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“O país onde não se pode mencionar o proletariado”: reflexões de Bertolt Brecht sobre os trabalhadores alemães e o fascismo

“The country where it is forbidden to mention proletariat”: Bertolt Brecht´s ideas on workers and fascism

RESUMO:

O poeta e dramaturgo Bertolt Brecht vivenciou o período de efervescência cultural durante a República de Weimar, interrompido pela ascensão do Partido Nacional Socialista na Alemanha, que determinou a emigração de muitos intelectuais. No exílio desde 1933 até o final da Segunda Guerra, o escritor, familiarizado com a teoria marxista, fez reflexões sobre a classe operária e sua relação com o nazismo em suas peças, seu filme, em sua correspondência pessoal e em seus diários de trabalho. Alguns desses documentos permitem antever sua interpretação dialética da história imediata a partir da perspectiva marxista, no relato dos acontecimentos políticos relacionados à guerra e em sua expectativa quanto à emancipação do proletariado.

Palavras-chave
Literatura; Proletariado; Nazismo

ABSTRACT:

Poet and drama author Bertolt Brecht, lived in a period of cultural effervescence in the Weimar Republic, disrupted by the rise to power of the National Socialist Party in Germany, which determined the emigration of many intellectuals. In exile from 1933 till after the end of the Second World War, the writer made reflections on the state of the working class and its relation to nazism which are at his plays, at his film, his private letters, and at his working journals. Some of these documents allow us to see his dialectical interpretation of immediate history from a Marxist perspective and from the account of political events related both to war as to the emancipation of the proletariat.

Keywords
Literature; proletariat; Nazism

O século XX foi palco de duas guerras mundiais, crises econômicas, deslocamentos populacionais e extermínios que alcançaram repercussão sem precedente em função dos laços de dependência cada vez mais estreitos entre as potências imperialistas e os países e territórios subordinados. Ao lado disso, os progressos científicos e tecnológicos produziram meios de comunicação que difundiram ao nível global as informações e a capacidade de destruição em larga escala, tanto das forças produtivas quanto de seres humanos. Nesse século atravessado por guerras, revoluções e movimentos sociais conduzidos por estadistas, ditadores, partidos e grandes corporações, as massas trabalhadoras foram levadas a participar de conflitos que não eram seus, subsumidas diante do nacionalismo, do fascismo, das guerras coloniais.

Particularmente, a Segunda Guerra Mundial foi um dos episódios mais impactantes - uma guerra de massa que mobilizou populações e ideologias em vários continentes, resultando em cerca de 60 milhões de mortes. A experiência do extermínio judaico revelou que sociedades que reivindicavam padrões civilizados poderiam planejar, organizar e executar, de modo racional e científico, ações bárbaras (ELIAS, 1997ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997., p. 269-270). Esse episódio permaneceu como trauma, em torno do qual se produziram narrativas e uma literatura de testemunho dos sobreviventes. Em meio a genocídios e tragédias anunciadas, os intelectuais tiveram importante papel de denúncia, como porta-vozes e guardiões da memória das vítimas, dedicando-se a entender, como queria Pablo Neruda, a condição dos mais ignorados e os explorados dentre os seus contemporâneos, em todas as épocas e lugares (NERUDA, 1971, p. 35).

O comprometimento com a causa dos “mais ignorados e os explorados” foi central na obra dramatúrgica e poética de Bertolt Brecht (1898-1956), cuja vida correspondeu quase que à primeira metade do século XX. Durante o entreguerras, nos anos que antecederam à Segunda Guerra Mundial, Brecht e outros exilados denunciavam os crimes do nazismo em países da Europa e nos Estados Unidos. Brecht não foi apenas idealizador do teatro épico proletário, mas se qualificou nas discussões internas ao marxismo para dar uma forma à sua arte emancipatória e para compreender o funcionamento do capitalismo e o sentido da política em regimes democráticos. Além disso, quando Hitler e o Partido Nacional-Socialista ascendem ao poder, esse mesmo pensamento crítico, orientado pelo marxismo, permitia-lhe refletir sobre a natureza do fascismo e sobre as razões para a capitulação e adesão do proletariado alemão, um dos mais politizados do período.

Nascido em 1898, na Alemanha, o dramaturgo pertenceu a uma geração denominada por Hannah Arendt de “a primeira das gerações perdidas” (ARENDT, 2008ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 236), em alusão aos que testemunharam os horrores vividos nas trincheiras durante a Grande Guerra, a fome e a gripe espanhola que se seguiram e impactaram por muito tempo a lembrança e o imaginário dos partícipes do conflito. O resultado mais inusitado da Primeira Guerra, a Revolução Russa de outubro de 1917, surpreendeu os próprios revolucionários que não confiavam que o semifeudal e autoritário Império Russo, com uma diminuta classe operária, pudesse reunir as condições para uma revolução socialista. Foi um evento decisivo e influente sob vários aspectos, econômicos e sociais, nos anos subsequentes. A expectativa era de que levantes e revoluções se alastrassem por vários países mais industrializados e de que a revolução assumisse caráter internacional, ensaiada, por exemplo, na Alemanha, em 1918.

Ao contrário de muitos intelectuais à esquerda, Brecht não era devotado a um partido. Por isso, nunca se filiou ao Partido Comunista - nem tampouco a uma ortodoxia -, ainda que tenha assumido o marxismo como visão de mundo nos anos 1920, talvez porque evitasse cerceamento ideológico. Muitos intelectuais participaram do processo revolucionário, muito embora, como adverte Eric Hobsbawm, depois da onda revolucionária de 1917-1920, o marxismo representado pela Internacional Comunista não tenha atraído tanto os intelectuais ocidentais, sobretudo os de origem burguesa. Em realidade, estes foram sendo secundarizados dentro dos partidos comunistas, em detrimento das lideranças de origem operária, e integraram-se a grupos marxistas dissidentes, notadamente trotskistas. O historiador acrescenta que, até a década de 1930, a posição do intelectual “burguês” era muitas vezes anômala e nem sempre tranquila, o que implicou em censura ao trabalho intelectual e conflitos com as direções partidárias. Embora as relações entre artistas, escritores e os partidos comunistas fossem limítrofes, estas se tornaram mais frequentes na década de 1930, para em seguida se ressentirem da emigração política que impactou a vida intelectual da Grã-Bretanha, França e Estados Unidos (HOBSBAWM, 2011HOBSBAWM, Eric. A era do antifascismo: 1929-45. In: HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 239-240).

Bertolt Brecht experimentou a condição de emigrado político, assim como vários de seus amigos e interlocutores durante mais de quinze anos. Ele iniciou a carreira como dramaturgo em Munique nos anos convulsionados do entreguerras, correspondentes à República de Weimar, fundada em 1919. A República, presidida pelo Partido Social-Democrata Alemão (PSDA), negociou os termos do armistício, aceitando o Tratado de Versailles, acordos que colocaram fim à Primeira Guerra Mundial. O PSDA fora um partido de massas, o grande partido operário, majoritariamente marxista, que passou a prescrever, em primeiro plano, a luta por reformas sociais à medida que ocupava espaços institucionais. Contudo, conforme pontuou Stackelberg (2003STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados. Rio de Janeiro: Imago, 2003.), a República foi implantada pela social-democracia contra a esquerda revolucionária, pois o PSDA estabeleceu um governo de colaboração de classes que coordenou as ações de repressão contra os levantes nas ruas de Berlim e em Munique, que incorreram nos assassinatos de milhares de militantes comunistas, como Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo.

Até meados da década de 1920, a República de Weimar teve de enfrentar uma inflação galopante e níveis de desemprego que chegaram ao auge em 1923. Ainda que a economia tivesse apresentado sutil recuperação na segunda metade da década, a conjuntura de crise tornou mais assimilável o discurso antissemita e antimarxista dos nacional-socialistas, que, nas eleições de 1930, tornaram-se o segundo maior partido parlamentar, o que possibilitou a ascensão de Adolf Hitler dentro do sistema democrático.

