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Literatura ambivalente: desafios conceituais no estudo da literatura em três jornais francófonos brasileiros (1857-1906)

Ambivalent Literature: Conceptual Challenges in The Study of Literature in Three Brazilian Francophone Newspapers (1857-1906)

RESUMO

O presente artigo pretende analisar a ambivalência dos usos da literatura presentes em três jornais francófonos brasileiros do século XIX, Le Courrier du Brésil, France-Brésil e Le Messager de São Paulo. Tais publicações, além de cobrir boa parte da chamada “Era de Ouro” da imprensa francófona no Brasil, também estão ligadas a dois dos principais centros dessa produção (Rio de Janeiro e São Paulo). Essa análise parte da constatação de que esse corpus, devido à sua peculiaridade enquanto objeto cultural, já tem provocado reflexões teóricas mais amplas. No caso dos usos da literatura em particular, defendemos a ideia de que a ambivalência característica desses jornais - uma produção simultaneamente estrangeira e local - nos permite dialogar ou reavaliar de forma produtiva conceitos fundamentais nos estudos literários comparativos como as noções de influência ou de transferência. A dupla identidade da literatura nesse corpus tende a resistir e desafiar tais instrumentos teóricos tradicionalmente invocados para entender as relações interculturais. Diante dessa resistência e desse desafio, podemos revisitar, através dos exemplos desses três jornais, a importância do estudo desses jornais e reinterpretar o papel da literatura neles impressa.

Palavras-chave
Literatura; Imprensa francófona; História Literária; Literatura comparada

ABSTRACT

This article intends to analyse the ambivalent uses of literature present in three francophone newspapers produced in Brazil during the nineteenth century, Le Courrier du Brésil, France et Brésil and Le Messager de São Paulo. These publications, besides covering a good part of the so-called “Golden Era” of Brazilian francophone press, are also linked to two of the main centres of this production (Rio de Janeiro and São Paulo). This analysis is based on the observation that this corpus, due to its peculiarity as a cultural object, has given rise to broader theoretical reflections. With regards to the uses of literature, we argue that the characteristic ambivalence of these newspapers - simultaneously foreign and local productions - allows us to productively discuss and re-evaluate fundamental concepts in comparative literary studies such as the notions of influence and transference. The dual nature of literature in this corpus tends to resist and challenge those theoretical tools that are traditionally invoked to understand intercultural relations. In considering this resistance and challenge, we can revisit, through the lens of those three newspapers, the importance of the study of these newspapers and reinterpret the role of the literature printed in them.

Keywords
Literature; French press; Literary History; Compared Literature

Jornais francófonos, literatura e ambivalência

Em recente obra editada por Tânia de Luca e Valéria Guimarães, encontramos um levantamento detalhado e organizado (com base em dados anteriores coletados nos trabalhos de Gondim da Fonseca e Letícia Canelas) dos 37 periódicos produzidos em língua francesa no Brasil entre 1854-1924 (LUCA; GUIMARÃES, 2017LUCA, T. R. de; GUIMARÃES, V. Imprensa estrangeira publicada no Brasil: Primeiras incursões. São Paulo: Rafael Copetti, 2017., p. 144). Talvez seja de espantar a fertilidade do setor francófono na imprensa brasileira, sobretudo em comparação com produções ligadas a outras línguas cujas populações também estiveram ligadas a movimentos migratórios relativamente diminutos. Essa fertilidade é ainda mais marcante tendo em vista o próprio cenário da imprensa nacional, que, em meados do século XIX, estava ainda iniciando as primeiras etapas de um desenvolvimento relativamente tardio. Os periódicos em francês produzidos no Brasil parecem acompanhar esse processo de expansão e modernização da imprensa local, tornando-se parte importante dele e se inserindo no quotidiano das práticas de leitura do público brasileiro da época.

Um leitor que, no século XIX, viesse a abrir as páginas desses diversos periódicos francófonos produzidos no Brasil, estaria habituado a encontrar nessas páginas conteúdos diversificados como notícias da França e do Brasil, comentários políticos, crônicas, críticas de teatro e tantos outros assuntos. No seio dessa diversidade, um dos traços marcantes dessa imprensa era (para além ou aquém dos gêneros textuais específicos) um contato constante e profundo entre mundo jornalístico e mundo literário. O caso dos periódicos francófonos brasileiros não foge, portanto, do padrão observado no conjunto da imprensa francófona americana. Como mostra Guillaume Pinson: “La culture médiatique francophone se caractérise par la circulation, d’une grande intensité, de corpus littéraires (…) la littérature se trouve à constituer, pour les espaces francophones, un des grands ferments de leur identité culturelle”1 1 “A cultura midiática francófona se caracteriza pela circulação, de grande intensidade, de corpus literários (…) a literatura acaba constituindo, para os espaços francófonos, um dos grandes fermentos de sua identidade cultural”. Trad. nossa. (PINSON, 2016, p. 210PINSON, G. La Culture médiatique francophone en Europe et en Amérique du Nord. Québec: PUL, 2016. ).

No âmbito da própria imprensa brasileira em português, diversos estudiosos também observam o fato de que a literatura seria um elemento central das práticas jornalísticas do oitocentos, sobretudo em torno das décadas de 1850-1880. Segundo Nelson Wernek Sodré, essa foi “realmente, a época dos homens de letras fazendo imprensa”; nela, imprensa e literatura eram “casadas estreitamente” (SODRÉ, 2011SODRÉ, N. W. História da Imprensa no Brasil. São Paulo/Porto Alegre: EdiPUCRS/Intercom, 2011[1966]. [1966], p. 288-297). Nesse contexto, nota-se que o folhetim, cujo modelo é notadamente francês e cuja tendência à ficcionalização ou à literariedade são marcantes, ocupa lugar de destaque num cenário em que a imprensa puramente política tendia a perder parte de seu espaço: “a partir de meados do século XIX, quando o jornalismo político, pesado, e conselheiral entrou em declínio, outro chamariz se impôs para aumentar a circulação do jornal: o folhetim de pé de página”(MARTINS; LUCA, 2008, p. 69MARTINS, A. L.; LUCA, T. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto , 2008.).

