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Um imperador cristão merece o céu: a construção de memórias sobre o imperador Graciano nos escritos de Ambrósio (séc. IV d.C.)

A Christian Emperor Deserves Heaven: The Building of Memories of Emperor Gratian in the Writings of Ambrose (4th Century AD)

Resumo:

Ambrósio encontrou em Graciano o primeiro imperador que lhe ofereceu um espaço público oficial para a defesa da crença cristã-nicena. Este novo espaço ia além das pregações episcopais e dos textos sobre a questão da virgindade feminina debatida pelo sacerdote. Por isso, através de seus escritos, o bispo milanês transformou Graciano em um “santo imperador”, protetor dos nicenos. Neste trabalho, meu objetivo é examinar a memória criada por Ambrósio sobre o lugar de Graciano no céu, uma construção discursiva que afastava o augusto da tradicional apoteose divina. Tal análise será feita com base, especialmente, em duas laudações fúnebres de autoria ambrosiana: De Obitu Valentiniani Consolatio (de 392) e De Obitu Theodosii Oratio (de 395).

Palavras-chaves:
Imperador Graciano; Memória; Morte

Abstract:

Ambrose found in Gratian the first emperor who offered him an official public space for the defence of the Christian-Nicene belief. This new space went beyond episcopal preaching and texts about the question of the female virginity debated by the priest. That is why, through his writings, the Milanese bishop transformed Gratian into a "holy emperor", protector of the Nicene. In this work, my purpose is to examine the memory created by Ambrose about the place of Gratian in the heaven, a discursive construction that moved away the august of the traditional divine apotheosis. This analysis will be made on the basis of two Ambrosian’s funeral laudations: De Obitu Valentiniani Consolatio (392 AD) and De Obitu Theodosii Oratio (395 AD).

Keywords:
Emperor Gratian; Memory; Death

Entre os anos de 378/380? e 383, o bispo de Milão, Ambrósio, usufruiu de um importante espaço público para difundir sua crença no cristianismo niceno1 1 As crenças dos chamados cristãos nicenos estavam baseadas nos dogmas instituídos no Concílio de Niceia, realizado no ano de 325, sob convocatória do imperador Constantino I (306/312-337). . Nesta época, Graciano (367-383), imperador das províncias da Gália, da Britânia e da Hispania, solicitou que o sacerdote milanês escrevesse duas obras que esclarecesse os princípios de sua fé religiosa. Estas obras tratadísticas foram o De fide (Sobre a fé), constituído de cinco livros, e o De Spiritu Sancto (Sobre o Espírito Santo), em três livros.

Nestas obras, Ambrósio atacou especialmente a crença ariana, propagou os princípios da Trindade Divina, defendeu a universalidade e a ortodoxia da fé nicena e criou uma identidade santa e nicena para Graciano. Estes argumentos tinham o aval do augusto, uma vez que respondiam ao pedido feito por ele ao bispo milanês para que o sacerdote explicasse sua fé. As respostas do bispo certamente agradaram o augusto, que solicitou ao autor a continuação do tratado De Fide2 2 No início do Livro III do De fide, Ambrósio salientou que atendia a um novo pedido de Graciano para que complementasse os esclarecimentos sobre a fé nicena (AMBRÓSIO, De fide III, 1-2). .

Além disso, Graciano escreveu uma epístola ao sacerdote pedindo que ele fosse ao seu encontro para lhe ensinar a verdadeira doutrina (doctrinam vere) (GRACIANO, Gratiani ad Ambrosium Epistola, 1). Ambrósio registrou que esta carta havia sido escrita à mão pelo próprio imperador (AMBRÓSIO, Ep. ex. coll. 12 (1), 3). Observo que o augusto tinha a seu serviço secretários preparados para elaborar cartas e outros documentos pertinentes à administração imperial. Entretanto, abriu mão das habilidades destes funcionários para escrever e requerer que o bispo fosse atender suas necessidades de aprender sobre o cristianismo niceno.

Tanto esta requisição quanto àquelas que moveram a escrita por parte de Ambrósio do De fide e do De Spiritu Sancto eram apenas alguns dos indícios dos vínculos de proximidade entre Graciano e o bispo de Milão e sugerem que esta ligação ultrapassava as regras da administração pública. Neste ponto, sou contrária à desconfiança do historiador Neil McLynn com relação à intimidade entre o augusto e o sacerdote (MCLYNN, 1994MCLYNN, Neil B. Ambrose of Milan: Church and Court in a Christian Capital. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 79-80).

Em 381, Ambrósio participou do Concílio de Aquileia. Tal reunião havia sido convocada por Graciano e realizou-se logo após o Concílio de Constantinopla, convocado pelo imperador Teodósio I. Ambos os concílios reforçaram a validade do credo niceno em determinados territórios romanos. No caso da reunião ocidental, os bispos arianos Palladio e Secundiniano foram os inimigos apontados por Ambrósio em sua epístola aos imperadores Graciano, Valentiniano II (375-392) e Teodósio I (379-395) (AMBRÓSIO, Ep, ext. coll. 4 (10), 1).

Sob o governo de Graciano, então, pela primeira vez Ambrósio defendeu sua fé para além do espaço de suas igrejas, em ambientes públicos significativos. O historiador de literatura Paul Zumthor, ao escrever sobre a palavra escrita e a palavra falada na “literatura” medieval, constatou que na relação dramatizada que ocorria dentro da igreja (entendida como prédio físico e como uma instituição, com hierarquias e vínculos com o governo) confrontava-se “com o sagrado o homo religiosus, [nesta relação] a voz intervém sempre, ao mesmo tempo como poder e como verdade” (ZUMTHOR, 1993ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993., p. 75-76). Esta “voz”, a qual se refere o autor, era a voz do responsável pela pregação, na maioria dos casos, a voz do bispo. As noções de relação dramatizada e de uma voz episcopal dotada de poder e de verdade podem ser aplicadas ao se estudar os discursos ambrosianos.

