeto socialista deu lugar à hegemonia de uma aliança entre as lideranças políticas regionais com a classe dos gerentes de empresa, o topo da burocracia empresarial. De acordo com Goran Musić, na metade dos anos 1980 os defensores do liberalismo econômico, que haviam sido marginalizados da vida política com a reforma dos anos 1970, retornaram revigorados. Economistas liberais ascenderam nas universidades, nas câmaras econômicas, nas revistas especializadas em economia, e retomaram os postos perdidos na Liga dos Comunistas e no aparato estatal. Com isso, reverteu-se a orientação “antitecnocrática” dos anos 1970 (a própria expressão pejorativa “tecnocracia” saiu do vocabulário usual da mídia e do partido), e foi fortalecido o vínculo direto entre a elite gerencial das empresas e as novas lideranças da Liga dos Comunistas. A crise passou a ser considerada como o resultado do abandono do “socialismo de mercado”, sob a pressão da demagogia social e do esquerdismo no final dos anos 1960 (MUSIĆ, 2016aMUSIĆ, Goran. ‘They came as workers and left as Serbs’: The role of Rakovica’s blue-collar workers in Serbian social mobilizations of the late 1980s. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.). Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge , 2016b, p. 132-154., 182-183).

Além das crescentes dificuldades políticas, o peso das adversas condições econômicas internacionais não pode ser ignorado quando procuramos entender a profundidade da crise testemunhada nos anos 1980. Os choques externos de 1979 e 1980 atingiram violentamente a economia iugoslava. Em 1980 o salto nas taxas de juro em dólar americano elevou muito as obrigações do serviço da dívida iugoslava, “já que a maior parte da sua dívida era denominada em dólares americanos e 58% desta dívida era em empréstimos comerciais de juros altos”. Com isso, a dívida externa saltou de dois bilhões de dólares em 1969 para 20 bilhões de dólares em 1982, a razão do serviço da dívida em moeda forte foi para 24% em 1978 e para 35% em 1980, e o encargo médio de amortização no período de 1983-1986 foi de 5 bilhões de dólares por ano, sendo que o valor principal da dívida (aquele efetivamente emprestado) só começou a ser pago em 1985 (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 253).

A balança comercial continuou deficitária, em parte devido ao despejo massivo de estoques de matérias-primas estratégicas no mercado mundial por parte dos EUA, da França e de outros países da OCDE, afundando os preços de minerais exportados pela Iugoslávia; em paralelo, o comércio iugoslavo nos mercados do Leste e no sul em desenvolvimento foi atingido pelo segundo aumento de preço do petróleo soviético e da OPEC. Com isso, as exportações da Iugoslávia começaram a perder competitividade, resultando numa balança comercial negativa. Além disso, como sublinha Woodward, diferentemente dos anos 1970, desta vez “os bancos comerciais ocidentais escolheram parar de emprestar para a Europa Oriental”, temendo que a crise polonesa de 1980-1981 pudesse se espalhar (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 254).

De acordo com Ana Dević, a mudança na demanda internacional por produtos manufaturados (em detrimento de produtos primários) causou um impacto desigual na Iugoslávia, favorecendo as repúblicas que mais exportavam bens manufaturados (Eslovênia e Croácia) com melhor acesso aos mercados consumidores no Ocidente e ao crédito internacional. Assim, Eslovênia e Croácia teriam se tornado menos dependentes das restrições impostas pelo governo federal sobre os fundos administrados via FMI, o que contribuiu para moldar a perspectiva de seus dirigentes na sua relação com a federação na segunda metade dos anos 1980 (DEVIĆ, 2016DEVIĆ, Ana. What nationalism has buried: Yugoslav social scientists on the crisis, grassroots powerlessness and Yugoslavism. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.) Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge, 2016, p. 21-37., p. 23).

Sob as exigências “draconianas” de estabilização advogadas pelo FMI para a obtenção de novos empréstimos e reescalonamento da dívida, seguiram-se várias tentativas de impor um plano de austeridade, que incluía flutuação livre da taxa de câmbio, liberalização dos preços no mercado interno, cortes nas despesas públicas e uma política monetária contracionista25 25 Já em 1981 o governo federal, presidido pelo esloveno Sergej Kraigher, formou uma comissão econômica para definir as medidas de combate à crise. Em 1983, a “Comissão Kraigher” publicou suas conclusões no “Programa de Longo Prazo de Estabilização Econômica”, pelo qual recomendava a liberalização do comércio e mais elementos de mercado, embora conservando a “propriedade social” e a estrutura básica da autogestão (HUDSON, 2003, p. 59). (AVRAMOV; GNJATOVIĆ, 2008AVRAMOV, Roumen; GNJATOVIĆ, Dragana. Stabilisation policies in Bulgaria and Yugoslavia during communism’s terminal years: 1980s economic visions in retrospect. Working Paper, SEEMHN. Athens: Bank of Greece Printing Works, 2008.). É claro que, com a autogestão no interior das empresas, não era nada simples forçar uma política de arrocho salarial. Assim, uma série de medidas visando “sanar as finanças” se sucedeu ao longo dos anos 1980. A cesta básica, que definia o salário mínimo, foi reduzida em 1982. Foi introduzido o racionamento de petróleo, eletricidade, açúcar e farinha. O governo aprovou um decreto (julgado inconstitucional pela Corte Constitucional) em 1983 que vinculava o aumento salarial ao crescimento do rendimento líquido na empresa, com o que se pretendia impor a disciplina financeira necessária para que as empresas pagassem seus fornecedores e os créditos contraídos junto aos bancos. Depois, em 1986, proibira mesmo a distribuição dos salários antes do reembolso das dívidas aos credores. Em 1987, foram aprovadas leis que facilitavam a falência das empresas que operavam com perdas. A tributação e o financiamento dos serviços públicos (que sofreram cortes de pessoal) e da habitação foram transferidos das empresas para as rendas pessoais. Claramente, o fardo da crise era suportado pela classe trabalhadora iugoslava (MUSIĆ, 2016aMUSIĆ, Goran. ‘They came as workers and left as Serbs’: The role of Rakovica’s blue-collar workers in Serbian social mobilizations of the late 1980s. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.). Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge , 2016b, p. 132-154., p 163; WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 280-282).

Os percentuais do Produto Nacional Bruto investidos em educação e saúde sofreram forte redução. Em 1969, o percentual gasto com saúde era de 7,1%, em 1975 foi reduzido para 5,7% e, em 1987, chegara a apenas 3,95% (SARIC; RODWIN, 1993SARIC, Muhamed; RODWIN, Victor G. The once and future health system in the former Yugoslavia: myths and realities. Journal of Public Health Policy, v. 14, n. 2, p. 220-237, 1993., p. 229). A educação sofreu redução similar no orçamento: em 1977, o percentual era de 5.9% do PNB, já em 1984, caíra para apenas 3,5% (CURTIS, 1992CURTIS, Glenn E (ed.). Yugoslavia: a country study. Washington: Federal Research Division, Library of Congress, 1992., p. 115).