Em que pese a crise econômica e social, Peter Gay ressalta que Weimar, do ponto de vista intelectual e cultural, correspondeu a um período de grande efusão, criatividade e experimentalismo que passou a simbolizar toda a heterodoxia das manifestações culturais das vanguardas e do modernismo surgidas na primeira década do século (GAY, 1978GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 12). O período representou um ideal de “época de ouro” da cultura, tanto no ensino universitário, quanto nas artes, o qual foi favorecido pelo emprego de influentes intelectuais.

Berlim, em especial, possuía uma vida cultural e noturna agitada. Além das salas de concerto, danças, confeitarias, havia os teatros e as salas de cinema que exibiam filmes expressionistas alemães, filmes americanos ou soviéticos. Brecht estabeleceu-se em Berlim, deixando Munique em 1924. Os sentimentos em relação à cidade grande eram ambíguos. Ela o fascinava, ao mesmo tempo em que provocava repulsa. Não à toa, dedicou ao tema várias peças que tinham como cenário preferencial cidades americanas, como Chicago, para onde convergiam todos os vícios do capitalismo. A Berlim do pós-guerra era notória pela criminalidade, ligada à proliferação de gangues e de atividades ilegais, incluindo vício e prostituição, a tal ponto que o dramaturgo a denominou em sua correspondência de “a fria Chicago” (BRECHT, 1990BRECHT, Bertolt. Letters 1913-1956. London: Methuen, 1990., p. 14).

Mas a cidade de Munique, capital do Estado da Baviera, onde Brecht cursou a faculdade de Medicina a partir de 1917, não era menos sujeita a sobressaltos. Foi palco da primeira revolução soviética na Alemanha, que se irradiou por toda a província, com a formação de conselhos de operários e soldados liderados pelo jornalista Kurt Eisner, membro dos social-democratas independentes (USPD). Muito popular entre os operários e apoiado pelos intelectuais, Eisner acabou assassinado. A república foi severamente reprimida pela contrarrevolução, com centenas de pessoas fuziladas e intelectuais encarcerados, como o dramaturgo Ernst Toller. Munique também tinha uma tradição separatista forte, antissemitismo arraigado, e foi berço do Partido Nacional Socialista (LOUREIRO, 2005LOUREIRO, Isabel. A Revolução alemã. São Paulo: Unesp, 2005., p. 86-95). Em Augsburg, terra natal de Brecht, centro da indústria têxtil, os conselhos foram praticamente governo, e o poeta teve discreta participação no comitê revolucionário, enquanto trabalhava como enfermeiro em um hospital (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 48-52).

Além da intensa luta política, no início da década de 1920, Munique era uma cidade de intensa vida cultural, ponto de encontro das mais avançadas figuras artísticas e literárias da Alemanha, pintores, poetas, dramaturgos, jornalistas, romancistas como os irmãos Heinrich e Thomas Mann e o poeta Frank Wedekind, tão admirado por Brecht. Possuía cafés, teatros, óperas, exposições de arte, cabarés políticos nos quais poetas recitavam versos. Contudo, Berlim possuía mais teatros - um total de 32. Lá viviam dramaturgos e diretores modernistas e experimentais (Max Reinhardt, Leopold Jessner, Erwin Piscator), críticos influentes, atores e atrizes celebrados, que conjugavam esforços para atualizar a cena dramática alemã. As companhias de teatro russo se apresentavam, faziam teatro de rua, trabalhadores organizavam grupos teatrais - constituindo o movimento do agitprop, que totalizou 300 grupos com cerca de quatro mil integrantes.

Em comum com os diretores de vanguarda, Brecht possuía a vontade de romper com modelos precedentes, com o intuito de realizar a crítica ao militarismo, ao individualismo burguês e ao capitalismo (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 85). Quando chegou a Berlim, possuía duas peças escritas - Baal (1918) e Tambores na noite (1919) - e era crítico de teatro, além de revisor e leitor teatral na Kammerspiele em Munique. Tambores na noite, peça sobre um soldado que retorna da guerra em meio à revolução dos espartaquistas, estreou com sucesso de crítica em um teatro em Munique, e só depois, em 1922, em Berlim, no Deutsches Theater, uma produção que não o agradou, mas que lhe rendeu o prêmio Kleist.

Em Berlim, trabalhava como leitor de textos no Deutsches Theater, de Max Reinhardt, onde encenou também Na selva das cidades, em 1923, e começou a colaborar com o Preussisches Staatstheater, considerado o estabelecimento mais representativo do teatro alemão, administrado pelo diretor expressionista Leopold Jessner1 1 Leopold Jessner era um judeu alemão e socialista, diretor de cinema e teatro. Quando da ascensão de Adolf Hitler, ele emigrou para os Estados Unidos, onde faleceu em 1945. (BRECHT, 1990BRECHT, Bertolt. Letters 1913-1956. London: Methuen, 1990., p. 10). As peças que escrevia e produzia inspiravam polêmicas e se tornavam populares. Ele se envolveu em muitos projetos, inclusive cinematográficos, com vários colaboradores, sendo um deles Elisabeth Hauptmann, coautora de Ópera dos três vinténs (1928). Este, com música de Kurt Weill, foi o grande sucesso que estreou no recém-aberto Theater am Schiffbauerdamm, em Berlim, baseando-se na Ópera do mendigo, de John Gay (1728). A peça ficou uma longa temporada em cartaz. A recepção da crítica ficou dividida entre elogios e acusações de plágio (ECKART; GILMAN, 1996ECKART, Wolf von; GILMAN, Sander L. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996., p. 88). A direita política condenava a obra por considerá-la “bolchevismo consciente de classe” e “loucura bolchevique” (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 158).

Desde que se iniciou como crítico literário, Brecht reclamava da imprescindibilidade de se fazer comédia política que instigasse à reflexão (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 78). Chegou a declarar em entrevista ao jornal Vossiche Zeitung que o teatro estava morto, aludindo à peça clássica Herodes und Mariamne, posto que não tinha mais significado para a nova geração2 2 Carta de Brecht a Leopold Jessner, Berlim, 10 de abril de 1926. (BRECHT, 1990BRECHT, Bertolt. Letters 1913-1956. London: Methuen, 1990., p. 102-103). A nova geração estaria interessada em um novo teatro, gestado naqueles anos de 1925 e 1926. Entendia que, além de ter efeito agradável, o teatro didático deveria, acima de tudo, conscientizar. Cada reformulação das peças iniciais e cada projeto que ia concretizando significaram a tentativa de aproximação da forma do teatro proletário. Depois de Ópera dos três vinténs, encenou Santa Joana dos Matadouros (1929), peça em que se constata o abandono do teatro experimental burguês e a aproximação da proposta de um teatro da classe trabalhadora (WILLIAMS, 2011WILLIAMS, Raymond. Política do modernismo: contra os novos conformistas. São Paulo: Editora Unesp, 2011., p. 8). Realiza a crítica à (falta de) ética do sistema capitalista, ao escrever Ascensão e queda da cidade de Mahagonny (1930), também em parceria com Kurt Weill. O enredo descreve uma cidade criada do dia para a noite, próxima a uma zona mineradora que possuía muitos divertimentos para os mineiros enriquecidos, e onde tudo seria permitido desde que tivessem dinheiro para pagar. O personagem principal é condenado à morte porque nem sua amante, nem seu amigo prontificaram-se a pagar sua dívida de três garrafas de uísque.