Portanto, por um lado, um leitor dos jornais produzidos em francês no Brasil encontrava nessas folhas conteúdos literários mais tradicionais, já que esses periódicos eram justamente vistos como grandes aglutinadores de textos ficcionais, poemas, críticas, folhetins. Por outro lado, tal leitor também estava constantemente se colocando em pleno contato com interações mais profundas e indiretas entre notícia e literatura, através de uma imprensa que fazia dessa característica de mistura e interação um de seus pontos de diferenciação.

Os periódicos Courrier du Brésil (RJ, 1854-1862), France et Brésil (1874-1875) e Le Messager de St. Paul/São Paulo (1901-1924) se inserem, assim, numa dupla linhagem em que a literatura é parte preponderante do modo de fazer jornalismo. Vale ressaltar que esses projetos divergem em alguns pontos. Podemos observar variações importantes, sobretudo no que toca à periodicidade. O Courrier du Brésil se apresenta como um hebdomadário mais regular e longevo, o France et Brésil transita entre o diário e semidiário e o Messager de St. Paul (que, em 1905, muda seu nome para Le Messager de São Paulo) assume a forma hebdomadária e tri-hebdomadária ao longo de sua trajetória. Porém, apesar das diferenças, eles exemplificam os principais caminhos editoriais da presença da literatura em jornais no seio desse importante foco da imprensa francófona no Brasil que foi o eixo Rio de Janeiro - São Paulo. Podemos notar, portanto, afinidades importantes entre essas folhas, no que diz respeito aos usos da literatura, afinidades que ecoam outras proximidades em termos de projetos editoriais e jornalísticos. Essas folhas eram sobretudo voltadas para uma grande variedade de interesses como comércio, economia, política e literatura, o que as distanciava dos periódicos mais especializados ou das revistas literárias que também marcaram presença no cenário midiático franco-brasileiro. Nesses três periódicos, a literatura divide espaço e dialoga constantemente com todo o tipo de notícia, do anúncio de aulas de francês ao comentário político engajado, passando pelo anúncio da criação de linhas marítimas transatlânticas ou notícias sobre mazelas locais. Além desse traço em comum, certas formas literárias também são constantes. Notadamente, o romance folhetim é frequentemente presente nessas páginas, mas também conteúdo ligado à crítica (principalmente teatral) e à crônica, que muitas vezes transita entre ficção e notícia.

O corpus literário desses três jornais apresenta uma série de jogos entre duplos polos: informação e ficção, parte alta e rodapé da página, entre outros. Porém, uma interação em particular reaparece constantemente e é insistentemente objeto de discussão: a do contato entre local e estrangeiro no que se refere a autores, textos, referências e línguas. Esse contato não se coloca como um fenômeno bilateral, mas como uma constante tensão, que recusa a separação entre os polos envolvidos. É essa tensão que aqui chamamos de ambivalência. A situação sui generis desse corpus - o seu caráter simultaneamente local e estrangeiro - não só é essencial para compreendermos o lugar da literatura nessas folhas, mas tende também a acarretar importantes questionamentos de ordem conceitual e teórica.

Antes de abordarmos, a partir de textos publicados entre os anos de 1857 e 1906, como essa ambivalência essencial, essa simultaneidade entre local e estrangeiro, pode instigar questionamentos ligados a noções do campo dos estudos literários, sublinharemos exemplos de como, de maneira mais ampla, o corpus da imprensa francófona já tem servido de ponto de partida fértil para discussões teóricas.

O corpus e seus desdobramentos teóricos

As projeções teóricas ligadas ao estudo das imprensas alófonas são variadas e vêm acompanhando desde o início a evolução desse campo de estudo. Se, por um lado, a própria legitimação do objeto do impresso periódico parece se beneficiar de renovações teóricas no campo da história cultural e da história literária, por outro lado vemos também que, ao abordar tal objeto, muitos pesquisadores sinalizam os deslocamentos e as ramificações conceituais que esse corpus sugere, propicia e impulsiona.

Nesse sentido, vale destacar três trabalhos essenciais que mostram o potencial de desdobramentos inerente aos jornais de língua estrangeira. Primeiramente, podemos sublinhar as reflexões de Diana Cooper-Richet que, por exemplo, em sua contribuição ao livro La Civilisation du journal, traça um panorama da imprensa estrangeira produzida na França no século XIX e mostra de maneira precisa e povoada de exemplos como a fertilidade dessa produção é, apesar de relativamente ignorada até então, fundamental para entender: 1) os diversos movimentos populacionais que estavam em processo no século XIX; 2) o lugar do interesse pela comunicação impressa em meio a esse contexto de circulações; 3) as dinâmicas das relação interculturais em um mundo onde nacionalismos e cosmopolitismo, identidades linguísticas particulares e poliglóticas estavam em constante embate/mescla (COOPER-RICHET, 2011, p. 604COOPER-RICHET, D. La presse en langue étrangère. In: KALIFA, D. et al. (orgs.). La Civilisation du Journal. Paris: Nouveau Monde, 2011, p. 583-604.). Nesse sentido, mais do que um subproduto marginal de um vasto processo de ascensão de uma “civilização do jornal” global, o impresso periódico pode ser visto como um sintoma e como um impulsionador importante, ajudando-nos a compreender, em retorno, o quadro mais amplo dos contatos interculturais do século XIX.

Em segundo lugar, o trabalho de Guillaume Pinson é um exemplo fundamental, sobretudo no que toca à amplitude do quadro que delineia. Publicado em 2016, seu livro intitulado La Culture médiatique francophone en Europe et en Amérique du Nord, propõe um constante movimento pendular entre análise de corpus e discussão teórica. Ao discutir, por exemplo, a ideia das interações entre os modelos midiáticos e suas apropriações particulares sob a ótica do conceito de “modelização” e da configurações peculiares a cada espaço (PINSON, 2016, p. 103-110PINSON, G. La Culture médiatique francophone en Europe et en Amérique du Nord. Québec: PUL, 2016. ), ou ao examinar as consequências teórico-metodológicas do acesso digitalizado ao corpus jornalístico do XIX (Ibid., p. 305-318PINSON, G. La Culture médiatique francophone en Europe et en Amérique du Nord. Québec: PUL, 2016. ), esse trabalho aponta para um traço importante desse corpus: a sua demanda por uma reflexão constante acerca dos pressupostos teóricos dos quais é objeto.