Mesmo com a forte queda nos ganhos líquidos reais nas empresas, com a política de elevação da taxa de juros iniciada em 1982 e as sucessivas desvalorizações do dinar, a inflação praticamente não cessou de crescer: em 1983 a taxa de inflação anual média era de 40%, em 1987 já atingia 120%, e em 1989 alcançou o ápice hiperinflacionário de 1240% (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 268-269; SAMARY, 1995SAMARY, Catherine. Yugoslavia dismembered. New York: Monthly Review Press, 1995., p. 55). Em 1985, o desemprego oficial já passava de 20% em todas as repúblicas, com exceção da Eslovênia (1,8%) e da Croácia (7,9%), chegando à taxa de 54,2% no Kosovo (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 384). Evidentemente, o resultado para a população foi catastrófico: o nível de vida geral caiu 34% entre 1979 e 1984. Nesse ano, o nível de vida dos trabalhadores no setor socializado regrediu aos níveis da década de 1960 (Tabela 2)26 26 Tabela extraída de LOWINGER (2009) p. 64 , com formatação adaptada. (MUSIĆ, 2016aMUSIĆ, Goran. ‘They came as workers and left as Serbs’: The role of Rakovica’s blue-collar workers in Serbian social mobilizations of the late 1980s. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.). Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge , 2016b, p. 132-154., p. 164).

Tabela 2 -
Indicadores de crise econômica (Bartlett 1992) (mudança média por ano)

Paralelamente, aumentava o sentimento de falta de influência/poder dos trabalhadores no processo decisório nas empresas. Um estudo esloveno em grandes empresas registrou que em 1985 83% dos trabalhadores sentiam ter pouca ou nenhuma influência sobre o curso dos eventos nas suas organizações econômicas, percentual significativamente mais alto do que o 64% registrado em 197627 27 Este sentimento de falta de poder, embora fosse mais pronunciado entre os operários, também se revelava entre especialistas/profissionais (60% em 1976 e 81% em 1985) e mesmo entre a alta gerência (33% em 1976 e 38% em 1985) (DEVIĆ, 2016, p. 25). (DEVIĆ, 2016DEVIĆ, Ana. What nationalism has buried: Yugoslav social scientists on the crisis, grassroots powerlessness and Yugoslavism. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.) Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge, 2016, p. 21-37., p. 25).

Com a drástica queda nas condições de vida e o forte sentimento de falta de poder, não é difícil entender por que na década de 1980 a Iugoslávia figurava como um dos países com maior número de greves em toda a Europa, indo de 247, com 13.507 trabalhadores envolvidos, em 1980, para 1.851 greves, envolvendo 386.123 trabalhadores em 1988 (MUSIĆ, 2013MUSIĆ, Goran. Serbia’s Working Class in Transition 1988-2013. Belgrade: Rosa Luxemburg Stiftung, 2013., p. 13). As análises sobre essa onda grevista apontam para uma potencial alternativa classista à desintegração iugoslava, na qual os trabalhadores revelaram solidariedade interétnica e uma pauta que defendia não apenas seus salários e a resistência em face da degradação das suas condições de vida, mas também a autogestão dos trabalhadores como uma saída para a crise. Uma das reivindicações mais importantes, em que insistiam operários e sindicalistas da base, era a introdução de uma Câmara do Trabalho Associado no Parlamento Federal que pudesse servir como contraponto às tendências desintegradoras, e que emancipasse a classe trabalhadora da tutela de políticos das repúblicas e das províncias (MUSIĆ, 2016aMUSIĆ, Goran. The self-managing factory after Tito. The crisis of Yugoslav socialism on the shop floor. Thesis submitted for assessment with a view to obtaining the degree of Doctor of History and Civilization of the European University Institute. Florence, January, 2016a., 2016bMUSIĆ, Goran. ‘They came as workers and left as Serbs’: The role of Rakovica’s blue-collar workers in Serbian social mobilizations of the late 1980s. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.). Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge , 2016b, p. 132-154.). Os grevistas manifestavam uma clara rejeição ao neoliberalismo ao exibirem bandeiras comunistas e retratos de Tito. Todavia, eles não obtiveram sucesso em criar um movimento suficientemente amplo, que articulasse uma alternativa em todas as repúblicas, e que encontrasse ressonância nas lideranças políticas da Liga dos Comunistas. De acordo com Jake Lowinger (2009LOWINGER, Jake. Economic reform and the ‘double movement’ in Yugoslavia: an analysis of labor unrest and ethno-nationalism in the 1980s. PhD dissertation, Johns Hopkins University, 2009.) e Goran Musić (2013MUSIĆ, Goran. Serbia’s Working Class in Transition 1988-2013. Belgrade: Rosa Luxemburg Stiftung, 2013., 2016aMUSIĆ, Goran. The self-managing factory after Tito. The crisis of Yugoslav socialism on the shop floor. Thesis submitted for assessment with a view to obtaining the degree of Doctor of History and Civilization of the European University Institute. Florence, January, 2016a., 2016bMUSIĆ, Goran. ‘They came as workers and left as Serbs’: The role of Rakovica’s blue-collar workers in Serbian social mobilizations of the late 1980s. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.). Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge , 2016b, p. 132-154.), o nacionalismo só ganhou aderência entre importantes setores da classe trabalhadora (especialmente os mais jovens) no final da década de 1980, marcada pela manipulação política e midiática no quadro das disputas entre as repúblicas28 28 De acordo com Lowinger: “Lideranças regionais conseguiram descarrilhar os movimentos operários e cooptaram grande parte de seu eleitorado em movimentos nacionalistas de todos os tipos. Em meados de 1987, os movimentos nacionalistas ainda eram partidos fracamente organizados nas franjas mais periféricas da sociedade sem qualquer apoio na política oficial em qualquer lugar da federação. Em 1991, esses movimentos controlavam os governos regionais da maioria das unidades federais da Iugoslávia e já tinham o firme controle sobre o próprio governo federal. Para além das intermitentes tensões entre albaneses e sérvios no Kosovo ao longo dos anos 1980, quase não havia tensão étnica da qual se possa falar durante toda a década, e certamente não na Croácia ou na Bósnia, que se tornaram os primeiros grandes campos de batalha das guerras iugoslavas” (LOWINGER, 2009, p. 80-81). Lowinger sustenta a tese de que o nacionalismo ocupou um vazio político criado pelo impasse entre a insistência dos reformadores neoliberais iugoslavos e do FMI em perseguir o plano de austeridade, e a resistência da classe trabalhadora, que se recusava a perder o seu relativo controle sobre os próprios salários e a aceitar o rebaixamento das suas condições de vida que estava em curso. De acordo com o seu estudo das manifestações dos trabalhadores ao longo da década de 1980, não havia um caráter nacionalista no movimento operário; pelo contrário, havia solidariedade interétnica e crescente amplitude, na medida em que a indignação dos trabalhadores passa a se deslocar do nível intraempresa (primeira metade da década de 1980) (contra gerentes e representantes sindicais) para o nível do governo federal, com manifestações em frente ao parlamento em Belgrado e uma explosão de greves entre 1987 e 1988. Todavia, com a insistência do governo federal em perseguir as reformas exigidas pelo FMI e o silêncio dos governos locais e de cada república, a situação político-econômica degradou-se. No caso sérvio, Musić mostra como o governo em aliança com os gerentes de empresas passam a mobilizar os trabalhadores em comícios, fazendo penetrar slogans nacionalistas ao lado de insígnias socialistas. Esta aliança foi crucial para iniciar a transição a um novo regime de propriedade, na qual aqueles gerentes que escolheram se aliar ao grupo de Slobodan Milošević viriam a obter acesso privilegiado à propriedade privada ou estatal no “pós-comunismo”, marcado por relações clientelistas. Musić destaca a habilidade de uma fração da burocracia sérvia na adaptação às novas condições globais, aliando-se à elite gerencial das empresas para tentar “transformar as camadas sociais privilegiadas sob o socialismo na nova classe dominante com plenos direitos de propriedade” (MUSIĆ, 2013, p. 17). Contudo, “para os trabalhadores, esse movimento não foi apresentado como uma ruptura com a herança socialista. Muito pelo contrário, ele foi largamente percebido como uma continuação do velho sistema por meio da modernização inevitável. Uma vez que Milošević conseguiu construir a sua imagem como o protetor dos direitos dos trabalhadores e o único detentor da herança socialista iugoslava, as mobilizações independentes da classe trabalhadora foram cortadas pela raiz antes que tivessem a chance de evoluir por conta própria. Em vez de protestos de base dos trabalhadores, a nova liderança começou a organizar comícios de cima para baixo, onde as demandas operárias foram dissolvidas em um programa mais amplo da luta política da burocracia sérvia contra as nomenclaturas políticas rivais em outras repúblicas que começaram a flertar com a ideia de separação da Iugoslávia. A identidade de classe e as greves econômicas foram substituídas por apelos à unidade nacional, supostamente necessária para impedir a dissolução do país” (MUSIĆ, 2013, p. 17). . Samary colocou o problema nos seguintes termos: ou venceria a lógica social da resistência à austeridade mercantil, ou ganharia a tendência da explosão em nacionalismos exacerbados (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 272-273). Como sabemos, tragicamente foi a segunda via que se impôs.