Nesses anos, o escritor procurava adequar seu objetivo a uma forma ideal para suas peças e trava um encontro definitivo com Marx em 1926. Em suas notas autobiográficas de 1935, ele recorda:

Quando já havia tempo que era um escritor conhecido, não sabia nada de política nem havia visto nunca um livro ou um ensaio de Marx ou sobre Marx. Já havia escrito quatro dramas e uma ópera que foram representadas em muitos teatros, havia obtido prêmios literários, e nas encostas que sondavam a opinião de intelectuais progressistas podia ler-se, em resumo, também a minha obra. Mas não entendia o ABC da política nem estava melhor informado sobre o funcionamento dos assuntos públicos do meu país do que qualquer camponês em uma fazenda no meio do deserto (BRECHT, 1980BRECHT, Bertolt. Diários 1920-1922. Notas autobiográficas 1920-1954. Barcelona: Editorial Crítica, 1980., p. 195).

Nessa nota escrita no exílio, Brecht faz um julgamento retrospectivo da fase de sua vida em que já era reconhecido como intelectual na cena teatral alemã, antes de realizar estudos teóricos do marxismo. Exageros à parte, considerava que entendia muito pouco de política e que nunca ultrapassou uma crítica niilista da sociedade burguesa. Ele narra em que circunstâncias empreendeu os estudos sobre Marx: por uma espécie de “acidente de trabalho”, o pensador “veio a seu auxílio” quando estudava sobre a bolsa de Chicago tendo em vista o pano de fundo de uma peça que estava escrevendo e que nunca foi terminada (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 144). Recorrendo a economistas e operadores da bolsa, o poeta não chegou a qualquer explicação racional sobre como a distribuição de trigo se dava, a não ser que esta parecia racional exclusivamente para um pequeno grupo de especuladores. Ele observa sobre a sua leitura da obra marxiana: “Só então me pus a lê-lo e só então ganharam vida real minhas impressões e experiências práticas dispersas” (BRECHT, 1980BRECHT, Bertolt. Diários 1920-1922. Notas autobiográficas 1920-1954. Barcelona: Editorial Crítica, 1980., p. 196).

Nessa ocasião, deu início a estudos sérios de ciência política e economia; mergulhou na leitura de O capital; frequentou cursos de marxismo na Karl Marx Arbeiterschule e na escola marxista dos trabalhadores Johann Schmidt-Radvanyi, comparecendo a conferências e conversas com Karl Korsch, a ponto de a leitura dos clássicos do marxismo começar a aparecer em suas teorizações. Em uma passagem, ele explica a importância do fundador do materialismo histórico em seu pensamento:

Lendo O capital de Karl Marx, compreendi meus sonhos. Pode-se ver que eu queria um público mais vasto para esse livro. Não descobri subitamente ter escrito toda uma coleção de dramas marxistas sem conhecê-lo, mas Marx foi o único público com que me deparei em meus dramas. Um homem com os seus interesses estaria interessado em tais peças. Não porque são brilhantes, mas porque ele era (BRECHT apud ECKART, 1996ECKART, Wolf von; GILMAN, Sander L. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996., p. 88).

O jovem Brecht encontrou em Marx seu espectador ideal. A teoria marxista foi mais influente nas suas teorias estéticas, segundo o próprio dramaturgo nos informa, do que o teatro experimental de Erwin Piscator,3 3 Erwin Piscator (1893-1966) foi ator, diretor teatral e idealizador do teatro épico, que prescrevia que a arte dramática deveria ser política, levando ao público uma “mensagem”. Na execução de seus projetos, a ação principal da peça era interrompida por recursos narrativos e explicativos, como projeção de filmes, cinejornais, utilizando também efeitos de luz, autofalantes, sirenes, múltiplos cenários, dispositivos mecânicos. idealizador do teatro épico ou do que o teatro russo das agitprop que proliferaram na Alemanha no período (BRECHT, 1980BRECHT, Bertolt. Diários 1920-1922. Notas autobiográficas 1920-1954. Barcelona: Editorial Crítica, 1980., p. 195). Através de suas peças, pensava conseguir explicar a ascensão do capitalismo e se convenceu de que as formas dramáticas correntes não eram adequadas para refletir os processos modernos, como a distribuição do trigo ou o modo de vida atual.

O dramaturgo retoma a formulação de E. Piscator sobre o teatro épico para expor a realidade segundo a experiência dos trabalhadores, a partir da ideia de que a democratização da arte passa pela transformação dos trabalhadores iniciados nela. Trata-se de um novo teatro para um novo tipo de homem (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 148). O teatro didático objetiva lançar os espectadores à discussão, evitando que exista identificação sentimental com os personagens em cena, provocando reações, tornando-os partícipes do processo dramático. Brecht explica sua técnica em seu Estudos sobre teatro:

O espectador do teatro dramático diz - Sim, eu também já senti isso - Eu sou assim - O sofrimento deste homem comove-me pois é irremediável. É UMA COISA NATURAL - Será sempre assim - Isto é que é arte! Tudo ali é evidente - Choro com os que choram e rio com os que riem.

O espectador do teatro épico diz: - Isso é que eu nunca pensaria - Não é assim que se deve fazer - Que coisa extraordinária, quase inacreditável - isto tem que acabar - O sofrimento deste homem seria remediável - Isto é que é arte! Nada ali é evidente - Rio de quem chora e choro com os que riem (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 66-67).

Ao invés de promover a identificação do espectador, o teatro épico provoca o distanciamento necessário para produção da crítica. Seu objetivo é levá-lo a perceber o mundo criado pelos homens, sem subestimar sua inteligência, mostrando que aquele também pode ser transformado por estes. Para o poeta, teatro é estudo, leva à observação; porém, é igualmente divertimento, função da qual ele não pode abrir mão (KONDER, 2013KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências da estética marxista. 2.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013., p. 122-123).

Walter Benjamin, amigo e interlocutor de Brecht, via em seu teatro épico, que para ele teria se iniciado com a peça Um homem é um homem (1926), “o verdadeiro teatro do nosso tempo”, a grande possibilidade de transformação através da arte, através de uma arte pedagógica que não perdesse de vista a qualidade literária. O teatro épico, para ele, consistia no melhor exemplo de transformação de consumidores de arte e bens culturais em produtores, em colaboradores. Não se trata apenas de veicular mensagens revolucionárias através de velhos formatos e aparelhos, permanecendo seus autores concorrentes dos novos veículos de difusão, rádio, cinema. No lugar de concorrer com tais veículos, o produtor deveria procurar aplicar sua técnica e aprender com eles. Seu êxito se devia à renúncia às ações complexas em cena, modificando a relação funcional entre o palco e o público, entre o texto e a representação, entre o diretor e os atores. Nesse sentido, não se propunha a desenvolver ações, mas a representar as condições que são descobertas apenas ao final do espetáculo. Tais ações no teatro épico são interrompidas através das canções, com efeito similar ao procedimento da montagem no cinema. A interrupção da ação combate a ilusão por parte do espectador, explica Benjamin, “não se destina a provocar uma excitação, e sim a exercer uma função organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o espectador a tomar uma posição quanto à ação, e o ator a tomar uma posição quanto a seu papel” (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, W. Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: ___. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. v. I. 7.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 78-90., p. 131-136).

Benjamin argumentava que o produtor deveria refletir sobre sua posição no processo produtivo e promover a socialização dos meios de produção intelectual, vislumbrando caminhos para organizar os trabalhadores no processo produtivo (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, W. Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: ___. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. v. I. 7.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p. 78-90., p. 131-136). No teatro épico, a própria disposição do espaço concorria para essa socialização: o palco havia virado uma tribuna, desaparecendo a separação entre o palco e o espectador. Para seu público, o palco é como uma sala de exposições, disposta num ângulo favorável. Perante o palco, o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, mas sim uma assembleia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer. O texto não é mais o fundamento para a representação, torna-se, como no expressionismo, mais um elemento da encenação, um roteiro de trabalho, no qual se registram as reformulações necessárias para seus atores. Cresce assim a importância do gestual, pois é ele que faz o contraste com as ações. O diretor não transmite mais instruções visando à obtenção de efeitos, mas expõe teses em função das quais eles são chamados a tomar posição. Para ele, o ator não é mais um artista mímico que incorpora um papel, mas sim um funcionário que precisa inventariá-lo (BENJAMIN, 1994, p. 79).