Por solicitação de Graciano, Ambrósio havia escrito tratados sobre o niceismo e havia diferenciado esta religião de outras professadas no Império, especialmente do cristianismo ariano. O bispo respondia a um pedido do augusto, portanto, tinha em Graciano o interlocutor de seus discursos. Noto que Graciano servia de modelo para seus súditos, então, o bispo desejava que a fé aprendida e resguardada pelo governante fosse seguida por seus súditos. Uma idealização, uma ambição, é fato. Mas um desejo pertinente ao contexto em que Ambrósio produzia suas elaborações. Para esta análise, tenho em mente a assertiva de Pierre Bourdieu: “a ciência adequada do discurso deve estabelecer as leis que determinam que pode falar (de fato e de direito), a quem e como” (BOURDIEU, 1977BOURDIEU, Pierrre. A economia das trocas linguísticas. Reproduzido de BOURDIEU, P. L'économie des échanges linguistiques. Langue Française, 34, maio 1977. Traduzido por Paula Montero. Disponível em: <Disponível em: http://docplayer.com.br/57743-a-economia-das-trocas-linguisticas-1.html >. Acesso em: 05 de junho de 2015.
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, p. 6). Com Graciano, o espaço de fala de Ambrósio foi ampliado e, também, sua autoridade, afinal, o bispo ensinava sobre a fé ao imperador. Suas palavras eram acatadas pelo comandante dos romanos. Então, por que não ensinar a todos os romanos os princípios tidos como verdadeiros?

Certamente, a morte de Graciano foi uma perda lamentável para Ambrósio. Especialmente porque quem assumiu o poder de império nas terras romano-ocidentais foi o filo ariano Valentiniano II, irmão mais novo de Graciano, e este poder também foi requerido por Magno Máximo (383-388), aclamado imperador na Gália e, inicialmente, considerado um usurpador.

Ambrósio não escreveu uma consolação sobre a morte de Graciano. Todavia, as laudações fúnebres redigidas para Valentiniano II, em 392, e para Teodósio I, em 395, rememoraram Graciano. Estes discursos criaram uma memória de Graciano que foi proclamada perante audiências significativas e que se despediam de outros imperadores naquelas ocasiões. Observo que os discursos ambrosianos destacavam o papel do próprio bispo, pois sua voz e suas ideias eram ouvidas. Seu público deveria compreender as mensagens anunciadas naquelas ocasiões e propagá-las em seus grupos para que fossem integradas à memória coletiva. Novamente retomo Bourdieu e as identificações daquele que pode falar e daqueles que devem escutar. Cada um tem seu papel na criação e validação de uma memória.

Mas que ações e virtudes de Graciano, Ambrósio decidiu trazer à memória dos romanos nestes momentos de consolação pela morte de Valentiniano II e de Teodósio I? Por que tais memórias eram importantes para aquele contexto? Sugiro que estas elaborações discursivas determinavam que Graciano assumira um lugar no céu, junto a Deus. Portanto, estas noções afastavam o augusto da tradicional apoteose divina e o anunciavam como um governante perfeito e cristão. Esclareço que a apoteose divina foi uma prática cerimonial iniciada entre os romanos quando Augusto fez com que o senado divinizasse Júlio César. Foi, também, um argumento que até o século IV pululava em discursos falados e escritos e transformava os imperadores romanos em seres eternamente divinos após sua morte. Observo que nos escritos ambrosianos, esta noção perdeu seu lugar e foi substituída pela ideia de que o augusto falecido tinha sua morada eterna no céu cristianizado elaborado conforme os critérios do bispo milanês.

A construção de memórias sobre imperador Graciano por Ambrósio:

Tito Lívio já alegava que a memória era vítima das orações fúnebres (LIVIO, Ab urbe condita, VIII, 40). Uma vez que estes discursos tinham como objetivo principal louvar uma pessoa morta, era comum que apenas as ações merecedoras de elogios fossem destacadas pelo escritor - que era também o orador da laudação. Estes atos dignos de louvor eram acentuados - por vezes exageradamente - para garantir ao morto uma despedida adequada ao papel que o autor da laudação julgava que o defunto havia desempenhado naquela sociedade.

Nesta conjuntura, entendo que a memória criada por Ambrósio para Graciano nas laudações fúnebres não demonstravam necessariamente as ações do augusto, mas delineavam um imperador que ganhara um lugar no céu cristão devido às atitudes tomadas em vida. Um lugar devido, especialmente, aos benefícios concedidos pelo imperador ao cristianismo niceno. Com esta interpretação em mente, compartilho da afirmação de Pierre Nora de que “a memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, [...] vulnerável a todos os usos e manipulações” (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. In: Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993., p. 9). Por isso, a memória não é imutável. Ela está sujeita a transformações, aos sentimentos daqueles que a erigem, às explicações de determinados indivíduos. Traz para o presente episódios do passado reelaborados sob o ponto de vista daquele que a edifica. Sendo assim, também não é neutra, está vinculada a interesses dos grupos que têm poder sobre ela.

Graciano morreu em 383, durante embates contra Magno Máximo. Em 392, Valentiniano II morreu ao enfrentar os grupos de romanos e de estrangeiros sob o comando de Eugênio e do general Arbogasto. Por ocasião da morte de Valentiniano II, e a pedido do imperador Teodósio I, Ambrósio escreveu e proclamou a De Obitu Valentiniani Consolatio. Neste texto, Graciano foi colocado no céu pelo bispo e lá, ao lado de seu pai, Valentiniano I, Graciano esperava seu irmão se juntar a ele (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 54; 71).

