Acessibilidade / Reportar erro

“Hegemonia” e “Intelectual Orgânico” na Primeira Idade Média: Gregório I e a (re)elaboração do vocábulo-conceito de rector

“Hegemony” and “Organic Intellectual” in the Early Middle Ages: Gregory I and the (re)elaboration of the vocable-concept of rector

Resumo

Este artigo pretende analisar Gregório I (540-604) como intelectual orgânico do papado frente às monarquias germânicas, isto é, traçar as estratégias do bispo de Roma para firmar sua posição como facção hegemônica frente aos Estados ampliados germânicos. Nesse sentido, acreditamos que a correspondência que o bispo de Roma manteve com os esses reinos, bem como a Regula Pastoralis, nos Dialogi e a Moralia in Iob, podem ser tomadas, num sentido amplo, como indicativas de seu pensamento político e, mais especificamente, como referência de suas ideias acerca das relações entre Igreja e os Estados Segmentários, no sentido de construir um projeto de hegemonia papal.

Palavras-Chave:
Papado; Hegemonia; Primeira Idade Média

Abstract

This article intends to analyze Gregory I (540-604) as an organic intellectual of the papacy against the Germanic monarchies, that is to say: to outline the strategies of the bishop of Rome to establish his position as a hegemonic faction against the German enlarged states. In this sense, we believe that the letters that the bishop of Rome maintained with those kingdoms, as well as the Regula Pastoralis, the Dialogi and the Moralia in Iob, can be taken, in a broad sense, as indicative of his political thought and, more specifically, as a reference of his ideas about the relations between the Church and the Segmental States, in the sense of constructing a project of papal hegemony.

Keywords:
Papacy; Hegemony; Early Middle Ages

Houve um tempo, não muito distante, em que seria temerário e arriscado escrever uma história política do papado medieval. As circunstâncias modificaram-se, felizmente. Atualmente é inegável o renovado interesse não só na história do papado medieval, como também nos séculos de transição que levou a Antiguidade Tardia à Idade Média Latina Ocidental. Desse modo, assistiu-se nas últimas décadas a uma restauração de múltiplas perguntas sobre a questão da continuidade política, cultural e linguística desse período de metamorfose (BANNIARD, 1994BANNIARD, Michel. Zelum discretione condire: Langage et styles de Grégoire le Grand dans as correspondance. In: GUICHARD, P. et al., Papauté, monachisme et theories politiques. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994, p. 29-46., p. 29).

Ademais, há no historiador a tentação de considerar a história do papado como um processo lógico, dominado pela aplicação inabalável de alguns princípios fundamentais, e admirar a tenacidade despendida pelos papas na realização de um programa doutrinal preestabelecido. Seria supérfluo, parece-nos, acrescentarmos que abordamos o assunto deste trabalho do ponto de vista histórico, isto é, consideramos o papado de Gregório I (590-604)GREGÓRIO I -. Regula Pastoralis. Ed. Bilíngue (latim-Italiano). A cura de Giuseppe Cremascoli. Roma: Città Nuova Editrice , 2008. como um fenômeno histórico, desenvolvido e transformado em pleno diálogo com as circunstâncias variáveis da história.

Entretanto, acreditamos que os medievalistas, mesmo aqueles que se dedicam à sua fase inicial, apesar de não ser recomendável ignorar as grandes doutrinas do papado medieval - os dogmas da “sucessão de São Pedro” e do “primado papal”, por exemplo, ou o conceito de “plenitude do poder” -, devem vê-las inseridas em seu contexto histórico, como reivindicações condicionadas pela história, e não como princípios dados e imutáveis. Estamos certos de que o ponto de vista que adotamos ajudará o leitor a compreender melhor a complexidade - sem falar das ideias opostas e das personalidades antagônicas - que torna a história do papado (alto-)medieval tão instrutiva.

Vale sempre lembrar que muitos acontecimentos que contribuíram para a expansão do papado foram acidentais, imprevisíveis e independentes da vontade do papa. E que muitas decisões papais, incluídas aqui evidentemente as de Gregório I, que aparentemente parecem fazer parte de um plano coerente, não passaram, na realidade, de meras reações a circunstâncias e situações particulares.

Contudo, acreditamos que seja pertinente realizarmos, de forma rápida, dados biográficos do objeto deste trabalho. Como nos lembra Piazzoni (2008PIAZZONI, Ambroglio M. Gregorio Magno Politico? Discorso conclusivo. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel , 2008, p, 157-65., p. 157-58), Gregório era proveniente de em uma linhagem aristocrática de classe senatorial que, por gerações, “exerceu poder político e administrativo”. O futuro pontífice, provavelmente, completou um cursus honorum que o fez ascender posições dentro dos ofícios administrativos até ocupar o posto de praefectus Urbis, ao qual foi nomeado, por volta de seus trinta anos, pelo imperador Justino II.

Ele foi, portanto, por um certo período, o principal dirigente da sociedade política em uma Roma cujo poder político estava em termos teóricos nas mãos de um representante especial do imperador de Constantinopla, mas que, na prática, era exercido pelo papa. Gregório teve ainda “espaço” para vivenciar, na fase pré-papal, diferentes tipos de questões administrativas, para, em seguida, transformar sua propriedade em um local de retiro e oração, leia-se, a escolha pela vida monástica e a fundação do mosteiro de Santo André, em que se aplicava provavelmente a regra beneditina. Vale lembrar que a abadia será um dos registros por meio do qual melhor se compreende a concepção de mundo de Gregório I.

Quando Gregório, ainda de acordo com o referido autor (2008PIAZZONI, Ambroglio M. Gregorio Magno Politico? Discorso conclusivo. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel , 2008, p, 157-65., p. 158-59), na figura de apocrisarius, foi encaminhado a pedido do papa Pelagio II à capital do Império Oriental, levou consigo uma pequena comunidade de seus monges, alocando-os em seu domicílio oficial. Ou seja, tentou conciliar os compromissos políticos com uma vida monástica regular. Foi em Constantinopla que o futuro pontífice “começou a fazer política”, o que se percebe especialmente a partir da leitura de suas epístolas, nas quais constatamos que ele manteve relações pessoais com a sociedade política imperial, a saber: o Imperador Maurício, sua esposa e outros membros da família, bem como com o patriarca de Constantinopla, de Alexandria e Antioquia. O que explica, em alguma medida, o fato de ele ter ficado, durante essa fase de sua vida, bem versado nos assuntos e demandas da Igreja Oriental.

Algum tempo depois de seu retorno de Constantinopla, tornou-se papa, substituindo o falecido Pelágio II. Para Piazzon (2008PIAZZONI, Ambroglio M. Gregorio Magno Politico? Discorso conclusivo. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel , 2008, p, 157-65., p.159), Gregório abriu uma nova página da história política do cristianismo medieval, pois, com ele, o papado aprofundou a primeira “reflexão sobre o seu papel em termos de serviço e ampliou os horizontes da Igreja para territórios e povos até então à sua margem”. Em outras palavras, os quatorze anos de seu pontificado marcaram um ponto de virada importante em diferentes dimensões da história de Roma, da futura Europa, bem como da Igreja e do próprio papado.

Com isso em mente, destacamos que Gregório I, como um dos “fundadores” da Idade Média (BANNIARD, 1994BANNIARD, Michel. Zelum discretione condire: Langage et styles de Grégoire le Grand dans as correspondance. In: GUICHARD, P. et al., Papauté, monachisme et theories politiques. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994, p. 29-46., p. 29), deixou-nos uma obra escrita cujo escopo e qualidade levaram a inúmeros trabalhos de investigação que, apesar de sua diversidade, estão longe de ter resolvido todos os seus enigmas. Ou seja, ainda há vários aspectos da personalidade de Gregório - estudioso, místico, missionário, administrador, político, legislador -, bem como de suas intervenções históricas, que permanecem em “pousio”. Dessa maneira, trataremos neste texto das estratégias utilizadas por Gregório I - entendido aqui como “intelectual orgânico” - que procurou, através de suas epístolas e outros textos de sua autoria, solidificar a hegemonia papal como, pelo menos, a máxima autoridade religiosa no Ocidente. Por que justamente Gregório I? Esta tese é fruto de um prolongado interesse pela figura de Gregório, cujo pontificado (590-604) consideramos como um período-chave para entendermos a “fundação” da Idade Média (GAJANO, 2004GAJANO, S. B. Gregorio Magno. Alle origini del Medieval. Roma: Viella, 2004.). Assim, baseados na supracitada autora (2004GAJANO, S. B. Gregorio Magno. Alle origini del Medieval. Roma: Viella, 2004., p. 9), acreditamos que a sua “identidade social, experiência monástica, a capacidade política e diplomática, a consciência espiritual e moral da função pastoral, bem como o prestígio e o poder inerente ao cargo de bispo de Roma”, entre outros aspectos, o tornam uma pessoa central, em cada aspecto da realidade histórica, para melhor entendermos a passagem da Antiguidade à Primeira Idade Média1 1 Apesar da relevância do conceito Antiguidade Tardia e do debate acerca dessa categoria, preferimos a utilização do termo Primeira Idade Média. Isso porque privilegiamos as rupturas compreendidas nesse período em detrimento das continuidades no Ocidente. Cf: SILVA (2013). . Além disso, não podemos esquecer que Gregório transmite aos séculos posteriores um cristianismo capaz de responder às profundas exigências espirituais e morais, de oferecer apoio e proteção neste mundo e garantir a salvação no mundo espiritual. Obviamente que a centralidade que ocupa Gregório na passagem entre a Antiguidade e a Idade Média é fruto de uma interpretação. Essa, todavia, se funda na singularidade qualitativa e quantitativa de testemunhos relativos à sua figura. Desse modo, Gregório surge como protagonista não apenas por aquilo que os outros viram e nos contaram, mas também pelo que nos deixou registrado em suas obras. Assim, as “memórias escritas” do pontífice permitem-nos não apenas reconstruir parte de sua biografia, como também nos oferecem elementos factuais que nos possibilitam recuperar importantes dados de seu contexto histórico. Porém, é digno de nota que cada um de seus trabalhos assume, no contexto de sua biografia, um relevo propriamente histórico, seja pelo momento no qual foi composto, seja pelas referências às situações contemporâneas ou pelas reflexões teológicas, espirituais e morais, cada uma delas destinada a um público diferente ou estratificado, mas não por isso menos real. Seu comentário ao Livro de Jó, denso de reflexões teológicas e morais; sua Regra Pastoral, que atribui as qualidades e comportamentos aos bispos; e, por fim, os Diálogos, em que Gregório entrelaça narração e comentários enviam-nos mensagens de exemplificação e edificação. Obras que, no geral, aparecem como um extraordinário contraponto de reflexão ao Registrum, e justamente por isso não abrimos mão de cotejá-las. Ou seja, apesar de centramos nossas atenções no corpus epistolar gregoriano, acreditamos que seriam extremamente limitadas nossas análises se descartássemos as demais produções de Gregório, uma vez que elas também expressam seus medos, anseios, projetos... enfim, sua visão de mundo!

Testemunho primário da consciência de seu papel, o Registrum, a coleção de epístolas gregorianas, é um instrumento incomparavelmente importante para seguir pontualmente o desenrolar de sua ação de governo, os setores e as questões de intervenção, a rede de relações espirituais, eclesiásticas e políticas. Ele é uma coletânea complexa não só em sua composição, como também pela variedade de temas que expressam as intervenções feitas pelo papa na vida pública do Ocidente, como, por exemplo, a sua participação na gestão ordinária e extraordinária da Igreja. Vale lembrar que as atividades de reformador e administrador do patrimônio papal, sob sua liderança, foram estendidas, o que acarretou novos meios para apoiar o clero, para a manutenção dos edifícios sagrados, bem como para o exercício da caridade na Igreja.

A partir das epístolas, percebemos o interesse de Gregório por problemas de toda espécie, desde aqueles que tratam da espiritualidade transcendente até as necessidades e ansiedades da vida cotidiana; desde a atenção especial para a ortodoxia e a disciplina dentro da Igreja à atenção à gestão, às necessidades materiais e às instituições de caridade. Assim, esse artigo se centrará na análise das missivas enviadas por Gregório I ao mundo germânico ocidental, bem como nos textos mais pastorais e teológicos (Moralia e Regra Pastoral), com o intuito de perceber através delas uma tentativa de afirmação da hegemonia papal e do poder político-religioso do prelado de Roma em face tanto da realeza como das Igrejas regionais2 2 Sobre as Igrejas regionais, relacionadas ao período merovíngio, consultar, entre outros: Lebecq (1996) e Pontal (1989). .

Isso posto, parece-nos fundamental apreciar e, concomitantemente, adaptar o conceito gramsciano da “guerra de posições”. Ou seja, o reconhecimento da autoridade papal junto aos estados, nas sociedades germânicas altomedievais, não se realizará através de um súbito esgotamento da direção aristocrática guerreira. A estratégia da “guerra de posições” fundamenta-se, segundo Gramsci (2007GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007, 4 vols.), numa tomada gradual e contínua (ou processual) de lugares na sociedade política, haja vista que a ampliação da hegemonia pontifical pressupõe a expansão de suas concepções de mundo e de seus interlocutores nas respectivas formações sociais.

Dito de outra forma, acreditamos que esse bispo procurou estabelecer, em alguns de seus trabalhos, uma conduta moral direcionada aos estados ocidentais. Ou seja, potencializou e propagou uma ideologia teológica e política ligada à premissa de que a sociedade política, imperial, bem como a realeza3 3 Uma boa noção de sacralidade é o verbete de V. Valeri, “Realeza”. Aqui, Valeri afirma que o que define a Realeza é o fato de que, no exercício de suas prerrogativas, o rei encarnaria os valores fundamentais da sociedade sobre a qual ele reina, sendo considerado como um ser sagrado e às vezes divino: “Mesmo quando o rei não é sagrado stricto sensu, ele tem relações privilegiadas com aquilo que é sagrado: Deus ou o clérigo que é seu intérprete”. Cf: VALERI, V. “Realeza”. In: ROMANO (1994, v. 30, p. 415-445, especialmente, p. 415). germânica, está a serviço da Igreja, portanto, inserida no plano da salvação (AZZARA, 1997AZZARA, Claudio. L’ideologia del potere regio nel papato altomedievale (sécoli VI-VIII). Spoleto: Centro italiano di studi sull’altomedioevo, 1997., p. 89-158; SENELLART, 2006SENELLART, Michel. As artes de Governar. São Paulo: Editora 34, 2006.).

Desse modo, o Registrum, bem como a extensa e abrangente obra de Gregório, também mostra - e o fato é de particular relevo histórico - a transformação do bispo de Roma no metropolitano do Ocidente, o que corresponderia, por extensão, a uma margem política e econômica mais ampla. Tal passagem pode ser sentida, por exemplo, nas iniciativas tomadas pelo papa, em contraste com o desejo de Bizâncio, nas negociações de paz com os lombardos, ou mesmo no campo da proteção e abastecimento da cidade de Roma, assim como na missão à Britannia, o que não poderia ser feito sem o consentimento da sociedade política gaulesa e anglo-saxã.

As epístolas que compõem tal coletânea exibem características específicas, às quais se contrapõe a linha de cartas fictícias escritas e publicadas a critério de um autor. Ao contrário, o Registrum é a expressão das intervenções gregorianas, muitas vezes ditadas às pressas, às vezes sob o golpe de uma emoção violenta, outras vezes de forma mais meditada, repensada, revista, mas, acima de tudo, portam a concepção de mundo e a atuação pontifical em diversos domínios e em diversos espaços. Devemos ter em mente que, no caso de Gregório I, as palavras são seu instrumento de ação, na medida em que as palavras poderiam levar os grupos subordinados ou aliados a apoiar os projetos desse intelectual e político (BANNIARD, 1994BANNIARD, Michel. Zelum discretione condire: Langage et styles de Grégoire le Grand dans as correspondance. In: GUICHARD, P. et al., Papauté, monachisme et theories politiques. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994, p. 29-46., p. 30-31).