Assim, as novas descobertas teatrais que estavam se processando no final dos anos 1920 - que não são apenas impactadas pelo materialismo histórico, mas atuam de forma recíproca, portando consequências sobre ele - tiveram seu percurso interrompido pela ascensão no nazismo, que já existia como força política desde o final da primeira década do século e se afirmou em decorrência dos efeitos devastadores da crise de 1929, a qual trouxe de volta o fantasma da inflação e do desemprego. Existia meio milhão de desempregados em Berlim, em 1929. A crise atingiu também o meio teatral, que dependia em larga escala da subvenção do governo, mas também o conjunto da classe trabalhadora. O empobrecimento dessa classe, o descrédito do Partido Social-Democrata, o revanchismo de guerra e o contexto de crescimento do KDP, de um lado, assim como do Nacional Socialismo, por outro, criou o clima favorável para a ascensão de uma liderança autoritária que se apresentava como acima das classes sociais.

Quando Adolf Hitler e o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães chegam ao poder em 1933, inicia-se o movimento para a construção de uma comunidade nacional harmônica e homogênea, purificada dos elementos indesejáveis - judeu e marxista -, cuja designação era Gleichschaltung. Para tanto, a cúpula do novo regime assumiu uma tarefa de moldar a vida social, a fim de promover uma reforma cultural de modo a produzir o “novo homem” alemão, interrompendo o processo de “decadência” que se instaurara através das ideias consideradas subversivas e da degeneração física do povo.

Começariam a tarefa por “sanear” o serviço público, as universidades, academias e institutos de pesquisa, exonerando judeus, ex-comunistas e democratas sociais, amparando-se na lei de abril de 1933. As escolas, onde se formaria a nova juventude de Hitler, passaram dos governos provinciais ao controle do Ministério de Ciência, Educação e Cultura do Reich, conduzido por Bernardo Rust. Os alunos de origem não ariana, em pouco tempo, perderiam o direito de frequentar esses estabelecimentos. Os professores estavam sujeitos às cláusulas antissemitas e deveriam se filiar à Liga Nacional Socialista de professores, conforme os princípios corporativistas do nazifascismo. Os que criticassem o partido seriam demitidos ou enviados aos campos de trabalho forçado.

A cúpula do Terceiro Reich empreendeu um programa de destruição da arte de vanguarda, associada à República de Weimar, condenada por muitos conservadores nos anos 1920 como representativa do predomínio do “niilismo”, do “bolchevismo cultural” e sintoma do declínio dos padrões tradicionais. Consideravam que a arte moderna possuía uma “visão distorcida” da realidade, contaminada pelo esquerdismo judaico, e que os artistas de vanguarda eram mentalmente incompetentes e transtornados. Em oposição, a arte ariana constituía o ideal estético de ordem, beleza, patriotismo e elevação moral a ser cultivado. O teatro, enquanto modalidade artística apreciada por todas as classes, dispunha de um largo alcance e apelo sobre o público. Aquele que era tido como orgulho nacional sofreu igualmente um grande baque com a demissão de diretores, produtores e atores malvistos pelos dirigentes do Reich - alguns foram assassinados, outros, como Max Reinhardt e Erwin Piscator, ambos de origem judaica, emigraram e se estabeleceram na América.

Teatro e literatura perderam alguns de seus grandes representantes contemporâneos. Muitos escritores judeus e/ou de esquerda perderam seus empregos e foram expulsos da Alemanha, muitos expatriados. Toda a vida intelectual e científica, de modo geral, sofreu com os expurgos e com a incineração de cerca de 20 mil livros de bibliotecas universitárias, destinados a demonstrar a rejeição da nova Alemanha à cultura intelectual “subversiva” e “degenerada” da era de Weimar (STACKELBERG, 2003STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados. Rio de Janeiro: Imago, 2003., p. 152). Autores como Bertolt Brecht, Lion Feuchtwanger e Alfred Kerr adequavam-se a todos os critérios que determinavam a condenação de suas obras como respectivamente não-arianas, marxistas e/ou judias - apesar de Brecht não ser judeu.

Como milhares de outros, o dramaturgo buscou o caminho do exílio e tornou-se um expatriado, como decorrência da perda da cidadania alemã, retirada na quarta lista que o Reich divulgou de pessoas indignas de portar a nacionalidade.4 4 No total, foram 80 listas e 40 mil pessoas, que não incluía judeus deportados. Ver: 1935: Nazistas retiram a cidadania alemã de escritores e oposicionistas. Deutsche Welle Notícias. Disponível em: <http://www.dw.de/1935-nazistas-retiram-a-cidadania-alemã-de-escritor>. Ele já percebera o prenúncio de tempos sombrios desde há muito tempo, mas com a impossibilidade de escrever e encenar peças sob o novo regime, deixou a Alemanha em 1933, mudando-se temporariamente para Praga, Viena, Zurique, Paris e finalmente para a Dinamarca, onde residiu com a família em uma casa em Svendborg, na ilha de Fünen. Quando a neutralidade dinamarquesa foi suspensa pela ocupação alemã, passou à Suécia; em seguida, à Finlândia e depois aos Estados Unidos, em 1941, logo que Hitler invadiu a Escandinávia.

No exílio, as oportunidades diminuíram, os melhores diretores e atores estavam espalhados por vários países. Surge a necessidade de contar com boas traduções e com subvenções de associações e de amigos para encenar peças e sobreviver. Brecht contactava diretores e atores refugiados, em Paris, em Zurique, nos Estados Unidos, para poder encenar peças e constituir uma rede de solidariedade no exterior, na qual poucos queriam saber a respeito da violência que se implantara com o fechamento do Reichstag. Por isso, militantes, mas também intelectuais progressistas ou de esquerda, eram particularmente visados pelas autoridades do Reich, porque usavam seu prestígio e sua arte para denunciar ao mundo o que se passava na Alemanha.

Brecht acreditava, desde o final dos anos 1920, em uma frente ampla de forças progressistas contra o fascismo. Defendeu essa “Frente Vermelha” no poema “Quando o fascismo se tornava cada vez mais forte” (1926-1933):

Pela nossa Berlim vermelha andavam em pequenos grupos / Nazistas em novos uniformes, abatendo / Nossos camaradas. / Mas caiu gente nossa e gente da bandeira do Reich / Então dissemos aos camaradas do SPD: / Devemos aceitar que matem nossos camaradas? / Lutem conosco numa união antifascista! (BRECHT, 2000BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 95).

O poeta previa que, diante da recusa dos líderes social-democratas em integrar a frente unida, por não pretender “usar o terror vermelho contra o branco”, estes acabariam por aceitar os nazistas. Enquanto isso, constatava que crescia “a vontade de lutar dos proletários” e também de alguns social-democratas que, desobedecendo a seus líderes, saudavam a frente unida vermelha (BRECHT, 2000BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 95).

Leandro Konder afirma que Brecht apoiava a União Soviética e o Partido Bolchevique, pois confiava no papel histórico do Estado leninista e na luta dos comunistas contra o nazifascismo (KONDER, 1996KONDER, Leandro. A poesia de Brecht e a história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996., p. 60). Entretanto, constatamos que, apesar de reconhecer que existiam lá elementos substanciais de natureza socialista, Brecht acreditava que estes não agiam de modo uniforme (BRECHT, 2002BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1938-1941. v. 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2002., p. 58). Não era aceitável reduzir o socialismo a tudo o que a URSS fazia; de fato, ela ainda estaria a meio caminho desse sistema econômico em decorrência do não desenvolvimento integral das forças produtivas e da permanência de lutas de classes que criam nova aparelhagem estatal (BRECHT, 2002, p. 53, 58). Além disso, Brecht nutria dúvidas a respeito do marxismo oficial, avivadas pelas notícias sobre os expurgos de militantes acusados de trotskismo, inclusive de seu amigo Sergei Tretyalov, dramaturgo soviético executado em 1937 (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 319).

