Acessibilidade / Reportar erro

Prostituição e polícia: mulheres e homens na mira do policiamento moral em Belo Horizonte, MG, Brasil (c. 1920/1930)

Prostitution and police: women and men in the sights of the vice squad in Belo Horizonte, MG, Brazil (c. 1920/1930)

RESUMO

Este artigo examina a relação entre polícia e prostituição na primeira república, com ênfase para a década de 1920, momento da emergência de uma nova forma de lidar com a prostituição no país, com as criações das delegacias de costumes. Busca-se uma explicação para esse fenômeno a partir do diálogo com a historiografia da prostituição e com a história transnacional. Indico a necessidade de um investimento em novas pesquisas na direção de análises das trajetórias de sujeitos (homens e mulheres), observando suas rotas e os percursos relacionados à prostituição no país. A hipótese lançada é que a circulação de ideias científicas sobre a prostituição e a circulação de sujeitos migrantes envolvidos com o tráfico internacional e nacional de mulheres no período contribuíram para se forjar uma espécie de regulamentação de fato da prostituição no país, implicando em novas formas de as polícias estaduais atuarem diante dessa prática. O caso de Belo Horizonte aparece como exemplo desse modelo mais amplo de recrudescimento do poder discricionário dos delegados de costumes no país num período de consolidação de um policiamento moral das práticas de mulheres e homens nos espaços de divertimento e de prostituição em diferentes espaços urbanos do país.

Palavras-chave:
prostituição; regulamentação; policiamento moral; delegacia de costumes; tráfico sexual de mulheres

ABSTRACT

This paper examines the relation between the police and prostitution in the first republic, with a focus in the 1920s, a time of emergence of a new way of dealing with prostitution in the country, with the creation of Vice Squad departments. An explanation to this phenomenon is sought through a dialogue of the historiography of prostitution with transnational history. The need for an investment in new researches examining personal trajectories (of both men and women) and noting their routes and pathways in regards to prostitution in the country is emphasized. The hypothesis is that the circulation of scientific ideas about prostitution and the movement of migrating people involved in national and international women sexual trafficking during this period have contributed to shape actual regulation of prostitution in the country, which means new ways of state police action regarding this practice. Belo Horizonte’s case is illustrative of this wider model of the morality deputies’ growing discretionary power during a period of consolidation of moral policing on women and men’s practices in places of leisure and prostitution in different urban spaces in the country.

Keywords:
prostitution; regulation; moral policing; vice squad; women sexual trafficking

No dia 19 de setembro de 1928 a seção “Policiais” do jornal Diário de Minas (DM), editado na capital mineira, publicou a seguinte nota:

PRISÃO - o guarda n. 309, Abelardo Lourenço Alvim, prendeu, no cruzamento das ruas Guaicurus e S. Paulo, ontem às 24 horas, a horizontal Petronilha Prates, que transgredia o regulamento da polícia de costumes (DM, 19/09/1928DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 19 ago. 1928, p.3., p.3, os negritos das citações são todos meus).

Naquele mesmo dia, outro jornal de grande circulação na capital e no estado, O Estado de Minas (EM), também publicou em sua coluna “Na polícia e nas ruas” uma nota intitulada “Delegacia de Costumes e Jogos” informando que “foram presas ontem na rua Guaicurus, por promoverem desordens e escândalos, as nacionais, Maria Fagundes e Petronilha Prates” (EM, 19/09/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Zelo em demasia. BH, 01 set. 1928, p.6., p. 6). Petronilha apareceu mais uma vez na coluna do DM quando ela e o indivíduo Léo Alves Costa foram presos por um guarda-civil por terem “praticado, na via pública, atos ofensivos à moral”, em dezembro de 1928 (DM, 07/12/1928DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 07 dez.1928, p. 3., p. 3). Meses antes, em junho daquele mesmo ano, seu nome aparece pela primeira vez nos jornais da capital em notícias relacionadas às prisões de mulheres cujas vidas estiveram direta ou indiretamente ligadas à prática da prostituição. Naquela ocasião, o jornal indicou que o guarda civil nº 128 prendeu diversas mulheres conduzindo “uma caravana para o xadrez” (EM 02/06/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Uma caravana para o xadrez. BH, 02 jun. 1928, p.8., p.8).

As prisões de Petronilha correspondem a um processo complexo de especialização da polícia mineira na década de 1920, em especial nas transformações da relação que o estado manteve com a prostituição na capital na primeira república. No final da década de 1920 houve um crescimento do número de prisões registradas pelos jornais de Belo Horizonte. Gestada desde a década anterior, a polícia de costumes foi, paulatinamente, tomando corpo e se institucionalizou na Delegacia de Fiscalização de Costumes e Jogos (doravante, Delegacia de Costumes) na virada de 1927 para 1928. Seu aparecimento se deu num contexto de especialização da polícia mineira que criou outras delegacias especializadas: a de vigilância geral e capturas; a de furtos, roubos e falsificações; e a de segurança pessoal e ordem política e social. Mas a inquietação, a problematização e a ação da polícia em relação à prostituição na capital mineira não era novidade. Desde o início do século XX, a recém inaugurada capital do estado se viu em meio a diferentes propostas de remoção da prostituição da região central da cidade, de sua fixação em locais mais afastados e de ações da polícia de costumes, como a vigilância dos espaços de prostituição. O que se inovou no final da década de 1920 foi o processo, relativamente fracassado, de promoção de uma regulamentação de fato da prostituição. De fato, pois apesar de legalmente a prostituição não ter sido regulamentada no Brasil, delegados de diferentes cidades brasileiras agiram como verdadeiros legisladores, impondo regras e códigos de conduta, de circulação e estabelecendo o registro ou fichamento das prostitutas. Fracassado, pois as décadas de 1930 e 1940 parecem ter diluído e transformado a relação entre polícia e prostituição.

Cristiana Schettini (2009SCHETTINI, C. La vida en la ventana - prostitución y policía en el Rio de Janeiro republicano. Itinerários - Anuario del CEEMI, Ano 3, nº 3, 2009.) já se perguntou sobre o significado de a capital federal, o Rio de Janeiro, não ter aprovado a regulamentação da prostituição na primeira república, enquanto, paralelamente, se criavam inúmeras medidas de repressão aos trabalhadores e à vida da população pobre. Uma possível resposta gira em torno das disputas políticas envolvendo a questão da liberdade individual que a proposta de intervenção estatal na prostituição gerava desde as últimas décadas de 1870 (SCHETTINI, 2009SCHETTINI, C. La vida en la ventana - prostitución y policía en el Rio de Janeiro republicano. Itinerários - Anuario del CEEMI, Ano 3, nº 3, 2009., p. 187ss.). Mas se no início da república a ação estatal mais intensa no sentido de uma regulamentação não parece ter ocorrido no Brasil, o mesmo não pode ser dito sobre a década de 1920, quando surgiram diversos estabelecimentos estatais que funcionaram como dispositivos de controle e regulamentação da prostituição, como delegacias e dispensários sifilíticos em cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador, entre outras. Além disso, assistimos a medidas de transferência e confinamento de mulheres para regiões específicas dessas cidades, como o Mangue e a Lapa no Rio de Janeiro, por exemplo (LEITE, 2005LEITE, J. L. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974). São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora , 2005).

Este estudo busca apresentar uma possível explicação para esse fenômeno, retomando as discussões historiográficas sobre o tema da relação entre polícia e prostituição no Brasil e no mundo, dialogando com as diferentes perspectivas que explicaram a relação da polícia com a prostituição na primeira república. A hipótese que apresento é a de que a criação dessas delegacias especializadas, apesar de corresponderem aos desenvolvimentos políticos e culturais próprios das suas respectivas regiões e localidades, também estiveram relacionadas com uma complexa circulação de saberes e técnicas policiais atinentes à prostituição, que se desenvolveram no mesmo processo de imigração de grupos envolvidos com a prática e a exploração da prostituição no país. Buscarei, para fins de exemplificação, explorar o caso de Belo Horizonte, apresentando as dinâmicas de funcionamento da delegacia de costumes no cotidiano da prática do meretrício. Finalmente, o artigo defende a ideia de que, apesar de as mulheres serem a ponta mais fraca dessa relação, os homens pobres também estiveram na mira da polícia de costumes e do policiamento moral promovido no final da década de 1920 na capital mineira, conformando-se um projeto policial de educação moral de intervenção das relações modernas de gênero.

A relação entre polícia e prostituição na historiografia brasileira

Uma grande e importante perspectiva historiográfica sobre o imaginário da prostituição na primeira república - e suas heranças novecentistas - foi desenvolvida por Margareth Rago (1991RAGO, L. M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1991.). A autora, desde seu trabalho de doutorado e em publicações posteriores, analisou o processo de construção de representações sobre a prostituição, a sexualidade feminina e sobre os significados atribuídos à prostituta na modernidade brasileira (RAGO, 2009RAGO, L. M. Os sentidos da prostituição na modernidade brasileira. Itinerários - Anuario del CEEMI, Ano 3, nº 3, 2009.). Segundo Rago (1991RAGO, L. M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1991., p. 107-127), São Paulo assistiu uma ampliação do controle estatal sobre o mundo do prazer no período, o que implicou na conformação de um projeto mais rígido de policiamento das áreas de prostituição. Em sua leitura, as ações da polícia no sentido de emitir portarias que previam o controle das ações das prostitutas e no sentido de localizar a prostituição em espaços específicos e longe da diversão e das famílias burguesas paulistanas, corresponderam a um projeto de limitar as autonomias das mulheres (RAGO, 2009RAGO, L. M. Os sentidos da prostituição na modernidade brasileira. Itinerários - Anuario del CEEMI, Ano 3, nº 3, 2009., 219-221). Nesse sentido, Rago argumenta que a visibilidade feminina no espaço urbano na primeira república teria sido responsável pela rigidez das proposições de códigos de condutas das mulheres e pela problematização de novos parâmetros de moralidade tanto para mulheres como para homens.