Nesta obra, Ambrósio ressaltou a devoção (devotio) e a piedade (pietas) de Graciano quando este negou privilégios aos templos pagãos (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 55). A constituição de Graciano que reduziu os privilégios destes locais de cerimônias não foi preservada. Entretanto, menções a ela são encontradas na famosa oração do senador pagão Quinto Aurélio Símaco em defesa do Altar da deusa Vitória e em cartas de Ambrósio. Símaco reclamou a Valentiniano II: “Os campos legados por vontade dos deficientes às virgens e aos ministros são retidos pelo fisco” (Oratio 3, 13). Como resposta a esta oração do senador, Ambrósio redigiu duas cartas a Valentiniano II e reforçou o fim dos privilégios a cultos pagãos estabelecido por Graciano (AMBROSIO, Ep. 17, 4; 18, 16-17). Privilégios, estes, que, na época de Valentiniano II, foram requeridos novamente por Símaco.

Embora arraigada à tradição antiga, observo que a petição de Símaco citava somente o confisco dos privilégios vinculados ao culto das vestais: “Apenas as nobres virgens e os ministros do ritos sagrados marcados pela fatalidade serão excluídos dos subsídios adquiridos por herança?” (SÍMACO, Oratio 3, 14). Portanto, as interdições de Graciano estavam relacionadas a estes elementos específicos: as vestais e seus sacerdotes. A historiadora Rita Lizzi Testa alega que o edito de Graciano que acabava com a imunidade dos colégios sacerdotais e confiscava os fundi templorum teve pouca eficácia, ficando limitado a Roma e a alguns privilégios das vestais (TESTA, 2014TESTA, Rira Lizzi. Il terrore delle leggi in difesa dell’insatiabilis honor della chiesa: la retoriza della representazione cristiana dell’Impero. In: ESCRIBANO PAÑO, María Victoria; TESTA, Rita Lizzi (eds.). Política, religión y legislación en el Imperio Romano (ss. IV y V d.C.) - Politica, religione e legislazione nell’Imperio Romano (IV e V secolo d.C.) . Bari: Edipuglia , 2014, p. 117-138., p. 124). Noto que a pluralidade do Império e a dificuldade de se fazer cumprir uma constituição em meio às particularidades das regiões faziam com que estas normas tivessem alcance restrito.

Contudo, em sua afirmação sobre Valentiniano II, “ao denegar os privilégios dos templos, [Valentiniano II] acrescentou o que faltara ao pai e manteve o constituído pelo irmão” (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 55), Ambrósio generalizou a ação de Graciano. Por um lado, Símaco ressaltou os detrimentos impostos às vestais e aos sacerdotes. Por outro, Ambrósio ampliou o alcance das ações de Graciano a todos os templos. A construção discursiva ambrosiana reelaborou a dimensão da atitude do imperador, oferecendo-lhe um caráter muito mais amplo, até mesmo universal, como requeria a noção cristã nicena defendida por Ambrósio. Esta memória construída pelo bispo, portanto, partia de uma ação imperial e, em sua releitura episcopal, fazia de Graciano um imperador em luta contra os pagãos. Por isso, saliento novamente a alusão de Nora: “a memória é vida” e é elaborada por grupos vivos (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. In: Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993., p. 9).

Nesta laudação, Graciano, era ainda, aquele que esperava a alma do irmão no céu para lhe mostrar as graças que receberia pelos serviços prestados na terra:

Vem, disse, meu irmão, saiamos ao campo, durmamos nas cidadelas, levantemos na alvorada para ir aos vinhedos, ou seja: vieste para onde são julgados os frutos das diversas virtudes segundo os méritos de cada um, ali onde são abundantes os prêmios dos méritos. Saiamos, então, ao campo, onde o labor não é vão, mas fecunda são as questões das graças. O que semeaste na terra, colha aqui; o que espalhaste ali, obtenha aqui. (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 72) (Grifo original)

Neste trecho, Graciano foi posto no céu dos cristãos por Ambrósio e, ali, colhera o fruto de seus serviços em prol dos romanos. O argumento de um imperador ter sua morada eterna no céu não era novidade. O antigo orador Marco Túlio Cícero alegava que àqueles que tinham se esforçado para defender a pátria era reservado um lugar no céu, onde o abençoado aproveitaria a vida eterna (CÍCERO, De Republica VI, 13). No texto ambrosiano, no entanto, este céu estava garantido a Graciano e a Valentiniano II porque eles tinham sido fiéis a Deus (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 74). A partir desta elaboração, Ambrósio rejeitava as benesses da pós-vida àqueles que não agiam em prol de Deus e fortalecia o discurso que enaltecia as vantagens dos cristãos nicenos com relação aos demais membros da sociedade romana. Observo, no momento da declamação da consolação, o bispo possuía o poder de falar, sua autoridade fazia com que suas palavras fossem entendidas como verdadeiras. A audiência ali presente as ouvia e as incorporava à sua memória. Como ressalta Bourdieu, “escutar é crer” (BOURDIEU, 1977BOURDIEU, Pierrre. A economia das trocas linguísticas. Reproduzido de BOURDIEU, P. L'économie des échanges linguistiques. Langue Française, 34, maio 1977. Traduzido por Paula Montero. Disponível em: <Disponível em: http://docplayer.com.br/57743-a-economia-das-trocas-linguisticas-1.html >. Acesso em: 05 de junho de 2015.
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, p. 6). Enquanto a voz episcopal edificava e legitimava a imagem de um imperador cristão-niceno para Graciano, o público ali presente escutava, entendia e memorizava estas elaborações discursivas para agregar este modelo comportamental ao seu cotidiano.

