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Ninguém ensina História... mas todo mundo aprende um pouco com ela: uma reflexão sobre as funções da História no Ensino Médio

Nobody teaches History... but everyone learns a little with it: a reflection on the goals of History in High School

RESUMO

Neste artigo, apresento a ideia de que a História no Ensino Médio não é ensinável. Para sustentá-la, argumento que: 1) os acontecimentos históricos não são passíveis de ensinamento porque a res gestae é de natureza informativa e explicativa; 2) ensino pressupõe a apropriação de um conhecimento adaptável a outras circunstâncias, tempos e espaços, o que é impertinente no caso da História, dada a irrepetibilidade dos seus fenômenos. Para ilustrar meu argumento, analiso as expressões “consciência histórica”, do historiador Jörn Rüsen, e “pensar historicamente”, do autor de livro didático Mario Schmidt. A partir dessa análise, sustento que o que frequentemente denominamos ensino de História se traduz, em linhas gerais, a ensinamentos ético-morais e de elementos das teorias historiográficas. E, por fim, faço uma diferenciação entre ensino e aprendizagem, concluindo que, embora a História não seja “matéria” ensinável, podemos aprender muito com ela.

Palavras-chave
Ensino de História; funções da História; aprendizado histórico

ABSTRACT

In this article, I defend the idea that History in High School is not teachable. To support that statement, I argue the following: 1) historical events (res gestae) are informative and explanatory in nature, and therefore cannot be taught; 2) the concept of teaching presumes the appropriation of knowledge that can be adapted and applied to other circumstances, time and space, which is not the case of History, since events do not repeat themselves. To illustrate my point of view, I analyse the expressions “historical consciousness” by the historian Jörn Rüsen and “to think historically” by the textbook author Mario Schmidt. Based on that analysis, I argue that what we often call History teaching actually translates into ethical-moral teachings and into theoretical elements of historiography. Finally, I cover the distinction between teaching and learning, and conclude that although History is not a teachable “subject matter,” we can learn a great deal with it.

Keywords
History teaching; History functions; historical learning

Neste texto, defendo uma hipótese aparentemente estranha: de que a história não é “matéria” ensinável. Meu foco é o ensino de história contemporâneo na educação básica. Antes, porém, faço uma breve síntese das funções que o conhecimento sobre o passado exerceu - da Grécia Antiga ao nosso momento. Como o recorte é absolutamente amplo, só pude reter aqueles elementos gerais sobre o assunto, mas, penso eu, suficientes para tomarmos contato com a questão das serventias da história, tema tão antigo quanto atual. Em seguida, sustento que as funções exercidas pela história ao longo do tempo estão presentes no ensino de história hoje, ainda que elas tenham sofrido determinadas atualizações. Posteriormente, entro no núcleo duro da hipótese, discorrendo sobre os motivos pelos quais a história não é ensinável: em um primeiro momento, defendendo a incompatibilidade entre a “matéria” da história e suas características e um dado conceito de ensino; e, em seguida, questiono as expressões “pensar historicamente” e “ter consciência histórica”. Por fim, argumento que, embora a história não seja ensinável, todos nós podemos aprender significativamente com ela.

Funções gerais da história1 Ricardo Marques de MELLO. Bacharel e licenciado em História pela Universidade Estadual de Londrina (2006), mestre (2008) e doutor (2012) em História pela Universidade de Brasília. Tese de doutorado vencedora do Concurso de Teses e Dissertações da Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (2014) na modalidade História da Historiografia. Pesquisa temas relacionados a Teorias da História, História da Historiografia Brasileira Contemporânea e Ensino de História. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual do Paraná, campus de Campo Mourão, na Graduação e na Program de Pós-Graduação.

A combinação entre história-ação, história-narração e ensinamento tem uma tradição longa. A ideia de que se pode aprender com as ações humanas por meio de narrativas que lhes dizem respeito aparece já em escritos da Grécia Antiga, e é bem provável que esse entendimento fosse, inclusive, anterior a este período.

Em perspectiva histórica, essa ideia ficou conhecida pela expressão historia magistra vitae (história mestra da vida), criada, posteriormente, por Cícero. Ela significa que as ações humanas constituem um repertório de exemplos, bons e ruins, que podem indicar como alguém deve se portar, agir e reagir frente a determinadas situações no seu próprio presente. Nesse sentido, “a tarefa fundamental dos historiadores [seria] extrair do passado um tipo particular de ferramenta didática imediatamente aplicável a qualquer circunstância temporal” (ASSIS, 2011ASSIS, A. Por que se escrevia história? Sobre a justificação da historiografia no mundo ocidental pré-moderno. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó, SC: Argos, 2011., p. 106). Naquela ocasião, a associação da história à retórica fazia dos exemplos históricos um poderoso instrumento de persuasão para o que hoje chamamos de “tomada de posição”. Arthur Assis afirma que o uso da história-narração (cuja base são as ações humanas) com fins instrutivos foi persistente do mundo antigo até aproximadamente o século XIX: ora as histórias serviam predominantemente a lições morais, ora a percepções políticas, ora a ensinamentos religiosos, ou a uma mistura entre elas (ASSIS, 2011, p. 106ASSIS, A. Por que se escrevia história? Sobre a justificação da historiografia no mundo ocidental pré-moderno. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó, SC: Argos, 2011.).

No século XIX, entretanto, ocorreram transformações profundas e, como consequência, o uso da história-narração como mestra da vida entrou em descrédito. Primeiramente, as rápidas e inéditas modificações sociais, políticas, econômicas e tecnológicas dos séculos XVIII e XIX abriram um mundo novo de perspectivas e circunstâncias. Nesse caso, a ideia subjacente de que a quase imobilidade no curso dos acontecimentos permitiria a adoção de exemplos do passado para orientação no presente de então perdeu sentido e efeito prático. Nada mais era como antes. Assim, diminuiu-se a relevância do mundo pretérito para decisões no presente e aumentou-se a importância e influência das expectativas de futuro. Além disso, a separação entre passado, presente e futuro, como tempos autônomos, com características próprias, singulares, que não se repetem, converteria a suposta continuidade entre passado e presente em um equívoco de avaliação, fazendo com que a historia magistra vitae se tornasse uma indesejada obsolescência. E, por fim, a cientifização da história-narração, consolidada no século XIX, considerou qualquer tentativa de usar os fatos do passado para tomar decisões no presente uma projeção anacrônica. Em seu lugar, cada fenômeno deveria ser compreendido dentro de suas próprias características e reconhecido como único, singular: passado, presente e futuro foram temporalizados, criando-se, deste modo, a capacidade de se historicizar qualquer objeto (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora PUC-Rio. 2006.; KOSELLECK et al., 2013KOSELLECK, Reinhart et al. O conceito de História. Tradução de René Gertz. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.).