Schettini (2009SCHETTINI, C. La vida en la ventana - prostitución y policía en el Rio de Janeiro republicano. Itinerários - Anuario del CEEMI, Ano 3, nº 3, 2009., p. 189) argumenta que o controle social e a repressão às prostitutas no Rio de Janeiro republicano não podem ser vistos somente como um mero processo de ilegalidades cometidas pela polícia. Segundo a autora, as negociações cotidianas, o uso de habeas corpus e a sociabilidade que as prostitutas mantiveram com diversos grupos de trabalhadores são exemplos empíricos de certa margem de ação e de indecisão que a república apresentou a determinados grupos sociais da capital federal. Para a autora, as tentativas da polícia, desde o marco inicial da república até a década de 1920, de remover as mulheres da região central para zonas mais afastadas (posteriormente, o Mangue e a Lapa), corresponderam a uma disputa por duas perspectivas políticas. Uma centrada na ideia de “bem comum” e de que certos grupos deveriam ser protegidos pela lei, enquanto outros deveriam sofrer os seus efeitos; e outra perspectiva, de feição liberal, orientada a partir de pressupostos tais como as garantias constitucionais de direitos e as liberdades individuais. Nessa perspectiva, os conflitos envolvendo polícia e prostituição no período foram analisados não só como mera expressão do autoritarismo e da repressão, mas também a partir da articulação ou do questionamento dos pressupostos dos valores defendidos pelas autoridades policiais. (SCHETTINI, 2003, p. 231-242).

Apesar de existirem outros excelentes trabalhos anteriores e posteriores que também se debruçaram sobre a questão da prostituição - e sua relação com a polícia - na primeira república, entendo que as teses dessas duas autoras são dois grandes marcos na historiografia da prostituição brasileira. A primeira, por se debruçar de forma pioneira no problema da prostituição do ponto de vista da história cultural e da perspectiva foucaultiana. A segunda por retomar temas já clássicos na historiografia carioca, desenvolvidos em trabalhos da renovação historiográfica desde a década de 1980, propondo novos problemas relacionados à agência dos sujeitos. O primeiro trabalho inspirou diversos outros e contribuiu para maior refinamento das explicações de alguns processos históricos da modernidade ou da belle époque brasileira e para uma atenção, por parte dos historiadores, aos símbolos, às representações e à formação e circulação de um imaginário sobre a prostituição no país. Já o segundo, representa uma tentativa de voltar aos arquivos e perseguir processos específicos de (re)ação das mulheres frente às ações do estado, reorientando a análise para uma perspectiva das relações sociais, partindo dos pressupostos caros à historiografia social do trabalho.

De fato, desde o final da década de 1980 e mais recentemente, vários autores e autoras se debruçaram sobre o problema da relação da polícia com a prostituição no Brasil. A maioria dos estudos concentram-se na perspectiva analítica do “controle social” e do poder disciplinar (SOIHET, 1989SOIHET, R. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920). Rio de Janeiro: ED. Forense Universitária, 1989., p. 200-222; LEITE, 2005LEITE, J. L. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974). São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora , 2005; PEREIRA, 2004PEREIRA, I. As decaídas: prostituição em Florianópolis (1900-1940). Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.; MENDONÇA, 2014MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.; AGUIAR, 2016AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016). Alguns trabalhos buscaram compreender essa relação a partir das análises das relações de poder como parte de uma disputa por modos de existir e de viver no espaço urbano e como parte das redes sociais estabelecidas entre policiais e a população policiada (GARZONI, 2007GARZONI, L. C. Vagabundas e conhecidas: novos olhares sobre a polícia republicana. (Rio de Janeiro, início século XX). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2007.; SILVA, 2009SILVA, M. G. C. e. A moral e os bons costumes: experiência da cidade nas narrativas policiais (Belo Horizonte, 1897-1926). 2009. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.; AGUIAR, 2016AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016; PEREIRA, 2019PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019.). Essas duas perspectivas, apesar de muito distintas, podem ser complementares, como no trabalho de Aguiar (2016AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016), o que permite a elaboração não somente de novas abordagens, mas também a consolidação de uma espécie de massa crítica sobre a história das experiências policiais e das experiências de meretrizes na primeira república.

Os jornais aparecem como fontes importantes em diversos trabalhos que buscaram analisar as relações entre polícia e prostituição. A natureza sumária das fontes e a própria ausência de livros de registros de ocorrências ou de documentos administrativos (ficha de inscrição, processos de vadiagem), explicam a opção das historiadoras e dos historiadores em perseguir alternativas mais palpáveis para analisar o fenômeno (MENDONÇA, 2014MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.; PEREIRA, 2019PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019.). Em alguns casos, os impressos surgem como fontes complementares aos documentos policiais para análises da política de policiamento da prostituição (SCHETTINI, 2003; AGUIAR, 2016AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016).

Em uma análise das prisões de prostitutas publicadas por colunas e seções criminais/policiais nos jornais soteropolitanos, Carolina Mendonça (2014MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014., p. 90-91) argumentou que as nomeações e classificações contidas nas notícias estariam ligadas aos modelos não homogêneos de classificação das mulheres por parte dos saberes médicos. Ainda que não haja uma conexão direta entre os saberes médico e policial, a autora explica que o desvio de comportamento diante daquilo que se esperava como apropriado para as mulheres sujeitava aquelas que ocupavam o espaço da rua a serem vistas como prostitutas e como moralmente desviantes (MENDONÇA, 2014MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014., p. 91). Mas ainda persiste a dúvida sobre a efetividade de uma suposta transferência imediata dos saberes médicos e científicos para a ação policial. A historiografia brasileira chegou a explorar bem essa questão e apontou a existência de variações de interpretação, de releituras policiais e da variável de indeterminação da ação dos policiais diante dos casos concretos (BRETAS, 1997BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.; GARZONI, 2007GARZONI, L. C. Vagabundas e conhecidas: novos olhares sobre a polícia republicana. (Rio de Janeiro, início século XX). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2007.; AGUIAR, 2016AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016). Esses estudos conseguiram apontar para diferentes aspectos das relações entre polícia e população que permitiram a consolidação de “certa forma de dominação”, mas que ao mesmo tempo tornaram essa relação de forças “limitada e imperfeita” (GARZONI, 2007GARZONI, L. C. Vagabundas e conhecidas: novos olhares sobre a polícia republicana. (Rio de Janeiro, início século XX). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2007., p.62).

Por outro lado, salta aos olhos a tendência geral de conformação de políticas de policiamento moral de caráter regulamentar e sustentado por um discurso moralizador mais rígido, próximo à discussão médico-científica do período, desde meados da década de 1920 no Brasil. Mesmo que consideremos a importância da discricionariedade dos agentes policiais e das particularidades diante dos eventos que se apresentaram em suas rotinas laborais ao redor do país, é indiscutível que houve um recrudescimento, mesmo que momentâneo, das prisões de meretrizes e de outras ações policiais no período.

Nesse sentido, é importante se perguntar sobre a relação entre a tendência de moralização da ação policial no país e a emergência de projetos políticos que confluíram para a construção da ideia de nação, especialmente aqueles nos quais figura do trabalhador e a ideia de trabalho jogaram papel crucial para as propostas de modernização nacional (RAGO, 1985RAGO, L. M. Do Cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.; DUTRA, 1997DUTRA, E. R. O ardil totalitário: Imaginario Politico no Brasil dos Anos 30. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Ed. UFRJ/ Ed. UFMG, 1997.). É curioso que as ações de regulamentação de fato não tenham se estendido muito além da década de 1930. Por isso, talvez, seja possível perceber, mais do que a derrota desse projeto, a sua deslegitimidade diante do estado autoritário que se construía ao longo daquela década. As medidas ilegais contra as meretrizes e a vigilância de sua atividade certamente continuaram, mas deixaram de ter um papel central e específico no setor burocrático-administrativo do estado nos anos subsequentes à consolidação do estado varguista. Mas por que razão emergiram diversas delegacias de costumes no país? O que a história transnacional pode nos dizer sobre esse assunto?

O caráter transnacional da prostituição: circulação de pessoas, bens e ideias.

Entre a década de 1820 e a década de 1920 a América recebeu, além do tráfico de pessoas escravizadas oriundas do continente africano, cerca de 50 milhões de europeus. Dessa leva, por volta de 11 milhões de pessoas se dirigiram para a América Latina, em especial para a Argentina, Brasil e Uruguai (TROCHON, 2006TROCHON, Y. La trata de blancas em el Atlántico Sur: Argentina, Brasil, Uruguai (1880-1932). Montevideo: Taurus, 2006., p. 43). Dessa imigração, que se deu como decorrência do grande desenvolvimento técnico e tecnológico, diversos problemas de escala planetária passaram a ocupar as administrações nacionais. Destaco as figuras do ladrão de cargas, dos golpistas e falsários e dos anarquistas, que foram problematizados em diversos encontros policiais internacionais, com destaque para as conferências da América do Sul, conformando múltiplas raízes das instituições policiais nacionais e internacionais do século XX (KNEPPER, 2010KNEPPER, P. The Invention of International Crime: A Global Issue in the Making, 1881-1914. London: Palgrave/Macmillan, 2010.; GALEANO, 2016GALEANO, D. Criminosos viajantes: circulações transnacionais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016.). Além desses sujeitos, as mulheres que se ocuparam da prostituição foram temas de associações feministas que denunciaram a chamada “escravidão das brancas” por meio do tráfico de mulheres aliciadas de regiões pobres da Europa para o continente americano (TROCHON, 2006TROCHON, Y. La trata de blancas em el Atlántico Sur: Argentina, Brasil, Uruguai (1880-1932). Montevideo: Taurus, 2006.; KUSHNIR, 1996KUSHNIR, B. Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.; SCHETTINI, 2003).