Por fim, é preciso também ressaltar o já citado trabalho de Valéria Guimarães e Tânia de Luca. Ele parece ter preocupações análogas ao trabalho de Guillaume Pinson, ainda que possua natureza mais fragmentada (reunindo artigos de múltiplos autores), e que se concentre mais particularmente no caso brasileiro. As organizadoras, no ensaio introdutório ao livro, sublinham o fato de ser essencial pensarmos os periódicos alófonos no quadro de uma reflexão teórica mais ampla. Um ponto essencial dessa postura se encontra na perspectiva teórico-metodológica da abordagem transnacional. Esta, porém, como mostra as autoras, não é levantada a priori, mas surge a partir do próprio objeto estudado:

O estudo de títulos em língua estrangeira pressupõe, por um lado, a existência da nação e, por outro, a possibilidade de deslocamentos espaciais e descompassos temporais. Entretanto, coloca também em xeque a própria noção de sistema inerente à ideia de estado-nação. Considerados a um só tempo nacionais e estrangeiros, esses impressos cumprem o papel de ligação com seus países e cultura de origem, ativando um circuito intenso de circulação de ideias e pessoas, a despeito de apresentarem características próprias à medida que criam um enclave estrangeiros fora do local de origem, o que abre brechas na aparente homogeneidade nacional. É justamente tal porosidade que torna possível analisar-se o material sob perspectivas que deem conta de suas singularidades. Não se trata de negar outras abordagens, mas de pontuar que a abordagem transacional é, antes de tudo, uma opção teórico-metodológica que pode iluminar aspectos ignorados em outras circunstâncias. Liga-se, assim, ao estudo do comparatismo e seus desdobramentos, discussão que conta com significativa fortuna crítica em áreas as mais diversas (LUCA; GUIMARÃES, 2017, p. 9LUCA, T. R. de; GUIMARÃES, V. Imprensa estrangeira publicada no Brasil: Primeiras incursões. São Paulo: Rafael Copetti, 2017.).

Essas perspectivas mostram quanto o corpus de periódicos francófonos não franceses pode ser particularmente desafiador do ponto de vista teórico. Se, por um lado, não se trata de uma necessidade de reerguer todo um novo aparato epistemológico/metodológico para que ele seja compreendido, parece haver sim uma constante nos estudos da imprensa alófona (na qual se insere a imprensa francófona no Brasil) que aponta para uma persistente problematização conceitual.

A perspectiva dos estudos literários

Como situar então essa miríade de questões e desdobramentos teóricos dentro do quadro mais preciso dos estudos literários? Dois campos internos a esse quadro são particularmente pertinentes para situarmos a questão: a história literária e a literatura comparada. A história literária se liga ao estudo de corpus como o da imprensa francófona brasileira por se preocupa com as condições de produção, circulação e recepção da literatura - condições essas que no século XIX se encontram particularmente depositadas no suporte impresso periódico. Além disso, a progressiva abertura dos estudos literários nas últimas décadas, a compreensão mais ampla de seus objetos e expansão da própria noção de cultura impulsionaram uma inevitável aproximação entre história literária e história cultural. Como mostra Jean-Yves Mollier, a literatura pode ser compreendida no seio mais largo da produção escrita e da produção de representações, o que em última análise se configura como um passo fundamental para o estudo literário da imprensa periódica:

Na medida em que, segundo as definições comumente admitidas, a história cultural se propõe como uma “história social das representações”, das maneiras com as quais os homens representam e se representam o mundo que os cerca, era inevitável que ela se encontrasse com a história literária e com ela se esforçasse em travar um diálogo mais ou menos construtivo (MOLLIER, 2003, p. 597MOLLIER, J.-Y. Histoire culturelle et histoire littéraire. Revue d’histoire littéraire de la France, v. 103, n. 3, p. 597-612, 2003.).

Nesse sentido, a imprensa em língua estrangeira seria um campo privilegiado para o estudo da produção e da circulação de representações híbridas, na encruzilhada de culturas, o que poderia apontar para a complexa dinâmica da construção dessas representações. Essa dinâmica desemboca diretamente e inevitavelmente no campo da literatura comparada. Levando em conta a presença de uma ligação intrínseca e essencial entre literatura comparada e história literária, é preciso ressaltar ainda que a literatura comparada tende a ser mais diretamente e intensamente voltada para a percepção de encontros mais ou menos diretos entre literaturas, culturas de diferentes línguas e nacionalidades. Desse encontro mesmo nascem seus pressupostos, sua pertinência, e inclusive seus limites enquanto abordagem.

Paul Van Tieghem, em texto basilar acerca da literatura comparada, já levantava - ainda que de maneira relativamente breve - uma aproximação entre estudo da imprensa e literatura comparada. O autor ressalta a necessidade de estudarmos as obras dentro de um contexto mais amplo, e defende que uma leitura atenta dos jornais poderia servir não só para captar o contexto intelectual de um período, mas sobretudo como material fundamental para medirmos o sucesso e a influência de literaturas em contexto estrangeiro. Os periódicos são intermediários importantes no estudo das influências e empréstimos, pois eles “offrent l’avantage de donner au chercheur la température intellectuelle de la période en question, de le mettre au point de vue où l’on se plaçait alors”2 2 “Trazem a vantagem de fornecer ao pesquisador a temperatura intelectual do período em questão, e de colocá-lo sob o mesmo ponto de vista da época”. Trad. nossa. (TIEGHEM, 1931, p. 64). Nesse sentido, o crítico argumenta ainda que, quando se trata de estudar os intermediários das relações literárias, os jornais são de essencial importância, uma vez que “toute étude sérieuse d’influence littéraire doit se fonder entre autres sur l’examen attentif du plus grand nombre possible de journaux littéraires contemporains” e que “aux XIXe et XXe siècles, tout problème de succès et d’influence exige la consultation des principaux quotidiens qui font place aux littératures étrangères” (TIEGHEM, 1931, p. 159-160)3 3 “Qualquer estudo sério de influência literária deve se basear, entre outros, no exame atento do maior número possível de jornais literários contemporâneos” e “nos séculos XIX e XX, qualquer problema de sucesso ou influência exige uma consulta aos principais jornais diários que dão espaço à literatura estrangeira”. Trad. nossa. .