Na consolação de Ambrósio, noto que, ao invés de terem seus corpos levados pelos deuses e ascenderem à esfera típica do divus imperial, os governantes ascenderam ao paraíso onde Deus os premiava. Uma alegação já utilizada por Eusébio de Cesaréia. De acordo com este bispo, após sua morte, Constantino havia sido recebido e premiado por Deus (EUSÉBIO, De Vita Constantini IV, 60). Não trato aqui, portanto, de uma inovação na consolação ambrosiana, mas observo a contínua construção de uma memória que fazia do imperador um protetor do cristianismo e, por isso, um indivíduo bem quisto por Deus.

Conforme o trecho destacado, naquele momento, Graciano mostrava a Valentiniano II o quanto era importante realizar obras em vida para ser recompensado após a morte. Ressalto que esta oração foi proclamada por Ambrósio durante uma missa e perante uma significativa audiência. Entre este público, destaco a presença das irmãs de Valentiniano II, a quem Ambrósio dirigiu parte desta laudação. Os ensinamentos que, no escrito ambrosiano, ganharam a voz Graciano e eram transmitidos a Valentiniano II, portanto, eram também preceitos que deveriam ser compreendidos por aquele público, seriam guardados na memória individual, anunciados pelas pessoas ali presentes e, enfim, preservados na memória coletiva daquela comunidade.

O historiador Jacques Le Goff afirma que a memória coletiva é um elemento “importante na luta das forças sociais pelo poder”, por isso, aqueles grupos que dominam as sociedades históricas desejam se tornar senhor da memória e do esquecimento (LE GOFF, 1990LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão et al.. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990., p. 426).

No caso ambrosiano, o bispo construiu um discurso sobre os benefícios que a fé cristã oferecia na vida e na morte dos indivíduos e colocou suas palavras na boca de Graciano. Este discurso alimentava uma memória coletiva favorável ao cristianismo niceno e assegurava que o imperador havia sido defensor desta fé enquanto vivo e continuava a sê-lo no além vida. O bispo certificava a Graciano o papel sociopolítico de ser um governante correto e um fiel cristão, gerando um modelo de conduta que deveria ser seguido e propagado por aqueles que presenciavam tais elogios. Afinal, o comportamento adequado, de acordo os parâmetros de Ambrósio, seriam premiados no pós-morte. Esta era uma proposta tentadora para seus ouvintes e poderia garantir a propagação dos ideais nicenos apresentados naquela ocasião em que se homenageava a morte de líderes do Império.

Conforme o historiador e arqueólogo Javier Arce, os funerais dos imperadores romanos não eram improvisados. Todavia, apesar da rigidez do ritual, estas cerimônias permitiam modificações para se adaptarem a decisões de caráter político ou a interesses de determinados grupos (ARCE, 1988ARCE, Javier. Funus Imperatorum: los funerales de los emperadores romanos. Madrid: Alianza Editorial, 1998., p. 37). Observo que, ao proclamar sua consolação durante o funeral de Valentiniano II, Ambrósio seguiu o ritual de louvar o imperador recentemente morto, mas, ressaltou sobremaneira as atitudes de um governante morto quase dez anos antes, resgatando lembranças da atuação de Graciano em prol do cristianismo, tornando-as presentes e, quiçá, inesquecíveis para os ouvintes. Na ocasião da declamação da laudação sobre a morte de Valentiniano II, aquela audiência era convidada a lamentar também a morte de Graciano.

Além disso, Graciano foi colocado por Ambrósio no céu, à espera de Valentiniano II. Não foi destacado nenhum elemento da tradicional esfera do divus imperial. Ao contrário da ascensão imperial promovida pela apoteose divina, o Graciano morto descrito por Ambrósio era um fiel cristão que ensinava sobre as recompensas recebidas após uma vida de boas ações (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 72) e habitava em um “refúgio celestial” (caelestis refugii) (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 73).

Estes elementos favoráveis ao cristianismo diferenciavam a laudação cristã da tradicional laudação elaborada e proferida por escritores e oradores seguidores das tradicionais religiões greco-romanas. As elaborações cristianizadas, certamente, estavam de acordo com os ideais da comunidade liderada por Ambrósio. O Graciano da consolação ambrosiana, portanto, estava muito longe de ascender ao céu através da tradicional apoteose divina. Depois de morto, não se tornara um deus, como requeria a tradicional prática greco-romana. Tornara-se, sim, um fiel cristão recompensado por Deus pelas ações que havia desenvolvido na terra, especialmente, contra os pagãos. Por outro lado, o tom de louvor e as noções generalizantes continuavam a integrar as consolações de autoria de Ambrósio e a alimentar memórias sobre os imperadores, como acontecia nas tradicionais laudações greco-romanas.

O classicista Giorgio Bonamente afirma que, no século IV, a apoteose imperial se transformou em uma nova função do Império em que o cristianismo se difundiu como uma religião oficial (BONAMENTE, 2014BONAMENTE, Giorgio. Teodosio il Grande e la fine dell’apoteosi imperiale. In: ESCRIBANO PAÑO, María Victoria; TESTA, Rita Lizzi (eds.). Política, religión y legislación en el Imperio Romano (ss. IV y V d.C.) - Politica, religione e legislazione nell’Imperio Romano (IV e V secolo d.C.). Bari: Edipuglia, 2014, p. 17-36., p. 18). Na consolação em homenagem a Valentiniano II, Ambrósio cobriu de características cristãs a ascensão de Graciano ao céu, um céu no qual o governante estava junto a Deus.