O problema da exploração da prostituição por parte de grandes organizações criminosas que traficavam mulheres esteve presente, em especial, nas cidades portuárias, não causando, a princípio, muito impacto nas políticas de policiamento do interior, que também sofria efeitos da modernidade e que teve que lidar com suas próprias especificidades no tratamento da prostituição. Em 1907, foi promulgada a lei federal de expulsão de imigrantes, que autorizou a possibilidade de abertura de processo de expulsão de imigrantes ligados à exploração da prostituição. Essa autorização se efetivou com a expulsão de diversos homens e mulheres do país o que, por sua vez, também provocou um debate jurídico, culminando em alterações legais ao longo da década de 1910 (MENEZES, 1996MENEZES, L. M. de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na capital federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. 307p.). Em Salvador, por exemplo, houve uma tendência de “transferir o ‘problema’ do estrangeiro rufião e das meretrizes desordeiras para as autoridades de outras localidades” (MENDONÇA, 2014MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014., p. 100). A polícia, assim, convidava os imigrantes a se retirarem do estado, sem ao menos proceder abertura de processo (MENDONÇA, 2014MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.). O problema da identificação dos indivíduos migrantes e da circulação de representações negativas sobre determinadas origens nacionais se entrecruzaram nesse processo, culminando, por vezes, em perseguições e acusações de grupos e de pessoas sem vínculo com a criminalidade ou com a prostituição (KUSHNIR, 1996KUSHNIR, B. Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.; MENEZES, 1996MENEZES, L. M. de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na capital federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. 307p.).

Em Belo horizonte também é possível observar essa tendência de circulação de pessoas, saberes, práticas e de representações de estrangeiros e de pessoas envolvidas com a prostituição. Há pelo menos dois registros que permitem pensar o caso de Belo Horizonte como um capítulo desse amplo processo. O primeiro deles diz respeito ao processo de desmantelamento de uma rede de tráfico internacional de mulheres que se escondia sob a fachada de uma empresa de teatro, dança e diversões. Temos notícia desse caso em algumas edições do jornal EM de setembro e outubro de 1928. O jornal indicou que publicava, a partir de uma narrativa envolvente típica dos “casos sensacionais”, os principais acontecimentos da descoberta que a polícia mineira fez de “um estabelecimento comercial (...) [dedicado] exclusivamente ao tráfico de moças!” (EM, 16/09/1928O ESTADO DE MINAS. Mercado de moças. BH, 16 set. 1928, p.8., p. 8).

O título da notícia fazia referência a uma clássica representação da prostituição em termos de mercado de exploração das misérias humanas: “MERCADO DE MOÇAS - Foi descoberta em São Paulo, graças à polícia mineira, uma agência que vendia mocinhas bonitas a preços módicos” (idem). Segundo a reportagem, a agência de teatro, com a promessa de emprego, sequestrava filhas de imigrantes e as “vendia” a “homens sem moral”. A descoberta só foi possível por conta de incidentes ocorridos em Montes Claros, no norte de Minas Gerais, envolvendo uma menor de idade de nome Anna em companhia de um homem denominado como Miguel. Após uma denúncia, o delegado de costumes, Edgard Franzen de Lima, enviou forças para captura dos dois, conduzindo a menor para o Asilo Bom Pastor e prendendo Miguel. Este teria comprado a menor nas mãos de Anna Klauss e de José Romano, proprietários da falsa agência de teatro em São Paulo, e seguido viagem para a Bahia, entrando, posteriormente, em território mineiro e fixando-se na cidade de Montes Claros. Segundo o jornal, Romano mantinha relações comerciais com uma famosa proprietária de cabarés em Belo Horizonte, Olympia Vasquez, que contratava dançarinas oriundas de sua agência. Ainda segundo a notícia, a menor Anna, supostamente de origem estoniana, teria informado que ela havia sido vendida por uma quantia pequena a um comerciante de peles que a revendeu para Miguel por 50$000 (cinquenta mil réis) e, ainda, que “muitas mocinhas suas companheiras, foram vendidas por 10$000 e por 20$000” (dez e vinte mil réis) (EM, 16/09/1928O ESTADO DE MINAS. Mercado de moças. BH, 16 set. 1928, p.8., p. 8).

Há outro indício, registrado no jornal “O Estado de Minas”, que reforça essa hipótese da presença e circulação de mulheres estrangeiras envolvidas com a prostituição na capital mineira. Em Agosto de 1928, Thea Behavka procurou o delegado do 2º distrito para reaver seus pertences que eram mantidos sob a guarda da dona de uma pensão.

MULHERES, MULHERES Queixou-se ao dr. Miguel Gentil delegado do 2º distrito, a polaca Thea Behavka, que se disse vítima da má fé de uma sua companheira de vida alegre, a “Nenenzinha”, dona de uma pensão suspeita à Avenida Oiapoque, 39. Segundo parece, esta última conserva indebitamente em seu poder uma mobília de propriedade da queixosa, somente por lhe dever Thea, a ínfima quantia de 10$800. O delegado do 2º distrito mandou intimar a acusada, para a devida explicação (EM 19/09/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Mulheres, mulheres / Delegacia de costumes e jogos. BH, 10 set. 1928, p. 6., p.6).

Esse caso isolado parece ter conexões mais amplas do que eu imaginava inicalmente. A migração de pessoas de várias partes do Brasil e do mundo para Belo Horizonte ocorreu desde o início dos trabalhos de terraplenagem, de abertura das ruas e de edificação dos primeiros prédios da capital. Nos anos que se seguiram à década de 1890, imigrantes de nacionalidades diversas se fixaram na cidade, com ênfase para os italianos, mas é possível identificar sujeitos de múltiplas nacionalidades que foram atraídos, em menor escala, para a nova capital mineira, como os portugueses, espanhóis, turcos (provavelmente sírios e libaneses), alemães, holandeses, franceses, austríacos, entre outros (PASSOS, 2011PASSOS, D. O. R. dos. Identidade e cultura das clases trabalhadoras em Belo Horizonte no início do século XX (1893-1930). 2011. (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011., p. 36). Essa tendência migratória para Belo Horizonte foi, certamente, muito menor do que o caso paulistano e carioca, mas há indícios consideráveis para pensar o processo de expansão das rotas da prostituição ligada a uma rede que escapava os limites interestaduais e mesmo os nacionais. Ainda em 1928, mas em maio, os redatores do Diário de Minas comentaram uma descoberta semelhante na capital federal, onde um empresário do ramo teatral foi acusado de participar de “um verdadeiro tráfico de brancas” convidando “mulheres estrangeiras” para o Brasil, “procurando depois prostituí-las”, já que não conseguia honrar com a proposta de trabalho oferecida (DM, 26/05/1928DIÁRIO DE MINAS. Comentários. Belo Horizonte (BH), 26 maio 1928, p. 2., p.2). A posição do jornal era de que os estrangeiros criminosos ou envolvidos com contravenções, deveriam ser expulsos do país.

Outro registro encontrado em meio às pesquisas em arquivos policiais e em hemerotecas, diz respeito à circulação de ideias científicas (do campo jurídico ao médico) sobre a prostituição na instituição policial em Minas Gerais. Com a reforma administrativa promovida pelo governo Antônio Carlos em 1927, a Secretaria do Interior criou a biblioteca do Serviço de Investigações e Capturas. Entre as centenas de livros comprados para compor a coleção, algumas dezenas tratavam da prostituição como tema principal ou secundário. Naquele universo, estavam presente ideias complexas e heterogêneas oriundas de pesquisas internacionais de caráter quantitativo e qualitativo, produzidas por coleta de dados arquivístico ou por entrevistas com homens e mulheres. Nessa lista, consta a presença de autores do campo da sociologia, da medicina social, do direito, da criminologia e do saber policial, tais como Louis Fiaux, Parent-DuChatêlet, Carlier, Guyot, O. Commenge, N. M. Boiron, Abraham Flexner, Decante, Cesare Lombroso, Guglielmo Ferrero, Pierre Dufour, entre outros (APM, Coleção 419, 1929APM, Coleção 419, 1929, v. I. MINAS GERAIS. Secretaria da Segurança e Assistência Pública do Estado de Minas Gerais. Relatório apresentado ao exmo. Sr. Presidente do Estado pelo dr. José Francisco Bias Fortes, Secretário da Segurança e Assistência Pública referente ao ano de 1928. Volume I. Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, 1929 v. I., v. I).

Esses saberes, como já vimos, não necessariamente direcionaram a prática policial ou foram incorporados pelos policiais. Naquele momento, o debate do campo médico sobre a regulamentação da prostituição no Brasil, que se desenvolveu desde o século XIX, atentava-se às discussões em torno da ideia de profilaxia e de educação sexual da população e criticava os modelos policias regulamentaristas (CARRARA, 1996CARRARA, S. Tributo à Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996., p. 188-195). O neoregulamentarismo no campo médico, segundo Carrara (1996CARRARA, S. Tributo à Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996., p. 200), perdeu força e tornou-se “causa praticamente vencida no Brasil”. No entanto, a intervenção e discussão pública sobre o problema da prostituição deslocou-se do campo da saúde para o campo da moral. Foi na esfera ético-política, forjada em especial no campo das instituições jurídicas e policiais, que a prostituição no Brasil da década de 1920 veio a sofrer intervenções regulamentaristas de fato, no sentido da criação de regras de circulação, da organização de fichas de identificação de mulheres e da exigência de exames clínicos periódicos, por exemplo.