Vale destacar que há pelo menos quatro elementos marcantes nessa coleção de epístolas. Obviamente que elas não estão presentes ao mesmo tempo e nas mesmas “doses” em todas as cartas de Gregório. Reforça-se, aqui, que o ordenamento acima não implica uma hierarquização de tais características. Isso posto, citamos, primeiramente, a influência das regras da chancelaria pontifical; em segundo lugar, a prática pastoral; em terceiro, a cultura bíblica com seus múltiplos discursos; e, por fim, a formação intelectual herdada da antiga tradição escolar, que de forma alguma exerce papel menor.

Talvez seja por isso que as missivas de Gregório representam - pela chancelaria papal, para os seus leitores contemporâneos ou futuros - um documento de trabalho a partir do qual é possível extrair não só uma série de provas, mas também guias legais, morais, espirituais, bem como um modelo de escrita. De forma geral, as correspondências da Alta Idade Média, públicas ou privadas, muitas vezes apresentam dois problemas: a tendência da sobrecarga estilística e a incapacidade de assegurar a correção gramatical. As missivas de Gregório, segundo M. Banniard, passam longe dessas duas armadilhas: dadas as características do latim tardio, suas cartas são escritas em uma linguagem segura e clara. O vocabulário, por exemplo, ainda que por vezes seja técnico, ou ocasionalmente “vulgar”, continua a ser sóbrio (BANNIARD, 1994BANNIARD, Michel. Zelum discretione condire: Langage et styles de Grégoire le Grand dans as correspondance. In: GUICHARD, P. et al., Papauté, monachisme et theories politiques. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994, p. 29-46., p. 45).

Assim, analisaremos esses corpora documentais sob a ótica dos métodos de análise do exercício da autoridade e do poder político-social. Portanto, discute-se, sobretudo, a estrutura e o funcionamento da distribuição da autoridade e do poder, frutos de lutas entre posições e agentes que disputam ou elaboram estratégias para acumular uma espécie particular de capital: a autoridade e/ou legitimação do exercício do poder no Ocidente Medieval, na passagem do sexto para o sétimo século.

Questões teórico-metodológicas

O que nos interessa, neste artigo, é o exame da questão dos intelectuais, o desenvolvimento da formação e a ampliação da atuação dos intelectuais orgânicos vinculados ao papado nos reinos germânicos, na organização e difusão de uma formação social regulada pelos interesses e necessidades da Igreja e, por conseguinte, do papado, especialmente durante o pontificado de Gregório I. Não podemos esquecer que as tendências do epíscopo de Roma, como intelectual, estavam vinculadas ora à manutenção, ora à renovação de percepções de mundo hegemônicas de classe ou facção. O que nos leva a procurar entender, ao longo desta pesquisa, como o papado, aqui efetivado nas ações de Gregório I dialeticamente relacionadas à organização dos Estados segmentários4 4 Estado Segmentário é um conceito desenvolvido por Aidan Southal, abordado por Mário Jorge da Motta Bastos (2008) e aplicado nesta pesquisa. São características, segundo esse autor (BASTOS, 2008, p. 8), dessa configuração política: A) Soberania territorial é limitada (quanto mais afastadas estão as regiões do centro de poder, mas fraca é a autoridade estatal); B) Coexistem, junto com o poder central, focos de poderes locais com relativa autonomia; C) Apesar de o nível de subordinação ser distinto e do relativo nível de autonomia, as relações permanecem de caráter piramidal; D) Existe uma reduzida administração especializada presente, mesmo que, às vezes, de forma itinerante, nas diversas localidades do Estado; E) Quanto mais periféricas estiverem as autoridades subordinadas, maiores serão as possibilidades de mudar de obediência; F) A autoridade central não possui o monopólio absoluto do emprego legítimo da força. do período, posicionou-se frente aos processos de alteração ou conservação da hegemonia dirigente, o que, por sua vez, nos leva a apresentarmos nossos referencias teóricos.

Destacaremos, aqui, os quatro conceitos-chave elaborados por Antonio Gramsci adotados neste trabalho: ideologia, hegemonia, intelectual e estado ampliado. Vale lembrar que esse pensador, em seu trabalho filosófico, sempre propagou a necessidade de conhecer o funcionamento da sociedade, isto é, de descobrir os mecanismos de dominação encobertos pela ideologia dominante, bem como os enfrentamentos das classes na disputa pelo poder. Também devemos sublinhar que promoveremos as adaptações necessárias dadas às realidades de nosso recorte temporal.

O ponto de partida que propomos é a ideia de ideologia tal como foi elaborada por Gramsci. Nesse sentido, para a análise das religiões, na maioria das vezes, será mais fecundo avaliá-las como o que o sardo marxista denominou de “ideologias historicamente orgânicas”, ou seja, necessárias a uma determinada estrutura, em contraste com o que seriam “ideologias arbitrárias” (GRAMSCI, 1978GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 1978.). Desse modo, enquadrando as religiões, segundo Ciro F. Cardoso (2004CARDOSO, Ciro Flamarion. O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica. Brathair, v. 4, n. 1, p. 19-35, 2004., p. 21), a partir do conceito das ideologias historicamente orgânicas, é perfeitamente possível não cair nas simplificações à outrance da falsa consciência (do tipo de “ópio das massas”, por exemplo). Gramsci também nos alerta para a necessidade de não estabelecer correspondências simples ou esquemáticas entre conteúdos religiosos específicos e estruturas sociais (GRAMSCI, 1978GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 1978., p. 119).

Assim, baseados nos apontamentos de Ciro Flamarion Cardoso (2004CARDOSO, Ciro Flamarion. O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica. Brathair, v. 4, n. 1, p. 19-35, 2004.), tentamos neste artigo fazer uma análise da religião como ideologia que procurou esquivar-se dos dilemas apresentados por Stephan Feuchtwang, no artigo “Investigating Religion” (apud CARDOSO, 2004CARDOSO, Ciro Flamarion. O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica. Brathair, v. 4, n. 1, p. 19-35, 2004., p. 22). Isto é, primeiramente, prevenir-se da falsa separação taxativa entre material e ideal (FEUCHTWANG, 1975, p. 68). A religião - como sistema simbólico que orienta a ação com referência a supostos fins últimos (por exemplo, a vida depois da morte) e também uma suposta realidade de ordem superior que faria interseção com o mundo corriqueiro das coisas sensíveis em que se movem os homens, e nele influiria - define-se como uma ideologia, em conjunto com o sistema simbólico e institucional em que ela é partilhada e comunicada5 5 Segundo Ciro F. Cardoso (2004), seriam três os elementos a pesquisar, num enfoque como o proposto, a saber: “1. A apresentação das formas sociais à ideologia e à formação de pontos de vista e experiência partilhada que são os campos de operação ideológica; 2. a coerência interna da ideologia, na qual formas sociais são estruturadas como categorias e sujeitos; 3. a formulação constante de identidades e ações pela ideologia, bem como os efeitos dessa formulação sobre o resto das práticas sociais”. .

Portanto, se a ideologia é caracterizada como um mecanismo cognitivo, uma visão de mundo inseparável da vida social, podemos concluir que não existe formação social sem ideologia. Isso aproxima Gramsci de Althusser, quando este afirma que o homem é um “animal ideológico”; e de Lévi-Strauss, que o percebe como um “animal simbólico”. Seria uma ilusão imaginarmos uma sociedade sem ideologia, pois é por meio dela que os homens tomam consciência de si mesmos, dos outros e atuam no mundo. Nesse sentido, ideologia é poder, ou seja, capacidade que lhe permite atuar e modificar o mundo (ORTIZ, 2006ORTIZ, Renato. Notas sobre Gramsci e as Ciências Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 21, n. 62, outubro, p. 95-103, 2006., p. 99).

Isso posto, partimos para o segundo conceito, o de hegemonia. Esse pode ser interpretado, como o foi no passado por Luciano Gruppi (1978GRUPPI, Luciano. O conceito de Hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro/RJ: Graal, 1978.), sob o ponto de vista preferencialmente ligado ao campo da política. Contudo, hegemonia para Gramsci, como nos lembra Ortiz (2006ORTIZ, Renato. Notas sobre Gramsci e as Ciências Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 21, n. 62, outubro, p. 95-103, 2006., p. 99), também alude a um outro sentido. Dito de outro modo, ao conjunto de questões que se relaciona à busca ou conservação do poder, o que não se restringe a uma única esfera da sociedade - a arte da política-, como se a estrutura da hegemonia realmente nela tivesse o seu núcleo ou a sua origem.

Na concepção gramsciana, a hegemonia implica a aquisição do consenso e da liderança cultural e político-ideológica de uma classe ou fração de classes sobre o restante da formação social (SCHLESENER, 2007SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura em Gramsci. Curitiba: Ed. UFPR, 2007.). Ou seja, a hegemonia relaciona-se com entrechoques de percepções, juízos de valor e princípios entre sujeitos da ação política (MORAES, 2010MORAES, Dênis de. Comunicação, Hegemonia e Contra-Hegemonia: a contribuição teórica de Gramsci. Revista Debates. Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 54-77, 2010., p. 54). Tal conceito, portanto, no sentido gramsciano suplanta a concepção de hegemonia como simples aliança de classes, tese, segundo os autores supracitados, defendida por Lênin, ou como mera obediência de uma categoria em relação à outra. A hegemonia residiria na capacidade de direção política e cultural, ou seja, de edificar uma concepção ideológica de mundo “partidária” à dominação a ser absorvida pelas demais classes ou frações de classes.

Evidentemente que a Igreja não subjuga em absoluto uma sociedade, nem a torna homogênea. Nesse sentido, o pontificado gregoriano, como expressão de uma facção6 6 A nosso ver, parece-nos mais adequado ao contexto histórico da passagem da Antiguidade à Primeira Idade Média o termo facção que o vocábulo fração de classe, uma vez que, sob o capitalismo, as frações da classe dominante se diferenciam pela natureza da relação com o capital e com a extração da mais valia. Nesse sentido, temos, por exemplo, a burguesia comercial, industrial, financeira, etc. O que não se aplica evidentemente no nosso caso, pois, como nos lembra Bastos (2008), as aristocracias, laica ou religiosa, extraem os excedentes da mesma forma, isto é, pela extração da renda - em produto e/ou moeda e/ou serviço - da classe camponesa. da classe aristocrática que almeja ampliar sua hegemonia, tem como principal objetivo promover uma reforma moral e intelectual na sociedade, construindo vontades coletivas em torno de uma concepção de mundo. Assim sendo, o basilar e mais fundamental papel do papado é propagar sua leitura de mundo e seus valores, inicialmente, para grupos próximos e dirigentes, trazendo-os para seu círculo de influência, e, a posteriori, para os grupos mais distantes, da maneira mais ampla possível.

É digno de nota que a cristianização dos reinos surgidos após a fragmentação do Império Romano do Ocidente foi uma tarefa com um objetivo preciso, porém resultando, na prática, em soluções variadas e de acordo com as distintas realidades históricas. Um traço comum que compartilham as distintas estratégias missionárias desenvolvidas durante os séculos IV-VIII foi a conversão dos círculos dirigentes, desde as dinastias reais dos reinos germânicos (por sua decisiva influência na devoção religiosa dos mesmos círculos dirigentes e dos “estados vassalos”) até os grandes proprietários com capacidade de intervenção tanto em ambientes urbanos como rurais.

Isso nos leva ao terceiro conceito, o de intelectuais orgânicos. Um dos passos fundamentais para que o papado, como facção de classe essencial que aspira ao domínio e à direção, seja efetivamente hegemônico, segundo os apontamentos de Gramsci (2007GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007, 4 vols.), é o de criar para si seus próprios intelectuais orgânicos. Estes serão os responsáveis pelo desenvolvimento e promoção da concepção de mundo do bispo de Roma. Também cabe, nesse processo de afirmação hegemônica, tentar cooptar os intelectuais das outras facções e classes antagônicas. No contexto da Alta Idade Média, acreditamos que se tratava, por parte de Gregório IGREGÓRIO I -. Registrum Epistolarum. Ed. Bilíngue (latim-Italiano). A cura de Vincenzo Recchia. Roma: Città Nuova Editrice, 1996-1999, 4 vols., de delimitar e restringir no âmbito da Igreja a formação dos intelectuais orgânicos, impondo-os às facções laicas em sua condição de dirigentes da hegemonia aristocrática em afirmação no período em questão.

Nesse sentido, Gregório I depara-se com um mundo novo, pelo menos no ocidente, com desmoronamento do sistema político ocidental, ficando assim a Igreja desprotegida em meio hostil, uma vez que a autoridade do papa não era reconhecida pelos lombardos, visigodos, anglo-saxões etc., alguns dos quais ainda vinculados à vertente ariana do cristianismo. Assim, vemos na correspondência de Gregório I enviada ao mundo ocidental uma tentativa de entender sua nova realidade e, principalmente, de fazer valer o primado de Roma não só sobre os assuntos de ordem “espiritual”, uma vez que há ligações íntimas e de interdependência entre os campos da religião e política.

Dito de outro modo, nas sociedades pré-capitalistas medievais, diferentemente da sociedade contemporânea, não havia fronteiras claras entre os âmbitos “do religioso” e “do político”. E mais, será justamente essa particularidade um dos fatores determinantes que permitirá, a médio/longo prazo, a ascendência e afirmação do clero, como facção de classe essencial, no papel hegemônico durante a Idade Média Central.

Assim sendo, Gregório I procurará difundir e propagar o dogma da primazia da Igreja de Roma. Essa tese está alicerçada principalmente no discurso bíblico (Mt 16, 18-19: “Tu es Petrus et super hanc petram aedificabo eccleisam meam7 7 Mt, 16, 18-19: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre pedra edificarei minha Igreja”. ) e que, portanto, já possuía certa tradição histórica para os homens medievais. Nesse sentido, o pontífice em questão procurará organizar as sociedades, propondo uma coesão em que, em caso de consenso, se materializaria na supremacia (religiosa, política, econômica, cultural, etc) papal.

Gramsci rompe, como nos lembra Duriguetto (2014DURIGUETTO, Maria Lúcia. A questão dos intelectuais em Gramsci. Serv. Soc., São Paulo, n. 118, p. 265-293, 2014.), com a perspectiva que vê os intelectuais como um grupo em si, solto no ar, “autônomo e independente” na formação social que integram. Deixando de considerá-los de maneira abstrata, avulsa, como casta separada dos outros, Gramsci apresenta os intelectuais intimamente entrelaçados nas relações sociais, pertencentes a uma classe, a um grupo social vinculado a posições em um determinado modo de produção. Toda a aglutinação em torno de um processo econômico precisa dos seus intelectuais para se apresentar também com um projeto específico - ainda que geral - de sociedade.

Daqui a designação de intelectuais “orgânicos”, distintos dos intelectuais tradicionais. Esses últimos, para Gramsci (2007GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007, 4 vols.), eram basicamente os intelectuais ainda presos a uma formação socioeconômica superada historicamente. Nesse sentido, é difícil enquadrar Gregório IGREGÓRIO I -. The Letters of Gregory the Great. Tradução, Introdução e notas de John R. C. Martyn. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 2004, 3 vols. em uma única categoria, uma vez que ele carrega traços tanto dos intelectuais tradicionais como dos orgânicos. Ou seja, todo o pontificado de Gregório I transcorrerá entre o sentimento dual de fidelidade à ordem antiga, atuando como intelectual tradicional, mas, concomitantemente, ao apelo à nova ordem romano-germânica que se estabelece, operando como intelectual orgânico.