Quais passariam a ser, então, as funções da história quando ela perdeu espaço como mestra da vida? O que ela poderia nos ensinar com a assunção da individuação temporal? De início, não temos uma substituição imediata. O vínculo da história-narração ao campo científico aproximou os historiadores do ideal de correspondência entre realidade observada e descrita, promovendo a metodização e a pretensão de imparcialidade, tanto quanto possível. Com isso, a função premente da história-narração, agora ancorada e antecedida por pesquisa, métodos e documentos, era conhecer o que se deu no passado, sem a ambição de investigá-lo com alguma finalidade: o conhecimento do mundo pretérito era seu próprio fim (WHITE, 1978WHITE, Hayden. The Burden of History. In: WHITE, Hayden. Tropics of Discourse. Essays in Cultural Criticism. Baltimore and London: The Johns Hopkins University Press, 1978.).

Todavia, havia na produção historiográfica uma distância entre a pretensão de imparcialidade e sua consecução. E, por demandas circunstanciais, a história, como um campo científico, com reputação e legitimidade, passou a desempenhar a função de erigir, disseminar e consolidar um sentimento de pertencimento a integrantes de um mesmo território. Assim, a história, em boa parte do século XIX e XX, exerceu a serventia de construir nacionalismos, de integrar culturas, de estreitar laços afetivos, de, enfim, distinguir identidades e alteridades, separando o “nós” do “eles”, algo necessário para a formação dos Estados modernos e decisivo na definição de guerra e paz entre eles. Dessa perspectiva, a história tinha condições de ensinar o que se foi, o que se era e o que se poderia ser, descrevendo origens, designando papéis sociais, separando projeções desejáveis das indesejáveis e fomentando uma visão de mundo guiada pela ótica da Nação, independente do matiz que ela assumiu em diferentes regiões do mundo (BOURDÉ; MARTIN, 2003BOURDÉ, G.; MARTIN, H. A escola metódica. In: As Escolas Históricas. Tradução de Ana Rabaça. Lisboa: Publicações Europa-América, 2003.; DOSSE; DELACROIX; GARCIA, 2012DOSSE, François; DELACROIX, Christian; GARCIA, Patrick. As Correntes Histórias na França: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.; GUIMARÃES, 1988GUIMARÃES, Manoel Luiz S. Nação e Civilização nos Trópicos. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos: caminhos da historiografia. - Rio de Janeiro: CPDOC/ FGV, n.1, 1988. p. 5-27.). Para além das informações sobre o passado, portanto, a história-narração tinha a tarefa de formar mentes e sugerir condutas.

No século XX, entretanto, as funções da história-narração não se limitaram ao uso do passado como ferramenta para a fundamentação de nacionalismos. Com a École des Annales, por exemplo, ela passou a ser um tipo de saber cuja tarefa primordial era explicar melhor o nosso próprio presente. O estudo do passado como um fim em si mesmo foi não só refutado pelos annalistes, como também considerado uma aspiração inalcançável, indesejada e, com frequência, acusada de favorecer fins subjacentes. O historiador deveria voltar-se ao passado para aumentar o grau de conhecimento sobre o seu tempo e assumir que a história-narração não era um ramo desinteressado, desprovido de intervenção subjetiva, mas um saber intersubjetivamente construído, metodicamente controlado e com potencial para identificar o que do passado permanecia atuando no presente (DOSSE; DELACROIX; GARCIA, 2012DOSSE, François; DELACROIX, Christian; GARCIA, Patrick. As Correntes Histórias na França: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.; BURKE, 1991BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales, 1929-1989. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.; REIS, 2000REIS, José Carlos. Escola dos Annales - a inovação em história. São Paulo: Paz e Terra, 2000.).

Em outra importante vertente historiográfica do século XX, a do materialismo histórico, o conhecimento produzido pelos historiadores, ao menos em uma das interpretações mais recorrentes até os anos sessenta, serviria para desvelar as reais condições de existência e relações sociais que persistiram ao longo do tempo, explicitando de que modo estamos inconscientemente enredados em estruturas que nos condicionam e nos impedem de estabelecer sociedades mais justas e equânimes, criando, assim, as bases cognitivas e a consciência necessária para a tomada de ações que visassem à própria transformação das desigualdades historicamente consolidadas. É a história-narração a serviço da ação (FONTANA, 1998FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.).

A segunda metade do século XX também assistiu a novas funções atribuídas à história e à sua capacidade de ensinar algo. Muito provavelmente em decorrência do simultâneo descrédito das metanarrativas e da ascensão de grupos historicamente colocados à margem das historiografias, a história-narração passou a exercer, entre outras, a função de desnaturar hierarquias sociais, de fomentar o respeito à diversidade cultural e de reexaminar valores com os quais convivemos. Todas essas e muitas outras características congêneres têm relação imediata com a ideia de que conhecer a história-ação é conhecer como, em dado momento, o passado e o presente foram construídos como opções que bem poderiam ser outras, caso as relações de forças que atuaram à época reverberassem diferentemente. A história-narração, a partir desse entendimento, poderia nos ensinar a desmontar as várias camadas de valores, relações e práticas do mundo atual por intermédio do (re)conhecimento de como elas foram determinadas, amalgamadas, sobrepostas, justapostas, ressignificadas, e com isso aumentar nossa tolerância e respeito ao diferente de nós, sem discriminações raciais, religiosas, sexistas, afetivas, sexuais, étnicas, entre outras.