Há, todavia, um desenvolvimento anterior desse processo. Trata-se de um crescente e difuso interesse e preocupação da elite da polícia mineira com os problemas e as reflexões produzidas por policiais ao redor do mundo ou produzidas para auxiliar seus novos e complexos trabalhos. Havia uma dedicação em delinear os termos de um projeto de sociedade, mas também os termos de projetos de polícia. Esse movimento em Minas Gerais está relacionado com o sonho de produzir uma polícia técnica e científica, capaz de identificar os problemas sociais, refletir sobre eles, produzir conceitos, mas também produzir linhas de ações, propostas de intervenção no sentido de desempenhar o efeito-chave de defesa da sociedade (PEREIRA, 2019PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019.). A figura do delegado de costumes, Edgard Franzen de Lima, sintetiza esse projeto na medida em que suas ações incorporaram os principais elementos de repressão e regulamentação da prostituição reproduzidos nos livros que tratam do assunto. Paradoxalmente, a modernização da polícia veio na contramão da discussão mundial daquele mesmo período, que questionava as práticas do regulamentarismo clássico e do neoregulamentarismo, denunciando as arbitrariedades, as ilegalidades e as injustiças promovidas pela polícia de costumes ao redor do mundo.

Edgard Franzen de Lima, assim que assumiu a chefia da Delegacia de Costumes em 1928, buscou estreitar laços com a delegacia de São Paulo, realizando uma visita que parece ter durado cerca de um mês. Essa viagem foi reportada no relatório da Secretaria de Assistência e Segurança Pública, mas também teve repercussões nos jornais da capital. Tal esforço de produção de uma rede de cooperações policiais vinha de um antigo sonho dos Gabinetes de Identificações que se organizaram no país a partir da década de 1910. De fato, os gabinetes fizeram circular uma série de papéis como fichas de pessoas presas, foragidas, portarias e outras correspondências, impressas ou manuscritas (GALEANO, 2016GALEANO, D. Criminosos viajantes: circulações transnacionais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016.). O impulso dado pela viagem de Edgard à São Paulo no sentido de consolidar essas relações, pode ser explicado primeiro por essa disposição de colaboração das instituições policiais no período, tendo em vista a complexidade das transformações da criminalidade concomitante com as transformações sóciotecnológicas. Mas há também outra direção de explicação. Apesar de a sua viagem justificar-se pelo fato de São Paulo ter sido a primeira cidade a inaugurar a Delegacia de Costumes, vale a pena chamar a atenção para a trajetória de Edgard Franzen de Lima, que teve uma relação com o estado de São Paulo desde o início da sua carreira. Na capital paulista, o delegado graduou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e no interior do estado, atuou como advogado e delegado de polícia. Seu retorno ao estado paulista tem relação, também, com seus vínculos afetivos e pessoais, mesclados, dessa vez, com um interesse profissional antigo, já que desde a década de 1910 ele indicava uma preocupação com a polícia de costumes.

Já no início de sua atuação na frente da Delegacia de Costumes, Edgard de Lima publicou uma portaria prescrevendo os comportamentos das mulheres envolvidas com a prostituição. Essa portaria é muito semelhante a uma portaria paulista com o mesmo fim, de 1896, e incorporou muitos elementos de uma portaria regulamentarista da cidade de Paris de 1864. A partir da publicação dessa portaria, observa-se nos jornais O Estado de Minas e Diário de Minas um crescimento substancial do número de notícias de prisões de meretrizes, o que se estenderá até 1929 (PEREIRA, 2019, p.97PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019.). Certamente, sua viagem à São Paulo auxiliou o delegado a legitimar suas ações diante da prostituição na capital minera, e o caso envolvendo a menor Anna e o acusado José Romano foi a celebração da importância do estabelecimento de uma rede de informações policial no período.

Esses dois eventos correspondem à tendência geral das polícias do período em lidar com o problema da prostituição como uma questão relacionada com o controle das ações das prostitutas no espaço público e como parte da organização de uma rede de informações. As delegacias de costumes nascem, nesse sentido, não somente para resolver os problemas locais relacionados ao combate ao jogo, às religiões de matriz africanas e às cenas de imoralidade no espaço urbano, mas também como parte de uma tomada de posição a favor da regulamentação (de fato) da prostituição, tendo em vista, por um lado, os problemas da sociabilidade dos citadinos e, por outro lado, os impactos do fenômeno das migrações na conformação de redes de exploração da prostituição no Brasil. Essa última hipótese há ainda, que se refinar, mas é inegável que o surgimento dessas delegacias corresponda a um crescente interesse das elites policiais nas discussões sobre a produção científico-acadêmica internacional sobre a prostituição. A ação da Delegacia de Costumes teve impactos diretos no cotidiano de centenas de mulheres e homens na capital mineira. Os jornalistas estiveram atentos a isso. Vejamos alguns elementos desse processo.

Mulheres e homens na mira da Delegacia de Costumes.

Desde que a Delegacia de Costumes foi instalada e passou a exercer uma vigilância sobre os jogos, as atividades de magia e a prostituição na capital mineira, a imprensa passou a noticiar constantemente a cruzada de Edgard Franzen de Lima contra os “atos imorais” promovidos por mulheres e homens envolvidos com a prostituição. A imagem de Franzen de Lima como uma autoridade draconiana chegou até mesmo a incomodar um colaborador do jornal, que levantou dúvidas em relação à ação dos guardas civis contra as meretrizes da cidade, tendo em vista a portaria baixada pelo delegado. Para além das colunas policiais, os jornais publicavam matérias escritas pelos seus redatores quando algum acontecimento crimonoso relativamente extraordinário ocorria, como o caso da menor sequestrada e casos relacionados às arbitrariedades do delegado ou à crimes chocantes. Um levantamento realizado em jornais de Belo Horizonte (PEREIRA, 2019PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019., p. 90-101) indicou que cerca de 20% das notícias de prisões de meretrizes 1928 e 1929 teve como indicação de causa “as [obtusas] ordens do dr. Edgard Franzen de Lima” (EM, 22/09/1928, p. 6). Esse número relativamente pequeno indica, por outro lado, uma atenção dos repórteres e dos editoriais dos jornais às medidas e ações da Delegacia de Costumes na cidade. A imprensa oscilou entre os aplausos e a chamada de atenção para os abusos cometidos pelos policiais e pelo delegado, tendo em vista direitos civis e constitucionais dos indivíduos.

O interesse principal das medidas da delegacia era o comportamente das prostitutas, como se depreende dos documentos oficiais. No entanto, a prática policial, analisada a partir das fontes jornalísticas, nos permite observar uma aplicação prática das medidas de repressão e de regulamentação da prostituição. No cotidiano das rondas noturnas, e mesmo das diurnas, os policiais (civis e militares) tiveram que se haver com todo o tecido social que sustentava a prática da prostituição: namorados, amantes, amigos, maridos, amigas, vizinhas, companheiras, donas de pensão e clientes. Não raro, as pessoas que tinham laços afetivos com as mulheres presas também tinham vínculos com as instâncias de autoridades policiais, seja como soldado da força pública, seja como guarda-civil. Essa complexa dinâmica social foi responsável pela prisão correcional ou pela detenção de mulheres e homens em diferentes situações para averiguação e abertura de investigação. As justificativas das prisões foram muitas e diversas e a publicização das notícias das prisões pelos jornais também correspondem a esse processo de recrudescimento de um policiamento moral e do poder discricionário do policial civil, de acordo com as orientações (que eram ordens) oriundas da delegacia de costumes. Nesse ponto, os motivos da prisão de Petronilha, citada na abertura do artigo, começam a ficar menos opacos e podemos compreender melhor esse processo. Vejamos como os jornais narraram prisões semelhantes.

Alice de Oliveira foi presa pelo guarda Newton Ramos em novembro de 1928 “por desrespeito ao Regulamento de Costumes” na Rua Guaicurus, esquina com a Rua Rio de Janeiro, mas ela “reagiu a dentadas”, resultando em um conflito que se resolveu com a presença de mais dois guardas-civis. A mulher foi conduzida à delegacia do 2º distrito, localizada na Av. Amazonas, próximo da região do conflito, na “viúva alegre”, como era apelidado o carro que transportava os presos para as delegacias e cadeias (DM, 17/11/1928DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 17 nov.1928, p. 3., p. 3). A narrativa da nota da coluna “Policiais” repete o clássico padrão de depreciação da mulher: Alice foi denominada como “decaída” e como “mulher terrível”. Não foi incomum os jornais classificarem as mulheres desse modo, tampouco lidarem com as transgressões ao “regulamento” com naturalidade, mesmo que a portaria lançada pela Delegacia de Costumes não tivesse valor legal de regulamentação da prostituição. “Maria dormiu no 2º distrito” pelo mesmo motivo: transgredir o “Regulamento da Polícia de Costumes” (DM, 21/12/1928DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 21 dez. 1928, p. 3., p. 3).