Os jornais seriam, nesse perspectiva, uma porta de entrada para o conhecimento do ambiente em que as interações literárias se perfazem e, nesse sentido, configuram-se como um lugar fértil para a compreensão dos mecanismos, princípios e bases sobre as quais esses contatos se operariam. O objeto-jornal pode, portanto, contribuir significativamente (e o jornal alófono em particular) para uma reflexão sobre a questão dos caminhos teóricos que, sob diversos termos e de diversas formas, propuseram um modelo para a compreensão de processos interacionais, interculturais e interlinguísticos, indo desde o antigo debate em torno da ideia de influência até propostas mais recentes como a de recepção ou de transferência cultural.

No que diz respeito à noção de influência, é preciso salientar que o termo é há muito tempo apontado como problemático, sobretudo no sentido de pressupor em muitos casos uma relação unilateral, unidirecional e hierarquizada dos contatos entre culturas, obras e autores. Não há abertura para uma adoção ingênua desse termo no contexto dos estudos literários contemporâneos, muito menos dos estudos acerca da imprensa em língua estrangeira. Contudo, não podemos deixar de perceber sua inevitável presença na discussão em literatura comparada, como aponta Sandra Nitrini:

Por mais amplo que se desenhe seu campo de estudos, no entanto, e por mais variadas que sejam as opiniões de especialistas sobre o objeto, o método e a finalidade da literatura comparada, uma questão medular congrega todas as discussões em torno do conceito de influência, seja para negá-la, seja para transformá-la, seja para substituí-la por um novo conceito, como o de intertextualidade, seja para renová-la dentro do contexto da teoria da estética da recepção (NITRINI, 2015, p. 125-126NITRINI, S. Literatura Comparada: História, Teoria e Crítica. São Paulo: Edusp, 2015.).

Se os meandros e as negociações desse debate remontam a uma oposição de longa data entre escolas divergentes da literatura comparada - cujos detalhes não cabe aqui explorar4 4 Sobre este assunto, vale consultar o estudo clássico de de Henry Remak, intitulado “Comparative Literature, Its Definition and Function” (REMAK, 1961, p. 3-37). -, parece-nos fundamental, de um ponto de vista mais abstrato, ler os jornais francófonos produzidos no Brasil justamente sob a lente dessas operações citadas por Nitrini (negação, transformação e renovação). Ao observarmos a imprensa francófona brasileira, somos constantemente confrontados com sua vontade, muitas vezes claramente e insistentemente expressa, em interferir e se projetar dentro do campo do discurso midiático brasileiro. Como toda tomada de palavra, mas de maneira particularmente punjente, o discurso da imprensa estrangeira é uma tomada de posição. Ela insere seu dizer na imprensa local através de uma performatização da sua inserção no fluxo discursivo geral. Esse movimento de influxo, que pressupõe pressões, refluxos e correntes, talvez recupere uma imagem líquida que reativa, ao mesmo tempo que amplia e torna mais pertinente, um sentido mais móvel e pertinente para o termo “influência”.

No auge da “civilização do jornal”, Gabriel Tarde, em seu livro L’Opinion et la foule, sustenta que o jornal assume, no seio das interações sociais coletivas no final do século XIX, uma função de corrente, de alteração e ampliação do fluxo dos discursos e pensamentos :

On ne saura, on n’imaginera jamais à quel point le journal a transformé, enrichi à la fois et nivelé, unifié dans l’espace et diversifié dans le temps les conversations des individus, même de ceux qui ne lisent pas de journaux, mais qui, causant avec des lecteurs de journaux, sont forcés de suivre l’ornière de leurs pensées d’emprunt. Il suffit d’une plume pour mettre en mouvement des millions de langues5 5 “Não saberemos, nem seremos capazes de imaginar a que ponto o jornal transformou, enriqueceu e ao mesmo tempo nivelou, unificou no espaço e diversificou no tempo as conversas entre os indivíduos, mesmo daqueles que não leem jornais, mas que, papeando com leitores de jornais, são forçados a seguir a trilha de seus pensamentos emprestados. Basta uma pena para colocar em movimento milhões de línguas”. Trad. nossa. (TARDE, 2003 [1901], p. 40TARDE, G. L’Opinion et la foule. Chicoutimi, UQAC, 2003[1901].).

Se a imprensa brasileira ainda não apresentava plenamente esse potencial de fluxo discursivo entre a segunda metade do século XIX e início do século XX (período coberto pelos jornais abordados neste estudo), o jornal não deixava de se configurar como uma cadeia, um sistema de redes e conexões em fluxo contínuo e permanente. Tratava-se um medium de trocas em que os leitores partilham notícias, textos, e em que se reconhecem no próprio ato de leitura enquanto ritual que lhes permite dar conta das experiências banais e extraordinárias do quotidiano. Essa rede de afluentes que a imprensa forma não é estranha à relação entre imprensa e a ideia de nação, tão preponderante nesse corpus de jornais francófonos. Sylvain Venayre sublinha, no esteio de reflexões hegelianas e do trabalho de Benedict Anderson, que a leitura dos jornais seria uma espécie de “nova prece” que, seja pelo conteúdo que publica, seja pela língua utilizada ou por ser distribuída quase simultaneamente no território nacional - sobretudo a partir da segunda metade do século XIX -, teria capacidade de unificar o território em torno de um novo credo: a identidade nacional (VENAYRE, 2011, p. 1387VENAYRE, S. Identités nationales, altérités culturelles. In: KALIFA, D. et al. (orgs.). La Civilisation du journal. Paris: Nouveau Monde , 2011, p. 1381-1407.).