Essa brevíssima menção histórica sobre as funções da história ao longo do tempo não esgota, obviamente, outras serventias atribuídas ao conhecimento do passado como um todo. Além disso, há combinações e variações entre elas, sem dúvida. Ainda assim, ela deve ser suficiente para compreendermos que a história-narração, como materialização possível da história-ação, foi, e na verdade ainda o é, considerada capaz de ensinar algo para pessoas que viveram e vivem em dado presente. A legitimidade, e muitas vezes as justificativas para todo o investimento em pesquisa e produção contemporâneas de conhecimento sobre o passado, advém parcialmente em função desse pressuposto da ensinabilidade da história.

O ensino de história atual como uma mistura de funções da história

As funções atribuídas à história-narração ainda se fazem presentes no pensamento histórico atual, não apenas nos produtos fabricados por profissionais da área. Embora possamos concluir que a função exemplar da história (mestra da vida) tenha prevalecido até os oitocentos ou que o uso de preceitos históricos no estímulo e promoção do sentimento nacionalista seja um traço marcante do século XIX até meados do seguinte, todas as serventias da história supracitadas estão disseminadas na nossa cultura histórica, que está aquém e muito além daquilo que a comunidade de historiadores produz. Um dos lugares em que é possível perceber, sem muito esforço, a presença e coexistência das funções da história listadas acima é no ensino escolar.

E é possível comprovar esse argumento de várias maneiras. Talvez a mais imediata e evidente seja uma observação direta de algumas aulas de história lecionadas no Ensino Fundamental II e Médio. Independentemente da formação do professor, do tema, do recorte espaço-temporal ou das séries nas quais as aulas são ministradas, o ensino de história em sala parece transitar pelas funções sobreditas. Outra forma de identificar a validade dessa ideia é mediante a análise dos documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 2002BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Ensino Médio. Brasília: MEC/CEF, 2002.), os quais sugerem “serventias” ao ensino de história, que em grande medida são desdobramentos das funções exemplares, nacionalistas, de superação de desigualdades, de respeito às diversidades e de historicização dos objetos históricos. Além disso, os livros didáticos, um dos principais suportes usados no ensino de História, apontam recorrentemente no mesmo sentido não por acaso, já que boa parte deles é preparada para atender ao Programa Nacional do Livro Didático, cujo edital deve estar em consonância com os PCN.

Além de professores em sua prática docente, documentos curriculares e livros didáticos, ainda podemos assinalar sistematizações teóricas dos tipos de narrativas históricas ensináveis em sala de aula, como aquelas descritas por Jörn Rüsen, um dos mais requisitados autores da atualidade nas pesquisas sobre ensino e aprendizagem da história (RÜSEN, 2007RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2007.; RÜSEN et al, 2011RÜSEN, Jörn et al. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.) . De acordo com o historiador alemão, as narrativas historiográficas são acomodadas em quatro modalidades, todas orientadas para a formação de determinadas identidades: tradicional, exemplar, crítica e genética. Em termos equivalentes e com certa imprecisão, poderíamos relacionar a forma tradicional ao momento em que a história servia preponderantemente à consolidação dos nacionalismos; a exemplar com a história magistra vitae; a crítica com a historiografia que se apropriou do materialismo histórico ou de outras tendências que negam determinados valores cristalizados; e a genética com o momento de inflexão temporal na passagem do século XVIII e XIX e, também, com boa parte da historiografia pós década de 1970, que fez da historicização seu princípio cognitivo. Para Rüsen, no ensino de história contemporâneo, essas modalidades e suas respectivas funções coexistem.

É a história uma matéria ensinável?

Mas se há um lugar comum de que a história é ensinável, o que especificamente se ensina quando se ministra uma aula de história? A própria história-ação, obviamente! Mas o que é história-ação e por que, na minha hipótese, ela não pode ser ensinada, independentemente da função atribuída ao ensino de história?

A história-ação é constituída de acontecimentos de variadas naturezas, intensidades e dimensões: conversas, sensações, práticas, sentimentos, guerras, acordos, cotidiano, política, amor, cultura... É tão diversa a natureza das ocorrências, que qualquer classificação se torna incompleta, impertinente e vazia. Desses acontecimentos, uma parcela absolutamente mínima é registrada (a que nomeamos documentos). Dos documentos, apenas uma pequena parte é analisada pelos historiadores, que o fazem a partir de uma série de pressupostos teóricos, historiográficos, políticos, estéticos e epistêmicos. O resultado deste trabalhoso processo de transformação é a historiografia, geralmente materializada em artigos, livros, documentários, entre outras modalidades.

Esse é o primeiro e óbvio motivo pelo qual a história não é ensinável: pois os estudantes, e a maior parte dos professores, têm um acesso a ela já totalmente reelaborada. Mesmo em um curso de graduação em história, não se ensina história, mas algumas perspectivas historiográficas. Soma-se a isso o fato de que a história-ação tem naturezas variadas, como mencionei acima, e a história-narração tem outras. Tais argumentos são razoavelmente aceitos e reconhecidos pelos historiadores e professores de história, embora eles quase sempre continuem a usar a expressão imprecisa de que se ensina história, beneficiando-se, evidentemente, da reputação que essa tarefa por si só sugere.

Mas o ponto central da minha hipótese está em outra direção. Ensinar é um verbo que em geral designa outro verbo. Ensina-se, por exemplo, a pilotar uma moto, a andar a cavalo, a operar uma máquina, a analisar um experimento, a somar, a subtrair, a filosofar, etc. Quando aprendo qualquer uma dessas atividades, posso usar esse conhecimento que me foi ensinado para outras circunstâncias que demandam tais habilidades intelectivas e/ou motoras. Mas em uma aula de história? Ensinam-se fatos, ações, acontecimentos? Estranho, não?