Entre 1989 e 1991, avançou e consolidou-se o processo de desintegração da Iugoslávia, dando início a diversas guerras envolvendo sérvios, croatas, bósnios e kosovares. Em 1990, ocorrem as primeiras eleições multipartidárias em todas as repúblicas da Iugoslávia. No primeiro semestre, o partido anticomunista HDZ venceu na Croácia com 42% dos votos (ex-comunistas chegaram a 25%), alçando à presidência o nacionalista Franjo Tuđman. Na Eslovênia, venceu a coalizão DEMOS com 55% dos votos (contra 17% para os comunistas); todavia, o candidato comunista Milan Kucan derrotou o candidato do DEMOS para a presidência.

No final do ano, as demais repúblicas realizaram suas eleições. Na Macedônia, nenhum partido ganhou a maioria absoluta, e foi eleito à presidência o comunista Kiro Gligorov. Em Montenegro, venceu o comunista Momir Bulatovic. Na Bósnia, 55% dos votos foram para partidos nacionalistas (o muçulmano DAS, o sérvio SDS e o croata HDZ, que fizeram um pacto de governo), 25% para partidos não nacionalistas (ex-comunistas, liberais e reformistas) e 20% se abstiveram. Na Sérvia, foi eleito presidente Slobodan Milošević com 65% dos votos, e o seu Partido Socialista ganhou 194 assentos de 250 na Assembleia.

A Eslovênia, após um referendo realizado ainda no final de 1990, declarou independência da Iugoslávia em junho de 1991, seguida pela Croácia (que realizara um referendo em maio) no mesmo mês, desencadeando-se, a partir daí, intervenções militares e ataques de milícias, que se multiplicaram numa teia de conflitos envolvendo croatas, sérvios e muçulmanos. A Macedônia também realizou um referendo sobre sua soberania já em setembro de 1991, seguido pela decisão do parlamento da Bósnia-Herzegovina em favor de sua soberania em outubro. Em fevereiro de 1992, os bósnios realizaram um referendo sobre a independência: enquanto os sérvios (constituindo 33% da população) decidiram boicotá-lo, os 66% restantes votaram em favor da independência Bósnia. Com isso, restava a República Federal da Iugoslávia (declarada em 27 de abril de 1992), constituída apenas pela Sérvia e por Montenegro29 29 A união entre Sérvia e Montenegro acabará por se enfraquecer. Em 2003, extingue-se a República Federal da Iugoslávia, sucedida pela União Estatal de Sérvia e Montenegro. Em 2006, Montenegro decide por referendo pela separação da Sérvia por uma margem muito estreita de votos. (que realizara um referendo em março de 1992 decidindo permanecer na Iugoslávia), que elegeu como presidente o escritor sérvio Dobrica Ćosić. A província autônoma da Voivodina continuou fazendo parte da Sérvia, enquanto o Kosovo seguiu reivindicando independência (reconhecida pela maioria da comunidade internacional), com sucessivas manifestações seguidas de repressão (SAMARY, 1995SAMARY, Catherine. Yugoslavia dismembered. New York: Monthly Review Press, 1995.).

Em paralelo ao desmantelamento da Iugoslávia, dava-se o processo de generalizada privatização da economia. Em 1987, o FMI e o Banco Mundial pressionaram fortemente pela remoção dos elementos remanescentes do socialismo que inibiam a alocação mercantil do capital e do trabalho. Ou seja, exigia-se o fim da autogestão. Então, foram aprovadas emendas constitucionais que derrubaram a legislação do trabalho de 1974-1976, dando aos gerentes o poder de contratar e demitir mão de obra. Em 1988, iniciou-se o processo de privatização, com uma legislação que concedia direitos de propriedade privada para o capital estrangeiro, e estabelecia o fim do direito de consulta dos trabalhadores no interior das empresas do setor social, além do desmantelamento do sistema de OBTAs. O argumento corrente entre os especialistas liberais (na Iugoslávia e no exterior) era que a autogestão impedia a alocação racional de trabalho e os incentivos necessários para o aumento de produtividade. Então, sob a liderança do recém-empossado primeiro ministro Ante Marković, legalizou-se definitivamente a alocação mercantil de trabalho e de capital, fazendo avançar a privatização com uma legislação federal aprovada em dezembro de 1989 (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 5 e 350-351).

Samary destaca como essa nova legislação primeiramente anulou a preponderância da propriedade social com relação às outras formas de propriedade, e retirou o seu caráter societário (tal como estabelecido pela Constituição de 1974Constitucion de la Republica Socialista Federativa de Yugoslavia. Beograd: Borba, 1974.), reduzindo-a a uma propriedade de grupo, atomizada, isto é, exclusiva do coletivo de trabalho de cada empresa, encerrando de vez com qualquer possibilidade de planificação autogestionária. Essa revisão escamoteou o gradual abandono da autogestão30 30 Numa primeira fase (sob variadas formas e com múltiplas etapas de acordo com cada caso), comum a todos os países da ex-Iugoslávia, o processo de privatização não apareceu como contrário ao interesse dos trabalhadores, já que as ações foram distribuídas gratuitamente ou vendidas em condições muito favoráveis (com até 70% de desconto e dez anos para o pagamento) aos insiders (trabalhadores e gerentes das empresas), ou mesmo dispersas entre cidadãos que trabalhavam nos serviços públicos, aos aposentados e aos camponeses (SAMARY, 2004; UVALIĆ, 2001). De acordo com Musić, os que mais se beneficiaram deste método “não foram os trabalhadores comuns, mas os gerentes de empresa e outros investidores que estavam numa posição para acumular grandes somas de dinheiro através do uso indevido do capital social” (MUSIĆ, 2013, p. 18). , processado sem consulta democrática, haja vista a sua popularidade entre os trabalhadores31 31 Johanna Bockman também sublinha a opacidade e o modo não democrático com que se implantou o neoliberalismo no Leste Europeu. Acordos em torno da propriedade dos trabalhadores e da autogestão muitas vezes não foram cumpridos, como nos casos da Polônia e da Hungria. Um ex-vice-ministro promotor da privatização na Polônia disse ao cientista político Agnieszka Paczynska que a “privatização não implica tanto em tirar o Estado das empresas, mas sim em tirar delas a autogestão dos trabalhadores” (BOCKMAN, 2011, p. 207-214). (SAMARY, 2004SAMARY, Catherine. Réinsérer la Serbie dans l’analyse de la transition. Rapports de propriété, État et salariat. Revue d’études comparatives Est-Ouest, v. 35, n. 1-2, p. 117-156, 2004.).