As prisões por “atos ofensivos à moral” na região da zona de prostituição da capital mineira (Ruas Guaicurus, São Paulo, Rio de Janeiro e Av. Oiapoque) foram muito comuns a partir da edição da portaria de Edgard Lima. Homens e mulheres, cada vez mais, se viram diante da iminência de serem presos, repreendidos ou admoestados por guardas-civis em seus espaços de diversão e em suas demonstrações afetivas no espaço público. Matosinhos Telles, Geraldo de Queiroz e Maria das Dôres, foram presos por terem praticado “publicamente atos ofensivos à moral” (DM, 19/11/1928DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 19 nov.1928, p. 3., p. 3). Já em dezembro daquele ano, João Silva foi preso no cruzamento da R. São Paulo com a R. Guaicurus “por promover desordens” sozinho. Vários foram os casos de homens e mulheres, como casal, trios, ou quartetos que foram detidos por esse motivo de falta de decoro, ato ofensivo à moral e desordens. Assim como perceberam Berlière (1992BERLIÈRE, J.-M. La police des moeurs sous la IIIº République. Paris: Seuil, 1992. ) e Corbin (1982CORBIN, A. Les filles de noce: Misère sexuelle et prostitution au XIXe siècle. Paris: Flammarion, 1982.) para o caso parisiense e Bretas (1997BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.) para a capital federal, observa-se que a relação da polícia de costumes com a prostituição em Belo Horizonte também se ocupou do cenário mais amplo e das relações sociais em torno das mulheres envolvidas com a prostituição, inclusive com as redes do mundo do crime. Diferente desses estudos, as fontes consultadas não nos dão elementos mais concretos sobre os usos que os policiais fizeram das informações apreendidas e adquiridas na relação com a população policiada na capital mineira, mas é possível perceber tanto uma preocupação da polícia com a defesa da moralidade em geral, quanto um posicionamento dos jornais diante do projeto regulamentarista. Festas, jantares, encontros e bailes dançantes em residências, restaurantes ou cabarés também foram invadidos pela polícia a chamados de populares para deter “desordens”, “escândalos”, “espancamentos” ou fazer cessar a animação das pessoas “ao som de uma harmoniosa sanfona” (EM, 22/05/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - No melhor da festa... A polícia compareceu e prendeu 22 convivas. Belo Horizonte (BH), 22 maio 1928 p. 2., p. 2). O mundo da prostituição era o foco da vigilância, mesmo quando a prostituição em si não estivesse sendo praticada.

A chamada zona suspeita desta Capital, habitada em regra pelas mulheres da vida alegre e onde florescem como centros de vícios inumeráveis botequins, dá como sempre, a maior parte e a mais banal, do noticiário policial da cidade. Ainda ontem mais um caso e típico ali foi registrado, a prisão por escândalo e bebedeira de um par heterogêneo, que às cinco horas da madrugada, afogava as mágoas em um botequim da rua Guaicurus. Ele chama-se Antonio Ferreira, ela Izaura de Mattos, o guarda-civil que os prendeu o de n. [309]. Um quarto de hora depois da prisão já se fechara sobre o casal, a porta do xadrez do 2. Distrito. (EM, 13/07/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Promoviam escândalos. BH, 13 jul. 1928, p. 6., p. 6).

Se nos atentarmos para o número que identifica o guarda-civil desta última notícia, percebemos que ele carrega o mesmo número de Abelardo Lourenço Alvim, guarda-civil responsável pela prisão de Petronilha, citado anteriormente. Ao perseguir as notícias dos jornais entre 1928 e 1930, a figura de Abelardo Alvim aparece frequentemente no plantão de policiamento da área em que a prostituição se concentrava. Sua presença marcante na região certamente era conhecia pelos habitantes do local e não menos certo era o fato de que as pessoas não deixaram de se relacionar nem de participar e desenvolver práticas de divertimentos próprias daquela zona urbana. Os cafés, restaurantes, bares e cabarés permaneceram em funcionamento e é plausível de se imaginar que os sujeitos da vigilância policial e os demais sujeitos, trabalhadores em geral, estabeleceram certo acordo tácito de não intervenção nas práticas de divertimento, a menos que as coisas saíssem do controle. Esse exercício de imaginação é importante, para não deixarmos a impressão de que as pessoas não podiam se divertir. A grande questão é que essas práticas de divertimento de mulheres, prostitutas ou não, no ato da prostituição ou não, tiveram que passar pelo crivo discricionário dos guardas-civis, que agora passaram a contar com o amparo das prescrições da Delegacia de Costumes. Se antes já havia a prática de prisão correcional de meretrizes, entre 1928 e 1929 essa prática ganhou uma legitimidade que orientou o policiamento urbano da capital mineira. Mesmo assim, diante do regulamento de fato promovido pela Delegacia de Costumes, haviam aquelas e aqueles que insistiam em seguir seus próprios modos de viver no espaço urbano.

A maioria dos indivíduos obedece as boas leis da moral. Existe porém, num estado latente, uma força que obriga os desordeiros compreender a norma que indica a todos o bom caminho. O guarda civil n. 509, prendeu hoje às 4,35 da tarde, os indivíduos Adão Pedro da Silva, José Debbiem e Dulcinda de Jesus, que no 3º distrito foram receber um pouco de civilidade. (EM, 30/06/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Foram presos. BH, 30 jun. 1928 p. 6. p. 6).

É curioso realizar a leitura dos jornais belorizontinos do período. A tese do papel civilizador do policial inglês como missionário doméstico (STORCH, 1985STORCH, R. O policiamento do cotidiano na cidade vitoriana. Revista Brasileira de História, v. 5, n. 8/9, p. 7-33, set. 1984/abr. 1985, p. 11-12.) poderia muito bem ter sido extraída das narrativas produzidas nas redações dos jornais da capital mineira do início do século XX. O papel que a imprensa atribuía aos policiais, especialmente aquele encarregado de lidar com os problemas de ordem da Delegacia de Costumes, era, em grande medida, o de promover uma educação das sensibilidades das meretrizes e dos homens, pobres almas que precisavam ora de uma intervenção mais abrupta e violenta da polícia, ora de uma noite de sono no xadrez. De fato, há indícios de que a própria delegacia, ou melhor, de que o secretário de Segurança e Assistência Pública, José Francisco Bias Fortes, pensava a ação da polícia de costumes como uma prática capaz de “produzir influência educativa” (APM, Coleção 419, 1928APM, Coleção 419, 1928. MINAS GERAIS. Secretaria da Segurança e Assistência Pública do Estado de Minas Gerais. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pelo dr. José Francisco Bias Forte, Secretário da Segurança e Assistência Pública, referente ao ano de 1927. Belo Horizonte Imprensa Oficial do Estado, 1928., p. 48). Em seu relatório inicial dos trabalhos da delegacia, Bias Fortes apresentou esse argumento, indicando, ainda que o “ponto de partida” do “serviço de prevenção e repressão dos atentados à moral e aos bons costumes” foi a publicação da portaria com medidas que restringiam e estabeleceram regras de comportamento das meretrizes no espaço público.

Já Edgard Lima entendia sua ação como um modo de proteger as próprias mulheres contra os seus exploradores: “constituindo embora as novas exigências profunda modificação do modus vivendi dessas infelizes, não encontrarem meios de contra as mesmas se insurgiram, tal a legalidade evidente em que se fundavam os seus protetores, que nunca faltam e os seus exploradores que sempre existem” (APM, Coleção 419, 1928APM, Coleção 419, 1928. MINAS GERAIS. Secretaria da Segurança e Assistência Pública do Estado de Minas Gerais. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pelo dr. José Francisco Bias Forte, Secretário da Segurança e Assistência Pública, referente ao ano de 1927. Belo Horizonte Imprensa Oficial do Estado, 1928., p. 228-229).Essa declaração é o indício mais forte da percepção de Franzen de Lima sobre o papel da polícia de costumes no cenário mundial. Claramente, o delegado se posicionou a favor da regulamentação, mas tomou o devido cuidado de marcar a diferença entre os policiais, protetores das mulheres em situação de prostituição, e a figura da caftina ou do caftén, denominados como exploradores de suas misérias e desesperanças. Essa forma de se expressar, no meu entender, aponta para um refinamento do discurso público do delegado em relação à prostituição, protegendo-se das acusações de corrupção e exploração da prostituição que recaíam sobre o sistema regulamentarista e sobre as polícias de costumes desde décadas anteriores.

De fato, a denominação genérica de atentado à moral e aos bons costumes serviu de guia para os policiais de linha de frente. Mas seria uma imagem correta perceber todos os relatos de prisões ocorridos na região da prostituição como parte do mundo da prostituição? Seria possível imaginar que um casal preso por ter excedido “nas mútuas manifestações de afeto” em seu “colóquio amoroso na célebre rua dos Guaicurus” estivesse numa relação amorosa não venal (EM, 08/09/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Ossos da vida. BH, 08 set. 1928, p.6., p. 8)? A nota referente a essa prisão não denominou a mulher como meretriz e narrou o ocorrido como tom irônico: o guarda civil ao ver a cena “todo ruborizado, levou os dois ‘pombinhos’ para o ‘xilindró’ da Polícia Central, e, só por maldade alojou-os em ‘apartamentos’ separados”. A notícia deixa a dúvida no ar, mas conduz a narrativa na direção de compreender que tratava-se de um espaço permeado por condutas imorais, contrárias aos ”bons costumes”: “célebre rua”, “pombinhos”, “manifestações de afeto”, são referências que marcam essa direção. Mesmo que não se tratasse de um ato ligado diretamente com a prostituição em si, há uma preocupação com as manifestações afetivas e amorosas naquele espaço público.

A mulher presa poderia ser uma meretriz com um namorado, poderia ser uma trabalhadora com seu noivo, poderia até mesmo ser uma prostitua com um cliente. A essa altura, já não importava muito mais essa distinção: a polícia de costumes já havia disseminado um padrão de policiamento pautado na moralização do espaço público e qualquer sujeito que ultrapassasse as linhas dos parâmetros morais estabelecidos pela delegacia de costume poderia ser detido correcionalmente, ficando passível de responder a processo - o que parece ter ocorrido com menor frequência. Caso a mulher fosse identificada como meretriz, contudo, ela passava por todo um conjunto de práticas de identificação e de registro. Apesar de não ter encontrado os registros das meretrizes como os encontrados por Aguiar (2016AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016), o secretário da segurança anunciou que o registro estava acontecendo na capital e em algumas cidades do interior, culminando na criação de “prontuários com fotografias da prontuariada, qualificação, sinais e de um índice por sistema de cartões” (APM, Coleção 419, 1928APM, Coleção 419, 1928. MINAS GERAIS. Secretaria da Segurança e Assistência Pública do Estado de Minas Gerais. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pelo dr. José Francisco Bias Forte, Secretário da Segurança e Assistência Pública, referente ao ano de 1927. Belo Horizonte Imprensa Oficial do Estado, 1928., p. 48). A julgar pela prática em outros estados, não duvido muito que esses registros efetivamente ocorreram em Belo Horizonte, mas ainda resta a dúvida sobre o destino dessa documentação.