Nesse sentido, fica claro o quanto a imprensa em língua estrangeira possui um lugar ambíguo no seio desse fluxo. Se, como afirma Jean Caune, a “dimensão etimológica do termo ‘comunicação’ evidencia a ideia de partilha, de comunhão” (2012, p. 35), como pensar a situação comunicativa ligada a um tipo de imprensa intimamente atrelada aos movimentos migratórios internacionais, ao estabelecimento dessas comunidades em um país estrangeiro e a uma heterogenia linguística essencial? Como poderia essa imprensa influir em uma comunhão que não lhe parece, à primeira vista, naturalmente acessível? A comunidade representada e imaginada nesses jornais parece se mostrar fundamentalmente ambivalente. E essa noção de ambivalência aparece como traço definidor desse corpus. Valéria Guimarães aponta que esse tipo de periódico não somente é fruto de uma situação “entre-dois”, ele se apresenta nessa dupla chave: ao mesmo tempo distinto (direcionado a uma comunidade alófona) e próximo (direcionado à comunidade brasileira) do espaço cultural em que se encontra:

Em junho de 1875, o jornal France et Brésil agradecia a acolhida de “tous les Brésiliens instruits, à qui notre idiome est familier; ils [os leitores brasileiros] reconnaîtront que nous sommes animés des sentiments les plus dévoués pour le progrès, le développement et la prospérité de leur pays”.Ora, a despeito de ser um jornal direcionado à comunidade francesa, esse trecho demonstra o quanto seus editores estabeleciam diálogo com brasileiros capazes de ler em seu idioma e colocavam-se como parte da nação, entendendo os franceses aqui residentes como elementos motores da prosperidade local (GUIMARÃES, 2015, p. 89GUIMARÃES, V. Da História Comparada à História Global: Imprensa transnacional e o exemplo do Le Messager de São Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 466, p. 87-120, 2015.).

Os paradoxos desse lugar ambivalente do jornal se anunciavam já na abertura do projeto editorial de France et Brésil. Ao afirmar, em seu primeiro número (2 set. 1874), sua preocupação com o lugar ocupado pela França no cenário internacional, o jornal deixa claro que a vontade de criar um periódico em francês no Brasil surge do desejo de ver a França rivalizar com nações como Inglaterra e Alemanha que, de acordo com o texto, possuíam importantes periódicos produzidos aqui em suas respectivas línguas. Além disso, a própria periodicidade anunciada do jornal - que deveria ser publicado às vésperas da partida dos principais barcos para a Europa - reforça que, ao lado da vontade de falar para a comunidade francófona no Brasil, sobretudo para a “colonie française” carioca, o jornal determina a sincronia de seu ritmo editorial com olhos voltados para a Europa. Ainda assim, esse texto programático se encerra com o anúncio de um desejo no mínimo bipartido: ao lado da defesa da civilização e da cultura francesas, tenta-se assimilar uma vontade de apresentar o Brasil à Europa.Vemos aqui o jornal negociar claramente a sua própria dupla identidade com uma comunidade de leitores em construção.

Essa dupla identidade não se traduz apenas nos textos programáticos desses jornais francófonos, mas também no seio de sua produção literária. A seção “Poésie” do Courrier du Brésil também traz exemplos interessantes dessas negociações e interações constantes entre cultura francófona e cultura brasileira. Parte considerável dos poemas é antecedida de comentários destinados a guiar a leitura em favor de uma interpretação condizente com o teor do jornal. Dessa forma, a presença de versos de temática abolicionista nessa seção, que por si só já ecoaria diretamente o projeto liberal do jornal, torna-se objeto de um paratexto6 6 Adaptamos para o contexto da imprensa periódica o termo de Gérard Genette (1987). cujo objetivo é reforçar esses ecos, como podemos ver nessas linhas que introduzem um poema de Édouard du Rosay:

POÉSIE Nous avons raconté il y a quinze jours une tentative de suicide par une négresse qui s’était jetée à la mer après y avoir lancé son enfant. Nous avons cité les paroles qu’elle prononça lorsqu’après avoir été sauvée elle recouvra l’usage de ses sens. « Je veux mourir, disait-elle, avec mon enfant, plutôt que de le voir esclave comme moi. » En ouvrant un livre de poésies publié à Rio de Janeiro par un de nos compatriotes, M. Edouard du Rosay, nous y trouvons les stances suivantes qui dépeignent les mêmes angoisses et le même amour pour la liberté7 7 “Nós contamos, há quinze dias, a história de uma tentativa de suicidídio por uma negra que se jogou no mar após ter lançado nele sua criança. Nós citamos as palavras que a mulher pronunciou quando, após ter sido salva, recobrou seus sentidos. ‘Antes morrer, dizia ela, com minha criança, do que vê-la se tornar escrava como eu’.Abrindo um livro de poesias publicado no Rio de Janeiro por um de nossos compatriotas, M/ Edouard du Rosay, encontramos as estâncias seguintes que descrevem as mesmas angústias de o mesmo amor pela liberdade”. Trad. nossa. . (Courrier du BrésilCourrier du Brésil. Disponível em: Disponível em: http://bndigital.bn.br/acervo-digital/courrier-du-bresil/709719 . Consultado em 04 nov. 2018.
http://bndigital.bn.br/acervo-digital/co...
, n. 7, 15/2/1857)

Podemos ainda observar esse fenômeno através do caso da crônica. Gênero profundamente híbrido, ao mesmo tempo jornalístico e literário (Ver SOARES, 2014, p. 48-75SOARES, M. A Crônica Brasileira do Século XIX. São Paulo: É Realizações, 2014.), a crônica coloca em cena uma série de procedimentos que retomam e readaptam traços culturais distintos. Em sua “Chronique de partout” publicada no Le Messager de São Paulo em 27 de janeiro de 1906, Eugène Hollender insere procedimentos que revelam justamente essa função do jornal em língua estrangeira como ambíguo mediador cultural. Se o termo “partout” presente no título já sugere uma interação entre diversos espaços, essa crônica será também reveladora das tensões impostas por essa interação multifacetada.

Le rire peut être provoqué par les choses les plus bêtes et en même temps les plus sérieuses, par exemple: la Municipalité vient de taxer de 5.000 Reis toutes les hampes de drapeaux ornant les fenêtres de la ville. Ceci ne fait plus rire mais pouffer (autre terme désignant le rire)8 8 O riso pode ser provocado pelas coisas mais bestas e ao mesmo tempo mais sérias, por exemplo : a municipalidade acaba de taxar em 5.000 réis todas as hastes de bandeiras que ornam as janelas da cidade. Isso não causa mais riso, mas gargalhar (outro termo para designar o riso).Trad. nossa. . (Le Messager de São PauloLe Messager de São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/26367/browse?type=dateissued . Consultado em 04 dez. 2018.
https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handl...
, 27/1/1906).