Para didatizar a hipótese de que a história não é ensinável pela natureza de sua “matéria”, podemos artificialmente dividir uma aula do ensino básico em três dimensões. A primeira dimensão é a factual. É quando os professores apresentam determinados fatos, geralmente aquelas informações que não produzem qualquer tipo de controvérsia entre historiadores de diferentes posições ideológicas. Por exemplo, não me parece possível negar que houve escravidão no Brasil ou que o setor primário foi o principal gerador de divisas da nossa balança comercial no século XIX. A segunda dimensão é representacional: ela ocorre quando o professor expõe as representações, interpretações ou leituras de outrem sobre algum fenômeno histórico. Por exemplo, como determinados grupos sociais interpretaram a Proclamação da República, o Nazismo ou o Regime Civil-Militar no período 1964-1985 no Brasil. Nessa dimensão, o professor procura não colocar em dúvida se a interpretação/ representação é ou não real, dando, assim, “voz” às representações de determinados indivíduos e grupos sobre os acontecimentos. A terceira e última dimensão chamarei de significativa: é quando se atribui um significado a um evento histórico qualquer. Com ela, o professor de história não se limita a descrever os feitos (factual) ou expor a representação de outrem (representacional), mas vai além: ele, em um viés geralmente sintético e conclusivo, sugere ou declara o que o fenômeno histórico estudado realmente significou. Por exemplo, o que significou o Decreto de Abertura dos Portos às Nações Amigas, de 1808; a Era Vargas; a Segunda Guerra Mundial ou o impeachment de Collor.

Nas três dimensões, que comumente estão misturadas em uma aula de história, não há ensinamento. Na factual, porque a relação do professor com os alunos se traduz a uma transmissão de informações ou a uma descrição de fatos. O ponto principal é que a história-ação não é ensinável porque, a rigor, não se pode “ensinar fatos históricos”. Os eventos históricos foram o que foram. Cabe apenas descrevê-los, informá-los acerca de sua ocorrência. Uma afirmação como “D. Pedro I outorgou a primeira Constituição do Brasil em 1824” não ensina algo, apenas nos informa. E informar não é sinônimo de ensinar, embora todo ensinamento preveja a exposição de determinado conjunto informacional.

Na dimensão representacional não há ensino porque, semelhantemente à factual, ao professor cabe apresentar a perspectiva de determinados indivíduos ou grupos sobre um ou mais acontecimentos históricos. E isso é possível porque os historiadores têm acesso a algum tipo de depoimento ou registro em que tais representações foram expressas. Com certa tolerância e relativismo, o professor de história comumente não julga ou hierarquiza as diversas perspectivas de outrem trabalhadas em sala. Por isso, não é pertinente, na dimensão representacional, avaliar se a representação é ou não “correta”, contrapondo-a a uma suposta verdade em si.

E, por fim, na dimensão significativa não há ensinamento histórico porque ela é uma elaboração retrospectiva sobre o que se deu no passado. Cada atribuição de significado é própria da época/ autor que a elaborou. Pensemos, por exemplo, no significado atribuído à Independência do Brasil: um evento que recebeu dado significado por pessoas que viveram o ocorrido, pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, por pensadores como Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda e outros mais até os nossos dias, cujas sucessivas camadas de significados históricos vão se acumulando, demonstrando como a produção historiográfica é, ela mesma, resultado da história-ação (CERTEAU, 2000CERTEAU, M. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.). No significativo, o que há é um ajuizamento sobre determinado fenômeno histórico.

Contudo, alguém poderia, e com razão, questionar: uma aula de história não é a simples descrição dos fatos, das representações de outrem e a postulação de significados aos eventos históricos. Um professor de história faz muito mais do que isso. Os fatos são conectados, posicionados como causa, consequência, são associados às representações, analisados, explicados, e só então o significado “emerge”. Uma aula de história, portanto, vai muito além dessa divisão em três dimensões ou da soma delas.

Sem dúvida, uma aula de história é complexa, e mesmo a abordagem acerca de um evento simples demanda comparações, provas, conexões. Nada disso, porém, ensina história. Pensemos em um caso: a Independência do Brasil. Trata-se de um fenômeno cuja explicação só será satisfatória se o professor considerar e descrever uma série de antecedentes, sobretudo políticos, que se deram simultaneamente na Europa e no Brasil, vinculá-los, relacioná-los e estabelecer graus de importância de cada um na trama. Desta maneira, ele tem condições de dotar de feição algo que, a princípio, parecia uma coleção de fatos desprovidos de sentido. Todo esse malabarismo explica, enfim, o 1822.

No entanto, explicar algo não equivale a ensinar algo. Por mais que o professor tenha se esforçado e a sua exposição tenha sido entendida, a linha de raciocínio e as relações entre os fenômenos por ele realizadas só são pertinentes àquele evento, e a nenhum outro. Da observação das ocorrências históricas não é possível decantar esquemas, leis ou teorias explicativas aplicáveis a outros acontecimentos. Não há, enfim, mecanismos de “funcionamento” histórico que se repetem.

O que está subjacente à impossibilidade de se ensinar os fatos históricos ou uma dada lógica explicativa a partir da qual se poderia compreender outros acontecimentos humanos é a unicidade, a singularidade, a especificidade de cada acontecimento em si. Desde o século XIX, a separação entre passado, presente e futuro moldou o nosso pensamento histórico atual e viabilizou uma nova temporalidade (KOSELLECK, 2013KOSELLECK, Reinhart et al. O conceito de História. Tradução de René Gertz. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.). Se cada evento deve ser compreendido e explicado como único e em seus próprios termos, qualquer tentativa de se apropriar de ideias extraídas desses mesmos eventos a fim de usá-las em outras circunstâncias torna-se, no mínimo, questionável. A explicação de um professor sobre 1822 é só sobre 1822.

O que se ensina quando se pretende ensinar alguém a pensar historicamente ou a ter consciência histórica?

Porém, uma parcela significativa dos manuais de história e da literatura contemporânea sobre o ensino de história afirma que a principal função da história em ambiente escolar não é “ensinar fatos” ou encontrar, no fluxo dos acontecimentos, ou neles individualmente, esquemas ou “leis” aplicáveis a outras situações, mas sim ensinar os educandos a “pensar historicamente” ou a “terem consciência histórica”.