À exceção da Eslovênia, que, sob forte pressão sindical e popular, resistira às transformações neoliberais, com governos de coalização de centro-esquerda (ao menos até 2004), de um modo geral pode-se dizer que a guerra e a crise econômica e política foram devastadoras para a classe trabalhadora iugoslava32 32 Para o caso sérvio, ver MUSIC; SAMARY (2004). Para os casos esloveno e croata, ver GRDEŠIĆ (2015; 2008) e SAMARY (2004). . Assim, à parte um sentimento bastante generalizado de “iugonostalgia” (com diversas nuances), o legado da autogestão parece atualmente circunscrito a grupos sindicalistas minoritários e novos movimentos sociais que ainda não encontraram maior eco entre os trabalhadores da era da restauração capitalista.

Conclusão

Vimos que o sistema de autogestão que se desenvolvera na Iugoslávia passou por diversas transformações, envolvendo injunções internas e externas. Essas transformações expressaram a dinâmica política, econômica e social que envolvera fundamentalmente trabalhadores, gerentes de empresas e dirigentes políticos, moldando e redesenhando o singular projeto socialista iugoslavo. Numa primeira fase, pode-se dizer que o sucesso econômico acompanhou o sucesso político do sistema, com significativa participação dos trabalhadores na gestão das empresas, incremento da produtividade, acelerada industrialização e sensível melhoria nas condições de vida. Já pela metade dos anos 1960 a atomização da autogestão, no quadro de uma reforma econômica liberal e de avanço de uma descentralização calcada em identidades nacionais centrífugas, acabou por minar o sucesso econômico testemunhado até então, além de fomentar desigualdades e de fortalecer o domínio gerencial em detrimento da participação operária.

A reação a esses problemas, sustentada pelos dirigentes históricos da Liga dos Comunistas (Tito e Kardelj à frente) sob a forma da Constituição de 1974, que implementara o sistema de Organizações de Base do Trabalho Associado, embora muito sofisticada e ambiciosa, não foi capaz de barrar o processo de desintegração em curso, especialmente agravado pela crise econômica internacional. Encaminhou-se, assim, a derrocada do sistema de autogestão, do projeto socialista iugoslavo e, tragicamente, a violenta dissolução da própria Iugoslávia.