A criação de uma memória para Graciano foi reforçada no parágrafo 74 da De Obitu Valentiniani Consolatio: “Graciano, de augustas memórias, promete a seu irmão que estão disponíveis os frutos das diversas virtudes, pois ele havia sido fiel ao Senhor, piedoso e gentil, puro de coração” (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 74). Aqui, a lembrança de Graciano ganhou o aposto “de augustas memórias” (augustae memoriae Gratianus). A construção ambrosiana celebrava a memória de Graciano, ou seja, trazia para o presente as ações deste governante em prol do cristianismo. O bispo ressaltou ainda que, em todos os seus dias, falaria sobre Graciano e Valentiniano II; rezaria por eles todas as noites (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 78). Esta insistência de Ambrósio em rememorar os imperadores mortos retomava a ideia de “recordar-se de memória” (meminisse a memoria) defendida por Varrão. Para o gramático latino, a recordação colocava a memória em movimento e as inscrições fúnebres - e aqui acrescento os discursos fúnebres, como as laudações - tinham esta função. “Por isto receberam a denominação de monumento (monimenta) as restantes coisas que são escritas para fazer a memória (memoria)” (VARRÃO, De Lingua Latina VI, 6, 49).

Aqui, considero a afirmação de Le Goff de que a memória ligada à escrita pode ser registrada em monumentos ou no documento escrito, por isso, “todo documento tem em si um caráter de monumento” (LE GOFF, 1990LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão et al.. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990., p. 431-433). Era claro o desejo de Ambrósio de preservar a memória daqueles imperadores, de recordar suas ações em tempos presentes, de transformá-las em monumentos para história dos romanos e de fazer daqueles governantes exemplos de condutas. Afinal, especialmente sob o governo de Graciano, o cristianismo niceno professado pelo sacerdote milanês recebeu atenção imperial: o Concílio de Aquileia censurou dois bispos arianos; os cultos das vestais perderam seus privilégios; o altar da deusa Vitória foi retirado do prédio senatorial; em um edito assinado juntamente com Teodósio I e encaminhado a Floro, prefeito do pretório no Oriente, Graciano havia condenado com a proscrição (proscriptio) aqueles que faziam sacrifícios nos templos pagãos (C. Th. XVI, 10, 7). A proscrição exigia uma penalização pública, podendo ser a pena capital ou o desterro. Em ambos os casos, os bens do penalizado eram recolhidos aos cofres públicos.

Com relação a esta última constituição, atento para o caráter restrito de seu alcance. Conforme Testa, os atuais estudos sobre a natureza das constituições do Código Teodosiano ressaltam o valor geograficamente limitado da maior parte das disposições imperiais (TESTA, 2011TESTA, Rita Lizzi. Legislazione imperiale e reazione pagana: i limiti del conflitto. In: BROWN, Peter; TESTA, Rita Lizzi (eds.). Pagans and Christians in the Roman Empire: the breaking of a dialogue (IV - V Century A.D.). Proceedings of the International Conference at the Monastery of Bose (October 2008), Zweigniederlassung Zürich; Berlin: LIT. 2011, p. 467-491., p. 467). Observo que a constituição 10, 7 do livro XVI do Código Teodosiano foi uma norma emanada de Constantinopla e encaminhada ao prefeito do pretório do Oriente, sendo assim, não se pode generalizar sua abrangência para todo o Império.

Noto, entretanto, que a memória que Ambrósio edificou para Graciano nesta oração a Valentiniano II, desconsiderava as particularidades das ações imperiais e generalizava estes feitos para fazer de Graciano um imperador defensor do cristianismo niceno, uma vez que permitiu o exílio dos bispos arianos Palladio e Secundiniano e foi responsável pelo fim de alguns privilégios aos cultos pagãos. É certo que esta memória se alimentava de ações outrora realizadas pelo augusto, porém, tais ações foram reelaboradas para gerar o caráter universal (palavra latina correspondente à grega katholikos) requerido pelo cristianismo do sacerdote milanês.

Ainda na De Obitu Valentiniani Consolatio, Ambrósio esclareceu que as sepulturas de Graciano e de Valentiniano II estavam próximas uma da outra (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 79). Graciano havia sido derrotado em batalha por Magno Máximo e, enquanto fugia, foi morto na cidade Lugdunum (atual Lyon, na França), na região da Gália, na primavera de 383. Máximo reteve seu corpo como elemento de possível negociação com os imperadores Valentiniano II e Teodósio I, augustos das terras romanas no Ocidente e no Oriente, respectivamente. Esta situação moveu Valentiniano II a mandar Ambrósio como seu legado para reaver o corpo de seu irmão. McLynn afirma que a embaixada do bispo, descrita na Epistola 30 (24) de Ambrósio, foi malsucedida e que os restos mortais de Graciano foram perdidos (MCLYNN, 1994MCLYNN, Neil B. Ambrose of Milan: Church and Court in a Christian Capital. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 164). Já Testa propôs recentemente uma releitura desta embaixada baseada na argumentação de que durante uma reunião do consistorium as solicitações eram ouvidas, porém, as decisões eram tomadas posteriormente em discussões entre o imperador e seus conselheiros. Neste contexto, a autora sugere que o pedido ambrosiano foi atendido para que Máximo fosse aceito por Teodósio I no colégio imperial (TESTA, in pressTESTA, Rita Lizzi. Ambrogio a Treviri, in una Corte poco ospitale. (in press)).

O estudo da historiadora italiana ajuda a esclarecer a afirmação de Ambrósio: “quão próximas as sepulturas [de Graciano e Valentiniano II] [...]. Não os desuniu os túmulos a vós que não separava o afeto” (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 79). Com esta alusão, o sacerdote destacava para seu público o local do enterramento dos imperadores. E se o bispo não conseguira proclamar uma laudação fúnebre para Graciano, aproveitou a ocasião da anunciação da De Obitu Valentiniani Consolatio para louvar os feitos de Graciano, o primeiro imperador que havia lhe garantido um espaço público de defesa de suas crenças para fora dos muros de suas igrejas.