Não é tarefa fácil descrever com precisão o que significa pensar historicamente ou ter consciência história, entre outros motivos, porque parece não haver consenso conceitual entre os diferentes autores que usam essas expressões. Além disso, seria necessário distinguir o que é pensar historicamente com alto grau de abstração e complexidade, como em Droysen (CALDAS, 2004CALDAS, P. S. P. Que significa pensar historicamente: Uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav Droysen. 2004. 215f . Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.), daquilo que os livros didáticos e a literatura especializada compreendem por isso para o ensino de história, precisamente.

Apesar da dificuldade de definição do que é pensar historicamente e o que é ter consciência histórica, vou usar duas fontes cuja influência no ensino de história e na sua análise, no Brasil atual, é expressiva: primeiramente, parte da obra de um dos teóricos mais acionados quando o assunto é a história no sistema escolar, tanto em pesquisas quanto no ensino universitário: Jörn Rüsen (2007RÜSEN, Jörn. História Viva: teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2007.; 2011RÜSEN, Jörn et al. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.); e, posteriormente, um dos livros didáticos mais vendidos nos últimos anos (mais de 10 milhões de cópias), que, desta forma, recebeu, de alguma maneira, a aquiescência dos professores que o adotaram: Nova História Crítica, de Mario Schmidt (SCHMIDT, 2007SCHMIDT, Mario. Manual do Professor. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração, 2007.; SCHMIDT, 2010SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração , 2010.). É evidente que apenas com essas duas fontes não é possível falar em uma definição acabada da nossa expressão, tampouco há aqui qualquer pretensão de esgotar o tema, mas me parece ser um bom começo ter duas referências recorrentemente usadas no ensino, seja por pesquisadores universitários e/ou por professores da educação básica.

O ponto de partida de Rüsen consiste em afirmar que determinadas carências de orientação no nosso presente nos impulsionam a buscar no passado respostas ao que nos aflige (RÜSEN, 2001RÜSEN, Jörn . Razão Histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001.). Ou, em outros termos, alguma necessidade de compreender melhor o mundo no qual estamos inseridos fomenta o desejo de relacionarmos presente, passado e futuro. O “retorno” ao passado, por conseguinte, não é casual, mas atividade que cria identidade, estabelece sentido temporal e auxilia na tomada de decisão na vida prática. “A consciência histórica trata do passado como experiência, nos revela o tecido da mudança temporal dentro do qual estão presas as nossas vidas, e as perspectivas futuras para as quais se dirige a mudança” (2011, p. 57RÜSEN, Jörn . Razão Histórica. Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001.). Deste modo, podemos compreender a consciência histórica como a capacidade de relacionar experiência (oriunda do passado), interpretação (fomentada de acordo com dadas demandas do presente) e orientação (a tomada de ações na vida prática voltadas ao futuro).

De acordo com Rüsen, a consciência histórica pode se expressar por intermédio de quatro modalidades distintas de narrativa: tradicional, exemplar, crítica e genética. Em todas elas há relações entre continuidades e descontinuidades do fluxo temporal. Na narrativa tradicional, as permanências diacrônicas são enfatizadas e consideradas positivas: “uma continuidade de modelos de vida” (2011, p. 64); na exemplar, o foco são as regras ou situações históricas usadas para orientar os indivíduos a seguir casos bem-sucedidos e evitar erros cometidos, independentemente do tempo e espaço que separam os fenômenos envolvidos na analogia; na narrativa crítica, ocorre a negação de valores, principalmente ideias e práticas tradicionais, consolidadas ao longo do tempo como “naturais”, imemoriais ou eternas; na modalidade genética, a narrativa ressalta a singularidade, a unicidade dos acontecimentos, e compreende as mudanças como inevitáveis, sem julgamentos ou projeções do presente ao passado: “esta é a forma refinada de uma espécie de pensamento histórico moderno marcado pela categoria de progresso” (RÜSEN, 2011RÜSEN, Jörn et al. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011., p. 69).

A hipótese de Rüsen é que a consciência histórica evolui qualitativamente da forma menos a mais complexa: iniciamos com a tradicional, passamos respectivamente pela exemplar e crítica, culminando na genética, o ápice entre elas. Aprender história, dessa perspectiva, consistiria em conhecer e reconhecer as diferenças temporais relacionando passado, presente e futuro a fim de que consigamos aumentar o grau de nossa compreensão e consciência a respeito do passado/presente e possamos, por fim, tomar decisões na nossa vida prática com embasamento conscientemente histórico.

Esse processo todo é ensinável? Indubitavelmente, há possibilidades de informar e ilustrar aos educandos como determinados historiadores estabelecem relação entre passado, presente e futuro, associando, por exemplo, os discursos historiográficos por eles produzidos a um ou outro tipo de narrativa. É possível, também, estimular nos alunos a autorreflexão a respeito de valores que eles trazem, permitindo-lhes que se apercebam qual a compreensão que têm de dado assunto de cunho histórico com base nos tipos narrativos. E, por fim, é possível descrever o que enfatizar do passado e do presente em cada modalidade narrativa, instruindo o aluno a desenvolver certa competência narrativa para sublinhar permanências (tradicional), regras (exemplar), negar continuidades (crítica) ou ressaltar singularidades e a inevitabilidade da mudança (genética) a fim de que ele produza um sentido para sua própria vivência.

No entanto, as consciências históricas apresentadas por Rüsen são formais e não indicam o que nem como especificamente atribuir relevância aos eventos em si. A história não pode ser concebida como estruturas narrativas apenas, pois ela é constituída de sujeitos históricos. Por exemplo, não há como ensinar qual o papel que determinado indivíduo, grupo ou instituição irá assumir em uma narrativa de cunho tradicional, porque essa decisão é condicionada, sobretudo, por questões do presente de quem narra. O que quero dizer é que duas pessoas, atendo-se ao mesmo fenômeno, explicando-o com base na mesma modalidade narrativa, a tradicional, por exemplo, podem dar ênfases tão distintas em cada uma, que dificilmente diríamos que ambas tiveram o mesmo “ensinamento” histórico. Ensinar alguém a desenvolver competências narrativas não é como ensinar a alguém a relacionar peças a fim de que se possa montar uma bicicleta. Trata-se, tão só, do desenvolvimento de uma habilidade genérica, que pode ser usada para descrever casos históricos com as mais diferentes intensidades e para os mais diversos fins. Não é possível, com isso, indicarmos como compreender e narrar cada caso, pois, se assim o fizéssemos, teríamos explicado cada caso (específico), e não ensinado como compreendê-los, independentemente das suas especificidades.