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Notas

  • DECLARAÇÃO DE FINANCIAMENTO

    A pesquisa que deu origem a esse artigo contou com o financiamento da CAPES, no âmbito do Acordo Capes/Cofecub - 688/2010, processo 12072/13-3, e do CNPq, processo 141050/2012-8, no âmbito do Programa de Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp, resultando na tese de doutorado intitulada “O labirinto da autogestão: caminhos e bloqueios do projeto socialista iugoslavo”, defendida em 2017.
  • 1
    A luta fora travada sobretudo pelos partisans, os guerrilheiros comunistas, e pelos chetniks, soldados monarquistas, com hegemonia política e militar dos primeiros. Os comunistas organizaram um Conselho Antifascista da Libertação Popular Iugoslava (Avnoj), que se constituiu no parlamento provisório que deu origem à República Federativa Popular da Iugoslávia, posteriormente renomeada República Socialista Federativa da Iugoslávia. Antes da ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, a “primeira Iugoslávia” era uma monarquia, fundada em 1918 sob o nome de Reino dos Servos, Croatas e Eslovenos, e renomeada Reino da Iugoslávia em 1929. Ver a respeito COGGIOLA (1999COGGIOLA, Osvaldo. Imperialismo e guerra na Iugoslávia: radiografia do conflito nos Bálcãs. São Paulo: Xamã, 1999.).
  • 2
    A palavra autogestão é a tradução literal da palavra servo-croata samoupravljanje (samo equivale ao prefixo grego auto e upravlje significa aproximadamente gestão), criada pelos iugoslavos para designar o seu novo sistema político-econômico-social. Contudo, de acordo com múltiplas apropriações e reconstruções teóricas, bastante intensas sobretudo nos anos 1960 e 1970, seu conteúdo torna-se polissêmico, podendo expressar uma miríade de experiências e concepções anteriores e posteriores ao sistema iugoslavo. Se, nas suas primeiras conceituações, insiste-se na ideia de gestão das empresas pelos próprios trabalhadores, logo se desenvolveram concepções amplas de autogestão, abarcando toda a organização política e social, daí as expressões “autogestão social” e “autogestão plena”. Massimo Follis aponta que seus elementos prefigurativos podem ser encontrados no pensamento anárquico, particularmente em Proudhon, no sindicalismo revolucionário europeu e norte-americano, no socialismo de guildas, na crítica trotskista da burocracia e, sobretudo, no movimento dos conselhos operários, com destaque para os escritos de Karl Korsch e Anton Pannekoek (FOLLIS, 2007FOLLIS, Massimo. Autogestão. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Ed. UnB, 2007., p. 74-75). A bibliografia a respeito da autogestão é vasta, mas podemos destacar ROSANVALLON (1976ROSANVALLON, Pierre. L’âge de l’autogestion. Paris: Seuil , 1976.), GUILLERM; BOURDET (1975GUILLERM, Alain et BOURDET, Yvon. Clefs pour l’autogestion. Paris : Seghers, 1975.), GEORGI (2003GEORGI, Frank (dir.). Autogestion: la dernièr eutopie? Paris: Publications de la Sorbonne, 2003.), FERREIRA (2004FERREIRA, Nathalie. Économie sociale et autogestion: entre utopie et réalité. Paris: L’Harmattan, 2004.), e FARIA (2011FARIA, Maurício Sardá de. Autogestão, cooperativa, economia solidária: avatares do trabalho e do capital. Florianópolis: UFSC, 2011.). Devemos sinalizar ainda que as ideias de democracia industrial e democracia participativa, caras à reflexão anglo-saxã, podem ser aproximadas às teorias de autogestão. É o caso de PATEMAN (1992PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.).
  • 3
    A zadruga é a família extensiva comunitária, unidade de base na comunidade rural que, possuindo em comum os meios de produção, produzia, consumia e deliberava conjuntamente sobre a propriedade e a vida da comunidade. Para Roberto Venosa, ela seria um elemento fundamental para explicar a introdução da autogestão, já que esta encontraria compatibilidade com as “concepções que uma grande parte da população possuía sobre as formas de organizar o trabalho” (VENOSA, 1979VENOSA, Roberto. L’autogestion en Yougoslavie: 1950-1970. Une tentative de réévaluation du processus de l’institutionalisation d’une typologie de l’organisation. Thèse de Doctorat de 3ème Cycle. École des Hautes Études en Sciences Sociales. 1979., p. 122-126). Já o “modelo esloveno” refere-se ao conceito de autogoverno político e iniciativa local aplicado na resistência da Eslovênia durante a ocupação nazista. O modelo esloveno “foi baseado no ‘poder do povo’ expresso por meio de assembleias locais de votantes. Eles elegiam um corpo executivo, o comitê de libertação do povo, a partir de delegados de ativistas políticos dentro da frente de libertação e criaram um fundo, um tesouro e princípios de taxação. A frente insistiu em controle civil de todas as questões econômicas, por conselhos locais independentes de comandantes militares; e distribuíram circulares ao longo da guerra para fazer propaganda para o máximo de iniciativa local e popular” (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 58).
  • 4
    Se antes da Segunda Guerra Mundial a gama salarial recobria a diferença de 1 a 16, com os primeiros anos da República Socialista a diferença caiu para 1 a 3,5 (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 98).
  • 5
    Diretores e dirigentes mostraram-se bastante temerosos sobre a perda de controle dos diretores sobre o coletivo de trabalho. Segundo a OIT, “deve ser enfatizado que o presente sistema de autogoverno nas relações de trabalho, pelo qual os poderes que normalmente fazem parte das prerrogativas da gerência são transferidos para o coletivo e seus órgãos de gestão, não se instituiu sem suscitar apreensão e mesmo oposição entre os especialistas e algumas das principais lideranças na vida política e econômica do país. Mesmo alguns proeminentes defensores dos princípios da gestão operária não dissimularam seu temor de que a autoridade de executivos, e especialmente do próprio diretor, seria dissolvida sob o impacto das mudanças que levaram à aprovação da presente Lei sobre as Relações de Trabalho em dezembro de 1957. Temia-se que um tão extenso autogoverno pudesse minar completamente a responsabilidade do diretor pela gestão eficiente, uma vez que ele não pudesse escolher seus subordinados” (ILO, 1962ILO (International Labour Office). Workers’ management in Yugoslavia. Genebra: La Tribune de Genève, 1962., p. 202).
  • 6
    Em 1969, apenas 19.983 pessoas tiveram fim no seu emprego, e dessas 7.142 eram devido ao fim do contrato, 4.084 eram devido ao absenteísmo no trabalho, 3.626 pela própria vontade do trabalhador, e apenas 1.719 foram demitidas da fábrica (WHITEHORN, 1975WHITEHORN, Alan. Alienation and socialism: an analysis of Yugoslav workers’ self-management. A thesis submitted to the Faculty of Graduate Studies in partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Philosophy. Carleton University, Ottawa, Canada, 1975., p. 210). Pesquisadores do Banco Mundial destacaram essa lei como um mecanismo de salvaguarda contra a demissão econômica: “Os trabalhadores só podem ser demitidos, contudo, em casos de comportamento criminoso ou má conduta grave. Se os serviços de trabalhadores já não são mais necessários, eles não podem ser demitidos. A OBTA [Organização de Base do Trabalho Associado], a empresa ou o fundo solidário de um arranjo mais amplo precisa provê-los com um emprego substituto equivalente. A combinação da provisão de que todos os trabalhadores partilham do rendimento residual obtido e a exclusão de demissões (à exceção de casos de falta grave) leva a um padrão peculiar de ajuste às flutuações nos negócios: as empresas não se ajustam alterando o número de trabalhadores recebendo um salário definido; elas mudam os níveis de renda da força de trabalho inalterada” (SCHRENK; ARDALAN; TATAWY, 1979SCHRENK, Martin; ARDALAN, Cyrus; TATAWY, El; Nawal A. (coord.). Yugoslavia: self-management socialism and the challenges of development. Report of a mission sent to Yugoslavia by the World Bank. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1979., p. 55-56).
  • 7