No primeiro caso, não podemos esquecer que o papa em questão é um romano perfeitamente convencido de que o Império permanece como a expressão política ideal do universalismo cristão. Além disso, sabemos, pela correspondência gregoriana, que a Igreja possui considerável patrimônio, recursos econômicos de monta e beneficia-se de constantes donativos. Mas, por outro lado, não foi apenas o sistema político romano que colapsou em 476; tal crise também se estende ao modelo de produção e das relações de produção (WICKHAM, 2006WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages. Europe and the Mediterranean, 400-800. Oxford: Oxford University Press, 2006.). Por isso, é possível enxergar em Gregório I o intelectual orgânico da nova ordem. Ademais, não podemos esquecer que coube à Igreja, e por extensão a ele, o papel de criar mecanismos e instituições de apoio aos desvalidos (pobres, prisioneiros e escravos) do novo sistema de produção que ia se implantando pelo ocidente, em especial a caridade que, em última análise, contribuía para a reprodução e reforço do mesmo sistema. Os intelectuais orgânicos são os intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e em expansão.

Assim, há em Gregório IGREGÓRIO I -. Dialogi . Ed. Bilíngue (latim-Italiano). Introdução de Benedetto Calati, Tradução de Suore Benedettine Isola San Giorgio. Roma: Città Nuova Editrice , 2000. uma relação estreita entre o conceito de “orgânico” e o de “luta pela hegemonia”, ainda mais se considerarmos que os dois remetem ao projeto papal de universalização e homogeneização do cristianismo e, por extensão, da Igreja. Então, em Gramsci, os intelectuais são “orgânicos” a um grupo social ou ao Estado (GRAMSCI, 2007GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007, 4 vols., p. 1584). Tratava-se, neste caso, em face de uma “nova aristocracia” que se baseia, crescentemente, num ethos guerreiro, de requisitar ao clero o papel exclusivo, e hegemônico, de intelectuais dirigentes dos novos blocos de poder.

Isso posto, partimos agora para o último conceito aqui apresentado. O Estado ampliado é, na concepção gramsciana, segundo R. Arantes e C. Pereira (2014ARANTES, Rafael de Aguiar; PEREIRA, Carla Galvão Pereira. Gramsci e o sentido da política: materialismo histórico, recusa dos dogmas economicistas e das ilusões ‘ideologistas’. Prelúdios, Salvador, v. 2, n. 2, p. 45-71. 2014., p. 61), um campo no qual as facções e/ou classes sociais lutam pela hegemonia, ou seja, buscam generalizar sua concepção de mundo, estabelecendo alianças e aliciando outras camadas para sua zona de influência, bem como procuram controlar o aparelho de dominação, com o objetivo de impor, via coerção, seu projeto político-econômico e cultural aos grupos que não conseguiram fazer aceitar os seus pontos de vistas. Nas palavras de Gramsci:

O Estado é certamente concebido como organismo próprio de um grupo, destinado a criar as condições favoráveis à expansão máxima desse grupo, mas este desenvolvimento e esta expansão são concebidos e apresentados como força motriz de uma expansão universal, de um desenvolvimento de todas as energias “nacionais”, isto é, o grupo dominante é coordenado concretamente com os interesses gerais dos grupos subordinados e a vida estatal é concebida como uma contínua formação e superação de equilíbrios instáveis (no âmbito da lei) entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados, equilíbrios em que os interesses do grupo dominante prevalecem, mas até um determinado ponto, ou seja, não até o estreito interesse econômico-corporativo (2000GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere - Os Intelectuais. O Princípio Educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2000, v. 2., p. 41-42).

Tais caracterizações gramscianas nos fazem pensar sobre o conceito político que Gregório IGREGÓRIO I -. Moralia in Job. Ed. Bilíngue (latim-Italiano). A cura de Paolo Siniscalco, Tradução de Emílio Gandolfo. Roma: Città Nuova Editrice , 1992-2001, 4 vols. mobilizou - o de rector cristão -, ou seja, a concepção de que a sociedade política estaria a serviço da Igreja. Achamos pertinente sublinharmos que, apesar de preferir pessoalmente o modelo de governo imperial, sua realidade o empurrava a dialogar com os reinos romano-germânicos que o substituíram no Ocidente. Portanto, Gregório, a partir desse contexto, procurou propagar tal concepção em um perene exercício ideológico diplomático com os Estados ampliados ocidentais.

Desse modo, via difusão desse projeto ideológico político, Gregório procurou assumir a direção espiritual do Ocidente, tendo o mérito de elevar-se acima das contingências e de propor aos seus contemporâneos uma síntese (uma vez que sofre influência de Paulo, Santo Agostinho, Leão I e Gelásio I) da concepção cristã do homem e do mundo na qual a reflexão sobre o poder (sem se desvincular das novas relações de produção) ocupa lugar especial.

O poder para o papa se apresenta como uma função e não um privilégio (noção de serviço) (SENELLART, 2006SENELLART, Michel. As artes de Governar. São Paulo: Editora 34, 2006.), com base na concepção de que o poder não se confunde com uma qualidade particular e individual. Portanto, atuando como orientador moral da sociedade política romana-germânica, ou melhor, como intelectual orgânico, o bispo de Roma dirigia-se aos soberanos para aconselhá-los, adverti-los e reiterá-los de suas obrigações de governantes cristãos. Assim, propomos a concepção de “estado ampliado” como articulação entre estado e Igrejas “nacionais”. Nesse caso, a hegemonia incidiria por afiançar, na posição superior e diretiva do papa, a ascendência sobre todos os estados ocidentais.

Como mostrou Pacaut (1989PACAUT, Marcel. La théocratie. L’Église e le pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989.), a preocupação de Gregório I era impedir a fragmentação religiosa que poderia beneficiar a dispersão e o isolamento políticos decorrentes do estabelecimento dos germanos no Ocidente. Para isso, avaliava como indispensável promover certa coesão em torno de um polo único, a saber, a Igreja. Para tal, o epíscopo de Roma não via outra forma de conseguir esse fim senão pela ratificação das prerrogativas do papa e a primazia de Roma. Nesse sentido, procurar fazer-se enxergar como o sucessor de Pedro era basilar, notadamente junto à sociedade política.

Gregório I e o poder régio - aspectos teóricos

No século V, o Império Ocidental entra em uma profunda crise. O declínio do Estado imperial finda com a queda definitiva de Roma para Odoacro, que toma o título de rex gentium (476). Das ruínas imperiais permaneceu a Igreja como principal força organizada e civilizadora, destacando-se como importante agente transmissor da cultura romana no Ocidente medieval. Fundada ideologicamente na autoridade de sua doutrina, detentora da cultura e dona de bens de raiz, ela pode materializar progressivamente sua posição de classe hegemônica.

Contudo, um sistema social só é integrado quando se arquiteta um sistema hegemônico, conduzido por uma camada fundamental que deposita o comando nos intelectuais. O exame desse princípio não pode, desse modo, ser disjunto do conceito de hegemonia e do bloco intelectual.

Fazendo-se herdeira e sucessora do Império Romano Ocidental, acabou ocupando, pouco a pouco, o espaço do poder imperial. Lembramos que o novo estrato social em ascendência deve desenvolver sua própria camada de intelectuais, que estará vinculada à vida prática do grupo e, em vista disso, consegue elaborar uma visão de mundo coesa com essa prática, conferindo, portanto, nitidez ao papel histórico dessa confraria - seus intelectuais orgânicos. Gramsci (1982GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira , 1982.) assinala, ainda, como temos visto, que toda classe social que avança na direção do domínio precisa procurar incorporar os intelectuais tradicionais, os representantes da base econômica antecedente e difusores dos aparelhos hegemônicos da então classe dominante.

O desmoronamento do Estado imperial, no Ocidente, deixou a Igreja desprotegida. E, como sabemos, os “bárbaros” que ocupavam a Itália, a Hispânia e a África do Norte, inicialmente, não perfilham a autoridade hegemônica do bispo de Roma, já que adotaram, em sua maioria, o arianismo.

Problemas complexos e graves colocavam-se, portanto, à hegemonia da facção eclesiástica. Dois exigem providências imediatas: a restauração do mundo nesses “tempos de confusão”, como tão bem definiu Le Goff (2005LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru/SP: Edusc, 2005.), e o estabelecimento de relações com os reinos que se fundaram no antigo território do Império, tarefas que Gregório I tentou resolver.

Com um sentimento de adesão cultural e institucional ao Império Romano Cristão, o papado, de acordo com Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 3), na transição do sexto para o sétimo século, deparava-se com um contexto histórico complexo, posto que o mundo ocidental vivia um período muito heterogêneo - na verdade, fracionado. Limitando-se apenas aos principais reinos e sendo altamente simplista, tínhamos um reino franco, católico e aliado, mas enfraquecido pelas lutas internas entre os vários expoentes da dinastia merovíngia ao poder; um reino visigodo, na Península Ibérica recém-convertida ao cristianismo niceísta, porém distante diplomaticamente da sé pontifical e do Império Oriental; no Norte da Europa, havia o quase desconhecido reino dos anglo-saxões, que, por iniciativa de Gregório I, recebera a pregação cristã e começava a se abrir ao sistema de valores transmitido pelo catolicismo romano.

Para além desses regna, o pontificado gregoriano vivia um evento de muito maior emergência e dramaticidade, a saber, a consolidação na Península Itálica do reino dos lombardos, os quais eram um povo agressivo à população romana e hostil à Igreja nicena. Embora também pressionassem a região centro-sul, colocando em perigo a integridade da antiga capital do Império, enraizaram-se na região setentrional da Península.

Em razão da grande quantidade de interlocutores, a capacidade de diálogo do pontífice se exercitou com uma intensidade ímpar, considerando-se os padrões da época. E, por conta dessa situação específica, Gregório I procurou, como objetivo principal, tanto defender e consolidar a fé católica como tutelar a instituição eclesiástica. Em outros termos, conforme apontou Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 4), as múltiplas variáveis oferecidas pelo contexto histórico de seu tempo forçaram o pontífice a um trabalho de delicadeza e complexidade particular. Impulsionado por diferentes preocupações e objetivos, encontramo-lo dialogando com as sociedades políticas das gentes, com o imperador e com o próprio dominus.

Assim, uma reflexão sobre as lutas pela hegemonia na Primeira Idade Média não pode ignorar Gregório IGREGÓRIO I -. Moralia in Job. Ed. Bilíngue (latim-Italiano). A cura de Paolo Siniscalco, Tradução de Emílio Gandolfo. Roma: Città Nuova Editrice , 1992-2001, 4 vols.. Não podemos negar aqui, conforme apontou Judic (1997JUDIC, Bruno (1997). Grégoire le Grand et le pouvoir royal. In: XIIth International Conference on Patristic Studies. Oxford, 1995., Studia Patristica XXXIII ed. Elisabeth A. LIVINGSTONE, Leuven, 1997, p. 434-440., p. 434), que ele seja primeiramente um escritor espiritual. Basta ler, por exemplo, a obra Moralia. Porém, considerando as circunstâncias históricas e o posto por ele ocupado, facilmente o encontramos envolvido, como intelectual orgânico, em quase todos os problemas do Estado ampliado de seu tempo. O papa nos deixou um claro testemunho disso em sua correspondência. Aí está, por exemplo, a principal diferença entre as Moralia e seu Registrum Epistolarum.

E mais: localizamos em Gregório I, como em alguns de seus contemporâneos - Isidoro de Sevilha e Gregório de Tours, por exemplo -, uma nova etapa da história das ideias sobre a realeza (REYDELLET, 1981REYDELLET, M. La royauté dans la literature latine de Sidoine Appollinaire à Isidore de Seville. Paris: École française de Rome, 1981.). Esse é o momento no qual a teoria da realeza cristã começa a tomar forma. Em verdade, nada predestinava Gregório I a desempenhar esse papel, haja vista que esse romano passou boa parte de sua vida em terra imperial. Sujeito do imperador, e súdito fiel, ele conhecia de longe os reinos do Ocidente. Afinal, não viveu, durante aqueles anos, sob sua dominação.

Portanto, Gregório I tinha, na essência, uma visão tomada a partir do exterior. As relações ambíguas, mistura de admiração, de ódio e de desconfiança, que unia as populações da Gália e da Hispânia, por exemplo, com seus novos mestres, escapavam dele. Isto é, Gregório I não imaginava que estava nascendo uma profunda solidariedade entre o novo poder político e seus súditos, independente da questão étnico-cultural.

O Estado imperial continuava, aos olhos do futuro papa, como o quadro ideal da organização política, não vislumbrando, desse modo, na realeza “nacional”, qualquer possibilidade de substituir a monarquia universal. Nesse sentido, Gregório mantinha ainda uma concepção conservadora quando comparada às posições vanguardistas de Gregório de Tours e de Isidoro de Sevilha (REYDELLET, 1981REYDELLET, M. La royauté dans la literature latine de Sidoine Appollinaire à Isidore de Seville. Paris: École française de Rome, 1981.).

Contudo, era extremamente complicado para o bispo de Roma ignorar a realidade em que se inseria. Isso nos leva a concluir que, se Gregório I se interessou pelos reinos ocidentais, isso se deve menos por simpatia que por necessidade. A fraqueza do Estado ampliado imperial oriental, impotente em socorrê-lo contra os lombardos, era uma realidade concreta.

Contudo, independente dos domínios ideológicos locais, a tarefa era complexa e árdua. Na Gália e na Hispânia, por exemplo, a Igreja era dependente da política religiosa dos reis. Assim, estes podiam tanto favorecer como contrariar as orientações e dogmas da ortodoxia romana. Isso se tornava imperioso para que Gregório I, caso pretendesse na prática ser o patriarca do Ocidente exercendo uma posição de hegemonia, mantivesse uma relativa influência, ou mesmo controle parcial sobre tais governantes. E, por fim, não poderia negligenciar, se quisesse prosseguir com seu projeto pessoal de evangelizar os anglos, a ajuda que os príncipes francos eram capazes de oferecer aos missionários que, invariavelmente, deveriam atravessar seus reinos em direção ao Norte.

Segundo Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 4-5), a extraordinária complexidade do trabalho realizado por Gregório I no jogo político de seu presente histórico tem provocado na crítica contemporânea interpretações discordantes sobre a figura e o princípio de suas ações. Em outros termos, ele pode ser delineado como o “papa das nações nascentes”, em algum alcance antecipador do “equilíbrio” político medieval de uma Europa Ocidental, uma vez que edificou para seus herdeiros uma base de apoio repousada sobre os reis cristianizados no Ocidente, em contraposição a uma Constantinopla sempre muito distante; ou, o oposto, como o último dos grandes pontífices da Antiguidade, incardinado sem hesitação no Império e herdeiro natural dos valores tradicionais da aristocracia romana, compreendendo a aversão cultural e a inflexível hostilidade, quase que “ideológica”, pelas barbarae nationes.

Não se deve esquecer, conforme nos lembra Judic (1997JUDIC, Bruno (1997). Grégoire le Grand et le pouvoir royal. In: XIIth International Conference on Patristic Studies. Oxford, 1995., Studia Patristica XXXIII ed. Elisabeth A. LIVINGSTONE, Leuven, 1997, p. 434-440., p. 435), do Mediterrâneo Oriental. Na carta (Ep. III.62), Gregório parabeniza Domitiano, metropolitano da Armênia e bispo de Melitene, por tentar converter o “Imperatorem uero Persarum”. Observa-se que o bispo de Roma utilizou a palavra imperador, permanecendo fiel a uma antiga visão de mundo onde convivem dois impérios rivais e civilizados: o Império Romano e o Persa. Gregório I deveria conhecer as relações com os persas, pois foi durante sua estadia em Constantinopla que se realizaram as decisivas vitórias bizantinas sobre tal povo.