Além disso, é importante lembrarmos que um mesmo fenômeno histórico pode ser “traduzido” de uma modalidade de consciência histórica (tipo de narrativa) para outra sem qualquer espécie de infração à verdade e ao referencial empírico. Uma narrativa urdida no modo tradicional, por exemplo, é traduzível para qualquer outra forma (exemplar, crítica, genética), tal como fez o próprio Rüsen com o uso ilustrativo do tratado firmado entre os Maclonish e os Maclean (2011RÜSEN, Jörn et al. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011., p. 51-53). Na ocasião, ele se valeu dos mesmos “fatos” para produzir quatro desfechos diferentes, cada um correspondendo a um tipo de consciência histórica, sem qualquer tipo de violação aos “acontecimentos” que serviram de base para a elaboração das narrativas.

Todavia, talvez alguém questione: se o modo genético é, de acordo com Rüsen, a mais aprimorada e complexa forma de consciência histórica, ele não pode ser considerado um dos fins do ensino de história? E, se este for o caso, não seria possível ensinar o aluno a historicizar os eventos históricos, entendendo-os como únicos e sujeitos à mudança? A ideia de que todo fenômeno histórico deve ser compreendido e explicado dentro de suas próprias características temporais não garante ou ensina como isso tem de ser feito. Uma vez mais: é um pressuposto formal que, na prática analítica, pouco instrui ou define a essência da explicação. Ademais, a adoção desse pressuposto é também histórico. Ou seja, sua reputação positiva e hierárquica na teoria de Rüsen é fruto de uma dada concepção de história e de como apreendê-la. Talvez devamos deslocar um pouco o foco e questionar se o uso de um ou outro desses pressupostos não está a serviço da geração de uma habilidade nada desprezível de combinar fatos do passado e do presente para legitimar, assim, determinadas decisões do agora.

A segunda fonte que usei para questionar a ensinabilidade da história é um dos livros didáticos mais vendidos nos últimos anos, Nova História Crítica, de Mario Schmidt (2010SCHMIDT, Mario. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração , 2010.), cujo autor afirma que a principal função da história escolar é justamente ensinar a se pensar historicamente. No entanto, o livro em si tem menos de meia página explícita sobre as funções da história e, por isso, recorri ao Manual do Professor, espaço no qual o autor discorreu sobre a proposta do seu livro e do ensino de história. Para mapear o significado do que é pensar historicamente para Schmidt, precisei extrair e relacionar trechos nucleares do Manual. Uma das ideias recorrentes está expressa na seguinte passagem:

Queremos que o aluno saia daquilo que o filósofo alemão (séc. XVIII) Immanuel Kant chamava de minoridade intelectual, isto é, que o aluno consiga superar a incapacidade de pensar sem ser dirigido por alguém. Pensar por conta própria, questionar o mundo, reconstruir a si mesmo e as suas relações com outros seres humanos, eis nossos objetivos fundamentais (SCHMIDT, 2007SCHMIDT, Mario. Manual do Professor. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração, 2007., p. 4, grifos do autor).

Para Schmidt, portanto, fomentar “autonomia intelectual” nos educandos parece ser uma das principais funções que o ensino de história pode propiciar.

No entanto, outros trechos do Manual deixam dúvidas sobre a proposta do autor, tal como: “o livro didático deve contribuir para formar cidadãos democráticos, que sejam tolerantes e solidários, que respeitem os direitos universais, e saibam reivindicar seus direitos (SCHMIDT, 2007SCHMIDT, Mario. Manual do Professor. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração, 2007., p. 03, grifo meu). Essa citação já não é, em si, a indicação de qual posição política o indivíduo deve ter? Se esse é o caso, então como congregar a formação de um indivíduo com autonomia intelectual e o fato de que estão expressas no próprio livro didático quais as opções intelectuais e políticas a serem seguidas? Não é óbvio que alguém deva aceitar a democracia, a tolerância, a solidariedade, respeitar os direitos humanos e reivindicar direitos, tampouco que isso seja uma decorrência do “ensino” de história. Como historiadores, sabemos que essas são opções possíveis e, por mais que eu deseje que elas sejam adotadas, não me parece que a história-ação encaminhe obrigatoriamente o raciocínio dos indivíduos a elas.

Em outras passagens, Schmidt enfatiza, insistentemente, como se deve entender a própria história-ação:

Trabalhamos para que o estudante tome consciência de que a história não é feita apenas pelos grandes heróis, pelos figurões que depois se tornam nomes de avenidas. A história é fundamentalmente realizada pelo homem comum, por seu trabalho, sua criação, seus sonhos e lutas. A construção da cidadania incorpora a noção de que cada indivíduo deve ser sujeito ativo e consciente das transformações da sociedade em que vive (2007, p. 6SCHMIDT, Mario. Manual do Professor. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração, 2007.).

No mesmo sentido, mas em outro trecho, o autor assevera: “a organização do Estado, tanto a administração pública quanto a estrutura de poder, estão ligadas a interesses de classe” (2007, p. 9). Nos dois casos, Schmidt indica como as ações humanas ao longo do tempo podem (ou devem?) ser analisadas.² 2. Nessas duas passagens não é difícil reconhecer aproximações de Schmidt com tendências marxistas, argumento que pode ser sustentado pelo seu posicionamento explícito e, sobretudo, pelos autores referenciais por ele citados, como Marx, Thompson, Gramsci, Benjamim, Chauí, Cardoso, Gorender, Hobsbawm, Vovelle, entre outros. Na verdade, parece-me que Schmidt transita com desenvoltura entre marxistas, anallistes e Foucault. Os excertos indicam uma maneira de “ver” a história-ação, que também não é óbvia ou natural, mas resultado de determinadas perspectivas ideológicas, epistêmicas e metodológicas que não são inerentes à história-ação. Tudo isso é sem dúvida ensinável, mas não é “história-ação”.