    Uma das consequências importantes do aumento da produtividade para o mundo do trabalho foi a progressiva redução da jornada de trabalho. Em 1963, a jornada de trabalho semanal oficial foi reduzida de 48 para 42 horas, entrando para o padrão dos países europeus mais desenvolvidos (DUDA, 2010DUDA, Igor. What to do at the weekend? Leisure for happy consumers, refreshed workers, and good citizens. In: GRANDITS, Hannes; TAYLOR, Karin. Yugoslavia’s sunny side: a history of tourism in Socialism (1950s-1980s). Budapest-New York: Central European University Press, 2010, 303-334., p. 311). Depois, em 1965, para 40 horas (com uma hora extra permitida); em seguida, em 1966-1969, para 38 horas (mais uma hora extra), e finalmente para 36 horas (mais uma hora extra) em 1970 (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 272). Garantia-se também a aposentadoria com pensão plena à idade de 60 anos para os homens e 55 anos para as mulheres, com um tempo de trabalho mínimo respectivamente de 20 e 15 anos (ou após 40 anos de trabalho para homens e 35 para mulheres). Após 11 meses de trabalho, todos tinham direito a férias remuneradas, variando normalmente de 14 a 30 dias de acordo com o tempo de trabalho e as profissões (excepcionalmente, as férias podiam durar até 60 dias) (DRULOVIĆ, 1973DRULOVIĆ, Milojko. L’autogestion à l’épreuve. Paris: Fayard, 1973., p. 108-109).
  • 8
    Embora com problemas de desequilíbrios entre setores e regiões, com excesso de investimentos e gargalos, a maior parte das ambiciosas metas do plano quinquenal de 1957-1961 foi não apenas atingida como também ultrapassada já em 1960 (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 129-143; HORVAT, 1976HORVAT, Branko. The Yugoslav Economic System: the first labor-managed economy in the making. Nova Iorque: International Arts and Sciences Press, 1976., p. 47). O Produto Social cresceu 62% entre 1957 e 1960 (a uma taxa de 12,7% por ano, comparada à meta de 9.5%), e o consumo privado de bens e serviços aumentou em 49% (a taxa anual de 10,5% contra a expectativa de 7.3%).
  • 9
    Rusinow sublinha que os liberais eslovenos e croatas foram hábeis no discurso, mudando a ênfase da “descentralização” para a “desestatização”, aproveitando da desconfiança das demais repúblicas com relação às ambições da Sérvia, e utilizando-se de evidência estatística para convencer macedônios e bósnios de que somente os montenegrinos (tradicionalmente próximos à Sérvia) eram consistentemente beneficiados pela redistribuição central. Já em 1964 jovens líderes macedônios, como Krsto Crvenkovski e Kiro Gligorov, eram declaradamente favoráveis à “desestatização” (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 135-136).
  • 10
    No que se refere às repúblicas, com a maior autonomia orçamentária é significativa a diminuição dos critérios igualitários de redistribuição fiscal e de investimentos nos diferentes ramos da produção, embora sempre tenham se mantido políticas redistributivas. É claro que o esforço de convencimento teórico nesse debate entre repúblicas não era o único meio de pressionar o governo federal. As burocracias e lideranças locais frequentemente jogavam com os sentimentos nacionalistas (que se supunham superados) para amealhar suporte popular e usá-lo como ferramenta de pressão nas negociações com as autoridades centrais (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 251-252).
  • 11
    Tratou-se de uma liberalização do comércio exterior, com a desvalorização do dinar, visando a uma maior eficiência da organização do mercado e a um aumento da qualidade dos bens produzidos. E, além disso, do fim do controle sobre a renda pessoal (“salários”) por parte dos sindicatos. O resultado foi uma queda pela metade da taxa de crescimento industrial, aumento das importações com estagnação das exportações e um aumento das rendas pessoais muito além da produtividade. Para se recuperar da recessão gerada, o governo injetou muito dinheiro na economia, do que resultou uma retomada da alta taxa de crescimento. O efeito colateral, contudo, veio em 1964 com uma alta taxa de inflação e um grande déficit na balança de pagamentos (HORVAT, 1976HORVAT, Branko. The Yugoslav Economic System: the first labor-managed economy in the making. Nova Iorque: International Arts and Sciences Press, 1976., p. 20-21).
  • 12
    Houve uma coalização de interesses, ainda pouco diferenciados, que pressionou pelas transformações importantes que o sistema político-econômico iugoslavo sofreu ao longo dos anos 1960. A posteriori, pode-se perceber que o grupo que lutou contra o centralismo mostrava duas tendências, uma que aspirava a um processo de decisões pluralístico por meio de mecanismos essencialmente sindicalistas ou corporativistas, por delegados escolhidos pelos trabalhadores, agrupados de acordo com funções econômicas e sociais. Essa tendência encontrou expressão na Constituição de 1963. A outra tendência, que se expressou nas emendas seguintes, aspirava ao processo de decisões pluralístico numa base territorialmente focada em grupos étnicos (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 254). Embora ambas as tendências tenham contribuído para o avanço da liberalização econômica, a diferenciação é importante, pois será a segunda tendência que em longo prazo ganhará força, por conseguir arregimentar e canalizar as aspirações populares para propósitos nacionalistas.
  • 13
    Alegava-se que tais medidas eram necessárias para fazer frente ao chamado “localismo econômico”. Um dos fenômenos mais criticados na imprensa iugoslava era o das “fábricas políticas”, criadas e mantidas com o apoio do poder local, a despeito de seu caráter não lucrativo, já que a comuna se beneficiava das taxas e dos empregos criados em seu território (RUSINOW, 1977RUSINOW, Dennison. The Yugoslav experiment: 1948-1974. California: University of California Press, 1977., p. 128).
  • 14
    Em cada instituição bancária e comercial havia uma Assembleia Geral, em que os membros fundadores (empresas sozinhas, ou juntamente a “comunidades sociopolíticas”) tinham direito de voto em proporção aos fundos investidos (com o limite de 10% das vozes para cada membro). Quanto aos representantes das “comunidades sociopolíticas” (comunidades territoriais, como comunas, distritos e repúblicas), o limite era de 20% das vozes. Já os bancários podiam deter até 10% dos votos. O órgão executivo, composto de experts e do diretor do banco, era o Comitê de Crédito (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Le marché contre l’autogestion: l’expérience Yougoslave. Paris: Publisud - La Brèche, 1988., p. 168-169). De acordo com Wilson, nos grandes bancos (impulsionados por processo de fusão) o poder dessa gerência profissional era maior (WILSON, 1979WILSON, Duncan. Tito’s Yugoslavia. London: Cambridge University Press , 1979., p. 176-177).
  • 15
    A expressão “acionista” deve ser entendida como uma analogia, dado que não havia ações a serem comercializadas num mercado de capitais. De fato, a recusa das autoridades iugoslavas em adotar um mercado de capitais era alvo de severas críticas de diversos autores que viam na adoção do mercado para os fatores de produção “capital” e “trabalho” a solução para todos os problemas econômicos enfrentados. Como jamais fora introduzido um mercado de capitais nem um mercado de trabalho (a força de trabalho não era mercadoria a ser realocada por meio de demissões), parece haver algum equívoco em falar em “socialismo de mercado” para o período 1965-1971.
  • 16
    Woodward enfatiza o peso da adequação da Iugoslávia às exigências do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio; General AgreementonTariffsand Trade, em inglês) e às orientações do FMI. A autora aponta que desde 1958 os liberais iugoslavos pressionaram pelas mudanças liberalizantes da economia em busca de acesso aos mercados ocidentais e ao financiamento internacional (WOODWARD, 1995WOODWARD, Susan L. Socialist Unemployment: The Political Economy of Yugoslavia (1945-1990). Princeton: Princeton University Press , 1995., p. 222-259).
  • 17
    Sobre o crescente envolvimento dos gerentes de empresa com a vida parlamentar e partidária, ver (PROUT, 1985PROUT, Christopher. Market Socialism in Yugoslavia. London: Oxford University Press, 1985., p. 54-55) e COHEN (1989COHEN, Lenard J. The Socialist Pyramid: elites and power in Yugoslavia. Oakville: Mosaic Press, 1989., 192-194).
  • 18