Nas elaborações da De Obitu Valentiniani Consolatio, as relações estabelecidas entre o sacerdote milanês e este augusto ofereceram a Ambrósio a oportunidade de clamar a Graciano como um pai bradava a um filho: “Sinto dor por ti, meu filho Graciano, profundamente querido por mim. Destes muitas provas de tua piedade. Tu me buscavas em meio aos teus perigos, me chamavas em teus últimos momentos, sofrias mais ainda ante minha dor por ti” (AMBRÓSIO, De Ob. Val. 79). Novamente observo a autoridade que o sacerdote erigia para si ao passo que rememorava ações de Graciano e edificava uma imagem cristã nicena para este augusto. Conforme este trecho, o próprio imperador necessitava dos conselhos episcopais. Se o detentor do poder de império confiava nas palavras ambrosianas, os demais romanos também deveriam acreditar na mensagem propagada durante aquela cerimônia. Deste modo, o espaço de fala de Ambrósio era legitimado, sua audiência o ouvia e ajudaria a alimentar tal espaço e a memória sobre Graciano.

O sacerdote proclamou esta consolação em um contexto de incertezas quanto ao poder de império nas terras ocidentais. Valentiniano II morrera na Gália, durante conflitos que tentavam repelir ondas de migrações procedentes dos Balcãs. O chefe do exército romano nesta região, Arbogasto, desaprovou a liderança de Valentiniano II e assim que o imperador morrera, Arbogasto percebeu a ocasião propícia para que Flávio Eugênio fosse aclamado imperador dos territórios romano-ocidentais. Aos olhos de Teodósio I, Eugênio foi considerado usurpador, pois o imperador dos territórios orientais desejava que seu filho, Honório, assumisse o poder de império das regiões pertencentes a Valentiniano II.

Por solicitação de Teodósio I e em um momento em que Eugênio era considerado augusto por uma importante força militar, em sua consolação a Valentiniano II, Ambrósio realçou modelos imperais constituídos de virtudes e basilares para a defesa do cristianismo. Apesar de Eugênio ser cristão (LIEBESCHUETZ, 2010LIEBESCHUETZ, John Hugo Wolfgang Gideon. G. Ambrose of Milan: Political Letters and Speeches. Translated with an introduction and notes by J. H. W. G. Liebeschuetz with the assistance of Carole Hill. 2ª ed. Series Translated Texs for Historians. Liverpool: Liverpool University Press, 2010., p. 358), ele contava com uma significativa base de apoio dos seguidores dos tradicionais cultos greco-romanos, uma situação que certamente gerava inseguranças em Ambrósio e em sua comunidade religiosa. As memórias organizadas pelo bispo em sua consolação, criavam, então, exemplos de conduta que deveriam inspirar os súditos romanos e, talvez, o sucessor de Valentiniano II - ao menos este deveria ser o desejo do sacerdote. E não bastou ao bispo exaltar o augusto recém-falecido. Ambrósio fez questão de elogiar Graciano e fazer deste governante um pregador dos ensinamentos de Deus.

O discurso episcopal se perpetuava na memória coletiva e propagava práticas cristãs e modelos de ações baseados nas atitudes de Graciano - nas obras executadas pelo augusto tanto em vida quanto após sua morte, obras estas que, segundo as elaborações ambrosianas, tinham sido realizadas em favor do cristianismo niceno. Observo que modelos eram idealizações, padrões impregnados de valores positivos, no caso de governantes consagrados pelo autor do discurso, ou de valores negativos, quando os governantes eram reprovados. Serviam, então, de exemplos a serem adotados ou evitados. Estes modelos eram elementos essenciais na construção de teorias políticas, de valores de condutas praticados nas sociedades e de memórias. Ressalto que teoria e prática estavam - e estão - unidas na vida cotidiana. As práticas alimentavam concepções teóricas e estas, por sua vez, geravam valores e produziam símbolos imitados ou rechaçados pelos agentes sociais. E, novamente, estas práticas inspiradas em teorias nutriam outras elaborações teóricas. No caso ambrosiano, a teoria episcopal sustentava que o cristianismo havia sido praticado por Graciano na vida terrena e continuava a sê-lo na vida eterna, desfrutada no céu. Simultaneamente, a memória deste augusto como um imperador cristão prosseguia sendo edificada. Retomo, portanto, a noção de que a memória estava - e ainda está - vinculada às interpretações e aos sentimentos daqueles que a operam.

Conforme o historiador Karl-Joachim Holkeskamp, a laudatio funebris e outros discursos expunham um “capital simbólico” acumulado que marcavam as honras e as funções do homenageado como contribuições para a história gloriosa do Império (HOLKESKAMP, 2014HOLKESKAMP, Karl-Joachim. In defence of concepts, categories, and other abstractions: remarks on a Theory of Memory (in the Making). In: GALINSKY, Karl. Memoria Romana: Memory in Rome and Rome in Memory. Ann Arbor, Michigan: The University of Michigan Press, 2014, p. 63-70., p. 68). Noto que em sua laudação, Ambrósio recordou ações de Graciano que já eram conhecidas de grande parte do público presente naquela ocasião. É certo que, no discurso ambrosiano, este feitos ganharam amplitude e foram generalizados. Generalizações, estas, que delineavam um governante ideal, faziam com que Graciano se tornasse um símbolo e passasse a integrar a história do Império - um Império que Ambrósio desejava que se tornasse cristão niceno. Nesta circunstância, o apoio de grupos pagãos a Eugênio representava uma ameaça aos planos do bispo para sua comunidade e para seu “Império cristão”. E não trato aqui apenas de ameaças de cunho religioso! Durante a Antiguidade Romana, religião, práticas sociopolíticas e culturais eram indissociáveis.