Temos, assim, a constituição de uma quádrupla leitura da figura de Gregório Magno: como um papa-monge animado pela instância puramente espiritual e pastoral, como no trabalho de E. Delaruelle (1960DELARUELLE, E. L’Eglise Romaine et ses relations avec l’Eglise Franque jusqu’em 800. In: Le Chiese nei regni dell'Europa occidentale e i loro rapport con Roma sino all’800. Spoletto, 1960, p. 143-184.) e Spanneut (1990SPANNEUT, Michel. Os Padres da Igreja. v. II: Séculos IV - VIII. São Paulo/SP: Loyola, 1990.); como um papa cuja índole aristocrática romana o impelia a atuar com uma política concreta, como na obra de G.Vinay (1978VINAY, G. Alto Medievo Latino. Conversazioni e no. Napoli: Guida, 1978.); como o último grande papa da Antiguidade Tardia, como na análise de E. Demougeor (1986); ou, ao contrário, como o papa retratado como o arquiteto de um primeiro avanço significativo do Ocidente Medieval, em oposição a Constantinopla, como nas pesquisas de W. Ullmann (1972ULLMANN, Walter. A short History of the Papacy in the Middle Ages. London: Methuen, 1972.).

Independentemente dessas possibilidades redutoras de enquadramento, é inegável o papel hegemônico, ao menos no que tange à liderança espiritual, que Gregório I desempenhou junto aos Estados ampliados germânicos. Sua influência, porém, não parou por aí, estendendo-se, por exemplo, sobre o desenvolvimento de novas ideias políticas. Assim, apontamos como um dos principais méritos desse pontífice a proposição a seus contemporâneos de uma concepção cristã de homem e de mundo. Os diversos reinos, que tinham anteriormente procurado sua imagem ideal em seu próprio passado - por conseguinte, a função que o autor reconhecia a Teodorico ou a Clóvis -, encontram-se na visão de Gregório reduzida à unidade: eles são uma das peças da ordem do mundo e respondem a uma função: contribuir para a salvação da humanidade.

Por suas funções e pela situação real de Roma, Gregório se localizava no centro do mundo, em uma posição de quase supremacia temporal. Porém, é válido lembrar que, em termos de direito, o pontífice ainda era, no fim do século VI, súdito do imperador. Contudo, devido à invasão lombarda e à geografia - Roma estava longe de Ravena e ainda mais distante de Constantinopla -, podemos afirmar que, apesar do suposto desprendimento pelo exercício do poder temporal, pois aparentemente ele preferia sentir mais a presença do Império e desfrutar da proteção de suas armas, Gregório I era, na prática, o soberano de sua cidade. E, como tal, não poderia fugir de seu papel político.

Nesse sentido, Gregório mencionou, em suas epístolas, vários reis germânicos contemporâneos a ele. Na Gália: Brunilda e seu filho Childeberto II (Ep. V.58; V.59; V.60; VI.5 e VI.6), Theodeberto II da Austrásia e Thierry II da Burgundia (Ep. VI.51; IX.216; IX.227; XI.47; XI.50; XIII.7; XIII.9; XIII.10 e XIII.11), bem como Clotário II da Nêustria (XI.51). Na Hispânia: Recaredo (Ep. I.41 e IX.229). Na Península Itália: Agilulf (V.34; V.36; VI.33; IX.11; IX.44; IX.66; IX.196 e XI.6), assim como a rainha Teodelinda (IV.2; IV.4; IV.33; IV.37; V.52; IX.68 e XIV.12). Por fim, a Inglaterra: Ethelberto, rei de Kent, sua esposa Bertha (Ep. XI.35; XI.37).

Podemos caracterizar, conforme nos lembra Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 3-4), como extremamente fragmentado e diversificado o trabalho pastoral e diplomático empreendido pela instituição pontifícia, principalmente em virtude do quadro político europeu. Em outros termos, o bispo de Roma lidou com uma multiplicidade de problemas e desafios que exigiam a realização de articuladas intervenções e respostas, que, muitas vezes, diziam respeito a uma dada conjuntura ou situação em particular, posto que o pontífice devia considerar tanto a diversidade das questões em jogo como as diferentes margens de manobra disponíveis em cada contexto.

Assim, aceitando grande número e as pesadas tarefas do próprio ofício, especialmente o de defender os interesses da Igreja e da religião cristã, Gregório I, ainda de acordo com Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 5), teve de se relacionar frequentemente com os líderes dos Estados ampliados de seu período, isto é, o Imperador e os soberanos germânicos, bem como com uma variedade de agentes das sociedades políticas de diferentes graus, tanto na respublica como nos regna. Apesar da diversidade de perfis, casos e temas, é possível extrair, a partir da análise de seus textos, um modelo teórico geral, um speculum principis, que “representa a conceituação tanto da figura do monarca católico, isto é, de suas prerrogativas e competências, como de um governo virtuoso dos homens e para o correto funcionamento da sociedade cristã”.

Em tal arquétipo ideológico, segundo Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 6), concebido a partir da tradição de raiz helenístico-cristã, recuperada e adaptada, sobretudo, por meio de santo Agostinho, Gregório procurou elaborar um exemplo, um ponto de referência, que norteasse fortemente as ações dos seus diversos interlocutores, bem como uma forma de racionalizar idealmente o aparente desequilíbrio entre a singularidade e a universalidade do Império cristão e a existência de uma pluralidade de Estados ampliados germânicos, que se difundiram e se tornavam paulatinamente cada vez mais prósperos em todo o Ocidente.

A combinação da realidade histórica com as diferentes obrigações relacionadas ao ofício papal - ao mesmo tempo entendida como o centro de todo o cristianismo, enquanto sucessor de São Pedro, primaz da Igreja Ocidental (haja vista que tinha como concorrente o bispo constantinopolitano no lado oriental), metropolitano da Itália Suburbicária8 8 A Diocese da Itália Suburbicária (em latim: Dioecesis Italia Suburbicaria) era uma diocese do Império Romano, originária da reforma empreendida pelo governante Diocleciano, no século IV. A Itália Suburbicária correspondia geograficamente a toda a área centro-sul da Península Itálica e era dirigida pelo vigário de Roma, a mais importante autoridade civil da diocese. e bispo de Roma - acabou inspirando uma prática na qual não era possível ao papa isolar a instância política e diplomática da área religiosa e pastoral.

Nesse sentido, na perspectiva de Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 4), o apelo papal à conversão, à defesa da ortodoxia religiosa ou ao respeito para com a Igreja, seja para o christianissimus imperator ou para os reges gentium, normalmente era acompanhado da preocupação de assegurar a paz, sobretudo na agitada Itália sob o domínio dos lombardos. Gregório I também pretendia criar laços políticos, culturais e diplomáticos que ligassem os regna e o Império. O objetivo do prelado romano era amenizar as tensões e, concomitantemente, construir um princípio de ordem internacional, no qual ele ocuparia posição de destaque.

O lugar figurativo onde se condensam e se amalgamam todas as caracterizações gregorianas de hegemonia, inclusive a régia, é a palavra-conceito rector (AZZARA, 2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 6; MARKUS, 1986MARKUS, Robert Austin. Gregory’s the Great “rector” and his genesis. In: FONTAINE, J; GILLET, R. Grégoire le Grand. Actes du Colloque international du CNRS tenu à Chantilly, Centre culturel Les Fontaines, 15-19 septembre 1982. Paris, CNRS Editions , 1996, 1986, p. 137-46.), verdadeira síntese da inspiração cristã. Para Gregório I, rector é aquele que foi chamado a governar os homens em uma comunidade política cristã, indiferentemente do fato de que ele possa ser um líder político (um imperador, um rei, um oficial de grau inferior) ou o titular de um alto cargo eclesiástico (um bispo ou um abade).

Se as atividades do príncipe e do prelado são tão análogas, por que então eles estão frequentemente em desacordo? Embora ambos se refiram tanto ao reino terreno como paradisíaco, certamente suas prioridades são espelhos opostos. O prelado serve ao reino do Céu primeiro, e o terreno em segundo; no príncipe, por sua vez, prevalece a ordem inversa. Os dois poderes permanecem distintos, apesar de sua similaridade (STRAW, 1991STRAW, Carole. Gregory’s Politics: Theory and Practice. In: Gregorio Magno e il suo tempo. Rome: Institutum Patristicum Augustinianum, 1991, v. 2, p. 47-63., p. 58). Dessa forma, para Gregório a complementaridade expressa ambivalência: uma tensão dinâmica alternada entre continuidade e oposição; similaridade e diferença. Essa concepção está em toda parte em seu pensamento (EVANS, 1986EVANS, G. R. Though of Gregory the Great. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.).

Em sentido complementar, o bispo romano incorpora uma nova ideia: partindo da comparação entre os reges e os sancti uiri, deduz que a prática adequada da monarquia poderia tornar sancti os reis (Mor XXVI.28); na verdade, ele atribui-lhes um lugar especial no paraíso, na condição, é claro, que professem a fé católica necessária para a sua exigência de elevação à santidade secular. Assim, em sua concepção hierárquica, Gregório entende que os reis (católicos) ocupam a posição mais alta no mundo terreno ao lado do uicarii Christi, ao menos idealmente. Em outras palavras, os governantes e os bispos lideram suas comunidades (REYDELLET, 1981REYDELLET, M. La royauté dans la literature latine de Sidoine Appollinaire à Isidore de Seville. Paris: École française de Rome, 1981., p. 479-481; 493-496). Daí a importância, conforme salientou Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 6) da polivalência semântica do vocábulo-conceito de rector, inteiramente acolhido por Gregório I, que abarca e invalida todas as fronteiras entra a instituição laica e a eclesiástica, ao mesmo tempo que reitera a mescla da natureza religiosa e política.

A matriz ideológica do speculum gregoriano de rector fundamenta-se (AZZARA, 2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 7) na ideia da posse do poder como serviço (ministerium), ou seja, conceber o próprio exercício de comando como ministerium. Tal fundamento, na ótica de Gregório I, significava recuperar diretamente o supremo exemplo de Cristo, o Rei dos reis, que também se coloca, por vezes, a serviço dos homens, fortificando o ânimo com a virtude da humilitas contra o perigo da elatio, típica prerrogativa diabólica. Portanto, quem governa deve ter sempre em mente que os homens foram criados iguais por natureza e que a existência da hierarquia, mesmo dependência servil, deve-se à culpa do pecado. Em outros termos, os grupos dirigentes, seja um prelado ou um governante, não podem se animar com o poder hegemônico que detêm; ao contrário, devem se alegrar por ter recebido de Deus o benefício de dirigir as classes subordinadas. Estes últimos, por sua vez, devem obedecer aqueles que Deus escolheu sem a imprudente pretensão de julgá-los, mesmo que eles errem, pois um mal governante é um instrumento de punição divina pelos pecados cometidos pela comunidade9 9 Veja Regula Pastoralis II.6 e III.5: sobre o papel do pecado como determinante nas hierarquias entre homens, bem como os conhecimentos e os cuidados que devem ter aqueles que governam. .

O modelo de rector cristão é ainda determinado, segundo Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 8) pelo emprego de determinadas virtudes, presentes também em várias epístolas gregorianas destinadas às classes dirigentes dos Estados ampliados germânicos, que, em diversas ocasiões, recuperam o ponto de vista de realeza legada pela filosofia helenística, em especial o estoicismo10 10 Apenas como exemplo trazemos Sêneca (4 a.C - 64 d.C.). Esse pensador estoico defende que o governante deve esquecer-se de si mesmo para atuar em prol de seus súditos, além de afirmar que o príncipe não é um senhor, nem um deus; mas, sobretudo, um servidor e intérprete das leis (CORASSIN, 1999). . Nesse sentido, os soberanos cristãos, e de igual forma os prelados, são para Gregório I convidados a desempenhar, na execução da própria ação, o mesmo conjunto de valor ético, sintetizado pelas virtutes da benignitas, bonitas, prudentia, largitas, sapientia, clementia, mansuetudo e, sobretudo, das fundamentais iustita, aequitas e humilitas (Regula Pastoralis, III.9, 16, 17, 20, 21, 22, 23). Em contrapartida, a oposta ausência de virtutes é caracterizada pela presença de ira, superbia-elatio, malitia, invidia, discordia, as quais é fácil apresentar, devido tanto à fragilidade da condição humana como à inclinação ao pecado (Regula Pastoralis, III.9, 10, 12, 16, 17, 20, 22).

A mescla do plano laico e eclesiástico na figura do rector, determinada pela divisão das tarefas e prerrogativas comuns, encontra-se reforçada na reiterada referência ideológica ao modelo exemplar bíblico do rei-sacerdote, especialmente Davi (AZZARA, 2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 8).

Vale ressaltar a importância, na sociedade medieval, das formas de pensar analógicas. Segundo Hilário Franco Junior:

Para o homem medieval o pensamento analógico era [...] determinante no seu saber, agir, sentir. O ponto de partida e, ao mesmo tempo, a síntese disto estava na percepção de que o universo era uma imensa rede de correspondências, de relações micro-macrocósmicas (2013FRANCO JÚNIOR, Hilário. Similibus simile cognoscitur. O pensamento analógico medieval. Medievalista. n. 14, 2013. Disponível em Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA14/junior1402.html . Acessado em 21/09/2017.
http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista...
, p. 32).

Davi é visto por Gregório I, de acordo com Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14. p. 8), como o exemplo de “moderação sábia, de incorruptibilidade, de capacidade de se arrepender por um erro próprio, de sabedoria, de senso de justiça, de humildade” que acastela o íntimo contra o impulso que, de maneira inevitável, está vinculado ao exercício da hegemonia: “Davi é símbolo da humildade do santo, emulador de Moisés, de Salomão, de Paulo e Pedro e da perpétua adesão à Sagrada Escritura, portanto, coloca-se como o guia dos reis11 11 É pertinente salientar que Gregório I, ao enfatizar o papel modelar de Davi aos reis, “foge” do topos vinculado a Melquisedeque, uma vez que, segundo Riche (1984, p. 386-87), tal personagem bíblico, pertencente ao Antigo Testamento, representava no século VI a figura de um soberano-sacerdote. , como o é de todos os homens” (Regula Pastoralis, I,3 e II,8). Em oposição, encontramos Saul, o emblema do elatio dos poderosos que, de tão cego de orgulho, esqueceu-se da igualdade natural dos homens, sendo abandonado por Deus (Regula Pastoralis, II,6; Moralia XXV.16; JUDIC, 1997JUDIC, Bruno (1997). Grégoire le Grand et le pouvoir royal. In: XIIth International Conference on Patristic Studies. Oxford, 1995., Studia Patristica XXXIII ed. Elisabeth A. LIVINGSTONE, Leuven, 1997, p. 434-440., p. 436).

Nesse contexto, o papa, entendido aqui como intelectual, atua como um perito dos universos simbólicos, apto, dentro de uma entidade determinada, no caso a Igreja, de estabelecer, a partir desses princípios, uma concepção coerente do mundo e, por extensão, de nortear a ação. Assim o sendo, além das figuras bíblicas, como reitera Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 9), Gregório I recorreu também a numerosos “modelos” históricos, notadamente Constantino, que é caracterizado pelo papa em questão como o princeps cristão por excelência.

A título de exemplo, encontramos referência a esse governante quando o papa incita o imperador Maurício a respeitar os sacerdotes (Ep. V.36). Também encontramos referência a Constantino quando o bispo de Roma procura estimular o recém-convertido rei anglo a levar o Evangelho a toda sua gente (Ep. XI.37). No lado oposto, estão in primis os imperadores romanos pagãos e perseguidores, especialmente Juliano, o Apóstata (332-363)12 12 Veja Ep. III.61 e III.64. , mas também os líderes germânicos de um passado não muito distante, como os godos Teodorico13 13 Veja Dial. IV.31. e Totila14 14 Veja. Dial. II.14-15; III.5 e III.12. Este mudou seu nome para Baduila, após tornar-se rei (HEATHER, 1998, p. 268). .