Para aqueles que defenderam uma frente antifascista, o pacto de não agressão, firmado entre Stálin e Hitler em 1939, tomou militantes e simpatizantes da causa operária de surpresa, provocando grande desconforto geral. Em decorrência disso, o escritor reflete em seu Diário de trabalho, ao longo de muitos meses, acerca das razões e consequências dessa aliança incomum, entre comunistas e fascistas. Em setembro de 1939, ele considerava que o pacto “clareava as coisas”, no sentido de que ficava patente que o que havia era uma guerra entre Estados imperialistas e países capitalistas beligerantes, e não entre povos (BRECHT, 2002BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1938-1941. v. 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2002., p. 40). Ao mesmo tempo, colocava-se a possibilidade de exportar o sistema econômico socialista para a aliada capitalista, mediante a colaboração do governo socialista com os trabalhadores alemães em guerra contra as nações capitalistas europeias (BRECHT, 2002, p. 51). No entanto, o dramaturgo admitia que o pacto russo-germânico causara muita confusão entre o proletariado em toda a parte (BRECHT, 2002, p. 41). Ele especulava que talvez Stálin temesse ficar isolado na resistência à ocupação da Polônia e que não tivesse condições de entrar em uma guerra. O fato era que o Estado Soviético corria o risco de receber o terrível estigma de ter auxiliado o fascismo - o elemento mais feroz do capitalismo e mais hostil aos trabalhadores - ou, para salvar-se, de abandonar o proletariado sem solução ou esperança (BRECHT, 2002, p. 41-42).

No exílio, Brecht editou e colaborou com jornais antifascistas e literários, como o Das Wort. Dava palestras para associações teatrais de proletários e estudantes, bem como comparecia a reuniões de mobilização contra a guerra - como o Congresso Internacional de Escritores em Paris, em julho de 1937, onde discursou, afirmando que, enquanto os trabalhadores alemães não recebiam mais manteiga para comer, os espanhóis recebiam bombas (L’HUMANITÉ, 1937L’HUMANITÉ, Organe du Parti Communiste. Hier Soir au deuxième séance du Congress International des écrivains à Paris.18-7-1937, Paris, n 14.092, 1937., p. 2). Com essa preocupação voltada para a Guerra Civil Espanhola, ele tratou de viabilizar a encenação, entre 1937 e 1938, da peça Os fuzis da senhora Carrar, que se situa durante a ofensiva franquista, e também de um conjunto de cenas curtas, de dez minutos, sobre a repressão à resistência cotidiana na Alemanha de Hitler. Durante o exílio, o dramaturgo vinha declamando poemas de resistência no rádio ou os contrabandeando para dentro da Alemanha. No poema “Canção do pintor Hitler”, ele ironiza o líder nazista chamando-o de “o pintor de paredes” que quer pintar a nova casa alemã, mas apenas tapa os buracos, falhas e fendas. Assim, quando a chuva molha a tinta, revela-se a “merda” toda em baixo5 5 Além disso, redigiu peças que continham críticas ao Nacional Socialismo e a Hitler, como Os cabeças redondas e os cabeças pontudas (1932-1933), e, mais tarde, A resistível ascensão de Arturo Ui (1941). (BRECHT, 2000BRECHT, Bertolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2000., p. 110).

Em Svendborg, escrevia os capítulos de um romance satírico sobre o ditador Júlio César, protótipo de todos os ditadores, ao qual daria o nome de Die Geschäfte des Herrn Julius Caesar (Os negócios do sr. Júlio César) (BRECHT, 1990BRECHT, Bertolt. Letters 1913-1956. London: Methuen, 1990., p. 278-279). Conforme informava a American Guild for German Cultural Freedom, a peça não era uma biografia dissimulada de Mussolini ou Hitler; demandava muita pesquisa histórica, já que lidava com a fundação do império e o estabelecimento da ditadura (BRECHT, 1990, p. 292). Seu propósito era não apenas informar o leitor sobre as guerras e a democracia, mas também fornecer um retrato da persistência da escravidão e aprisionamento geral de todos os setores da sociedade sob a ditadura totalitária.

O projeto ao qual se dedicou com afinco e que representava uma maneira de expor os crimes do nazismo era composto de peças curtas, escritas entre 1935 e 1938, no exílio dinamarquês. Independente da crença no marxismo e simpatia para com o comunismo internacional, nos anos que antecederam a guerra havia uma causa urgente que unia os intelectuais refugiados: a denúncia acerca de Hitler e de sua política interna. O Führer tinha simpatizantes e admiradores em todas as partes do mundo, não apenas entre as comunidades de origem alemã. Muitos países tidos como democráticos permaneciam indiferentes ao rearmamento, à política antissemita e ao expansionismo nazifascista para fazer face a um possível fortalecimento do comunismo.

Brecht explicava sua posição política em uma nota autobiográfica de 1941:

Nunca pertenceu a um Partido político e agora tampouco pertence. Contra os nazistas já tinha publicado poemas e escreveu uma peça: Terror e miséria do Terceiro Reich, que ilustra em 27 cenas independentes e ambientadas em casas, hospitais, salas de audiência, campos de concentração, escolas, fábricas, quartéis, etc. a falta de liberdade de quase todas as camadas do povo alemão sob a ditadura (BRECHT, 1980BRECHT, Bertolt. Diários 1920-1922. Notas autobiográficas 1920-1954. Barcelona: Editorial Crítica, 1980., p. 202).

A peça mencionada na nota, Terror e miséria no Terceiro Reich (Furcht und Elend des Dritten Reiches), destaca-se por situar-se abertamente na Alemanha sob o regime nazista, encorajando a empatia dos espectadores para com as tragédias do cotidiano e considerando que elas eram familiares ao público de intelectuais e émigrés. Diferia da linha do teatro épico, que procurava produzir o efeito do estranhamento, apelava para a historicidade e transferia a narrativa para outros contextos espaciais diversos dos vivenciados pelos espectadores. O dramaturgo trabalhou com recortes de jornal, fotos e reportagens de rádio para fazer, em parceria com Margarete Steffin, amante e colaboradora, sketches curtos, transformados em incidentes dramáticos e reais, os quais visavam diretamente aos emigrados (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 300) e foram encenados em vários países, antes da declaração de guerra. Terror e miséria no Terceiro Reich chegou a ter 27 cenas, pois foram escritas em diferentes momentos e algumas foram cortadas para serem reunidas e publicadas em 1945 com seu título definitivo.6 6 Em 1996, outras cinco cenas não publicadas foram encontradas, perfazendo um total de 30 cenas. Brecht e seus diretores selecionaram as cenas que seriam representadas em várias cidades fora da Alemanha, primeiramente em Paris, Londres, Estocolmo e em Nova York, em 1945. Após o fim da guerra, deu-se a estreia em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

Na noite de 21 e 22 de maio de 1938, oito sketches foram apresentados na Salle d’Iena, em Paris, sob o título de 99%, que aludia ao resultado do plebiscito que Hitler impôs para a aprovação do Anschluss7 7 A Anschluss retirava a autonomia da Áustria e a tornava departamento da Alemanha. no mês de abril daquele ano, título que Brecht hesitou em aceitar por considerar inadequado. Talvez sua insatisfação se explique pelo fato de que 99% traduz uma situação de consenso, mais do que de coerção, resultado desejado por Hitler, que se utilizou amplamente dos plebiscitos para legitimar sua política racista e anticomunista.