A historiadora Helena Amália Papa ressalta que as práticas episcopais do século IV “não podem ser vistas somente através do prisma político, religioso, administrativo, econômico e/ou social, separadamente. Elas representavam verdadeiras miscelâneas de interesses e pretensões” (PAPA, 2016PAPA, Helena Amália. Considerações Historiográficas acerca das culturas políticas nas práticas político-religiosas da Antiguidade Tardia. In: FUNARI, Pedro Paulo; CARVALHO, Margarida Maria; JOSÉ, Natália Frazão (orgs.). Diversidades Epistemológicas: a teoria aplicada à pesquisa histórica. Curitiba: Editora Prismas, 2016., p. 140-141). As forças religiosas, portanto, eram inseparáveis da esfera política durante Antiguidade Tardia. Ter um imperador proclive ao ideais greco-romanos poderia significar para Ambrósio uma restrição de seus espaços de fala, o que ocasionaria a diminuição de sua autoridade e, consequentemente, prejudicaria a atuação do bispo junto ao poder central, enfraquecendo a comunidade por ele liderada. Deste modo, as memórias e mensagens elaboradas na De Obitu Valentiniani Consolatio devem ser compreendidas sob este cenário de incertezas e temores vivido pelo autor.

Somente em setembro de 394, Eugênio e Arbogasto foram mortos pelo exército de Teodósio em uma batalha em Aquileia. Teodósio morreu no ano seguinte, em 395, deixando o poder de império da parte oriental e da parte ocidental, respectivamente, dividido entre seus dois filhos, Arcádio (383-408) e Honório (393-423).

Por ocasião da morte de Teodósio, Ambrósio redigiu e proclamou a De Obitu Theodosii Oratio, em uma missa realizada em Milão quarenta dias após a morte do governante. Naquela ocasião estavam presentes Honório, soldados, funcionários da corte e parte da população milanesa. Também no documento declamado nesta cerimônia o sacerdote recordou que Graciano estava no céu:

[Teodósio] agora lá abraça a Graciano que não já não lamentava seus ferimentos porque havia encontrado um vingador; embora impedido prematuramente por uma morte indigna, possui o descanso de sua alma. Lá, os bondosos e piedosos intérpretes de misericórdia ilimitada desfrutam de sua companhia. [...] Pelo contrário, Máximo e Eugênio, no inferno, [...] ensinam com seu exemplo miserável quão duro é empunhar armas contra seus príncipes. (AMBRÓSIO, De Ob. Th. 39)

Neste trecho, os dois imperadores que haviam beneficiado a fé cristã-nicena e oferecido a Ambrósio oportunidades de incrementar sua autoridade, sua atuação junto ao poder central e que, sob o ponto de vista do bispo, realizaram boas obras na terra, tinham garantido sua morada eterna no céu. Em contrapartida, Máximo e Eugênio foram colocados pelo sacerdote no inferno. Uma elaboração dicotômica para celebrar a legitimidade e reprovar a usurpação do poder imperial. Importa-me, entretanto, destacar que, neste discurso, Graciano foi chamado à memória daqueles que participavam do cerimonial dedicado a Teodósio. Graciano ainda era um líder que nutria as argumentações episcopais relativas à importância do poder imperial e à defesa do cristianismo niceno.

Para Ambrósio, Teodósio e Graciano já não eram mais cobertos pela púrpura, mas sim pela glória (AMBRÓSIO, De Ob. Th. 52). Segundo o bispo, no céu, o manto púrpuro, tradicional insígnia imperial, havia cedido seu lugar a um elemento duradouro e que vinculava a figura elogiada à história dos romanos: a glória. De acordo com Cícero, a glória era um louvor conquistado devido aos serviços prestados a res publica e era uma virtude comprovada pelo reconhecimento da multidão (CÍCERO, Philippics, I, 12, 29). O ato de “recordar” já consistia, em si, no reconhecimento público da imagem de Graciano, restaurada pelo discurso do sacerdote. Com a elaboração ambrosiana, esta imagem imperial, todavia, foi acrescida de glória. Noto que o bispo era um leitor assíduo de Cícero. A obra ciceroniana De officii (44 a.C.) foi a inspiração para que Ambrósio escrevesse seu livro De officii ministrorum (391). As palavras escolhidas pelo sacerdote milanês, portanto, não eram aleatórias. A retórica aplicada por Ambrósio fazia com que ele escolhesse cada uma de suas palavras e as organizasse da melhor maneira para que sua mensagem fosse compreendida, repassada de boca em boca e penetrasse na memória coletiva.

Observo, então, a seleção da virtude da glória por parte do bispo para compor a imagem de Graciano após a morte deste augusto. Esta era uma virtude que, vinculada à esfera pública, a vitórias e à correta administração do poder de império, enaltecia ainda mais a memória do imperador falecido. Em vida, a cerimônia do triunfo era uma das ocasiões para a concessão desta virtude. Nesta conjuntura, os súditos se mostravam seguidores de seu comandante. Outorgar a glória a Graciano quando ele já estava morto foi mais uma estratégia de Ambrósio para recordar que os súditos ali presentes deveriam reconhecer os esforços de Graciano e ter este governante como exemplo de conduta.

E aqui retomo o trabalho de Pierre Nora que alerta que a memória não é espontânea, ela precisa ser criada e reforçada com a manutenção de aniversários, a organização de celebrações e com o pronunciamento de elogios fúnebres (NORA, 1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Tradução de Yara Aun Khoury. In: Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993., p. 13). Doze anos após sua morte, na anunciação da De Obitu Theodosii Oratio, Graciano voltou a ser personagem da homenagem episcopal proclamada para um importante público. Novamente, Graciano ganhou espaço ao lado de um augusto recém-morto nas homenagens ambrosianas e na memória do público. Afinal, com Graciano as palavras episcopais em benefício do niceismo tinham ganhado espaço fora das paredes das igrejas e, ao generalizar as ações deste augusto, o bispo conseguiu fazer deste augusto um modelo de governante favorável à crença defendia por Ambrósio.