Conforme Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 9), nas intervenções de Gregório I com os monarcas dos Estados ampliados de seu presente histórico, recuperável a partir do Epistolário, a referência ideológica bíblica é frequente, e não apenas pela grande utilização das citações ou das reiteradas inferências de figuras bíblicas exemplares. Parte da reflexão gregoriana em torno tanto da realeza como da própria instituição eclesiástica - suas prerrogativas, seus deveres e sua função no mundo - funda-se na mensagem bíblica. O bispo de Roma, geralmente, fazia uso das citações explícitas das etapas bíblicas, em suas missivas, quando a mensagem sugerida requeria o apoio inabalável da autoridade da Escritura.

A novidade em Gregório I, já que tanto o conceito de rector cristão como a preocupação em elaborar um conjunto de regras de utilização imediata e fácil compreensão - até para os interlocutores intelectualmente menos refinados - remontam à tradição helenístico-cristã, consiste, sobretudo, na necessidade de estender à realeza a nova evangelização. Era preciso instituir um modelo da realeza de estirpe cristã, capaz de transmitir os valores específicos e de servir como um meio de aculturação. Tal arquétipo deveria valer tanto para os reis germânicos como para o imperador oriental.

No entanto, na perspectiva de Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 10), a proposta ideológica de um mesmo speculum válido tanto ao princips como aos reges gentium não significava que Gregório I pregava a equiparação das partes. Tal conjectura seria impensável para o papado entre os séculos VI e VII. E não só do ponto de vista teórico, mas também pela própria viabilidade de opções políticas do período. Acreditamos que tal ideia se constituía como um apelo a tomar parte em um conjunto de princípios comuns, repousado sobre a doutrina cristã. Nesse sentido, os governantes também estariam vinculados ao campo das competências próprias do imperador cristão; entretanto, a autoridade que lhes eram atribuída, no ponto de vista romano seguido por Gregório, não os assentava na mesma posição do príncipe. Ao contrário, o empenho de sistematização ideal entre os vários reis e o “único e verdadeiro” imperador se traduz na propagação da alegoria que insinua uma relação do tipo existente entre os filhos (os reis) e o pai (o princeps) ou entre o governante e seus oficiais e funcionários, nos quais os reis seriam equiparados aos chanceleres.

Além disso, Gregório é muito econômico quanto ao uso dos vocábulos. Pietas e piissimus, serenitas e serenissimus são exclusivamente reservados ao imperador. Os príncipes ocidentais têm o direito somente a excellentia ou ainda excellentissimus filius. Como vimos acima, essa última designação marca a distância entre os reis e o imperador que, para Gregório, é dominus. Porém, também sublinha a hegemonia no plano espiritual que o papa exerce sobre os reinos.

Isso, por outro lado, sugere que há uma maior intimidade entre o papa e os reis, pois, com o imperador, os relatos são regrados segundo a etiqueta herdada do velho mundo pagão. Entre a Igreja e o Estado Imperial, persistem uma desigualdade e uma desconfiança que provêm do “encontro de uma religião muito jovem com um Estado muito velho”. Malgrado todos os esforços de Eusébio, Ambrósio e Agostinho, o Império permaneceu o irmão mais velho da Igreja.

Assim, quando se levantam no Ocidente os Estados germânicos, esses são fils da Sé Apostólica. E isso não era simples questão de protocolo, afinal, Gregório foi o primeiro bispo de Roma que podia escrever de uma vez só aos príncipes da Austrasia, da Borgonha e da Neustria; a Recarredo, o visigodo; a Etelberto de Kent, sem falar do príncipe herdeiro dos lombardos, Adaloaldo, chamando-os pelo nome de fils. Certamente, Gregório tinha de pensar no contraste entre o imperador, que ele devia tratar com termos de uma outra época, e esses reis, de data recente. Esse detalhe de vocabulário demonstra, de modo muito concreto, o balanço entre a fidelidade à ordem antiga e o apelo de uma ordem nova entre o Oriente e o Ocidente que se colocava a Gregório. Como destacou Renato Ortiz (2006ORTIZ, Renato. Notas sobre Gramsci e as Ciências Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 21, n. 62, outubro, p. 95-103, 2006., p. 101-02), cabe aos teólogos, no nosso caso específico a Gregório I, tematizar a universalidade da Igreja, buscando legitimá-la religiosa e politicamente, ou seja, tornar o catolicismo efetivamente pantopolista.

Gregório I e o poder régio - aspectos práticos

O objetivo desta última parte do artigo vem ao encontro de nosso referencial teórico, mais especificamente com o conceito de hegemonia. Como vimos anteriormente, a hegemonia está vinculada à obtenção do consenso e da direção cultural e político-ideológica de uma classe ou fração de classes sobre a sociedade, especialmente as aliadas na dominação social. Exatamente por isso, ela está relacionada a disputas de percepções, juízos de valor e princípios entre sujeitos da ação política. Nesse sentido, procuraremos evidenciar como as facções aristocráticas interiorizam, de fato, a direção político-moral de Roma. Vale destacar que pontuaremos apenas alguns elementos dessa busca pela hegemonia, uma vez que nos seria impossível aqui, pelo espaço e pelo próprio objetivo do artigo, demonstrar todas as ações e reações que envolveram Gregório I. Começaremos com o Império Oriental.

Vale ressaltar que, na maioria das epístolas, Gregório I sempre se referia ao imperador com as costumeiras expressões tópicas e adulatórias do ritual de corte, tais como: serenissimi domini (Ep. I.7; III.61; V.36), pietas and sanctitas vestra (Ep. III.61; V.36; VI.16; VI.64; VII.6; VII.30) ou clementia (Ep. V.30). Ele entendia que o imperador ocupava uma especial posição na hegemonia do Estado ampliado, ordenado diretamente pelo próprio Deus (Ep. V.37). Em outros termos, Gregório I reconhecia no imperador uma pessoa encarregada de zelar pela paz da Igreja e que, portanto, tinha o direito de intervir nos assuntos eclesiásticos (Ep. VII.6; Moralia 23.13.24).

Porém, Gregório acreditava que era seu dever, como papa, expressar a sua opinião quando considerava que o imperador tinha, de algum modo, se tornado um problema ou abusado de sua autoridade. É evidente que ele o fazia de modo privado, de maneira que preservava a posição pública do imperador. Um exemplo dessa abordagem pode ser percebido em sua resposta a uma ordem imperial, no qual se proibia que funcionários imperiais se tornassem monges. Em sua epístola, afirmava que a responsabilidade do imperador não se limita ao bem-estar material, pois tem o dever de cuidar do bem espiritual dos governados. Avisava Maurício que, na economia do mundo, o reino terrestre está a serviço do celeste, sob o encargo pessoal de quem governa. Gregório protestou, acrescentando, como justificativa, que não poderia permanecer em silêncio enquanto os decretos de Deus estivessem sendo violados (Ep. III.61).

A maneira em que ele fez essa objeção é significativa. Ele a enviou, não através de seu representante oficial na corte, mas via Teodoro, o médico imperial. Gregório tomou todos os cuidados para que a correspondência fosse apresentada em segredo para o imperador, em um momento apropriado (Ep. III.64). Essa abordagem diplomática resultou em uma modificação do decreto original, pois se substituiu a proibição total pela proibição de um período de três anos de serviços (MARTYN, 2004GREGÓRIO I -. The Letters of Gregory the Great. Tradução, Introdução e notas de John R. C. Martyn. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 2004, 3 vols., p. 19-20).

Não podemos deixar de mencionar que a exemplaridade que Gregório observava na pessoa do imperador não se pautava com o caráter político deste ou com sua competência de gerir a República de acordo com os valores cívicos, ao contrário: o que o epíscopo romano pretende valorizar são as virtudes cristãs. Educar o rei nessas qualidades é dever do prelado. Etelberto deveria, desse modo, escutar e honrar Agostinho, bispo de Cantuária, indivíduo ortodoxo e vinculado diretamente ao papa, cujas preces haveriam de tornar Deus benevolente ao soberano de Kent: o governante que não ouve o prelado “taparia os ouvidos de Deus às suas preces” (MIATELLO, 2010MIATELLO, André L. P. Governar os corpos e reger as almas: a relação entre ‘igreja’ e ‘cidade’ na correspondência de S. Gregório Magno. Opsis, Catalão, v. 10, n. 2, p. 11-26, 2010., p. 21).

Além disso, devemos lembrar que, de acordo com Duarte SilvaDUARTE SILVA, Paulo. O debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média: considerações sobre as noções de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Revista Signum, v. 14, p. 73-91, 2013. e Xavier (2015DUARTE SILVA, Paulo; XAVIER, Nathalia Agostinho. O Cristianismo Ocidental em perspectiva: a conversão monárquica nos reinos suevo e de Kent (séculos VI-VII). Brathair, v. 15, nº. 2, p. 4-31, 2015. , p. 24), embora se admita a presença de núcleos cristãos na Britannia, trata-se da primeira conversão real posterior ao estabelecimento destes reinos, e não de uma conversão realizada por meio do diálogo e tratativas com a classe clerical dirigente autóctone, mas por intermédio de uma expedição garantida e realizada por esforço da sé romana no período de Gregório I.

Também não podemos esquecer que nem Agostinho dominava a língua saxônica nem o monarca sabia a latina, por isso a ajuda do clero gaulês para traduzir seria sempre necessária. Isso não impediu que, em poucos anos, a maioria dos cortesãos de Etelberto abraçasse a nova religião. O obstáculo linguístico, de acordo com Stefan Negreanu, seria superado no tempo pela sociedade política cristianizada - rei e nobres - que começou a aprender latim, pois os fiéis precisam minimamente saber latim para auxiliar nos serviços clericais. Outrossim, Agostinho estabelecerá, em Canterbury, juntamente com a primeira igreja, a primeira escola de gramática (NEGREANU, 2014NEGREANU, Stefan. The Christianization of the Anglo-Saxons Saint Gregory the Great and Saint Augustine. Teo, v. 60, n.3, p. 91-102, 2014., p. 98-99). Lembramos aqui que a hegemonia é resultante “das atividades e iniciativas de uma ampla rede de organizações culturais, movimentos políticos e instituições educacionais que difundem sua concepção de mundo e seus valores capilarmente pela sociedade” (BUTTIGIEG, 2003BUTTIGIEG, J. Educação e hegemonia. In: COUTINHO, C. N.; TEIXEIRA, A. de P. (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 39-50., p. 46).

Para as rainhas, a figura de referência é, sobretudo, Helena, a mãe de Constantino, mas Pulquéria também é lembrada nas epístolas pontificais (Ep. XI.35 e XIII.42 respectivamente). Etelberto não apoiou inicialmente, de forma tão vigorosa, a nova religião, tampouco se empenhou na erradicação do culto tradicional ligado a seu povo. Hesitação perfeitamente compreensível, pois, antes de abandonar as crenças tradicionais, o rei deveria avaliar a reação dos sacerdotes nativos, dos conselheiros e nobres cujo apoio é fundamental para preservar sua posição de privilégio.

Aqui vale lembrar, conforme apontou Maymó i Capdevila (2003MAYMÓ i CAPDEVILA, Pere. Britania em la política missionaria de Gregório Magno. In: GARCIA MORENO, L. A.; EGEA, M. E. G.; MÁRQUEZ, S. R.; GIRVÉS, M. V. (ed.). Actas del III Encuentro Hispania en la Antigüedad Tardía. Santos, Obispos y Reliquias. Alcalá, octubre, 1998. Alcalá: s.l,, 2003, p. 243-265., p. 250), que Gregório I, em uma remetida a Berta (Ep. XI.35), solicita à rainha para que robusteça a fé e a catequese de seu cônjuge. Em outras palavras, Gregório deliberadamente compara a monarca inglesa com Helena15 15 Ep. XI.35: “nam sicut per recordandae Helenan matrem pissimi Constantini imperatoris ad Christianam fidem corda Romanorum accenderat, ita et per gloriae uestrae studium in Anglorum gentem eius misericordiam confidimus operari”. , mãe de Constantino, estabelecendo, assim, um vínculo com os Christianissimi príncipes que tornaram grande a Igreja. De acordo com este topoi, segundo Clelia Maza (2002MAZA, Clelia Martínez. Las nuevas Helenas. Las reinas Bárbaras como agente de cristianización. Potestas. Revista del grupo Europeo de Investigación Histórica. n. 2, p. 133-146, 2002., p. 144), o pontífice pretendia que a soberana se comprometesse pessoalmente na conversão dos anglos e prestasse ajuda à comitiva de missionários encabeçada por Agostinho.

Na península Itálica, o ambiente de desarmonia entre o papa e o exarca Romanum funda-se quando o representante bizantino apoia os bispos tricapitolinos de Veneza e Ístria. Assim, o desacordo em matéria religiosa com o exarca estende-se à política a ser adotada com os lombardos, pois Gregório I, objetivando restaurar a paz, defendia a conciliação. Assim, o papel dos intelectuais “orgânicos” é a de conduzir “intelectual e moralmente” a sociedade através da organização da cultura, e não por meio dos tradicionais métodos de coação jurídica e policial (MONASTA, 2010, p. 23). Por outro lado, Romanum, representante da sociedade política bizantina, portanto atuando como intelectual tradicional, se declarava favorável à guerra sem armistício, até o triunfo completo (RIBEIRO, 2002RIBEIRO, D. V. O Oriente e o Ocidente na correspondência de Gregório Magno. Signum. Revista da ABREM. v. 4, p. 153-179, 2002., p. 163-64).

Tais afirmações nos levam a retomar aqui as considerações gramscianas sobre as duas esferas da superestrutura. A sociedade civil e a sociedade política, que em conjunto compõem o Estado em sentido amplo, distinguem-se pelas atribuições que desempenham na sistematização da vida cotidiana e, mais precisamente, no vínculo e na reprodução das relações de poder. Na sociedade civil, os grupos buscam atrair aliados para seus projetos pelo viés da direção e do consenso, enquanto na sociedade política as camadas exercem a dominação fundada na coerção.

Mesmo sem o aval imperial, Gregório I entra em contato com Ariulfo, duque de Spoleto, e posteriormente com o rei Agilulfo na tentativa de convencer o governante lombardo a preservar pelo menos sua cidade episcopal. No caso de recusa do exarca, o monarca lombardo afirmava concluir uma paz separada com o papa, que não aceita. Afora de não sancionar o almejado acordo, Romanum maquina mal-intencionada intriga para conflitar Gregório I com o imperador. Dito de outra maneira, o exarca relata a Maurício que o pontífice fora engambelado por Agilulfo e que procurou se sobrepujar à autoridade imperial. É notória a áspera condenação do soberano à atuação política do pontífice. Sem a menor preocupação com o rigor protocolar, Maurício alega que os arranjos empreendidos pelo bispo romano derivam de sua simplicitas. Gregório I, afrontado em seu brio pessoal, pois sua palavra é colocada em xeque, vê-se obrigado a defender-se da acusação de ingenuidade.

M. Reydelett (1981, p. 450-51) acredita que a crise se estabeleceu principalmente pelas diferentes concepções ideológicas que ambos faziam do Império. Isto é, enquanto Maurício se via como um continuador de Justiniano e de sua política de reconquista, Gregório I avaliava que o Império era mais oriental do que romano, acreditando pouco no projeto imperial.