O dramaturgo escolheu Slatam Dudow8 8 Slatam Dudow foi um diretor búlgaro, marxista, membro do Partido Comunista alemão. Ele preso em um campo de concentração e extraditado pelos nazistas logo que chegaram ao poder, em 1933. para dirigir a peça, com música de Paul Dessau e com a atuação da sua própria esposa, a atriz judia Helene Weigel, que também representou em Os fuzis da senhora Carrar. Dudow dirigira em 1931 o filme Kuhle Wampe (A quem pertence o mundo?), escrito por Brecht e Ernst Ottwlat, com música de Hanns Eisler, primeiro filme alemão marxista, censurado como potencialmente perigoso no ano seguinte (ECKART; GILMAN, 1996ECKART, Wolf von; GILMAN, Sander L. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996., p. 103). Nesse filme, os autores narram a situação dos trabalhadores em meio ao desemprego crescente. As cenas iniciais mostram manchetes de jornal noticiando acontecimentos políticos e ascensão do desemprego entre os jovens que atingia cinco milhões de pessoas - 350 mil desempregados apenas em Berlim, 100 mil deles sem assistência. Mostravam em seguida uma cena com jovens que procuram emprego percorrendo freneticamente a cidade em bicicletas, mas sempre retornando para casa de mãos vazias. Um deles, irmão de Anni, a protagonista, humilhado cotidianamente pelo pai, suicida-se ao se lançar da janela do apartamento que a família aluga.

No filme, Brecht introduz informações sobre a situação social do proletariado no mundo capitalista, como forma de incitar os trabalhadores alemães. Em uma cena, o pai do rapaz suicida dialoga com um companheiro no bar; menciona os sete milhões de desempregados na América, os quais, ao invés de ir de carro ao trabalho como antes, manifestam-se contra o desemprego a pé. No início da década de 1930, nos Estados Unidos, os efeitos do crash da Bolsa de Nova York e da depressão sobre a economia produziram várias manifestações que pressionavam por reformas e pela assistência social, medidas que, mais tarde, foram encampadas por Franklin Delano Roosevelt. As medidas do presidente não faziam parte de seu programa de governo, mas foram consequência dos levantes e das “marchas da fome” protagonizados por desempregados e dos quais participavam comunistas que, em janeiro de 1931, foram reprimidos pela polícia em muitas importantes cidades americanas.

A família de Anni é obrigada a abandonar o apartamento por falta de pagamento, indo morar em Kuhle Wampe, um camping de tendas no meio da floresta, próxima ao lago, a uma hora de Berlim, financiado por um clube da burguesia, onde moravam centenas de famílias sem-teto. Após uma desavença entre Anni e seu namorado Fritz, ela deixa o acampamento. Porém, os dois se reencontram e se reconciliam em uma competição esportiva onde as pessoas marcham, nadam, remam e a multidão reunida canta em coral uma canção composta por Brecht, cujo refrão é: “Pra frente, pra frente sem esquecer onde está sua força / Passando fome e comendo / Pra frente sem esquecer nossa solidariedade”.

A cena final, que o próprio Brecht dirigiu, é aquela em que aparece o diálogo mais politizado, o qual se dá entre as pessoas no trem lotado, onde estão Anni e Fritz. Inicia-se uma discussão sobre o mercado internacional a partir da notícia de jornal sobre a queima de 24 milhões de libras de café pelo Estado brasileiro. Os trabalhadores e alguns burgueses se envolvem na discussão, e os primeiros concluem posicionando-se contra a lógica mesquinha de tornar os bens caros e inacessíveis àqueles que ficam desempregados. Um trabalhador indaga: “E quem mudará o mundo, então?” A essa questão, uma moça trabalhadora responde: “Quem não está satisfeito”, terminando o filme com a multidão saindo do trem cantando a canção de Brecht.

Esse filme proletário e propagandístico foi rodado em uma atmosfera de repressão política, com ameaças da SA (seção de Assalto) ao elenco e à equipe de produção, e foi exibido em Moscou sem maior difusão. O búlgaro Slatan Dudow, diretor de Kuhle Wampe, era membro do Partido Comunista Alemão e foi preso em 1933 após a tomada de poder pelos nacional-socialistas. No ano seguinte, ele seguiu para o exílio em Paris, onde se dedicou a realizar o cinema proletário e mostrar as condições de vida deficitárias dos trabalhadores alemães, tornando-se parceiro de Brecht na montagem de Terror e miséria no Terceiro Reich.

Sem deixar a Dinamarca, Brecht procurou interferir na produção da peça, na escolha dos atores e na data de estreia para que o sucesso de Terror e miséria no Terceiro Reich ecoasse na América do Norte e despertasse interesse em produzi-la por lá. Achava que Paris e Estados Unidos eram os únicos lugares em que sua produção poderia ser apreciada, pois o medo havia dominado a Europa (BRECHT, 1990BRECHT, Bertolt. Letters 1913-1956. London: Methuen, 1990., p. 280).

Walter Benjamin, que esteve presente à estreia, publicou uma crítica no Neuen Weltbühne sobre 99% (Terror e miséria no Terceiro Reich) cujo título era “O país onde não se pode mencionar o proletariado”, aludindo à censura que se impunha às pessoas e as impedia de falar a verdade nas conversas e situações cotidianas (BENJAMIN, 1998BENJAMIN, W. Understanding Brecht. London, New York: Verso, 1998., p. 37). Ressaltava que ela marcava o recomeço do “teatro de emigração”, o qual deveria se ocupar do drama político, favorecido pela técnica do teatro épico brechtiano (BENJAMIN, 1998, p. 37). Comparava o texto ao drama antibelicista Últimos dias da humanidade (1922), do escritor Karl Kraus, pois acreditava que apenas esse tipo de drama contivesse a realidade do presente momento (BENJAMIN, 1998, p. 39). O jornal Deutsche Volkszeitung, diário editado pelo Partido Comunista alemão no exílio, saudou o ciclo teatral como uma proclamação antifascista de uma frente unida (EWEN, 1991EWEN, Frederic. Bertolt Brecht, sua vida sua arte e seu tempo. São Paulo: Editora Globo, 1991., p. 302).

Terror e miséria no Terceiro Reich, no entanto, não consistia no melhor exemplo do gênero do teatro épico, pela ênfase no realismo e perda do distanciamento. Cada sketch, com duração de 10 minutos, trazia a indicação do ano e cidade em que a situação se passava. Na peça existe uma preocupação em detectar a resistência em todos os lugares. O início da peça descreve uma grande parada militar no quinto ano do governo do “chefe”, que se diz “enviado por Deus”, pronto para a guerra com aviões, tanques, canhões, couraçados. Ele passa em revista o exército, “uma multidão pálida, heterogênea”, e partem para a grande guerra sem contestação. Com suas mulheres e filhos, “arrastam velhos e doentes e desfilam. É a grande parada militar” (BRECHT, 1991BRECHT, Bertolt. Teatro completo. v. 5. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 183). Provavelmente, trata-se de uma alusão à Primeira Guerra, conforme a postura antimilitarista de Brecht, porque a Segunda Guerra Mundial ainda não havia sido deflagrada. Havia, não obstante, um prenúncio muito forte no discurso revanchista e beligerante do regime, que já anexara a Áustria e que estava prestes a invadir a Polônia.

Nesse desfile, a cruz do império também pode ser lida como a cruz do martírio cristão: é carregada pela “gente do povo”, cujos sofrimentos e questionamentos não são escutados em meio ao barulho: “Não se ouve um lamento, Não, nenhuma praga, ninguém arqueja; e se alguém pergunta algo, Não se escuta: é barulhenta a banda militar” (BRECHT, 1991BRECHT, Bertolt. Teatro completo. v. 5. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 183). A barulhenta banda da propaganda oficial, das marchas militares, das manifestações públicas dos apoiadores de Hitler cala os opositores, abafa as vozes dissonantes e conforma as opiniões.