As virtudes e ações que o bispo imputava a Graciano alimentava as lembranças, mesmo vagas, que os ouvintes pudessem ter daquele imperador. Estas lembranças renasciam, ganhavam novos significados e importância através das elaborações ambrosianas, fazendo de Graciano um exemplo de imperador cristão e gerando uma memória que se integraria a história romana. Noto, então, a construção de uma memória que responde aos interesses de Ambrósio e de sua base de apoio. Uma memória viva, constantemente elaborada e pertinente àqueles que dominavam a comunidade milanesa e desejavam manter uma organização sociopolítica da qual eram beneficiários.

Com Graciano, o bispo milanês obteve um amplo espaço de fala, estreitou os laços com o círculo de poder imperial e, consequentemente, ajudou a fortalecer um discurso que percebia o niceismo como o verdadeiro cristianismo. Graciano foi o primeiro imperador a receber a alcunha de “santo imperador” por parte do sacerdote. Só no tratado De fide Ambrósio utilizou esta expressão doze vezes para se referir ao augusto. Não é estranho, portanto, que Graciano tenha tido sua existência rememorada pelo bispo. As memórias sobre Graciano criadas por Ambrósio estavam impregnadas de valores positivos e de ações exemplares realizadas em benefício dos romanos e do cristianismo niceno. Diante das interpretações contidas neste artigo, observo que, em suas consolações em homenagem a Valentiniano II e a Teodósio, o sacerdote milanês fez de Graciano um símbolo de governante e de cristão. Ambrósio certamente desejava que este modelo fosse seguido tanto pelos governantes vindouros como por seus súditos. Através destes escritos episcopais (que também foram proclamados publicamente), o autor transmitia ideias que amparavam a veracidade e a benevolência do cristianismo niceno, bem como a utilidade pública de um imperador que seguisse os princípios desta fé, como foi o caso de Graciano.

Considerações finais

Embora Ambrósio não tenha tido a oportunidade de declamar publicamente uma consolação sobre a morte de Graciano, o bispo aproveitou duas importantes ocasiões para rememorar os benefícios que este imperador teria angariado para o Império. Tanto a De Obitu Valentiniani Consolatio como a De Obitu Theodosii Oratio generalizavam as ações de Graciano para dilatar sua atuação em prol dos cristãos e marcaram a presença deste augusto no céu. Mas não naquele céu ciceroniano, merecido por aqueles que favoreceram os territórios romanos, nem no céu em que o imperador divus era esperado pelos deuses. No céu de Ambrósio, o Deus cristão recebera Graciano e lhe premiara por suas atuações durante a vida.

Estes discursos vinculavam práticas terrenas a recompensas celestes e possivelmente nutriam desejos de bem-estar eterno em seu público, pois a mensagem referente aos benefícios reservados ao fiel cristão era evidente. Por um lado, a importância do poder imperial era destacada, pois este poder, concentrado nas mãos de Graciano, era o responsável por administrar corretamente os romanos, especialmente ao coibir privilégios dos templos pagãos - de acordo com os argumentos ambrosianos. Por outro, o cristianismo niceno professado pelo sacerdote milanês ganhava a memória das audiências daquelas cerimônias, uma vez que tal religião, conforme as alegações episcopais, tinham guiado as ações de Graciano e premiado o augusto no pós-vida.

Observo que, em suas consolações, Ambrósio ditou regras que fariam de Graciano um correto imperador cristão. Logo, este augusto seria o modelo de conduta a ser seguido por futuros imperadores e por seus súditos. Embora meu trabalho contemple elogios fúnebres feitos a Valentiniano II e a Teodósio, não resta dúvida de que o primeiro modelo de “imperador cristão” e de “imperador santo” a ser considerado pelo sacerdote milanês foi Graciano. Uma imagem presente em ambas as consolações como um exemplo de governante e de cristão. E mesmo que o bispo não tenha escrito uma consolação sobre a morte de Graciano, este augusto era quem estava no céu para receber seu irmão, Valentiniano II, e Teodósio.

Sem vestígios da esfera divina própria da tradição greco-romana, o Graciano das consolações ambrosianas era um pregador das benesses do Deus cristão. De acordo com as elaborações episcopais, na vida e na morte, as ações de Graciano eram favoráveis ao cristianismo niceno. Estas memórias, vivas e reelaboradas por grupos que dominavam as comunidades, geravam símbolos de conduta e valores sociopolíticos que sustentavam a manutenção de um status quo salutar àqueles que articulavam os poderes que compunham as sociedades.

Agradecimentos:

Como este Dossiê propõe, os textos aqui reunidos são fruto dos questionamentos apresentados no I Colóquio Internacional do Grupo do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano da UNESP/Franca - Memórias e mortes dos imperadores romanos, ocorrido em agosto de 2019 na Universidade Estadual Paulista, campus Franca. Agradeço a oportunidade de ter participado deste importante congresso ao lado de especialistas em História Antiga e História Tardo Antiga do Brasil e do exterior.

Referências

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  • 1
    As crenças dos chamados cristãos nicenos estavam baseadas nos dogmas instituídos no Concílio de Niceia, realizado no ano de 325, sob convocatória do imperador Constantino I (306/312-337).
  • 2
    No início do Livro III do De fide, Ambrósio salientou que atendia a um novo pedido de Graciano para que complementasse os esclarecimentos sobre a fé nicena (AMBRÓSIO, De fide III, 1-2).
  • Declaração de Financiamento Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo por financiar meus estudos de pós-doutorado no Brasil (processo número 2016/20942-9) e no exterior (processo BEPE-Espanha 2017/26939-2, processo BEPE-Itália 2018/03187-8).
  • Dossiê Memórias e Mortes de Imperadores romanos (I a.C. – VI d.C.)

    Organizadoras: Margarida Maria de Carvalho, Rita Lizzi Testa & Janira Feliciano Pohlmann

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2020
  • Aceito
    02 Jul 2020
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