Seja como for, a tensão ocorrida em 595 resulta na cessação dos vínculos de amizade entre Maurício e Gregório I. Sabiniano, representante da sé romana em Constantinopla, é convocado a voltar para Roma. Contudo, após o falecimento do exarca Romanum, e a ascensão de Callinico, são retomadas as negociações com os lombardos. Já a reconciliação do papa com o Estado ampliado imperial só ocorrerá sob o governo de Focas, o sucessor de Maurício (RIBEIRO, 2002RIBEIRO, D. V. O Oriente e o Ocidente na correspondência de Gregório Magno. Signum. Revista da ABREM. v. 4, p. 153-179, 2002., p. 164-65).

De acordo com Pohl (2008POHL, Walter. Gregorio Magno e il regno dei Longobardi. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel , 2008, p. 15-28., p. 25), após anos de negociações, mediações e reclamações oriundas da parte do bispo romano, surge da parte lombarda, com uma progressiva preponderância neste contexto, a rainha Teodolinda (570-628). Gregório I, com o intuito de promover uma aliança com o Estado lombardo, estava inclinado inclusive a fechar os olhos para a tendência tricapitolina, portanto cismática16 16 O Cisma dos Três Capítulos foi encerrada no Concílio de Constantinopla de 553. Tal sínodo, que ficou conhecido como o Quinto Concílio Ecumênico, foi condenado, a mando de Justiniano, Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa (Três Capítulos). Para agradar aos Monofisistas, desconsiderou-se que tanto Teodoreto como Ibas haviam sido reabilitados no Quarto Concílio Ecumênico de Calcedônia (451). A denominação de Três Capítulos deriva dos três anátemas lançados em um edito de Justiniano, anterior ao Concílio de Constantinopla (DI BERARDINO, 2002, p. 1385). , da classe governante cristã não ariana dessa etnia. O exarcado, por outro lado, mantinha uma posição menos moderada e mais intolerante com o patriarca cismático de Aquileia, o que nos leva a afirmar que o dilema sobre o aprofundamento da questão sobre os Três Capítulos com os lombardos, por parte da Igreja romana, era certamente política.

Assim, testemunha a epístola IV.37 que Gregório remeteu ao bispo Constâncio de Milão (Ep. IV.37)17 17 Ep. IV.37: “Quod autem scripsistis quia epistolam meam reginae Theodelindae transmittere minime uoluistis, pro eo quod in ea quinta synodus nominabatur, si eam exinde scandalizari posse credidistis, recte factum est ut minime transmitteretis. Vnde nunc ita facimus sicut uobis placuit,ut quattuor solummodo synodos laudaremus. De illa tamen synodo, quae in Constantinopoli postmodum facta est, quae a multis quinta noinatur, scire uos uolo quia nihil contra quattuor sanctissimas synodos constituerit uel senserit, quippe quia in ea de personis tantummodo, non autem de fide aliquid gestum est, et de eis personis de quibus in Chalcedonensi concilio nihil continetur”. :

A respeito do que você [Constâncio] me escreveu, de que absolutamente não queria entregar à rainha Teodelinda minha carta pelo fato de que fora mencionado o Quinto Concílio. Se você acredita que ela poderia ficar chocada com essa menção, fez muito bem em não transmiti-la. Então, fazemos agora o que você recomendou, ou seja, devemos apenas expressar a aprovação dos quatro sínodos. Quanto ao concílio que foi realizado mais tarde, em Constantinopla, que é por muitos chamados de quinto, quero que você saiba que tudo que foi determinado e estabelecido não contrariou os quatro concílios santos, já que foi somente nesse que se tratou do problema das pessoas e não de questões de fé; e das pessoas nada é dito no Concílio de Calcedônia18 18 Tal afirmação não é exata, pois, como sabemos, o Concílio de Calcedônia havia reabilitado Teodoreto de Ciro e Iba de Edessa. (Ep. IV.37).

O pontífice, como destacado por Pohl (2008POHL, Walter. Gregorio Magno e il regno dei Longobardi. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel , 2008, p. 15-28., p. 25-26), havia anteriormente remetido uma Epístola (IV.4) a Teodolinda, especificando os cinco concílios basilares para a doutrina católica. Caberia ao bispo Constâncio entregá-la à governante lombarda, mas o prelado se recusou, pois o Quinto Concílio, que havia censurado os Três Capítulos, não era aceito pela regente. Pelo que vimos, Gregório I agradeceu ao bispo de Milão por não ter transmitido a missiva papal. Uma nova correspondência foi endereçada a Teolinda elencando apenas quatro concílios ecumênicos (Ep. IV.33). Nesse ínterim, alguns epíscopos tricapitolinos solicitaram à soberana para romper a aliança com Roma. Tal expediente forçou Gregório a retrucar destacando os elementos em comum, especialmente a integral confiança no Concílio de Calcedônia. Vale lembrar que os cismáticos defendiam que a decisão pela condenação dos Três Capítulos entrava em contradição com Calcedônia.

Como destacou Bertolini (I papi e le missioni fino ala metà del secolo VIII. La conversioni al cristianesimo. Spoleto, 1967, p. 332 apud FREZ, 1993FREZ, Amancio Isla. Los reinos Barbaros y el Papado entre los siglos VI y VII. In: De la Antigüedad al Medievo. Siglos IV-VIII. III Congresso de Estudios Medievales. Madri: Fundacion Sanchez-Albornoz, 1993, p. 67-89., p. 79), há considerável diferença entre a cautela com que o papa tratava os lombardos e o rigor mostrado perante os cismáticos, por exemplo, no interior do Estado ampliado imperial. Evidentemente que tal moderação e prudência estão relacionadas com a força política e militar dos lombardos, uma vez que estes poderiam ser uma séria ameaça ao papa em caso de crise hegemônica provocada pelo excesso de pressão pontifical colocada sobre os heterodoxos.

Por fim, Gregório se tornava ciente do hiato existente entre os três Estados ampliados merovíngios, fraternos, mas também mordazes rivais em uma quase perene discórdia por hegemonia, que impedia o desenvolvimento da sua planejada reforma (MAYMÓ i CAPDEVILA, 2013MAYMÓ i CAPDEVILA, Pere. El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontifícia. Tese (Doutorado) - Univesitat de Barcelona. Barcelona, 2013. , p. 608). Contudo, Gregório ainda precisa do apoio da sociedade política franca, bem como do episcopado gaulês para a missão em Kent. Assim, estrategicamente ele procurou expandir o círculo de correspondentes, notadamente no Norte e no Oeste da Gália. Essa afirmação pode ser provada quando olhamos, por exemplo, para a missiva XI.41, epístola circular, datada de 22 de junho de 601, endereçada a Sereno, titular da Sé de Marselha, diocese com a qual o papa mantinha precedentes relações epistolares, mas também remetida a seis outros bispos, aos quais ele firmou os primeiros contatos: Menna de Toulon; Lupus de Châlon; Agiulfo de Metz; Simplício de Paris; Melantio de Rouen e Licinio de Angers.

De acordo com Markus (1997MARKUS, R. Gregory the Great and His World. Cambrigde: Cambrigde University Press, 1997. , p. 174), a erradicação da simonia e a não ascensão de indivíduos laicos para os postos clericais permaneciam a ser os principais pedidos de Gregório I ao Estado ampliado franco, isto é, aos monarcas e bispos gauleses. Porém, suas demandas tomaram uma forma modificada: Gregório instava que um concílio fosse convocado pelos governantes para decretar tais reformas na Igreja franca. Essa nova estratégia, tomada a partir de 599-600, deve-se ao enfraquecimento político da rainha Brunilda. Dessa forma, o bispo romano, ciente dessa nova situação, passou a enxergar nos concílios um agente das reformas no qual poderia encontrar uma resposta mais eficiente e mais adequada à nova configuração do poder.

Nesse sentido, assiste-se, conforme apontou L. Pietri (1991PIETRI, Luce. Grégoire le Grand et la Gaule: le project pour la réforme de l’Église Gaulouise. In: Gregório Magno e il suo tempo. XIX Incontro di Studiosi dell’Ántichità Cristiana in colaborazione com L’École Française de Rome. Roma, 9-12 mai 1990, I Studi Storici, Roma, 1991, p. 109-28., p. 120), novamente Gregório, diante desse novo quadro histórico, tomando uma série de novas medidas, na tentativa de realizar a reunião de um grande concílio para toda a Gália e, por extensão, mostrar-se como um elemento com força hegemônica dentro dessa específica formação social. No episcopado gaulês, ele ainda contava com o apoio fiel de Aregio de Gap (Ep. XI.42). Entretanto, não poderia confiar oficialmente tal expediente a um bispo de uma sé modesta. Isso forçava-o a escrever aos dois principais prelados associados com a tentativa anterior: Virgílio de Arles, seu vigário apostólico (Ep. XI.42), e, sobretudo, Etério de Lyon (Ep. XI.40).

Aregio de Gap foi, segundo Maymó i Capdevila (2013MAYMÓ i CAPDEVILA, Pere. El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontifícia. Tese (Doutorado) - Univesitat de Barcelona. Barcelona, 2013. , p. 606-608), entre os colaboradores de Gregório, quem mais se esforçou em suas funções. Eterio de Lyon, por sua vez, que também se incluía entre os correspondentes papais, se juntou à causa romana devido a uma promessa vaga sobre a concessão do pallium. De forma oposta, Virgílio de Arles não demonstrava muito entusiasmo em cumprir a responsabilidade do seu vicariato.

Como mencionado acima, de modo muito oportuno, o epíscopo de Lyon enviou um pedido ao papa para obter o pallium. Embora tanto a demanda solicitada por Desiderio de Viena, em 599, como a resposta pontifical ao bispo lionês sejam semelhantes, nesse último caso, Gregório optou por redigir uma missiva mais longa, com o fim de negar o pleito de forma cortês, tanto que a resposta endereçada ao bispo Eterio é escrita em termos destinados a encorajar as esperanças do lionês e, em consequência, a comprometer-se a engajar-se com os esforços do papa (PIETRI, 1991PIETRI, Luce. Grégoire le Grand et la Gaule: le project pour la réforme de l’Église Gaulouise. In: Gregório Magno e il suo tempo. XIX Incontro di Studiosi dell’Ántichità Cristiana in colaborazione com L’École Française de Rome. Roma, 9-12 mai 1990, I Studi Storici, Roma, 1991, p. 109-28., p. 120), uma vez que, junto ao parágrafo no qual Gregório se diz disposto a examinar favoravelmente o pedido, quando receber os documentos atestando os antigos privilégios da igreja de Lyon, é inserido em um caloroso elogio ao zelo realizado por esse epíscopo no serviço da Igreja e a evocação discreta mais significativa de seu distante predecessor Irineu (140-200)19 19 Santo Irineu foi um Padre da Igreja e, pela tradição, um mártir. Ele provavelmente foi um dos responsáveis pela introdução do cristianismo na Gália, bem como um adversário do gnosticismo. Sobre a relação desse santo com a Idade Média, ver: Arduini (1980, p. 269-299). , cuja sé lionesa é ilustrada pelo passado e prestígio da Gália contemporânea20 20 Ep. XI.40. :

Portanto, tenha a intenção de montar um sínodo com esforço contínuo e sério, e mostrando-se tão zeloso que você merece a dignidade do título de epíscopo pela forma como você administra o seu ofício.

Mas para aquilo que demanda seja autorizada para a sua igreja, segundo o costume antigo, fizemos uma pesquisa em nossos arquivos e nada foi descoberto. Por isso, envia-nos essas cartas, que diz ter em sua posse, de modo que possamos reunir a partir deles o que deve ser permitido.

Mas quanto aos atos e escritos de santo Irineu, estamos a olhar para eles com cuidado por um longo tempo, mas até agora não fomos capazes de encontrar qualquer um deles21 21 Ep XI,40: “Itaque assidue instanterque ad congregandam synodum imminete et ita uos enixius exhibete, ut nominis dignitatem in officii administratione compleatis. De eo uero qudo ecclesiae uestrae ex antiqua consuetudine concedendum deposcitis requiri in scrinio fecimus, et nihil inuentum est. Vnde ipsas nobis epistulas, quas uos dicitis habere, transmittite, ut ex eis quod concedendum est colligamus. Gesta uero scripta beati Herenaei iam diu est qudo solicite quaesiuimus, sed hactenus ex eis aliquid inueniri non ualuit”. .

Paralelamente, Gregório, segundo L. Pietri (1991PIETRI, Luce. Grégoire le Grand et la Gaule: le project pour la réforme de l’Église Gaulouise. In: Gregório Magno e il suo tempo. XIX Incontro di Studiosi dell’Ántichità Cristiana in colaborazione com L’École Française de Rome. Roma, 9-12 mai 1990, I Studi Storici, Roma, 1991, p. 109-28., p. 120-121), lançou uma nova ofensiva, em junho de 601, junto aos soberanos francos. Remeteu missivas a Brunilda, à qual solicitava a autorização para enviar um novo legato para substituir Ciriaco (Ep. XI.46)22 22 O representante papal enviado permanece anônimo, mas a sua missão é a repressão dos sacerdotes gauleses culpados de scelum simoniacus, na esteira de Ciriaco (MAYMÓ i CAPDEVILA, 2013, p. 608). , bem como para pressioná-la, novamente, a reunir um concílio com a maior brevidade (Ep. XI.49). Aos dois netos, Theodoberto (Ep. XI.50) e Thierry (Ep. XI.47), o bispo de Roma endereça, dada as disputas entre os dois irmãos, epístolas diferentes, porém, igualmente orientadas a facilitar a convocação da assembleia conciliar; e, por fim, Clotário (Ep. XI.51), remetente pela primeira vez, a juntar seus esforços na tarefa de renovação da Igreja gaulesa. Esse conjunto de epístolas constitui a última tentativa de conciliar a colaboração conjunta dos monarcas merovíngios com vistas à celebração de um concílio geral das Igrejas francas (MAYMÓ i CAPDEVILA, 2013MAYMÓ i CAPDEVILA, Pere. El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontifícia. Tese (Doutorado) - Univesitat de Barcelona. Barcelona, 2013. , p. 607).

É digno de nota que as ações de Gregório I diante tanto do paganismo como da heresia podem ser caracterizadas pela mesma consideração de fundo, isto é:

“(...) evangelizar ou reconduzir à ortodoxia indivíduos, comunidades ou populações inteiras eram tarefas na qual tanto o clero como os soberanos deveriam envolver-se com igual zelo, sendo esses últimos chamados, se necessário, ao emprego da coerção” (CARBONARE, 2008CARBONARE, Mário Dalle. Gregorio Magno e i Regni dei Franchi e degli Angli. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p, 29-57., p. 31).

Em outros termos, à medida que Gregório I compreendia a diferença entre as distintas conjunturas locais, estava convencido, de acordo com Carbonare (2008CARBONARE, Mário Dalle. Gregorio Magno e i Regni dei Franchi e degli Angli. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p, 29-57., p. 31), que sua atuação evangelizadora devia e podia acontecer em qualquer lugar dentro de alguns parâmetros específicos: a prédica voltada para o convertimento dos pagãos e heréticos; a pregação direta e as tarefas do epíscopo local e do clero inferior; e, por fim, a coparticipação da classe política dirigente, os reis e sua corte.