Ao abordar temas locais e atuais (“la Municipalité vient de taxer de 5.000 Reis”), o autor aponta claramente para uma inserção no contexto brasileiro. Contudo, a pequena explicação entre parênteses sobre a palavra “pouffer” revela que essa inserção deve também passar por certas negociações. Pensando provavelmente no público-leitor brasileiro, o cronista procura amenizar certas opacidades da língua francesa, interferindo na construção e no ritmo da crônica. A crônica tende, nesse exemplo, a se mostrar maleável, capaz de conjugar e moldar, a partir da perspectiva individual do cronista, traços gerais do gênero - como a metalinguagem - ao contexto local. Tais adaptações e remodelagens não fogem certamente a uma visão global em torno desse gênero no mundo midiático francófono, visão segundo a qual

La chronique est probablement le genre le plus malléable de la francophonie, celui qui peut absorber sans difficulté les chocs de la transposition culturelle, tout en donnant lieu à des appropriations singulières, vécues et transmises de manière tout à fait « personnelle » par les journalistes9 9 A crônica é provavelmente o gênero mais maleável da francofonia, aquele que pode absorver sem dificuldades os choques da transposição cultural, ao mesmo tempo em que dá lugar a apropriações singulares, vividas de maneira inteiramente “pessoais” pelos jornalistas. Trad. nossa. (PINSON, 2016, p. 186PINSON, G. La Culture médiatique francophone en Europe et en Amérique du Nord. Québec: PUL, 2016. ).

Hollender menciona ainda em sua crônica a figura do autor francês François Rabelais, trazendo à tona um repertório cultural que ao mesmo tempo o cronista procura reconhecer e promover em seu leitor:

Je termine ici cette pseudo-conférence. Si elle a eu le don de vous égayer, j’en serai enchanté, car le rire, n’est-ce pas le propre de l’homme et ceci a été dit [par] Rabelais, un des plus joyeux écrivains de France, de Navarre et d’autres lieux10 10 Eu encerro aqui essa pseudo-conferência. Se ela teve o dom de vos alegrar, eu ficarei encantado, pois não seria o riso justamentealgo próprio do homem, como disse Rabelais, um dos mais alegres escritores da França, de Navarra e de outros lugares. Trad. nossa. . (Le Messager de São PauloLe Messager de São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/26367/browse?type=dateissued . Consultado em 04 dez. 2018.
https://bibdig.biblioteca.unesp.br/handl...
, 27/1/1906).

O tom de conversa - no esteio da “causerie” francesa - não deixa de ser ele próprio um traço de uma sociabilidade almejada, de uma comunhão projetada sobre o leitor, assumindo a forma de uma mediação que imita um contato direto11 11 A crônica se viu cada vez mais abertamente ligada ao modo da conversa, da causerie (…) Ela está presente para tecer um elo afetivo forte entre o autor e o leitor cujo bom senso é frequentemente elogiado” (THÉRENTY, 2003, p. 633). . Porém, a interação parece ser mais complexa. Se essa proximidade é proposta pelo cronista, ela não deixa de ser problematizada pelo uso do “se”, que instaura um grão de dúvida no seio da comunicabilidade do texto.

Nesse exemplo, vemos que os jornais em língua estrangeira e os fenômenos literários que eles comportam podem colocar em cena uma problemática de aproximação e distinção, lidando com um público multifacetado em uma situação cultural complexa, assumindo uma função social ligada a diversas instâncias: a cultura de origem, a comunidade imigrante, a cultura receptora e a rede cultural midiática (nacional e transnacional) que a cerca.

Essas negociações/interações mostram como, ao tentar se inserir (influir) no contexto brasileiro, a produção em francês sofre ela também os efeitos da corrente em que se insere (se quisermos insistir no risco de uma imagem líquida). Não se trata só de considerar as relações interculturais em uma via de mão dupla em que a obra recebida é reinterpretada pelo contexto receptor. No caso dos jornais francófonos, a literatura, bem como sua apresentação, produção e difusão são modificadas já em sua gênese. Nesse sentido, a ideia de ambivalência proposta por Valéria, parece ser, com efeito, mais pertinente do que a importante noção de transferência, também amplamente utilizada no estudo desses jornais. Enquanto ambivalência pressupõe mais claramente uma forma de sincronia entre os processos de produção e recepção, transferência é um termo que tende a pressupor um processo diacrônico, uma passagem.

Para retomar as palavras de Michel Espagne:

Toda passagem de um objeto cultural de um contexto a um outro tem por consequência uma transformação de seu sentido, uma dinâmica de ressemantização, que só se pode plenamente reconhecer levando-se em conta os vetores históricos da passagem. (…) Transferir, não é transportar, mas metamorfosear, e o termo não se reduz de maneira nenhuma à questão mal circunscrita e banal das trocas culturais. É menos a circulação dos bens culturais e mais a sua reinterpretação que está em jogo (ESPAGNE, 2013, p. 2ESPAGNE, M. La notion de transfert culturel. Revue Sciences/Lettres [En ligne], n. 1, p. 2-9, 2013. Disponível em: Disponível em: http://rsl.revues.org/219 . Consultado em 04 dez. 2018.
http://rsl.revues.org/219...
).

O conceito de transferência permite nesse sentido reequilibrar a hierarquia e o direcionamento essencial da tradicional literatura comparada, bem como uma abordagem mais limitada da ideia de influência. Ao focar na interpretação/reinterpretação, Espagne dá função agencial ao ambiente cultural receptor e mobilidade semântico-estética ao objeto cultural de partida (MEYLAERTS E LOBBES, 2018). Porém, o que a produção da imprensa francófona em ambiente lusófono parece ressaltar é não somente a transferência ou a recepção de um objeto advindo de outra origem cultural/linguística, mas a produção/ engendramento desse objeto dentro desse contexto. Talvez, no seio dessa própria condição de produção resida o verdadeiro questionamento que esse corpus impõe às ideias de influência e tranferência e ao estudo dos contatos culturais. Esses últimos pressupõem algo externo a um contexto que nele acaba por se inserir, enquanto o jornal alófono se mostra constantemente e simultaneamente dentro e fora de contexto.