    O grupo Praxis foi uma escola do pensamento iugoslavo que propôs um socialismo humanista, publicando a revista Praxis de 1964 a 1974. Destacou-se por sua ação político-intelectual contestadora de certas orientações tomadas ao longo da experiência iugoslava, reclamando por uma radicalização da autogestão, criticando a burocratização, a reforma mercantil e a escalada dos nacionalismos com base numa análise de classes. Sobre isso, ver MIGUEL (2018MIGUEL, Sinuê Neckel. Grupo Praxis: o impacto político da crítica humanista marxista na Iugoslávia. Revista Tempos Históricos, v. 22, p. 571-603, 2018.).
  • 19
    Cabe destacar as emendas 21 e 23. A emenda 21 estabelecia a unidade de base de trabalho associado e as atribuições gerenciais dos trabalhadores que a constituem, e a apropriação da renda individual proporcional aos resultados de seu trabalho e sua contribuição pessoal ao sucesso e ao desenvolvimento da empresa por seu trabalho presente e passado. Na definição do volume de tributação paga ao Estado sobre a renda das empresas e a renda individual, a emenda estabelecia ainda a prioridade ao atendimento das necessidades pessoais e comuns dos trabalhadores e às necessidades de investimentos. Finalmente, ficava estabelecida a obrigação das empresas de ajudar aquelas que se encontrem em dificuldades excepcionais, bem como aos operários demitidos em razão de medidas econômicas. Já a emenda 23 estabelecia o princípio de concertação social, por meio de acordos de autogestão entre organizações de trabalho associado e os outros tipos de organizações (comunidades de interesse, comunidades sociopolíticas etc.), passíveis de se tornarem obrigatórios por prescrição legal (MENEGHELLO-DINCIC, 1972MENEGHELLO-DINCIC, Kruno. Evolution récente des conseils ouvriers Yougoslaves. Revue de l’Est. v. 3, n. 2, p. 137-168, 1972., p. 154-168; GJIDARA, 1972GJIDARA, Marc. Les récentes réformes constitutionnelles et les problèmes de l’Etat en Yougoslavie. Revue de l’Est. v. 3, n. 2, p. 41-42, 1972., p. 64-66).
  • 20
    Na IMR, uma empresa do ramo de automóveis, por exemplo, houve um grande revigoramento da participação operária em 1984, instada por uma campanha da Liga dos Comunistas em todo o país. Chamados a apresentarem as suas críticas e propostas para enfrentar a crise, os operários apontaram para a desigualdade entre os trabalhadores de colarinho azul e os de colarinho branco, mas também para dificuldades em se alcançar decisões entre departamentos isolados. Todavia, como suas críticas não encontraram eco em nenhuma formulação concreta por parte dos altos dirigentes, advieram uma grande frustração e apatia no seio da classe trabalhadora (MUSIC, 2016aMUSIĆ, Goran. The self-managing factory after Tito. The crisis of Yugoslav socialism on the shop floor. Thesis submitted for assessment with a view to obtaining the degree of Doctor of History and Civilization of the European University Institute. Florence, January, 2016a., p. 173-177).
  • 21
    Assim, o serviço financeiro deveria cobrir os custos de gestão, mas não mais subtrair lucro. A alocação dos seus recursos ficava inteiramente submetida aos objetivos planificados pela Assembleia Geral das empresas membros, o que deveria conferir maior previsibilidade na confecção dos planos individuais de cada empresa. Além disso, diferentemente do sistema anterior, no qual o poder de voto era proporcional aos fundos aportados, agora cada membro da associação financeira tinha direito de voto igual (SAMARY, 1988SAMARY, Catherine. Plan, marché et démocratie: l’expérience des pays dits socialistes. Cahiers d’étude et de recherche, n. 7-8. Amsterdam: Institut International de Recherche et de Formation, 1988a, p. 3-63., p. 238-239; SCHRENK; ARDALAN; TATAWY, 1979SCHRENK, Martin; ARDALAN, Cyrus; TATAWY, El; Nawal A. (coord.). Yugoslavia: self-management socialism and the challenges of development. Report of a mission sent to Yugoslavia by the World Bank. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1979., p. 61-62).
  • 22
    Embora toda a Europa tenha perdido competitividade com o declínio do dólar após 1973 e o primeiro choque no preço do petróleo, aqueles países cujas moedas eram menos valorizadas (caso da Iugoslávia) foram os mais afetados (EICHENGREEN, 2008EICHENGREEN, Barry. Globalizing capital: a history of the international monetary system. Princeton: Princeton University Press, 2008., p. 152). De acordo com Eric Hobsbawm, “sob pressão do cartel de produtores de petróleo, a OPEP, o preço do produto, então baixo e, em termos reais, caindo desde a guerra, mais ou menos quadruplicou em 1973, e mais ou menos triplicou de novo no fim da década de 1970, após a Revolução Iraniana. Na verdade, a gama real de flutuações foi ainda mais sensacional: em 1970 o petróleo era vendido a um preço médio de 2,53 dólares o barril, mas em fins da década de 1980 o barril valia 41 dólares” (HOBSBAWM, 2014HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 459).
  • 23
    Há uma tendência na literatura anglo-saxã a enxergar o conflito político em termos da oposição “liberais/conversadores”. Assim, no caso iugoslavo, diversos autores identificam um conflito entre as lideranças “liberais” e “conservadoras”, os primeiros favoráveis à descentralização política e econômica (entendida como democratização), e os segundos defensores da centralização do poder político e econômico na Liga dos Comunistas. Consideramos essa divisão problemática por fundir liberalismo político com liberalismo econômico e por não considerar as orientações políticas no campo socialista de acordo com seus próprios termos. Essas orientações eram mais diversas, extrapolando essa dicotomia. Entre os chamados “liberais”, havia desde convictos defensores da economia de mercado laissez-faire até aqueles que desejavam apenas a utilização parcial e temporária de alguns mecanismos de mercado. Sob a etiqueta de “liberais”, havia ainda aqueles que queriam democratização da Liga dos Comunistas e mais poder operário no sistema de autogestão, as formas e a velocidade das mudanças variando de caso a caso. Já entre os “conservadores” havia desde aqueles adeptos da concentração de poder e da forma monolítica de partido, nos moldes vigentes antes da ruptura de Tito com Stalin, até aqueles que simplesmente insistiam no igualitarismo e na manutenção da alocação centralizada de recursos visando à aceleração do desenvolvimento das repúblicas mais pobres.
  • 24
    Thomas Oleszczuk mostra que, embora se falasse na tecnocracia já em 1957, é somente em 1967 que se inicia uma campanha aberta contra a dominação tecnocrática (OLESZCZUK, 1980OLESZCZUK, Thomas. Convergence and counteraction: Yugoslavia’s “antitechnocratic” campaign and electoral results, 1957-1974. Comparative Political Studies, v. 13, n. 2, p. 205-233, 1980.). No plano legislativo, pode-se apontar, por exemplo, para os artigos 101 e 102 da Constituição de 1974, que estabeleciam um controle da composição dos conselhos operários para frear a penetração tecnocrática. No artigo 101, determina-se que a “composição do Conselho operário deve ser adequada à estrutura social da comunidade de trabalho da Organização de Base do Trabalho Associado”, e no artigo 102 especifica-se a interdição daqueles que exercem autonomamente funções gerenciais determinadas pelos Estatutos e pela Lei de serem eleitos para o conselho operário (Constituição de 1974Constitucion de la Republica Socialista Federativa de Yugoslavia. Beograd: Borba, 1974.).
  • 25
    Já em 1981 o governo federal, presidido pelo esloveno Sergej Kraigher, formou uma comissão econômica para definir as medidas de combate à crise. Em 1983, a “Comissão Kraigher” publicou suas conclusões no “Programa de Longo Prazo de Estabilização Econômica”, pelo qual recomendava a liberalização do comércio e mais elementos de mercado, embora conservando a “propriedade social” e a estrutura básica da autogestão (HUDSON, 2003HUDSON, Kate. Breaking the South Slav dream: the rise and fall of Yugoslavia. London/Sterling: Pluto Press, 2003., p. 59).
  • 26
    Tabela extraída de LOWINGER (2009LOWINGER, Jake. Economic reform and the ‘double movement’ in Yugoslavia: an analysis of labor unrest and ethno-nationalism in the 1980s. PhD dissertation, Johns Hopkins University, 2009.) p. 64 , com formatação adaptada.
  • 27