A resposta, no entanto, não foi a que Gregório esperava, pois nem a realeza nem o episcopado franco implicaram-se na convocatória conjunta para um concílio com vista a sancionar a tão esperada reforma23 23 O. Pontal (1989, p. 177-79) relaciona certos sínodos provinciais citados por Gregório de Tours com as propostas epistolares feitas pelo nosso pontífice a Brunilda em várias de suas cartas. Porém, tal autora comete um erro anacrônico, ao datá-los entre os anos 584-591. Sabemos que a primeira missiva para a rainha franca é datada de setembro de 595 e o primeiro pedido de reunião datam de julho de 599 (Ep. XI.214). (CARBONARE, 2008CARBONARE, Mário Dalle. Gregorio Magno e i Regni dei Franchi e degli Angli. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p, 29-57., p. 55). As únicas respostas que obtiveram, de acordo com L. Pietri (1991PIETRI, Luce. Grégoire le Grand et la Gaule: le project pour la réforme de l’Église Gaulouise. In: Gregório Magno e il suo tempo. XIX Incontro di Studiosi dell’Ántichità Cristiana in colaborazione com L’École Française de Rome. Roma, 9-12 mai 1990, I Studi Storici, Roma, 1991, p. 109-28., p. 121), vieram do reino da Borgonha, em 602. Primeiramente, quando Brunilda lhe avisou que concordava com o envio do novo legato romano (Ep. XIII.5), e depois, quando a rainha (Ep. XIII.5) e Eterio de Lyon (Ep. XIII.6) consultaram o pontífice sobre alguns pontos da disciplina eclesiástica24 24 Trata-se da possibilidade ou não de substituir um bispo que se encontrava com problemas mentais (Ep. XIII.6: intellectualia nempre officia subuertente infirmitate). . Contudo, em nenhum momento se comprometem em apoiar a realização de um grande concílio25 25 Contudo, segundo L. Pietri (1991, p. 122) e B. Judic (2005, p. 142), o desejado projeto gregoriano da reforma da Igreja franca teve êxito póstumo no concílio de Paris de 614. .

Conclusões parciais

A consciência da existência da multiplicidade articulada a uma unidade substancial de um sistema, não se referindo exclusivamente à esfera da sociedade política, dá-se em Gregório, de acordo com Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 10), com a metáfora da romã, fruto que reúne em si certa quantidade de grãos individuais que são protegidas por uma casca exterior. Do mesmo modo, a unidade da fé protege os inumeráveis povos da Igreja (Regula Pastoralis, II, 4)26 26 A imagem aqui aludida pelo papa evoca a passagem do Êxodo (28,34). .

B. Judic (1997JUDIC, Bruno (1997). Grégoire le Grand et le pouvoir royal. In: XIIth International Conference on Patristic Studies. Oxford, 1995., Studia Patristica XXXIII ed. Elisabeth A. LIVINGSTONE, Leuven, 1997, p. 434-440.) acredita que a disposição de Gregório I em assimilar o poder real e imperial resulta inicialmente de uma intenção moral: padronizar o comportamento de todos aqueles que estão em posição de exercer um poder de comando e de coerção: imperador, reis e até mesmo os bispos. Contudo, o compartilhamento de um mesmo sistema de valores e práticas, conforme Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 10-11), não invalidava a concepção da preeminência do poder imperial em relação aos reges gentium. Gregório I vale-se aqui da antiga fórmula de ascensão que caracterizava o imperator respublicae, único e autêntico dominus liberorum, dos reges gentium, domini servorum: a supremacia do imperador se estabelecia sobre a lei (Ep. XI.4; XIII.34). Tal clichê foi acompanhado, algumas vezes no trabalho de Gregório I, da alegoria do princeps vitorioso, especial protetor da libertas, cercado de inimigos derrotados sob seus pés (Ep. VI.16; XIII.41).

O imperador, possuidor de uma auctoritas de procedência celeste, ferramenta da mão de Deus (Ep. V.30; VI.16; VII.6; XIII.41), ele (e por extensão os reis), tomado das virtutes do bom rector cristão, deveria imitar Deus para administrar de modo correto seus domínios e orientar seus súditos para o caminho da salvação divina. O correto cumprimento de suas atribuições, auxiliado pela mediação dos membros do clero, acarretaria ao governante aplicado a remuneração terrena e divina, no primeiro caso expressa em um governo bem-sucedido e vitorioso sobre esta terra, que se seguiria, no segundo caso, em um regnum cum santis no além. Nesse sentido, entendemos que era função primordial no ofício do Estado imperial, entre as incontáveis sollicitudines exigidas “pro christianae reipublicae regimine”, o dever de interferir no campo religioso e eclesiástico tanto para defender a doutrina da fé como para proteger a pax ecclesiae (Azzara, 2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 11).

A tarefa da custodia fidei, na conservação da catholicae rectitudinis integritas, “forçava” o imperador, enquanto defensor da crença católica pela vontade divina, a combater todas as manifestações heréticas e/ou de discordância religiosa, na confiança de que tal coerção favorece não exclusivamente a Igreja, mas também o próprio governo. Por conseguinte, a defesa das almas dos súditos contra o veneno da heresia revela-se ainda mais importante que a proteção contra os inimigos terrenos (PIETRI; C.; PIETRI, L, 1997PIETRI, Charles; PIETRI, Luce. Église universelle et Respublica chrìstiana selon Grégoire Le Grand. In: Pietri Charles. Christiana respublica. Éléments d’une enquête sur le christianisme antique. Roma: École Française de Rome, 1997, p. 721-739., p. 721-739). Além da custodia fidei, outro encargo fundamental do princeps, no campo religioso (AZARRA, 2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 11-12), frequentemente presente no epistolário gregoriano, é a da tutela da pax ecclesiae, da qual depende a própria pax respublicae, haja vista que não seria possível a “recte posse terrena regere” se ele não estivesse preparado para lidar com a “divina tractare” (Ep. V.37). O imperador é, portanto, aquele que deve combater todas as controvérsias e dissidências que possam, de algum modo, minar a unitas da Igreja.

Esse princípio ideológico, presente em algumas das missivas pontificais dos antecessores de Gregório I, parece, de acordo com Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 12), adotar nova necessidade durante o pontificado deste, especialmente quando pensamos a controvérsia acerca do título de patriarca ecumênico pretendido pelo prelado de Constantinopla. Designação que por si só carrega um forte significado jurídico, a ponto de fazer o papa desconfiar da aspiração de seu colega no sentido de que ele pudesse desempenhar, a partir dali, algum tipo de hegemonia jurisdicional sobre toda a Igreja. A ingerência do Estado imperial no âmbito eclesiástico, corretamente legítima e até necessária segundo Gregório I, deve ser efetivada, entretanto, no devotado exercício de uma apropriada reverentia para com o sacerdote, ou seja, essa prerrogativa confiada ao imperador só deve ser praticada se visar tanto a proteção da Igreja como a conservação de seus dogmas e da disciplina eclesiástica.

Ainda conforme Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 12-13), a preocupação em limitar a ingerência laica na Igreja se encontra na famosa carta de Gregório I em que acusa o imperador Maurício de ingenuidade frente ao inimigo lombardo. Nela, o pontífice retoma um episódio atribuído, pela tradição da Igreja, a Constantino. Esse princeps havia recebido algumas acusações, por escrito, sobre alguns bispos. Ele reuniu as partes interessadas e queimou os documentos que lhe foram apresentados, argumentando que não poderia julgar aqueles que “a uero Deo constituti” (Ep V.36). Dessa forma, podemos, em certa medida, apontar os campos de intercessão característica da ação do princeps. A ele é indicado, primeiramente, o dever de assegurar corretamente as relações entre o imperialis autorictas e a instituição eclesiástica, devendo com frequência apresentar atestações de zelo para com a Igreja. Juntamente com essa primeira ação, bem compreensível sob a ótica pontifical, encontra-se a proposição de preceitos relativos ao desenvolvimento dos deveres governamentais na esfera administrativa e da gestão da estrutura pública.

Nesse sentido, notamos, com Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 13), uma particular importância na primeira carta enviada a Phocas, na ocasião da conquista do poder por parte deste (Ep. XIII.34). Nessa missiva, Gregório proporciona uma precisa utilização diplomática, notadamente ponderando que se trata da ascese ao trono de um novo imperador. Porém, por outro lado, ele também marca a necessidade de reiterar os desejos e os estímulos depois da morte do predecessor Maurício. Incitado a conseguir a vitória sobre o inimigo externo, para dar vigor à respublica, Phocas deveria também proteger, internamente, a legítima propriedade e riqueza individual, bem como assegurar a liberdade de todos, que se concretiza, à maneira romana, somente sob o jugo da lei do Estado. É válido ressaltar que esta não é a única epístola em que Gregório I demonstra preocupação sobre a questão da gestão pública. Por exemplo, na epístola enviada à esposa de Maurício, a imperatriz Constantina (Ep. V.38), ele faz indicações de abusos administrativos dos iudices (especialmente em Sardenha, Sicília e Córsega), que estariam extorquindo seus cidadãos, praticando a cobrança excessiva de impostos.

As inclinações do bispo romano, desempenhando o papel do intelectual, estavam atrealadas ora à preservação, ora à elaboração de concepções hegemônicas de classe. Isso nos leva a concluir que o significado e a função dos intelectuais, aqui consubstanciada nas ações de Gregório I, estão dialeticamente relacionados à organização do Estado ampliado nos processos de conservação da hegemonia dirigente.

Portanto, na concepção gregoriana, de acordo com Azzara (2008AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14., p. 13-14), a plena disponibilidade da função imperial, bem como de qualquer outra, cabe a Deus. É Ele que detêm, de acordo com Seus intuitos imperscrutáveis, o direito de selecionar a classe política na terra. Inclusive os malvados, aos quais a duritia serve de penitência aos pecadores. Sob tal concepção de poder, a violenta mudança de Maurício por Phocas, ocasionada a partir de um golpe de Estado, é vista por Gregório I como a retirada providencial de um imperador perverso por um novo soberano no qual se assentam as restauradas esperanças. Logo, o fundamento interpretativo de Gregório I e, por que não, do papado tardo antigo e alto medieval, sobre a definição, o caráter e o papel do Estado está totalmente vinculado à vontade de Deus, referenciado pela autoridade de Daniel (2.21), pela qual Deus é o único “qui mutat tempora et transfert regna”.

Referências

  • ARANTES, Rafael de Aguiar; PEREIRA, Carla Galvão Pereira. Gramsci e o sentido da política: materialismo histórico, recusa dos dogmas economicistas e das ilusões ‘ideologistas’. Prelúdios, Salvador, v. 2, n. 2, p. 45-71. 2014.
  • AZZARA, Claudio. Gregorio Magno e il potere regio. In: Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p. 3-14.
  • AZZARA, Claudio. L’ideologia del potere regio nel papato altomedievale (sécoli VI-VIII) Spoleto: Centro italiano di studi sull’altomedioevo, 1997.
  • BANNIARD, Michel. Zelum discretione condire: Langage et styles de Grégoire le Grand dans as correspondance. In: GUICHARD, P. et al, Papauté, monachisme et theories politiques Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994, p. 29-46.
  • BASTOS, Mário Jorge da Motta. Os Reinos Bárbaros: Estados Segmentários na Alta Idade Média Ocidental. Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre [En ligne], Hors-série n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://cem.revues.org/10012 Acessado em 21/09/2017.
    » http://cem.revues.org/10012
  • BUTTIGIEG, J. Educação e hegemonia. In: COUTINHO, C. N.; TEIXEIRA, A. de P. (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 39-50.
  • CARBONARE, Mário Dalle. Gregorio Magno e i Regni dei Franchi e degli Angli. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel, 2008, p, 29-57.
  • CARDOSO, Ciro Flamarion. O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica. Brathair, v. 4, n. 1, p. 19-35, 2004.
  • CORASSIN, Maria Luzia. Sêneca entre a colaboração e a oposição. Letras Clássicas, n. 3, 1999, p. 275-285.
  • DELARUELLE, E. L’Eglise Romaine et ses relations avec l’Eglise Franque jusqu’em 800. In: Le Chiese nei regni dell'Europa occidentale e i loro rapport con Roma sino all’800 Spoletto, 1960, p. 143-184.
  • DEMOUGEOT, E. Grégoire le Grand et la conversion du roi Germain au VIème siècle. In: FONTAINE, J; GILLET, R. Grégoire le Grand. Actes du Colloque international du CNRS tenu à Chantilly, Centre culturel Les Fontaines, 15-19 septembre 1982 Paris, CNRS Editions, 1986, p. 191-206.
  • DI BERARDINO, Angelo (Org). Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs Petrópolis/RJ: Vozes, 2002.
  • DUARTE SILVA, Paulo. O debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média: considerações sobre as noções de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Revista Signum, v. 14, p. 73-91, 2013.
  • DUARTE SILVA, Paulo; XAVIER, Nathalia Agostinho. O Cristianismo Ocidental em perspectiva: a conversão monárquica nos reinos suevo e de Kent (séculos VI-VII). Brathair, v. 15, nº. 2, p. 4-31, 2015.
  • DURIGUETTO, Maria Lúcia. A questão dos intelectuais em Gramsci. Serv. Soc, São Paulo, n. 118, p. 265-293, 2014.
  • EVANS, G. R. Though of Gregory the Great Cambridge: Cambridge University Press, 1986.
  • FRANCO JÚNIOR, Hilário. Similibus simile cognoscitur. O pensamento analógico medieval. Medievalista n. 14, 2013. Disponível em Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA14/junior1402.html Acessado em 21/09/2017.
    » http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA14/junior1402.html
  • FREZ, Amancio Isla. Los reinos Barbaros y el Papado entre los siglos VI y VII. In: De la Antigüedad al Medievo. Siglos IV-VIII. III Congresso de Estudios Medievales Madri: Fundacion Sanchez-Albornoz, 1993, p. 67-89.
  • GAJANO, S. B. Gregorio Magno. Alle origini del Medieval. Roma: Viella, 2004.
  • GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. Edizione crittica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 2007, 4 vols.
  • GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira, 1978.
  • GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere - Os Intelectuais. O Princípio Educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2000, v. 2.
  • GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura Rio de Janeiro/RJ: Civilização Brasileira , 1982.
  • GRUPPI, Luciano. O conceito de Hegemonia em Gramsci Rio de Janeiro/RJ: Graal, 1978.
  • HEATHER, Peter. The Goths Malden: Blackwell, 1998.
  • JUDIC, Bruno (1997). Grégoire le Grand et le pouvoir royal. In: XIIth International Conference on Patristic Studies Oxford, 1995., Studia Patristica XXXIII ed. Elisabeth A. LIVINGSTONE, Leuven, 1997, p. 434-440.
  • LE GOFF, J. A Civilização do Ocidente Medieval Bauru/SP: Edusc, 2005.
  • LEBECQ, S. Vivent les Mérovingiens! French Historical Studies, v. 19. n. 3, p. 765-777, 1996.
  • MARKUS, Robert Austin. Gregory’s the Great “rector” and his genesis. In: FONTAINE, J; GILLET, R. Grégoire le Grand. Actes du Colloque international du CNRS tenu à Chantilly, Centre culturel Les Fontaines, 15-19 septembre 1982 Paris, CNRS Editions , 1996, 1986, p. 137-46.
  • MARKUS, R. Gregory the Great and His World Cambrigde: Cambrigde University Press, 1997.
  • MAYMÓ i CAPDEVILA, Pere. Britania em la política missionaria de Gregório Magno. In: GARCIA MORENO, L. A.; EGEA, M. E. G.; MÁRQUEZ, S. R.; GIRVÉS, M. V. (ed.). Actas del III Encuentro Hispania en la Antigüedad Tardía. Santos, Obispos y Reliquias. Alcalá, octubre, 1998. Alcalá: s.l,, 2003, p. 243-265.
  • MAYMÓ i CAPDEVILA, Pere. El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontifícia Tese (Doutorado) - Univesitat de Barcelona. Barcelona, 2013.
  • MAZA, Clelia Martínez. Las nuevas Helenas. Las reinas Bárbaras como agente de cristianización. Potestas Revista del grupo Europeo de Investigación Histórica. n. 2, p. 133-146, 2002.
  • MIATELLO, André L. P. Governar os corpos e reger as almas: a relação entre ‘igreja’ e ‘cidade’ na correspondência de S. Gregório Magno. Opsis, Catalão, v. 10, n. 2, p. 11-26, 2010.
  • MORAES, Dênis de. Comunicação, Hegemonia e Contra-Hegemonia: a contribuição teórica de Gramsci. Revista Debates Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 54-77, 2010.
  • NEGREANU, Stefan. The Christianization of the Anglo-Saxons Saint Gregory the Great and Saint Augustine. Teo, v. 60, n.3, p. 91-102, 2014.
  • ORTIZ, Renato. Notas sobre Gramsci e as Ciências Sociais. Revista Brasileira de Ciências Sociais v. 21, n. 62, outubro, p. 95-103, 2006.
  • PACAUT, Marcel. La théocratie L’Église e le pouvoir au Moyen Age. Paris: Desclée, 1989.
  • PIAZZONI, Ambroglio M. Gregorio Magno Politico? Discorso conclusivo. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel , 2008, p, 157-65.
  • PIETRI, Charles; PIETRI, Luce. Église universelle et Respublica chrìstiana selon Grégoire Le Grand. In: Pietri Charles. Christiana respublica. Éléments d’une enquête sur le christianisme antique Roma: École Française de Rome, 1997, p. 721-739.
  • PIETRI, Luce. Grégoire le Grand et la Gaule: le project pour la réforme de l’Église Gaulouise. In: Gregório Magno e il suo tempo. XIX Incontro di Studiosi dell’Ántichità Cristiana in colaborazione com L’École Française de Rome. Roma, 9-12 mai 1990, I Studi Storici, Roma, 1991, p. 109-28.
  • POHL, Walter. Gregorio Magno e il regno dei Longobardi. In: AZZARA, Claudio. Gregorio Magno, L’Impero e I “Regna”: Incontro Internazionale di studio dell”Università degli studi di Salermo. Fisciano, 30 settembre - 1 ottore, 2004. Firenze: Sismel , 2008, p. 15-28.
  • PONTAL, O. Histoire des conciles mérovingiens sl.: CERF, 1989.
  • REYDELLET, M. La royauté dans la literature latine de Sidoine Appollinaire à Isidore de Seville Paris: École française de Rome, 1981.
  • RICHÉ, Pierre. La Bible et la vie politique dans le haut Moyen Age. In: RICHÉ, Pierre; LOBRICHON, Guy. Le Moyen Age et la Bible Paris: Beauchesne, 1984, p. 385-400.
  • RIBEIRO, D. V. O Oriente e o Ocidente na correspondência de Gregório Magno. Signum. Revista da ABREM. v. 4, p. 153-179, 2002.
  • SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura em Gramsci Curitiba: Ed. UFPR, 2007.
  • SENELLART, Michel. As artes de Governar São Paulo: Editora 34, 2006.
  • SPANNEUT, Michel. Os Padres da Igreja. v. II: Séculos IV - VIII. São Paulo/SP: Loyola, 1990.
  • STRAW, Carole. Gregory’s Politics: Theory and Practice. In: Gregorio Magno e il suo tempo Rome: Institutum Patristicum Augustinianum, 1991, v. 2, p. 47-63.
  • ULLMANN, Walter. A short History of the Papacy in the Middle Ages London: Methuen, 1972.
  • VALERI, V. Realeza. In: ROMANO, R. (org.) Enciclopédia Einaudi v. XXX: Religião-rito. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994, p. 415-45.
  • VINAY, G. Alto Medievo Latino. Conversazioni e no. Napoli: Guida, 1978.
  • WICKHAM, Chris. Framing the Early Middle Ages. Europe and the Mediterranean, 400-800 Oxford: Oxford University Press, 2006.
  • GREGÓRIO I -. Registrum Epistolarum. Ed. Bilíngue (latim-Italiano). A cura de Vincenzo Recchia. Roma: Città Nuova Editrice, 1996-1999, 4 vols.
  • GREGÓRIO I -. The Letters of Gregory the Great Tradução, Introdução e notas de John R. C. Martyn. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 2004, 3 vols.
  • GREGÓRIO I -. Dialogi . Ed. Bilíngue (latim-Italiano). Introdução de Benedetto Calati, Tradução de Suore Benedettine Isola San Giorgio. Roma: Città Nuova Editrice , 2000.
  • GREGÓRIO I -. Moralia in Job. Ed. Bilíngue (latim-Italiano). A cura de Paolo Siniscalco, Tradução de Emílio Gandolfo. Roma: Città Nuova Editrice , 1992-2001, 4 vols.
  • GREGÓRIO I -. Regula Pastoralis. Ed. Bilíngue (latim-Italiano). A cura de Giuseppe Cremascoli. Roma: Città Nuova Editrice , 2008.