As relações literárias e culturais que se produzem nessa imprensa são portanto imbricadas, encruzilhadas. Nela, a própria literatura é constantemente vista como instrumento particularmente capaz de cerzir relações culturais, numa rede que, em retorno, puxa o leitor brasileiro para si. “Le brésilien est admirateur de notre langue, il apprécie notre littérature (…) il est pour ainsi dire uni à notre langue dès le berceau jusqu’à la tombe”12 12 O brasileiro é admirador da nossa língua, ele aprecia nossa literatura (…) ele é, por assim dizer, unido a nossa língua desde o berço até a morte. Trad. nossa. , exclama um jornalista do Le Messager de São Paulo (27/1/1906). Tal afirmação assinala e produz uma ligação intrínseca, desde o nascimento (“dès le berceau”), entre o público brasileiro e a cultura francesa, no intuito de atribuir legitimidade ao discurso jornalístico-literário do periódico. Nesse contexto, a evocação da língua e da literatura não é fortuita. O tecido das relações culturais é, ao mesmo tempo, já partilhado e se partilha graças à literatura difundida/produzida no seio do próprio jornal. A existência de um jornal em francês no contexto midiático brasileiro se justifica na encruzilhada dessa ambivalência, e cabe muitas vezes à literatura o papel de construir e legitimar essa identidade sui generis.

Em outras palavras, no seio do campo dos estudos literários preocupados em entender as relações entre produções de culturas/línguas diferentes, um estudo da imprensa francófona pode servir para problematizar não só uma visão mais precisa que identifica agentes e receptores de produções particulares, bem como uma visão mais difusa de uma interação fundamental dos discursos (como a advinda, por exemplo, da ideia de discurso bakhtiniano). Questiona a primeira ao ser não só recebida e relida por um contexto, mas produzida no seio dele. Questiona a segunda ao assumir ativamente também seu papel no diálogo com o contexto em que se insere. Ambivalência significativa, portanto, e com desdobramentos teóricos ainda a serem explorados.

A imprensa francófona parece operar em um regime particular na comunicação literária, regime esse no qual seria preciso considerar não só os eixos essenciais (cultura francófona/cultura brasileira), ou mesmo uma terceira margem desse rio, uma cultura franco-brasileira inerentemente ambivalente. Seria preciso relembrar ainda a interconectividade essencial a esse sistema, os eixos de interação que exploram outras direções. O Le Messager de São Paulo parece, por exemplo, inscrever-se nessa interconexão ao tecer constantes comentários sobre imprensas francófonas não só de outras partes do Brasil, mas também de outros países, como aponta Valéria Guimarães:

[A presença de referências a outros jornais francófonos brasileiros atesta] a existência de uma rede entre esses homens de letras estrangeiros que se encontravam no Brasil e sua visão de missão em difundir não só os interesses franceses, como sua cultura, sendo o impresso periódico uma de suas principais armas. Assim, é também anunciada a recepção de títulos franceses publicados em todo o Brasil, como a revista Spirite (de Porto Alegre, nº 39) ou em outros países, como o jornal franco-grego Le Progrès, de Atenas (nºs 18, 20, 21), além de jornais de línguas diversas, como o ítalo-brasileiro O Tagarela, entre outros jornais e revistas em português (GUIMARÃES, 2015, p. 114GUIMARÃES, V. Da História Comparada à História Global: Imprensa transnacional e o exemplo do Le Messager de São Paulo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 466, p. 87-120, 2015.).

Essa constatação nos revela que há também limites à ideia de uma ambivalência fundamental nesses jornais. Limite que se manifesta justamente quando esse jornalismo assume de maneira mais clara e marcante seu aspecto multivetorial e em rede. Não por acaso, em um contexto mais amplo, tem-se observado, por exemplo, o papel de múltiplos centros importantes no cenário midiático francófono, para além do polo francês, como Canadá, Estados Unidos e México (THÉRENTY; VAILLANT, 2010THÉRENTY, M.-È. ; VAILLANT, A. (orgs.). Presse, nations et mondialisation. Paris: Nouveau Monde , 2010.). Nesse sentido, seria importante também avaliar como esse contato se dá no âmbito do corpus literário da imprensa francófona brasileira, analisando em que medida certos temas, autores, obras e formas circulam de maneira mais difusa nesses jornais que tendem a conhecer-se e a replicar-se mutuamente. Um caso emblemático que pode guiar a investigação em torno de uma circulação não linear e não bilateral de um corpus literário é o da difusão dos Mystères de Paris, de Eugène Sue. Como bem mostram os trabalhos de Thérenty (2013THÉRENTY, M.-È. Mysterymania: Essor et limites de la globalisation culturelle au XIXe siècle. Romantisme, n. 160, p. 53-64, 2013.) e de Pinson (2016, p. 142-157PINSON, G. La Culture médiatique francophone en Europe et en Amérique du Nord. Québec: PUL, 2016. ), tal difusão foi ampla, global, não somente seguindo uma lógica dupla e linearmente polarizada - de leste a oeste, da Europa em direção à América -, mas se refratando através de centros de redistribuição e por reformatações locais que apontam para novos caminhos e novos contatos entre os diversos jornais em língua francesa. No Brasil, um outro exemplo de circuitos alternativos de circulação cultural, para além do eixo França-Brasil, é a publicação do romance Les Misérables de Victor Hugo. Publicado primeiramente na Bélgica em 1862, ele aparecerá nas páginas do Jornal do Commercio antes mesmo de ser publicado na França (MOLINA, 2015, p. 232-292MOLINA, M. História dos jornais no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2015.). Esses “saltos” mostram que é necessário também complementar a preponderância da ambivalência observada aqui, calcada na junção profunda entre local e estrangeiro, para que não sejam negligenciados fenômenos laterais de circulação, que passam por múltiplos focos de distribuição e apontam para um processo plurivalente.