Nesse sentido, como vimos argumentando, as mulheres que se ocuparam da prostituição constituíam a ponta mais fraca dessa relação de poder. Mas três observações precisam ser levadas em consideração. Havia um número considerável de mulheres presas pelos guardas-civis em situações em que não haviam indícios claros relacionados com a prática da prostituição. Escândalos, embriaguez, afetos e carinhos exagerados poderiam ser estopins para a intervenção do policial. Além disso, os homens também foram alvos desse policiamento moral envolvendo a vigilância regulamentarista da Delegacia de Costumes, seja como parceiro, cliente ou amigo das meretrizes, seja como perpetrador individual de determinadas ofensas morais. Finalmente, e talvez o mais relevante, precisamos nos atentar para o processo de formação de redes de sociabilidade, de formação de laços que fundavam as relações sociais das prostitutas. As meretrizes estabeleceram um conjunto de táticas que sustentou uma rede de proteção envolvendo donas de pensão, trabalhadoras e trabalhadores da área das diversões noturnas, trabalhadores em geral (entre eles homens e soldados), meretrizes e outras mulheres, como vizinhas amigas, etc. Esse processo poderia ser bem ou mal sucedido, de acordo com a força simbólica e social desses laços, mas poderia ser o diferencial em caso de excessos policiais.

O jornal O Estado de Minas indicou parte dessas tensões estabelecidas entre a excessiva gana dos guardas-civis por executar prisões de acordo os preceitos da Delegacia de Costumes, por um lado, e as irregularidades, violências e arbitrariedades cometidas contra pessoas que se viram injustiçadas pela ação policial. Em diversos momentos, o jornal publicou notas intituladas “Moral a Pulso”, dentro da coluna “Na polícia e nas Ruas”, indicando, de modo sarcástico e ambivalente o procedimento violento, simbólica e fisicamente, de se fazer ser respeitado o “draconiano regulamento policial em vigor” pelos guardas civis (EM, 25/10/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Moral a pulso. BH, 25 out. 1928, p. 6., p. 6). Em um desses relatos, o redator ironiza “essa ‘formidável’ proeza” de dois guardas que prenderam duas mulheres por que se encontravam uma na janela e outra no portão de suas casas, tendo voltado rapidamente para o “plantão, à procura de novas vítimas” (EM, 25/10/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Moral a pulso. BH, 25 out. 1928, p. 6., p. 6).

O jornal em questão parecia identificar que o projeto de moralização do espaço público também ganhou ares de abuso de poder por parte de alguns policiais, tal como nas cidades em que existia a regulamentação legal da prostituição. As notas policiais do E. M. estão cheias de elogios às ações da polícia, mas também há várias criticas às condutas dos policiais: “o guarda n. 285 é um moralista intransigente” (11/11/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Estavam brincando... BH, 11 nov. 1928, p. 8., p. 8), “guarda injusto”(13/11/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Guarda injusto. BH, 13 nov. 1928, p. 8, p. 6), “um guarda civil como há tantos...” (01/02/1929O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um guarda civil como há tantos... BH, 01 fev. 1929, p. 6., p. 6). Outra Petronilha, dona de uma pensão, foi presa enquanto conversava com um motorista após regressar de “um passeio” (EM, 01/09/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Zelo em demasia. BH, 01 set. 1928, p.6., p. 6). A notícia desenha o ato do guarda-civil como um excesso de zelo e o próprio policial como um desastrado, prepotente, confuso. O mal entendido foi resolvido com a intervenção do delegado da circunscrição que liberou Petronilha sem nenhuma acusação. Outras mulheres não tiveram a mesma sorte:

CARÍCIAS EXPRESSIVAS Maria Baptista é dada aos militares... Como muitas das suas companheiras da rua Guaicurus, ela não resiste à atração irresistível de uma farda. Esse amor pelos soldados foi, porém, esfriado anteontem, quando a Mariazinha, por um motivo que não vem ao caso, entrou numa formidável surra, que lhe foi concenciosamente administrada por um cabo do 1º Regimento de infantaria pouco amigo de “tapeações”! Felizmente as “carícias” não chegaram a impedir a ida da mulher para o xadrez do 2º distrito, enquanto que seu “corajoso” agressor era conduzido, com todas “as honras” do seu posto, para o quartel do 12º Regimento (EM, 12/09/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Carícias expressivas. BH, 12 set. 1928, p.6., p. 6).

Mesmo sofrendo uma agressão grave, uma “formidável surra”, Maria ainda assim foi detida e entrou no xadrez da Avenida Amazonas. Um exemplo limite é o do policial que teria uma relação de animosidade com as prostitutas, resultando em uma predisposição para uma relação mais tensa e violenta.

UM CATÃO FARDADO O guarda civil n. 728, não gosta muito das mulheres, principalmente quando são de uma certa “casta” muito comum na rua Guaicurus e alhures. Ontem o 728, não estava nos seus bons dias, e daí o fato de prender a nacional Iaya da Silva, só pelo fato desta mundana, dizer-lhe algumas “amabilidades”. A detida é claro “estrilou”, fez grosso escândalo, derramou-se em obscenos impropérios, mas acabou indo mesmo para o “xilindró”. De qualquer, modo, porém, o austero ! guarda, é ranzinza, uff!... (EM, 14/09/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um catão fardado. BH, 14 set. 1928, p.6., p. 6).

Apesar dos perigos, que não foram poucos, as mulheres também puderam contar com a proteção de outras pessoas.

PROMOVIAM MOTINS O guarda civil n. 239, prendeu e conduziu ontem às 3,30 horas, os nacionais Arthur de Paiva e João Alves Filho, que no interior do “Eden Restaurante”, depois de discutirem algum tempo com uma mundana, tentaram afinal agredi-la, bem como ao dono do estabelecimento que ocorrera para apaziguá-los. Na ocasião em que foram presos Arthur e João, ainda [tenta]ram resistir o que levou o guarda a pedir o auxílio ao seu colega de n. 551, que ajudou-o a trancafiar os valentões no “xilindró” da 2º delegacia. (EM, 15/09/1928O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Promoviam motins. BH, 15 set. 1928, p.6., p. 6)

Mesmo que se argumente que o dono do estabelecimento Eden estivesse interessado em defender a reputação do restaurante, ainda assim, estaríamos diante dessa rede que se estabelecia e que sustentava as práticas de prostituição no período. As relações dessa rede giravam em torno de um constante fortalecimento ou enfraquecimento dos laços de acordo com os eventos envolvendo os diferentes sujeitos desse processo. Os guardas-civis, em diversas ocasiões, também se colocaram no sentido de não permitir abusos de homens que, muitas vezes embriagados, tentavam espancar ou forçar relações sexuais com as meretrizes. Quando um “soldado valente” procurando colocar em prática o “prestígio da farda”, passou a “espancar umas pobres mundanas que (...) borboleteavam” na Rua Guaicurus “um guarda acudiu” e conduziu o militar do exército ao xadrez (EM, 04/05/1929O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um soldado valente!... BH, 04 maio 1929, p. 6., p. 6).

Em diversos momentos, os homens e as mulheres presas por motivos relacionados à regulamentação da prostituição em Belo Horizonte foram classificados como “nacionais”. Talvez esse nome servisse para identificar e marcar a origem dos sujeitos envolvidos com os escândalos aos bons costumes. Por outro lado, é possível que a difusão do elemento estrangeiro na capital, impulsionasse os redatores a mobilizar esse termo, quando julgasse necessário. Mas é raro o aparecimento de outras nacionalidades envolvidas nesses relatos. Com exceção da polaca Thea e de duas mulheres alemãs, outra referência a nacionalidade encontra-se na forma de apelido: “Maria Turca”. Uma dessas alemãs era Lia, cuja história de exploração foi narrada em maio de 1929 pelo O Estado de Minas. O relato conta o episódio de lenocínio e de crime de agressão e ameaça contra Lia praticado, supostamente, por Thiago Paulo de Figueiredo. O caso, novamente, teria sido descoberto por acas, pois a polícia havia deliberado pela expulsão de Thiago, encaminhando-o para Barra do Piraí, no Rio de Janeiro, mas o investigador responsável teria concedido que ele passasse a noite e seguisse pela manhã. Naquele momento, Thiago teve autorização para buscar seus pertences em uma pensão, quando cometeu as agressões e subtraiu as economias e outros pertences valiosos de Lia para si. O caso teve intervenção de Edgard Franzen de Lima que foi chamado pela dona da pensão, resolvendo o problema com os depoimentos da vítima e do acusado. Assim, relata o jornal:

Um caso de escravatura branca (...) Com Lia, que é de nacionalidade alemã e casada tendo família na Capital Federal, ele [Thiago] aproveitou-se da circunstância de se achar em lugar ignorado o seu marido para seduzi-la aos poucos e afinal escraviza-la em proveito de seus negócios. Aqui ele se achava há [16] dias, vivendo à custa de sua vítima, na referida pensão, motivo, que levou a policia à primeira vista e por ser recente sua aparição na cidade supô-lo um simples vadio ou, no máximo, um mero D. Juan, sem dinheiro. (...) Thiago Paulo de Figueiredo seguiu hoje para o seu destino, desta vez com um guarda sem coração: o investigador descuidado foi exonerado, ontem mesmo, pelo seu chefe - o delegado de Costumes. Lia Rohn ficou livre desse abutre e os meios boêmios de Belo Horizonte foram expurgados desse perigosíssimo agente de corrupção social (EM, 17/05/1929O ESTADO DE MINAS. Um caso de escravatura branca. BH, 17 maio 1929, p. 6., p. 6).