O sketch seguinte tem o título “Comunidade nacional” e se passa em 30 de janeiro de 1933, logo após a chegada de Hitler ao poder pela via legal. A “Comunidade nacional” designa o ideal de unidade nacional de raízes raciais ancestrais, harmônica, saneada de agentes impuros, como o bolchevismo e o judaísmo. Apresentam-se no palco dois soldados da SS, elementos que antes eram marginais à sociedade, organizados em grupos paramilitares, desempregados, desmoralizados, dispensados do exército, mas que, após o Armistício, tornaram-se parte importante da política de terror e violência do Partido Nazista. Seduzidos por discursos exaltados, eles desejam que “o povo alemão se torne grande, temido, fiel e obediente” (BRECHT, 1991BRECHT, Bertolt. Teatro completo. v. 5. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 183). Um deles diz: “Ontem estávamos na miséria, hoje entramos na Chancelaria do Reich. Ontem éramos abutres famintos, hoje somos águias imperiais” (BRECHT, 1991, p. 184). No diálogo entre eles, manifestam o desejo de fundar a “Comunidade nacional”, como ressurgimento moral do povo alemão, o que não seria possível sem “despertar a consciência do homem alemão, tirá-lo da situação de escória sub-humana” (BRECHT, 1991, p. 184). Convictos de que se tratava de um bairro que abrigava um “ninho de marxistas”, os oficiais da SS matam por equívoco um idoso que, atraído pela curiosidade, se debruçava sobre a janela.

Em seguida, ocorrem situações em várias cidades da Alemanha, todas imbuídas de perigo, em que Brecht coloca na boca das personagens a constatação dos problemas sociais e políticos que enfrentam sob o nazismo. Em “Traição”, um casal delator dos vizinhos, que ouvia um programa estrangeiro, teme ser identificado. Nessa cena e em “Cruz de giz”, Brecht desenvolve a ideia contida em dois poemas, “O vizinho” e “A cruz de giz”, escritos na mesma época. Nesse primeiro sketch, que se passa em Berlim, em 1933, um oficial da SA, componente de um regimento paramilitar do Partido Nacional Socialista, gaba-se diante da empregada, que é sua amásia, da cozinheira e do irmão dela, operário, da forma como identifica subversivos na fila do carimbo dos carnês de desempregados, marcando-lhes as costas com uma cruz de giz. Ele testa o operário para que se denuncie enquanto “marxista”, a título de demonstrar seu procedimento. Passa a intimidar a todos que o cercam, inclusive a sua amásia, que teme ser identificada com a cruz de giz. No diálogo entre o oficial e o operário, aquele adverte que não deve ser nem prudente, nem imprudente, pois, em qualquer um dos casos, poderia ser enviado ao trabalho voluntário, em que a vigilância e castigos eram intensos e a comida, parca.

O tema do trabalho voluntário e do campo de concentração aparece em “Soldados do pântano”, “A serviço do povo”, “Trabalho voluntário”. No primeiro sketch, “Soldados do pântano”, no campo de concentração de Esterwegen, em 1934, comunistas, social-democratas e cristãos (exegeta bíblico) trocam acusações, sob a vigilância implacável de guardas da SS (organização paramilitar do governo nazista). O comunista censura os demais por terem tornado impossível a frente unida; o social-democrata atribui aos comunistas a pretensão de angariar seu contingente partidário. Quando um grita “traidores do povo”, os demais, solidários, não entregam o companheiro e são encarcerados em um bunker. Brecht realiza a crítica à incapacidade dos marxistas e progressistas de terem se unido para resistir ao nazismo, a não ser na prisão, e os responsabiliza pela derrota da democracia. Em “A serviço do povo”, situada no campo de Oranienburg, em 1934, um dos primeiros estabelecidos, um guarda da SS chicoteia um prisioneiro que se recusa a negar ser comunista. O guarda não quer bater muito forte, mas seu capitão de grupo ordena que bata na barriga. No prólogo, o autor acrescenta: “servem ao povo dedicadamente. Delatam, torturam, chicoteiam, empalam, por um salário de fome” (BRECHT, 1991BRECHT, Bertolt. Teatro completo. v. 5. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 208).

Em “Trabalho voluntário”, um operário e um estudante são obrigados a cavar. Vigiados por guardas, fingem empenhar-se, mas não recebem nenhum salário. Brecht observa: “os reconciliadores das classes sociais forçam os pobres ao trabalho voluntário em troca de comida ruim e um par de botas” (BRECHT, 1991BRECHT, Bertolt. Teatro completo. v. 5. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 253). Para os campos e o trabalho forçado eram encaminhados os opositores de primeira ordem do regime, mesmo antes da proibição dos partidos, excetuado o Nacional Socialista, a partir do verão de 1933. O primeiro campo de concentração foi aberto em Dachau, próximo a Munique, com plena cobertura da imprensa, onde marxistas e homossexuais cumpriram pena realizando trabalhos forçados. Estima-se que um milhão de alemães tenham sido enviados para campos de concentração por razões políticas entre 1933 e 1939 (WEISENBOM, 2007WEISENBOM, Günther. Une Allemagne contre Hitler. Paris: Éd. du Félin, 2007., p. 48-49). Muitos morriam de subnutrição, pela tortura e maus tratos.

Por essa razão, um clima persecutório se implantou desde o início. As delações eram temidas pelas pessoas, que passaram a expor suas opiniões apenas na privacidade. Nesse sentido, os sketches “Cruz de giz”, “O espião”, “A traição”, “Em busca de justiça” e “O egresso” apresentam o temor da delação dos próprios familiares, amigos e vizinhos. Acusações, por menores que fossem, tal como ouvir rádio estrangeira, eram punidas severamente. As denúncias eram feitas por membros do Partido Nazista nos bairros, mas os delatores também eram populares que, por motivos pessoais, mais do que por fidelidade ao regime, entregavam os conhecidos à Gestapo (GELLATELY, 2011GELLATELY, Robert. Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011. , p. 216). Brecht captou esse elemento e, em “O espião”, retratou um casal que teme que o filho, pertencente à Juventude Hitlerista, denunciasse à polícia a conversa em que o pai criticou a imprensa e a corrupção no Estado nazista. Em “Em busca de justiça”, o juiz criminal aprende que não pode fazer justiça no caso do assalto à joalheria de um judeu por uma horda da SA, por conta dos muitos interesses - inclusive do sócio ariano e da SA - que estão em jogo. Em “O egresso”, um operário libertado do campo de concentração é visto como potencial delator pelos próprios amigos.

Em outros sketches, como “Ajuda de inverno”, “Sapatos pretos” e “O velho combatente”, ele caracteriza o panorama de miséria dos trabalhadores, mulheres, idosos, comendo batatas e sobrevivendo da filantropia do regime, de migalhas dos ricos, extorquidos pelos impostos do Estado, enquanto a inflação sobe e o salário é parco. Em “O caixão”, “Chega às casernas a notícia do bombardeio de Almeria” e “Os contratadores de trabalho”, Brecht retrata a vida sacrificante do trabalhador em nome da recuperação econômica. A geração de empregos se baseava na indústria bélica, no rearmamento, no prolongamento da guerra e os que se subvertiam eram entregues às famílias em caixões de zinco que não podiam ser abertos; ou seja, a violência era encoberta. Encoberta também era a participação militar alemã na Guerra Civil espanhola. Brecht sugere que os soldados eram mais bem alimentados do que o conjunto da população, porque são usados como máquinas de combate. Em “Contratadores de trabalho”, uma mulher, cujo marido trabalha na fábrica de motores que produz bombardeiros, recebe um telegrama que diz que seu irmão piloto morreu em treinamento, enquanto se sabe que combatia na guerra na Espanha. Brecht mostra que o pleno emprego e as contratações de trabalho têm um alto preço: a necessidade obrigava o proletariado alemão a empregar-se e produzir os armamentos que matariam seu próprio povo. A epígrafe diz: “Lá vem os contratadores de trabalho. O homem do povo é a mercadoria. Põem o pobre onde bem entendem. E ainda recebem gratidão: eles podem de novo servir, suar, fabricar máquinas de guerra, e vender barato o próprio sangue” (BRECHT, 1991BRECHT, Bertolt. Teatro completo. v. 5. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 280).