Refletir sobre/com os jornais

Cabe aqui retornar, portanto, à questão do porquê seria importante vislumbrar os desdobramentos teóricos desses objetos multifacetados que são os jornais em francês, e da presença da literatura em suas páginas. A rediscussão de conceitos, noções e debates (mesmo os já ultrapassados) é essencial para o desenvolvimento, em paralelo, de estudos de caso e análises pontuais que acabam por somar a maior parte das contribuições presentes nesse campo de pesquisas. O próprio corpus aqui abordado, apesar de relativamente limitado, propõe um debate em torno da natureza peculiar do jornal francófono no Brasil e do papel da literatura na modelagem dessa natureza. Assim, através de testemunhos do que esses jornais representam e do lugar que eles dão à literatura, eles colocam em jogo uma amplificação dessa discussão para além dos limites específicos de suas respectivas páginas. Se foi uma série de evoluções teóricas que permitiu a entrada da imprensa no rol do objetos de pesquisa legitimados no âmbito dos estudos literários - por meio de uma atenção sobretudo ao mundo dos estudos discursivos, midiáticos, culturais, antropológicos, sociológicos e históricos (LUCA, 2010LUCA, T. R. de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, C. (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p. 111-153.) -, é importante que busquemos extrair desse corpus também o que eles teriam a contribuir para uma releitura ou um afinamento dos instrumentos conceituais que podem auxiliar, em retorno, o estudo desse material.

Ao falarem de literatura e ao imprimirem literatura, os três jornais abordados mostram como a imprensa francófona brasileira pode contribuir para que possamos não só observar, mas reconfigurar nossa forma de compreender e categorizar os processos inerentes ao fazer, receber e circular da literatura na cena midiática do século XIX. Se a imprensa tem estado no centro de discussões importantes no que concerne a uma renovação dos estudos literários e da história literária em particular, foi possível observar que a imprensa alófona é promissora no que diz respeito à possibilidade de reintegrar essas renovações a uma discussão em torno do campo da literatura comparada. Um estudo da literatura nos jornais francófonos brasileiros parece capaz de conduzir a uma constante interrogação acerca das categorias de influência, recepção, trocas e transferências, bem como problematizar o funcionamento dos eixos tradicionais do que se define como comunicação literária, ancorados em planos bidimensionais (como no triângulo, autor obra e público). Da leitura dos jornais francófonos podemos depreender novos eixos, lugares e posicionamentos nos usos da literatura, ao mesmo tempo que observamos tensões particulares no seio mesmo da gênese da literatura híbrida e ambivalente que produzem.

Referências

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Fontes Jornais e revistas

Notas

  • 1
    “A cultura midiática francófona se caracteriza pela circulação, de grande intensidade, de corpus literários (…) a literatura acaba constituindo, para os espaços francófonos, um dos grandes fermentos de sua identidade cultural”. Trad. nossa.
  • 2
    “Trazem a vantagem de fornecer ao pesquisador a temperatura intelectual do período em questão, e de colocá-lo sob o mesmo ponto de vista da época”. Trad. nossa.
  • 3
    “Qualquer estudo sério de influência literária deve se basear, entre outros, no exame atento do maior número possível de jornais literários contemporâneos” e “nos séculos XIX e XX, qualquer problema de sucesso ou influência exige uma consulta aos principais jornais diários que dão espaço à literatura estrangeira”. Trad. nossa.
  • 4
    Sobre este assunto, vale consultar o estudo clássico de de Henry Remak, intitulado “Comparative Literature, Its Definition and Function” (REMAK, 1961REMAK, H. Comparative Literature, Its Definition and Function. In: STALLKNECHT, N.; FRENZ, H. Comparative Literature: Method ans perspective. Carbondale: Southern Illinois University Press, 1961, p. 3-37., p. 3-37).
  • 5
    “Não saberemos, nem seremos capazes de imaginar a que ponto o jornal transformou, enriqueceu e ao mesmo tempo nivelou, unificou no espaço e diversificou no tempo as conversas entre os indivíduos, mesmo daqueles que não leem jornais, mas que, papeando com leitores de jornais, são forçados a seguir a trilha de seus pensamentos emprestados. Basta uma pena para colocar em movimento milhões de línguas”. Trad. nossa.
  • 6
    Adaptamos para o contexto da imprensa periódica o termo de Gérard Genette (1987GENETTE, G. Seuils. Paris: Seuil, 1987.).
  • 7
    “Nós contamos, há quinze dias, a história de uma tentativa de suicidídio por uma negra que se jogou no mar após ter lançado nele sua criança. Nós citamos as palavras que a mulher pronunciou quando, após ter sido salva, recobrou seus sentidos. ‘Antes morrer, dizia ela, com minha criança, do que vê-la se tornar escrava como eu’.Abrindo um livro de poesias publicado no Rio de Janeiro por um de nossos compatriotas, M/ Edouard du Rosay, encontramos as estâncias seguintes que descrevem as mesmas angústias de o mesmo amor pela liberdade”. Trad. nossa.
  • 8
    O riso pode ser provocado pelas coisas mais bestas e ao mesmo tempo mais sérias, por exemplo : a municipalidade acaba de taxar em 5.000 réis todas as hastes de bandeiras que ornam as janelas da cidade. Isso não causa mais riso, mas gargalhar (outro termo para designar o riso).Trad. nossa.
  • 9
    A crônica é provavelmente o gênero mais maleável da francofonia, aquele que pode absorver sem dificuldades os choques da transposição cultural, ao mesmo tempo em que dá lugar a apropriações singulares, vividas de maneira inteiramente “pessoais” pelos jornalistas. Trad. nossa.
  • 10
    Eu encerro aqui essa pseudo-conferência. Se ela teve o dom de vos alegrar, eu ficarei encantado, pois não seria o riso justamentealgo próprio do homem, como disse Rabelais, um dos mais alegres escritores da França, de Navarra e de outros lugares. Trad. nossa.
  • 11
    A crônica se viu cada vez mais abertamente ligada ao modo da conversa, da causerie (…) Ela está presente para tecer um elo afetivo forte entre o autor e o leitor cujo bom senso é frequentemente elogiado” (THÉRENTY, 2003THÉRENTY, M.-È. Pour une histoire littéraire de la presse au XIXe siècle. Revue d’histoire littéraire de la France, n. 3, p. 625-635, 2003., p. 633).
  • 12
    O brasileiro é admirador da nossa língua, ele aprecia nossa literatura (…) ele é, por assim dizer, unido a nossa língua desde o berço até a morte. Trad. nossa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2018
  • Aceito
    25 Mar 2019
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