Apontamentos finais: sobre polícia e prostituição

Neste artigo procurei demonstrar a existência de uma complexa rede de conexões entre eventos locais e regionais relacionados ao desenvolvimento de delegacias de costumes no país e um processo mais amplo de circulação de ideias policiais e científicas e de migrantes envolvidos com uma rede internacional de prostituição, conformando novas formas de relação entre polícia e prostituição. As delegacias de costumes que surgiram no país naquele momento emergiram como soluções regionais para o problema da prostituição, diante da inexistência de uma legislação regulamentatória da prática no Brasil. Pelo menos o foi com o caso de Minas Gerais e com a gestação, legitimação e instalação da Delegacia de Costumes no final da década de 1920, que exerceu, de fato, uma regulamentação temporária da prática do meretrício na capital mineira e no estado. O recrudescimento do poder discricionário desse novo sujeito que passou a ter uma legitimidade social, os delegados de costumes, corresponde, em parte, ao crescimento de uma perspectiva de policiamento que incorporava um papel civilizatório das forças policiais. Curiosamente, o policiamento moral que se alastrou nas principais cidades do país emergiu ao mesmo tempo em que o liberalismo político voltava a ganhar espaço no cenário nacional, tal como havia ocorrido no início da república.1 1 É curioso notar, na história política brasileira, a recorrência da emergência de modelos liberais atrelados, frequentemente, a modelos conservadores, abrindo caminho para “espasmos de energia reacionária” que se acumularam e contribuíram para a consolidação de projetos políticos autoritários (SEVCENKO, 1992, p. 307). Por esse mesmo motivo, as tensões em torno desse projeto não puderam deixar de existir. Pois as transformações culturais do período introduziam novas perspectivas e novos valores, diferentes dos dogmas e crenças tradicionais, assustando as elites locais que se viram diante da possibilidade de serem confundidas com a massa de anônimos imorais no espaço urbano (RAGO, 1985RAGO, L. M. Do Cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.; SEVCENKO, 1992SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia das Letras, 1992.).

Essa confusão, de fato, também existiu sob a forma da aplicação da lei, como nos casos em que guardas civis prendiam homens ou mulheres das elites locais, sofrendo represálias após manifestações de indignação por parte dos presos - ou de seus parentes - junto ao delegado, ao chefe de polícia ou ao secretário responsável (BRETAS, 1997BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.). Havia, portanto, uma disputa pela forma de ocupação desses novos espaços de diversão urbana no período noturno que, por um lado, envolvia grupos sociais distintos em seus diferentes níveis de relação com as autoridades policiais e, por outro lado, fazia emergir um debate mais amplo sobre formas de comportamento masculino e feminino no espaço público. Homens e mulheres pobres, especialmente essas últimas, tornaram-se alvos desse complexo processo de policiamento moral que se desenvolveu no período (PEREIRA, 2019PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019.). A vigilância promovida pela polícia de costumes resultou em variadas formas de repressão social, as quais se destacaram aquelas ocupadas em fazer cessar determinados comportamentos individuais e coletivos das mulheres envolvidas com a prostituição. Mas no desenvolvimento desse processo, outras pessoas, homens e mulheres, também viram seus comportamentos cerceados nos espaços de diversão da cidade, resultando em conflitos e prisões.

Os episódios de prisões de meretrizes no final da década de 1920 se conformaram como um espaço de rearticulação de suas próprias existências, reforçando laços que podiam mantê-las seguras ou presas em outas relações de poder abusivas. Por outro lado, a Delegacia de Costumes em Belo Horizonte, também funcionou como espaço de apoio para as mulheres que se viram em situação de violência por parte de seus parceiros e que buscaram garantir seus direitos civis básicos. No primeiro trimestre de 1930, Maria Ephygenia procurou a ajuda de Edgard Franzen de Lima, pois sofria “horríveis maus tratos por parte do respectivo souteneur”. Segundo o jornal O Estado de Minas, o próprio delegado, horas depois de receber a queixa, “prendeu o acusado, ‘ajeitando-o’ imediatamente” (EM, 22/03/1930O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um caso “alegre” BH, 22 mar. 1930, p. 6.p. 6). Essa função da Delegacia de Costumes em Belo Horizonte tornou-se uma tendência nas décadas seguintes, quando queixas relacionadas a violência contra a mulher e contra menores, passaram gradativamente a ocupar os espaços dos livros de registro disponíveis, abrindo caminho para um longo processo de criação da Delegacia da Mulher na capital mineira (FREITAS, 2010FREITAS, A. P. R. de. O canto da sereia: Violência e sexualidade em Belo Horizonte através dos Relatórios da Delegacia de Costumes 1961 - 1962. Monografia (Bacharelado em História) - Centro Universitário de Belo Horizonte, Belo Horizonte, 2010.). O fato de as prisões de prostitutas terem desaparecido dos jornais locais não implica, necessariamente, em uma diminuição direta do número real de prisões realizadas pela polícia, no entanto, a partir de 1934 também não conseguimos encontrar registros oficiais relacionados à prostituição. A mudança de postura ainda precisa ser melhor esclarecida, mas, certamente, as prisões correcionais, prática antiga, voltaram ao foco da ação policia na década de 1934, em detrimento do registro oficial das prostitutas e das prisões sob as alegações da portaria de 1928. A morte de Edgad Franzen de Lima, em 1934, pode ser um ponto importante dessa explicação, uma vez que o delegado deu um tom muito pessoal na gestão da Delegacia.

As experiências das meretrizes diante da regulamentação promovida pela Delegacia de Costumes em Belo Horizonte nas décadas de 1920 e 1930 aproximam-se das experiências de outras centenas de milhares de mulheres em outras cidades no país e no mundo (CORBIN, 1982CORBIN, A. Les filles de noce: Misère sexuelle et prostitution au XIXe siècle. Paris: Flammarion, 1982.; RAGO, 1991RAGO, L. M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1991.; GIBSON, 1999GIBSON, M. Prostitution and the state in Italy - 1860-1915. Columbus: Ohio State University, 1999.; PEREIRA, 2004PEREIRA, I. As decaídas: prostituição em Florianópolis (1900-1940). Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.; SCHETTINI, 2006SCHETTINI, C. 'Que tenhas teu corpo': uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 2006.; MENDONÇA, 2014MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.; AGUIAR, 2016AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016; PEREIRA,2019PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019.). As especificidades locais deram, certamente, o tom das conquistas ou dos desfortúnios causados pelas políticas de policiamento do espaço urbano.

Como busquei argumentar ao longo do artigo, a imprensa também teve um papel importante nas discussões sobre garantia de direitos republicanos e liberais, apontando os pontos fracos ou pontos fortes das ações desse policiamento moral. Com o ressurgimento de uma nova perspectiva política liberal em vias de ruptura com a ordem política oligárquica na segunda metade da década de 1920, o jornal O Estado de Minas emergiu como um espaço de discussão importante, funcionando como um termômetro dos problemas morais e políticos da relação entre polícia e prostituição na capital mineira. A partir da imprensa foi possível observar as tensões em torno dos diferentes modos de existir e ocupar o espaço urbano que estava em jogo nesse processo (PEREIRA, 2019PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019., p. 68-138).

Finalmente, as tragédias das vidas de crianças e adolescentes vítimas do “tráfico das brancas”, desde o final do século XIX, apesar de profundamente inscritas na violência promovida pela modernidade na vida cotidiana de diferentes sociedades, foram tratadas pelos jornais de modo romantizado e estigmatizado. O destino dessas mulheres e dessas meninas, quando descobertas pelas autoridades policiais mineiras, se mostraram incertos, após a acolhida em casas e instituições de caridade ou assistencialistas. Lugares, muitas vezes, de produção e reprodução das desigualdades sociais, mas, ao mesmo tempo, de condições de novos aprendizados, inclusive profissionais (VALENTE, 2016VALENTE, P. A. Mulheres católicas em ação: caridade, saúde e divulgação de ciências em Belo Horizonte (1897-1936). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidae Federal de Minas Gerais, 2016.). O acionamento policial no cotidiano das práticas sociais e culturais diversas de homens e mulheres, incluindo a prostituição, está intimamente ligado a um longo e não linear processo de construção de redes de colaboração entre diferentes forças policiais, estaduais e nacionais na América do Sul. A historiografia, na última década, produziu relevantes estudos sobre esse movimento que corresponde a uma tendência das autoridades policiais do período em pensar a distribuição do crime, da criminalidade e dos sujeitos envolvidos nessas redes extralegais de modo extraterritorial, buscando soluções, explicações e ações coletivas para além das fronteiras nacionais ou das fronteiras estaduais/provinciais (KNEPPER, 2010KNEPPER, P. The Invention of International Crime: A Global Issue in the Making, 1881-1914. London: Palgrave/Macmillan, 2010.; GALEANO, 2016GALEANO, D. Criminosos viajantes: circulações transnacionais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016.; SCHETTINI, 2017SCHETTINI, C. Em búsqueda de América del Sur: agentes secretos, policías y proxenetas em la Liga de las Naciones em la década de 1920. Iberoamericana, XVII, 64, 2017, p. 81-103.). Vale, nesse sentido, investir nossos olhares para o interior do Brasil em busca de novos elementos para contribuir com essa tendência historiográfica.