Notas

  • 1
    Apesar da relevância do conceito Antiguidade Tardia e do debate acerca dessa categoria, preferimos a utilização do termo Primeira Idade Média. Isso porque privilegiamos as rupturas compreendidas nesse período em detrimento das continuidades no Ocidente. Cf: SILVA (2013DEMOUGEOT, E. Grégoire le Grand et la conversion du roi Germain au VIème siècle. In: FONTAINE, J; GILLET, R. Grégoire le Grand. Actes du Colloque international du CNRS tenu à Chantilly, Centre culturel Les Fontaines, 15-19 septembre 1982. Paris, CNRS Editions, 1986, p. 191-206.).
  • 2
    Sobre as Igrejas regionais, relacionadas ao período merovíngio, consultar, entre outros: Lebecq (1996LEBECQ, S. Vivent les Mérovingiens! French Historical Studies, v. 19. n. 3, p. 765-777, 1996.) e Pontal (1989PONTAL, O. Histoire des conciles mérovingiens. sl.: CERF, 1989.).
  • 3
    Uma boa noção de sacralidade é o verbete de V. Valeri, “Realeza”. Aqui, Valeri afirma que o que define a Realeza é o fato de que, no exercício de suas prerrogativas, o rei encarnaria os valores fundamentais da sociedade sobre a qual ele reina, sendo considerado como um ser sagrado e às vezes divino: “Mesmo quando o rei não é sagrado stricto sensu, ele tem relações privilegiadas com aquilo que é sagrado: Deus ou o clérigo que é seu intérprete”. Cf: VALERI, V. “Realeza”. In: ROMANO (1994VALERI, V. Realeza. In: ROMANO, R. (org.) Enciclopédia Einaudi. v. XXX: Religião-rito. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994, p. 415-45., v. 30, p. 415-445, especialmente, p. 415).
  • 4
    Estado Segmentário é um conceito desenvolvido por Aidan Southal, abordado por Mário Jorge da Motta Bastos (2008BASTOS, Mário Jorge da Motta. Os Reinos Bárbaros: Estados Segmentários na Alta Idade Média Ocidental. Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre [En ligne], Hors-série n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://cem.revues.org/10012 . Acessado em 21/09/2017.
    http://cem.revues.org/10012...
    ) e aplicado nesta pesquisa. São características, segundo esse autor (BASTOS, 2008BASTOS, Mário Jorge da Motta. Os Reinos Bárbaros: Estados Segmentários na Alta Idade Média Ocidental. Bulletin du centre d’études médiévales d’Auxerre [En ligne], Hors-série n. 2, 2008. Disponível em: Disponível em: http://cem.revues.org/10012 . Acessado em 21/09/2017.
    http://cem.revues.org/10012...
    , p. 8), dessa configuração política: A) Soberania territorial é limitada (quanto mais afastadas estão as regiões do centro de poder, mas fraca é a autoridade estatal); B) Coexistem, junto com o poder central, focos de poderes locais com relativa autonomia; C) Apesar de o nível de subordinação ser distinto e do relativo nível de autonomia, as relações permanecem de caráter piramidal; D) Existe uma reduzida administração especializada presente, mesmo que, às vezes, de forma itinerante, nas diversas localidades do Estado; E) Quanto mais periféricas estiverem as autoridades subordinadas, maiores serão as possibilidades de mudar de obediência; F) A autoridade central não possui o monopólio absoluto do emprego legítimo da força.
  • 5
    Segundo Ciro F. Cardoso (2004CARDOSO, Ciro Flamarion. O paganismo anglo-saxão: uma síntese crítica. Brathair, v. 4, n. 1, p. 19-35, 2004.), seriam três os elementos a pesquisar, num enfoque como o proposto, a saber: “1. A apresentação das formas sociais à ideologia e à formação de pontos de vista e experiência partilhada que são os campos de operação ideológica; 2. a coerência interna da ideologia, na qual formas sociais são estruturadas como categorias e sujeitos; 3. a formulação constante de identidades e ações pela ideologia, bem como os efeitos dessa formulação sobre o resto das práticas sociais”.
  • 6
    A nosso ver, parece-nos mais adequado ao contexto histórico da passagem da Antiguidade à Primeira Idade Média o termo facção que o vocábulo fração de classe, uma vez que, sob o capitalismo, as frações da classe dominante se diferenciam pela natureza da relação com o capital e com a extração da mais valia. Nesse sentido, temos, por exemplo, a burguesia comercial, industrial, financeira, etc. O que não se aplica evidentemente no nosso caso, pois, como nos lembra Bastos (2008), as aristocracias, laica ou religiosa, extraem os excedentes da mesma forma, isto é, pela extração da renda - em produto e/ou moeda e/ou serviço - da classe camponesa.
  • 7
    Mt, 16, 18-19: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre pedra edificarei minha Igreja”.
  • 8
    A Diocese da Itália Suburbicária (em latim: Dioecesis Italia Suburbicaria) era uma diocese do Império Romano, originária da reforma empreendida pelo governante Diocleciano, no século IV. A Itália Suburbicária correspondia geograficamente a toda a área centro-sul da Península Itálica e era dirigida pelo vigário de Roma, a mais importante autoridade civil da diocese.
  • 9
    Veja Regula Pastoralis II.6 e III.5: sobre o papel do pecado como determinante nas hierarquias entre homens, bem como os conhecimentos e os cuidados que devem ter aqueles que governam.
  • 10
    Apenas como exemplo trazemos Sêneca (4 a.C - 64 d.C.). Esse pensador estoico defende que o governante deve esquecer-se de si mesmo para atuar em prol de seus súditos, além de afirmar que o príncipe não é um senhor, nem um deus; mas, sobretudo, um servidor e intérprete das leis (CORASSIN, 1999CORASSIN, Maria Luzia. Sêneca entre a colaboração e a oposição. Letras Clássicas, n. 3, 1999, p. 275-285.).
  • 11
    É pertinente salientar que Gregório I, ao enfatizar o papel modelar de Davi aos reis, “foge” do topos vinculado a Melquisedeque, uma vez que, segundo Riche (1984RICHÉ, Pierre. La Bible et la vie politique dans le haut Moyen Age. In: RICHÉ, Pierre; LOBRICHON, Guy. Le Moyen Age et la Bible. Paris: Beauchesne, 1984, p. 385-400., p. 386-87), tal personagem bíblico, pertencente ao Antigo Testamento, representava no século VI a figura de um soberano-sacerdote.
  • 12
    Veja Ep. III.61 e III.64.
  • 13
    Veja Dial. IV.31.
  • 14
    Veja. Dial. II.14-15; III.5 e III.12. Este mudou seu nome para Baduila, após tornar-se rei (HEATHER, 1998HEATHER, Peter. The Goths. Malden: Blackwell, 1998., p. 268).
  • 15
    Ep. XI.35: “nam sicut per recordandae Helenan matrem pissimi Constantini imperatoris ad Christianam fidem corda Romanorum accenderat, ita et per gloriae uestrae studium in Anglorum gentem eius misericordiam confidimus operari”.
  • 16
    O Cisma dos Três Capítulos foi encerrada no Concílio de Constantinopla de 553. Tal sínodo, que ficou conhecido como o Quinto Concílio Ecumênico, foi condenado, a mando de Justiniano, Teodoro de Mopsuéstia, Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa (Três Capítulos). Para agradar aos Monofisistas, desconsiderou-se que tanto Teodoreto como Ibas haviam sido reabilitados no Quarto Concílio Ecumênico de Calcedônia (451). A denominação de Três Capítulos deriva dos três anátemas lançados em um edito de Justiniano, anterior ao Concílio de Constantinopla (DI BERARDINO, 2002DI BERARDINO, Angelo (Org). Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002., p. 1385).
  • 17
    Ep. IV.37: “Quod autem scripsistis quia epistolam meam reginae Theodelindae transmittere minime uoluistis, pro eo quod in ea quinta synodus nominabatur, si eam exinde scandalizari posse credidistis, recte factum est ut minime transmitteretis. Vnde nunc ita facimus sicut uobis placuit,ut quattuor solummodo synodos laudaremus. De illa tamen synodo, quae in Constantinopoli postmodum facta est, quae a multis quinta noinatur, scire uos uolo quia nihil contra quattuor sanctissimas synodos constituerit uel senserit, quippe quia in ea de personis tantummodo, non autem de fide aliquid gestum est, et de eis personis de quibus in Chalcedonensi concilio nihil continetur”.
  • 18
    Tal afirmação não é exata, pois, como sabemos, o Concílio de Calcedônia havia reabilitado Teodoreto de Ciro e Iba de Edessa.
  • 19
    Santo Irineu foi um Padre da Igreja e, pela tradição, um mártir. Ele provavelmente foi um dos responsáveis pela introdução do cristianismo na Gália, bem como um adversário do gnosticismo. Sobre a relação desse santo com a Idade Média, ver: Arduini (1980, p. 269-299).
  • 20
    Ep. XI.40.
  • 21
    Ep XI,40: “Itaque assidue instanterque ad congregandam synodum imminete et ita uos enixius exhibete, ut nominis dignitatem in officii administratione compleatis. De eo uero qudo ecclesiae uestrae ex antiqua consuetudine concedendum deposcitis requiri in scrinio fecimus, et nihil inuentum est. Vnde ipsas nobis epistulas, quas uos dicitis habere, transmittite, ut ex eis quod concedendum est colligamus. Gesta uero scripta beati Herenaei iam diu est qudo solicite quaesiuimus, sed hactenus ex eis aliquid inueniri non ualuit”.
  • 22
    O representante papal enviado permanece anônimo, mas a sua missão é a repressão dos sacerdotes gauleses culpados de scelum simoniacus, na esteira de Ciriaco (MAYMÓ i CAPDEVILA, 2013MAYMÓ i CAPDEVILA, Pere. El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontifícia. Tese (Doutorado) - Univesitat de Barcelona. Barcelona, 2013. , p. 608).
  • 23
    O. Pontal (1989PONTAL, O. Histoire des conciles mérovingiens. sl.: CERF, 1989., p. 177-79) relaciona certos sínodos provinciais citados por Gregório de Tours com as propostas epistolares feitas pelo nosso pontífice a Brunilda em várias de suas cartas. Porém, tal autora comete um erro anacrônico, ao datá-los entre os anos 584-591. Sabemos que a primeira missiva para a rainha franca é datada de setembro de 595 e o primeiro pedido de reunião datam de julho de 599 (Ep. XI.214).
  • 24
    Trata-se da possibilidade ou não de substituir um bispo que se encontrava com problemas mentais (Ep. XIII.6: intellectualia nempre officia subuertente infirmitate).
  • 25
    Contudo, segundo L. Pietri (1991PIETRI, Luce. Grégoire le Grand et la Gaule: le project pour la réforme de l’Église Gaulouise. In: Gregório Magno e il suo tempo. XIX Incontro di Studiosi dell’Ántichità Cristiana in colaborazione com L’École Française de Rome. Roma, 9-12 mai 1990, I Studi Storici, Roma, 1991, p. 109-28., p. 122) e B. Judic (2005, p. 142), o desejado projeto gregoriano da reforma da Igreja franca teve êxito póstumo no concílio de Paris de 614.
  • 26
    A imagem aqui aludida pelo papa evoca a passagem do Êxodo (28,34).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2018
  • Aceito
    03 Jul 2019
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br