E, por fim, Schmidt assinala como professor e aluno devem compreender o processo de interpretação da história-ação a fim de que ambos alcancem o desejado pensar historicamente, insistentemente destacado pelo autor. No trecho a seguir, por exemplo, ele descreve como as imagens devem ser abordadas:

É muito importante que o aluno saiba que cada ilustração (como cada texto) é sempre uma representação. Ou seja, o ilustrador também estava interpretando a realidade de acordo com seus valores na época. Portanto, a figura da época não é um retrato fiel da realidade, mas o retrato da realidade de acordo com os valores do artista, da sociedade em que viveu, da classe social a que pertencia etc. Toda representação é uma interpretação (SCHMIDT, 2007SCHMIDT, Mario. Manual do Professor. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração, 2007., p. 16, grifos do autor).

De forma semelhante ao trecho supracitado, Schmidt também faz menção ao conceito de fonte e objeto histórico: “o aluno deve estar consciente de que não existem objetos privilegiados para a investigação histórica. Para o historiador, tudo é importante, as roupas, a comida, as armas, os almanaques populares, as pinturas deixadas pelos amadores, as cartas” (SCHMIDT, 2007SCHMIDT, Mario. Manual do Professor. Nova História Crítica. São Paulo: Editora Nova Geração, 2007., p. 16). Nas duas citações, o foco é ensinar o aluno a adotar determinadas ideias teóricas sobre como compreender fontes e a própria construção do objeto historiográfico.

Todas essas observações sobre as ideias de Rüsen acerca do ensino de história ou aquelas a respeito das prescrições de Schmidt não pretendem colocar em dúvida a proficuidade das proposições dos autores: a contribuição que a teoria formal de Rüsen concedeu aos estudos na área, por exemplo, é inegável e só fazem avançar as fronteiras do conhecimento. No que se refere aos excertos do Manual de Schmidt e mesmo ao seu livro como um todo, não objetivei me contrapor aos seus pressupostos ou colocar em xeque o seu trabalho. Se eu estivesse em seu lugar, provavelmente usaria argumentos similares. O intuito, nesses dois casos, foi mostrar que “ter consciência histórica” e “pensar historicamente” são expressões abstratas e genéricas que, quando pensadas em termos específicos, requerem dos educandos boa vontade e aceitação de determinadas ideias que são questionáveis.

Ensino x aprendizagem

Mas se a história-ação não é ensinável, o que se faz, portanto, em uma aula de história? Quando sustento que a história não é ensinável, não estou automaticamente afirmando que em uma aula dessa disciplina escolar não se ensina ou não se aprende nada. Diferentemente disso, há muito ensinamento e muito aprendizado. O que, então, se ensina quando se “ensina” história? Penso que os exemplos acima (de Rüsen e de Schmidt), minha atuação docente nos três níveis e o contato que tive e tenho com a escola e professores da rede básica permitem-me afirmar que existe, em uma aula de história, ensino de duas naturezas: ético-moral e pressupostos de teoria da história.³ 3. Entendo aqui a diferença entre moral e ética da seguinte maneira: a primeira define valores por si sós, e a segunda os define com a preocupação de justificá-los, lógica, empírica e/ou culturalmente.

Todos os exemplos que citei de Rüsen ou de Schmidt se enquadram em uma dessas duas modalidades, ou em ambas. A “história” não ensina você a narrar no modo tradicional, exemplar, crítico ou genético: são determinadas circunstâncias do presente que te levam a dar uma aula ou a compreender e a descrever as ações no tempo ressaltando as permanências (tradicional), valendo-se de regras quase atemporais (exemplar), negando determinados valores e ideias (crítica) ou a explicar mudança e singularidade dos eventos históricos como inerentes (genética). E tais circunstâncias, oriundas do presente, são de natureza moral ou ética. Elas nos levam a interpretar o passado a fim de legitimar ou decidir qual ação tomar na vida diária, mas, como o próprio Rüsen demonstrou, não alteram factualmente os registros do passado. Nos trechos citados de Schmidt e em muitos outros não mencionados, os ensinamentos ético-morais são evidentes: ser tolerante, democrático, participativo, ator das transformações históricas não é um ensinamento da história-ação, mas a partir dela. Ou, ainda, entender fonte histórica de modo amplo, como representações da realidade, ou atribuir um papel relevante na história a pessoas comuns, à maneira da história vista de baixo, como sugere Schmidt, são indubitavelmente preceitos de teoria da história.

Na maior parte das vezes, contudo, não é possível realizar uma separação nítida de quando começam ou terminam os ensinamentos ético-morais e os pressupostos de teoria da história. É mais comum que eles sejam combinados de modo que um sirva ao outro. Quando Schmidt, por exemplo, manifesta “[...] óbvia simpatia para com os deserdados da Terra, os humilhados e ofendidos, os excluídos da história” (2007, p. 10), uma posição nitidamente moral, ele, por meio de pressupostos teóricos, demonstrará, como o fez no seu livro, que é um equívoco inferiorizarmos determinadas camadas sociais. Ou, quando Rüsen menciona que o sentido e as orientações no fluxo temporal são estimulados pela consolidação da identidade, que, por sua vez, se dá em concordância com determinados tipos de narrativas (dependendo de cada circunstância), ele vincula a competência narrativa ou certa habilidade teórica em relacionar o presente ao passado e ao futuro a preceitos morais desejáveis. E, para finalizar, a própria ideia de problematização - considerada um poderoso recurso no processo ensino/aprendizagem da história, e tão cara aos livros didáticos atuais, como o do próprio Schmidt - é um misto de suspensão do juízo, que implicitamente nega determinadas “obviedades”, representações, práticas e valores, com o uso estratégico de questionamentos conceituais ou argumentativos - teóricos, portanto. Em uma aula no ensino básico, por conseguinte, não se ensina história, mas com a história.