    Este sentimento de falta de poder, embora fosse mais pronunciado entre os operários, também se revelava entre especialistas/profissionais (60% em 1976 e 81% em 1985) e mesmo entre a alta gerência (33% em 1976 e 38% em 1985) (DEVIĆ, 2016DEVIĆ, Ana. What nationalism has buried: Yugoslav social scientists on the crisis, grassroots powerlessness and Yugoslavism. In: DUDA, Igor; STUBBS, Paul; ARCHER, Rory (eds.) Social inequalities and discontent in Yugoslav socialism. Abingdon: Routledge, 2016, p. 21-37., p. 25).
  • 28
    De acordo com Lowinger: “Lideranças regionais conseguiram descarrilhar os movimentos operários e cooptaram grande parte de seu eleitorado em movimentos nacionalistas de todos os tipos. Em meados de 1987, os movimentos nacionalistas ainda eram partidos fracamente organizados nas franjas mais periféricas da sociedade sem qualquer apoio na política oficial em qualquer lugar da federação. Em 1991, esses movimentos controlavam os governos regionais da maioria das unidades federais da Iugoslávia e já tinham o firme controle sobre o próprio governo federal. Para além das intermitentes tensões entre albaneses e sérvios no Kosovo ao longo dos anos 1980, quase não havia tensão étnica da qual se possa falar durante toda a década, e certamente não na Croácia ou na Bósnia, que se tornaram os primeiros grandes campos de batalha das guerras iugoslavas” (LOWINGER, 2009LOWINGER, Jake. Economic reform and the ‘double movement’ in Yugoslavia: an analysis of labor unrest and ethno-nationalism in the 1980s. PhD dissertation, Johns Hopkins University, 2009., p. 80-81). Lowinger sustenta a tese de que o nacionalismo ocupou um vazio político criado pelo impasse entre a insistência dos reformadores neoliberais iugoslavos e do FMI em perseguir o plano de austeridade, e a resistência da classe trabalhadora, que se recusava a perder o seu relativo controle sobre os próprios salários e a aceitar o rebaixamento das suas condições de vida que estava em curso. De acordo com o seu estudo das manifestações dos trabalhadores ao longo da década de 1980, não havia um caráter nacionalista no movimento operário; pelo contrário, havia solidariedade interétnica e crescente amplitude, na medida em que a indignação dos trabalhadores passa a se deslocar do nível intraempresa (primeira metade da década de 1980) (contra gerentes e representantes sindicais) para o nível do governo federal, com manifestações em frente ao parlamento em Belgrado e uma explosão de greves entre 1987 e 1988. Todavia, com a insistência do governo federal em perseguir as reformas exigidas pelo FMI e o silêncio dos governos locais e de cada república, a situação político-econômica degradou-se. No caso sérvio, Musić mostra como o governo em aliança com os gerentes de empresas passam a mobilizar os trabalhadores em comícios, fazendo penetrar slogans nacionalistas ao lado de insígnias socialistas. Esta aliança foi crucial para iniciar a transição a um novo regime de propriedade, na qual aqueles gerentes que escolheram se aliar ao grupo de Slobodan Milošević viriam a obter acesso privilegiado à propriedade privada ou estatal no “pós-comunismo”, marcado por relações clientelistas. Musić destaca a habilidade de uma fração da burocracia sérvia na adaptação às novas condições globais, aliando-se à elite gerencial das empresas para tentar “transformar as camadas sociais privilegiadas sob o socialismo na nova classe dominante com plenos direitos de propriedade” (MUSIĆ, 2013MUSIĆ, Goran. Serbia’s Working Class in Transition 1988-2013. Belgrade: Rosa Luxemburg Stiftung, 2013., p. 17). Contudo, “para os trabalhadores, esse movimento não foi apresentado como uma ruptura com a herança socialista. Muito pelo contrário, ele foi largamente percebido como uma continuação do velho sistema por meio da modernização inevitável. Uma vez que Milošević conseguiu construir a sua imagem como o protetor dos direitos dos trabalhadores e o único detentor da herança socialista iugoslava, as mobilizações independentes da classe trabalhadora foram cortadas pela raiz antes que tivessem a chance de evoluir por conta própria. Em vez de protestos de base dos trabalhadores, a nova liderança começou a organizar comícios de cima para baixo, onde as demandas operárias foram dissolvidas em um programa mais amplo da luta política da burocracia sérvia contra as nomenclaturas políticas rivais em outras repúblicas que começaram a flertar com a ideia de separação da Iugoslávia. A identidade de classe e as greves econômicas foram substituídas por apelos à unidade nacional, supostamente necessária para impedir a dissolução do país” (MUSIĆ, 2013MUSIĆ, Goran. Serbia’s Working Class in Transition 1988-2013. Belgrade: Rosa Luxemburg Stiftung, 2013., p. 17).
  • 29
    A união entre Sérvia e Montenegro acabará por se enfraquecer. Em 2003, extingue-se a República Federal da Iugoslávia, sucedida pela União Estatal de Sérvia e Montenegro. Em 2006, Montenegro decide por referendo pela separação da Sérvia por uma margem muito estreita de votos.
  • 30
    Numa primeira fase (sob variadas formas e com múltiplas etapas de acordo com cada caso), comum a todos os países da ex-Iugoslávia, o processo de privatização não apareceu como contrário ao interesse dos trabalhadores, já que as ações foram distribuídas gratuitamente ou vendidas em condições muito favoráveis (com até 70% de desconto e dez anos para o pagamento) aos insiders (trabalhadores e gerentes das empresas), ou mesmo dispersas entre cidadãos que trabalhavam nos serviços públicos, aos aposentados e aos camponeses (SAMARY, 2004SAMARY, Catherine. Réinsérer la Serbie dans l’analyse de la transition. Rapports de propriété, État et salariat. Revue d’études comparatives Est-Ouest, v. 35, n. 1-2, p. 117-156, 2004.; UVALIĆ, 2001UVALIĆ, Milica. Privatisation and corporate governance in Serbia (FR Yugoslavia). Global Development Network for Southeast Europe (GDN SEE) launched by the World Bank and the Austrian government in cooperation with the WIIW (Vienna) Project on Long-Term Development in Southeast Europe. Florence, December 2001.). De acordo com Musić, os que mais se beneficiaram deste método “não foram os trabalhadores comuns, mas os gerentes de empresa e outros investidores que estavam numa posição para acumular grandes somas de dinheiro através do uso indevido do capital social” (MUSIĆ, 2013MUSIĆ, Goran. Serbia’s Working Class in Transition 1988-2013. Belgrade: Rosa Luxemburg Stiftung, 2013., p. 18).
  • 31
    Johanna Bockman também sublinha a opacidade e o modo não democrático com que se implantou o neoliberalismo no Leste Europeu. Acordos em torno da propriedade dos trabalhadores e da autogestão muitas vezes não foram cumpridos, como nos casos da Polônia e da Hungria. Um ex-vice-ministro promotor da privatização na Polônia disse ao cientista político Agnieszka Paczynska que a “privatização não implica tanto em tirar o Estado das empresas, mas sim em tirar delas a autogestão dos trabalhadores” (BOCKMAN, 2011BOCKMAN, Johanna. Markets in the name of socialism: the left-wing origins of neoliberalism. Stanford: Stanford University Press, 2011, p. 66-86., p. 207-214).
  • 32
    Para o caso sérvio, ver MUSIC; SAMARY (2004SAMARY, Catherine. Réinsérer la Serbie dans l’analyse de la transition. Rapports de propriété, État et salariat. Revue d’études comparatives Est-Ouest, v. 35, n. 1-2, p. 117-156, 2004.). Para os casos esloveno e croata, ver GRDEŠIĆ (2015GRDEŠIĆ, Marko. Exceptionalism and its limits: the legacy of self-management in the former Yugoslavia. In: CARAWAY, Teri; COOK, Maria Lorena; CROWLEY, Stepehen (eds.). Working through the past: labor and authoritarian legacies in comparative perspective. Ithaca: Cornell University Press, 2015, p. 103-121.; 2008GRDEŠIĆ, Marko. Mapping the paths of the Yugoslav model: labour strength and weakness in Slovenia, Croatia and Serbia. European Journal of Industrial Relations, v. 14, n. 2, p. 133-151, 2008.) e SAMARY (2004SAMARY, Catherine. Réinsérer la Serbie dans l’analyse de la transition. Rapports de propriété, État et salariat. Revue d’études comparatives Est-Ouest, v. 35, n. 1-2, p. 117-156, 2004.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2017
  • Aceito
    03 Set 2019
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