É preciso, pois, perguntar-se sobre as razões (obra do acaso ou de uma rede sóciohistórica?) e os mecanismos que permitiram o trânsito, mas também a fixação, de mulheres e homens de diversas partes do mundo no interior do estado, como no caso da menor Anna, que foi levada a viver no norte de Minas em Montes Claros. A investigação das trajetórias dos sujeitos envolvidos com o tráfico de mulheres e/ou com a prostituição no interior do Brasil pode ser um importante caminho para compreender melhor as formas sociais e culturais de articulação dos sujeitos, mulheres e homens, que não se limitavam - voluntariamente ou não - às fronteiras geopolíticas dos estados. Pesquisas voltadas para a discussão do problema racial em torno dessas migrações forçadas e em torno desse grande interesse e mobilização científica, política e estatal, como resposta ao horror pelo tráfico de mulheres brancas, certamente podem contribuir para matizar nosso entendimento sobre as políticas de sexualidade que se estabeleceram ao longo do último século.2 2 Sobre o problema racial, Cristana Schettini (2017, p. 83) argumenta que as investigações financiadas por entidades, como a Liga da Nações, em torno do tráfico de mulheres criou uma ideia específica de América do Sul “como uma região peculiar em uma geografia moral mundial”: espaço marcado pela recepção das mulheres traficadas e pela corrupção e ineficácia das autoridades e da legislação. Novas investigações ocupadas com a análise do trânsito desses sujeitos no interior do estado brasileiro podem contribuir para aprofundar nossa percepção desse processo e da relação entre polícia e prostituição no período republicano, dando uma nova percepção para a vida de homens e mulheres que estiveram na mira do policiamento moral do período. Especialmente no que toca aos projetos extralegais de regulamentação da prostituição que existiram amplamente no Brasil do século XX, seja no âmbito regional, com os delegados de costumes, seja no âmbito local, na figura dos delegados municipais. A história da relação da prostituição com a polícia, vista sob esse ângulo, torna-se o ponto de convergência entre uma história social da cultura e uma história política, no qual o foco da análise se volta para a relação entre as práticas de nomeação e classificação social dos comportamentos das prostitutas e as políticas de policiamento das práticas de prostituição.

Referências - Fontes impressas

  • APM, Coleção 419, 1928. MINAS GERAIS. Secretaria da Segurança e Assistência Pública do Estado de Minas Gerais. Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Presidente do Estado pelo dr. José Francisco Bias Forte, Secretário da Segurança e Assistência Pública, referente ao ano de 1927 Belo Horizonte Imprensa Oficial do Estado, 1928.
  • APM, Coleção 419, 1929, v. I. MINAS GERAIS. Secretaria da Segurança e Assistência Pública do Estado de Minas Gerais. Relatório apresentado ao exmo. Sr. Presidente do Estado pelo dr. José Francisco Bias Fortes, Secretário da Segurança e Assistência Pública referente ao ano de 1928 Volume I. Belo Horizonte, Imprensa Oficial do Estado, 1929 v. I.
  • DIÁRIO DE MINAS. Comentários. Belo Horizonte (BH), 26 maio 1928, p. 2.
  • DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 19 ago. 1928, p.3.
  • DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 17 nov.1928, p. 3.
  • DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 19 nov.1928, p. 3.
  • DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 07 dez.1928, p. 3.
  • DIÁRIO DE MINAS. Policiais. BH, 21 dez. 1928, p. 3.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - No melhor da festa... A polícia compareceu e prendeu 22 convivas. Belo Horizonte (BH), 22 maio 1928 p. 2.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Uma caravana para o xadrez. BH, 02 jun. 1928, p.8.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Foram presos. BH, 30 jun. 1928 p. 6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Promoviam escândalos. BH, 13 jul. 1928, p. 6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Zelo em demasia. BH, 01 set. 1928, p.6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Ossos da vida. BH, 08 set. 1928, p.6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Carícias expressivas. BH, 12 set. 1928, p.6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um catão fardado. BH, 14 set. 1928, p.6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Promoviam motins. BH, 15 set. 1928, p.6.
  • O ESTADO DE MINAS. Mercado de moças. BH, 16 set. 1928, p.8.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Mulheres, mulheres / Delegacia de costumes e jogos. BH, 10 set. 1928, p. 6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - As “ordes”. BH, 22 set. 1928, p.6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Moral a pulso. BH, 25 out. 1928, p. 6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Estavam brincando... BH, 11 nov. 1928, p. 8.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Guarda injusto. BH, 13 nov. 1928, p. 8
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um guarda civil como há tantos... BH, 01 fev. 1929, p. 6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um soldado valente!... BH, 04 maio 1929, p. 6.
  • O ESTADO DE MINAS. Um caso de escravatura branca. BH, 17 maio 1929, p. 6.
  • O ESTADO DE MINAS. Na polícia e nas ruas - Um caso “alegre” BH, 22 mar. 1930, p. 6.

Bibliografia

  • AGUIAR, N. E. de M. Um incômodo moral: o meretrício e seus meios de controle em Curitiba (1929-1937). Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Humanas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2016
  • BERLIÈRE, J.-M. La police des moeurs sous la IIIº République Paris: Seuil, 1992.
  • BRETAS, M. L. Ordem na cidade: o exercício do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.
  • CARRARA, S. Tributo à Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
  • CORBIN, A. Les filles de noce: Misère sexuelle et prostitution au XIXe siècle. Paris: Flammarion, 1982.
  • DUTRA, E. R. O ardil totalitário: Imaginario Politico no Brasil dos Anos 30. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Ed. UFRJ/ Ed. UFMG, 1997.
  • FREITAS, A. P. R. de. O canto da sereia: Violência e sexualidade em Belo Horizonte através dos Relatórios da Delegacia de Costumes 1961 - 1962. Monografia (Bacharelado em História) - Centro Universitário de Belo Horizonte, Belo Horizonte, 2010.
  • GALEANO, D. Criminosos viajantes: circulações transnacionais entre Rio de Janeiro e Buenos Aires, 1890-1930. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2016.
  • GARZONI, L. C. Vagabundas e conhecidas: novos olhares sobre a polícia republicana. (Rio de Janeiro, início século XX). Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2007.
  • GIBSON, M. Prostitution and the state in Italy - 1860-1915. Columbus: Ohio State University, 1999.
  • KNEPPER, P. The Invention of International Crime: A Global Issue in the Making, 1881-1914. London: Palgrave/Macmillan, 2010.
  • KUSHNIR, B. Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
  • LEITE, J. L. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974). São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora , 2005
  • MENDONÇA, C. S. C. Marias sem glória: retratos da prostituição feminina na salvador das primeiras décadas republicanas, Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
  • MENEZES, L. M. de. Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na capital federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. 307p.
  • PASSOS, D. O. R. dos. Identidade e cultura das clases trabalhadoras em Belo Horizonte no início do século XX (1893-1930) 2011. (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2011.
  • PEREIRA, I. As decaídas: prostituição em Florianópolis (1900-1940). Florianópolis: Editora da UFSC, 2004.
  • PEREIRA, L. C. S. de A. “No intuito de produzir influência educativa”: educação moral, polícia de costumes e prostituição feminina em Belo Horizonte (décadas de 1920 e 1930). Belo Horizonte: Letramento, 2019.
  • RAGO, L. M. Do Cabaré ao lar A utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
  • RAGO, L. M. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1991.
  • RAGO, L. M. Os sentidos da prostituição na modernidade brasileira. Itinerários - Anuario del CEEMI, Ano 3, nº 3, 2009.
  • SCHETTINI, C. 'Que tenhas teu corpo': uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das primeiras décadas republicanas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional , 2006.
  • SCHETTINI, C. La vida en la ventana - prostitución y policía en el Rio de Janeiro republicano. Itinerários - Anuario del CEEMI, Ano 3, nº 3, 2009.
  • SCHETTINI, C. Em búsqueda de América del Sur: agentes secretos, policías y proxenetas em la Liga de las Naciones em la década de 1920. Iberoamericana, XVII, 64, 2017, p. 81-103.
  • SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia das Letras, 1992.
  • SILVA, M. G. C. e. A moral e os bons costumes: experiência da cidade nas narrativas policiais (Belo Horizonte, 1897-1926). 2009. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
  • SOIHET, R. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920). Rio de Janeiro: ED. Forense Universitária, 1989.
  • STORCH, R. O policiamento do cotidiano na cidade vitoriana. Revista Brasileira de História, v. 5, n. 8/9, p. 7-33, set. 1984/abr. 1985, p. 11-12.
  • TROCHON, Y. La trata de blancas em el Atlántico Sur: Argentina, Brasil, Uruguai (1880-1932). Montevideo: Taurus, 2006.
  • VALENTE, P. A. Mulheres católicas em ação: caridade, saúde e divulgação de ciências em Belo Horizonte (1897-1936). Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidae Federal de Minas Gerais, 2016.
  • 1
    É curioso notar, na história política brasileira, a recorrência da emergência de modelos liberais atrelados, frequentemente, a modelos conservadores, abrindo caminho para “espasmos de energia reacionária” que se acumularam e contribuíram para a consolidação de projetos políticos autoritários (SEVCENKO, 1992SEVCENKO, N. Orfeu extático na metrópole: São Paulo sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia das Letras, 1992., p. 307).
  • 2
    Sobre o problema racial, Cristana Schettini (2017SCHETTINI, C. Em búsqueda de América del Sur: agentes secretos, policías y proxenetas em la Liga de las Naciones em la década de 1920. Iberoamericana, XVII, 64, 2017, p. 81-103., p. 83) argumenta que as investigações financiadas por entidades, como a Liga da Nações, em torno do tráfico de mulheres criou uma ideia específica de América do Sul “como uma região peculiar em uma geografia moral mundial”: espaço marcado pela recepção das mulheres traficadas e pela corrupção e ineficácia das autoridades e da legislação.
  • DECLARAÇÃO DE FINANCIAMENTO

    Parte da pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do CNPq (Processo nº 131376/2011-0).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    11 Mar 2019
  • Aceito
    29 Set 2019
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br