Poderíamos, então, resumir uma aula de história em ensinamentos ético-morais e de fragmentos de teoria da história? Não. Esses são os elementos ensináveis. Ocorre, todavia, que o aprendizado não coincide apenas com o que é ensinável, sobretudo em uma aula de história, em que razão e emoção estão frequentemente envolvidos. Cada sala ou mesmo aluno individualmente se apropria, ressignifica e interpreta as informações e os ensinamentos de um professor de acordo com sua formação e suas demandas imediatas. Uma aula sobre Revolução Cubana, por exemplo, pode promover sentimentos muito distintos em uma turma, por mais supostamente homogênea que ela seja. E não me refiro apenas ao ódio ou ao amor que um tema como este pode fomentar, mas a muitas outras sensações, incluindo indiferença, repulsa pelo assunto e adequações de episódios isolados a questões pessoais de cada um, algo próximo ao que Rüsen chamou de “subjetivação da objetividade” (2011RÜSEN, Jörn et al. Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.). De modo mais didático, podemos pensar que é semelhante ao que acontece quando, com boa vontade, lemos um horóscopo no nosso jornal diário: as ideias, as prescrições e os presságios ali contidos de modo genérico são por nós adaptados de tal maneira que, dependendo do nosso grau de crença e predisposição, parece que correspondem precisamente à situação por nós vivida no momento. A recepção de uma aula de história e as mais diferentes possibilidades de aprendizado a partir dela não são controláveis pelo seu emissor, e, nesse sentido, reduzi-la ao que dela é possível ensinar é um equívoco.

Considerações Finais

Diante disso tudo, não quero insinuar que o ensino de história não sirva para nada. Mas precisamos refletir e questionar se as funções a ele atribuídas contemporaneamente são exequíveis. Um professor de história não ensina alguém a ser tolerante, respeitar as diferenças, ser democrático porque está dando uma aula de história. Ele o faz porque tem determinados pressupostos ético-morais. Um professor de história também não ensina alguém a compreender melhor o presente porque seus alunos estudam o passado. Se assim o fosse, não teríamos perspectivas tão diferentes, senão opostas, de dois historiadores, com o mesmo grau de conhecimento, sobre a atual conjuntura sociopolítica do país. Certamente, em uma aula de história, você pode aprender a explicar o presente de uma maneira diferente, com, talvez, mais referências, citações, menções a fatos, instituições, grupos e a um amplo repertório de casos. Entretanto, isso não garante uma compreensão qualitativamente mais apurada, como o termo melhor acima sugere. É a sua habilidade em rearranjar os fatos, interconectá-los e atribuir significado a cada um e entre eles que tornará sua compreensão do presente com base no passado mais ou menos convincente.

Sem dúvida, em uma aula de história, pode-se aprender muito, inclusive a ser tolerante, respeitar a diversidade, melhorar sua autoestima, identificar-se enquanto um indivíduo com direitos e deveres pertencente a uma coletividade, compreender a democracia como a forma mais apropriada de participação política, etc. Mas tudo isso não é por conta da história-ação, mas em razão do uso que dela se faz. Há aqui uma diferença sutil entre ensino e aprendizagem. Exatamente por isso procurei sustentar que não se ensina história, embora com ela seja possível aprender, e muito.

A discussão sobre o que especificamente se ensina em uma aula de história no sistema escolar deve nos encaminhar a novas questões: precisamos repensar seriamente se as funções atribuídas ao “ensino de história” são realizáveis, sem apelarmos a um suposto “bom senso”, a justificativas vagas, porém cristalizadas pela insistência com que são proferidas, à reprodução de ideias de autores consagrados sobre a importância da história ou nos beneficiarmos do que as pessoas comuns acreditam que o ensino de história tenha condições de cumprir. E, talvez, mais que isso: precisamos criar mecanismos analíticos e de aferição para avaliar e comprovar se uma aula de história alcança o que dela se espera, ainda que isso instrumentalize parte da disciplina. Não é mais aceitável, por exemplo, dizer que um dos objetivos da história seja formar “cidadãos críticos para interpretar a realidade que os cerca” sem conceituar “cidadãos”, “críticos”, “interpretar” “realidade” e, sobretudo, testar se essa função está sendo atingida. Mais do que enunciadas, as funções da história no ambiente escolar precisam ser demonstradas como efetivas.

Referências

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Notas

  • 1.
    Para evitar confusões, realizo uma relevante distinção a respeito do que entendo aqui por história. A princípio, uma diferenciação simples, mas essencial: a) história entendida como as ações de indivíduos, grupos, povos, etc. ao longo do tempo e b) história entendida como a descrição/ narração dessas ações. Ao primeiro significado, vou denominar de história-ação; ao segundo, história-narrativa. O objetivo é apenas evitar mal entendidos. Não entrarei no debate que discute se a história se materializa predominantemente em forma narrativa, quadro, problematização etc. Essa é uma discussão longa e, por ora, dispensável. Ver (FURET, s/d, p. 81-98FURET, François. A Oficina da História. Tradução de Adriano Duarte Rodrigues. Vol I. Lisboa: Gradiva, s/d.; PROST, 2008, p. 211-233PROST, Antoine. Criação de enredos e narratividade. In: Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2008. p. 211-233.; STONE, 2001, p. 281-298STONE, Lawrence. The revival of narrative: reflections on a new old history. In: ROBERTS, Geoffrey (ed.). The History and Narrative Reader. London and New York: Routledge, 2001, p. 281-298.).
  • 2.
    Nessas duas passagens não é difícil reconhecer aproximações de Schmidt com tendências marxistas, argumento que pode ser sustentado pelo seu posicionamento explícito e, sobretudo, pelos autores referenciais por ele citados, como Marx, Thompson, Gramsci, Benjamim, Chauí, Cardoso, Gorender, Hobsbawm, Vovelle, entre outros. Na verdade, parece-me que Schmidt transita com desenvoltura entre marxistas, anallistes e Foucault.
  • 3.
    Entendo aqui a diferença entre moral e ética da seguinte maneira: a primeira define valores por si sós, e a segunda os define com a preocupação de justificá-los, lógica, empírica e/ou culturalmente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2017
  • Aceito
    27 Jan 2019
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