O sketch “A hora do trabalhador” revela que ao lado da repressão o regime procurou seduzir os trabalhadores. Representa operários de uma tecelagem em Leipzig, em 1934, sendo entrevistados no escritório do gerente de fábrica pelo rádio-repórter, com um oficial da SA e o representante da diretoria ao fundo. Estes são estimulados a comparar a situação do emprego do período de Weimar com sua condição de trabalho nas fábricas sob o nazismo, de modo a provar a superioridade do último. O entrevistador destacava sempre os aspectos positivos, os novos banheiros, a decoração do espaço de trabalho, a disciplina, a empregabilidade, a produtividade, a satisfação do trabalhador. No entanto, um dos trabalhadores se queixa inesperadamente dos descontos no salário, deixando constrangido o rádio-repórter, que finaliza dizendo que na Alemanha de Hitler não havia nenhuma máquina parada, nenhum braço desocupado. Brecht constata: “São os veículos de propaganda de Goebbels que levam ao povo o microfone. Mas não confiam! Entre a boca e o aparelho há uma ameaça velada” (BRECHT, 1991BRECHT, Bertolt. Teatro completo. v. 5. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 254). O autor deseja mostrar que o consenso ativo é aparente, pois embora haja pessoas que discordem, que pensam, é mediante a censura e a ameaça ostensiva que ele foi alcançado.

Através dos eficazes meios de comunicação, o rádio, o cinema, e os jornais, colocados em prática pelo Ministério da Propaganda e Esclarecimento de Goebbels, evidenciavam-se as conquistas do regime para os trabalhadores, o elemento “socialista” - embora pervertido - da ideologia, que mais tarde Brecht reconheceria em seu diário (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 293). Após o fechamento dos sindicatos, em maio de 1933, a proibição das greves, a abolição do contrato de trabalho, os trabalhadores fabris perderam autonomia, pois os nazistas reorganizaram as instituições de forma corporativa e vinculada ao Partido Nacional Socialista, de modo a garantir a exploração de um exército industrial de reserva de mais de sete milhões de desempregados. A política da Frente Alemã para o Trabalho, liderada por Robert Ley, da qual faziam parte também os industriais, instituiu uma rígida disciplina que compreendia a vigilância e a repressão pela SA (Divisões de Assalto) e pela Gestapo.

No entanto, a lógica da política de massas pressupunha igualmente o convencimento de que os nazistas haviam livrado a classe operária da tirania dos agentes de Moscou. Expurgando os elementos subversivos liberais e marxistas, congelando salários e garantindo a mais-valia, as autoridades do Reich mantiveram o caráter capitalista do regime. Os industriais, designados como líderes, eram porta-vozes oficiais da doutrina de que o conflito de classe foi abolido e em seu lugar instaurou-se a harmonia necessária para o aumento da produtividade.9 9 Até 1938, 300 mil trabalhadores considerados antissociais foram enviados para construir fortificações na fronteira com a França. Ver: MASON, Timothy. Labour in the Third Reich 1933-1939. Past and Present, Oxford University Press, n. 33, p. 116, 136, apr.1966. A Frente Alemã para o Trabalho também inspecionava fábricas, avaliando a possibilidade de melhorar as amenidades sociais, negociava horas de trabalho e salários, examinava relações e intervinha nos problemas materiais da classe. Com isso, teve uma atuação no sentido de embelezar e redecorar fábricas e oficinas, zelando pelo ideal de limpeza, higiene e iluminação, colocando lavatórios, pátios de esporte, oferecendo programas de lazer e viagens que eram compulsórios e visavam ao aumento da produtividade (MASON, 1966MASON, Timothy. Labour in the Third Reich 1933-1939. Past and Present, Oxford University Press, n. 33, p. 112-141, april 1966., p. 119).

Brecht quer mostrar através dos sketches, porém, que ainda que o regime ditatorial tenha conseguido seduzir parte significativa da classe operária, não era possível afirmar que essa classe era volúvel, que não havia resistência em seu seio e que ela estava envolvida a tal ponto com a guerra que ingressaria em outra futura aventura. Esse era o pensamento de muitos exilados que se ligaram à alta burguesia dos países que os acolheram.

Dentre esses exilados, Hannah Arendt compartilhava de ideia semelhante. Em 1966, portanto dez anos depois da morte de Brecht, a filósofa publicou uma resenha no The New Yorker na qual discute o legado do dramaturgo, tecendo uma implacável crítica à adesão ao marxismo e à aceitação da disciplina partidária. Arendt identifica os prenúncios da suposta incoerência de Brecht que apareceriam na sua postura, tão logo os nazistas se instalaram no Reichstag. Eles transpareceriam nas obras do tempo do exílio, em “poemas ruins” e, em particular, no “inexpressivo diálogo em prosa de Terror e miséria do Terceiro Reich” (ARENDT, 2008ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., p. 264). Para Arendt, os clássicos nos quais Brecht se apoiava não o teriam permitido compreender a especificidade do nazismo em relação ao capitalismo, ou admitir que Hitler acabara com a fome e o desemprego, o que extinguiria qualquer pretexto para não se louvar o Führer e permitiria concluir que os perseguidos do regime não seriam os trabalhadores em geral, mas os judeus. Portanto, os crimes do nazismo não teriam se direcionado para a questão de classe, mas de raça (ARENDT, 2008, p. 264). A filósofa considera que o autor estaria “fora da realidade” acerca do que se passava na Alemanha, ao retratar, do exílio, tortura e morte de operários opositores ao regime, assim como a deterioração das condições de vida dos trabalhadores, pois Brecht fugira de um país onde todos podiam comer à vontade, ter um teto e alimentar seus filhos (ARENDT, 2008, p. 264).

Adversamente ao que afirmava Hannah Arendt, Brecht acompanhava com interesse a evolução do fascismo, mantinha-se bem-informado através dos jornais alemães e da rádio, dos amigos que lhe escreviam e do círculo de intelectuais alemães exilados. As notícias que vinham de lá eram terríveis, companheiros fuzilados, escritores e artistas pareciam se resignar. Os argumentos que Arendt elencou para concluir que Terror e miséria do Terceiro Reich se tratava de uma peça inexpressiva, apesar de ter sido exitosa em sua estreia, precisam ser, no entanto, revisitados à luz das interpretações recentes mais aceitas sobre a economia e o universo dos trabalhadores sob o nazismo.

Assim, seria possível dizer que não havia opositores porque os trabalhadores aderiram ao regime nazista ao terem suas necessidades satisfeitas pela prosperidade econômica? A ideia de que a ditadura promoveu a recuperação econômica teve grande adesão entre os estudiosos na segunda metade do século XX. De fato, o desemprego que afetava um terço dos alemães em 1933 foi reduzido ao ponto de haver carência de braços para a indústria às vésperas da guerra mundial e no seu transcorrer, o que levou o regime a importar mão de obra escrava do leste europeu a partir de 1942 (MASON, 1966MASON, Timothy. Labour in the Third Reich 1933-1939. Past and Present, Oxford University Press, n. 33, p. 112-141, april 1966., p. 127). Isso ocorreu através das grandes obras públicas de construção de estradas e expansão da indústria pesada e daquela ligada ao armamento. Porém, estudiosos argumentam que os valores salariais semanais aumentaram de forma desigual, apenas retomando os níveis anteriores à Primeira Guerra. A escassez de mão de obra qualificada acarretou níveis salariais mais altos em setores como a metalurgia e indústria bélica, que correspondiam a apenas 35% da população empregada (MASON, 1966, p. 135); os demais operários de setor têxtil, por exemplo, do serviço público e de bens de consumo não tiveram aumentos salariais significativos e os salários mínimos permaneceram similares aos de 1932 (MASON, 1966, p. 127). Entrementes, para trabalhadoras e trabalhadores pouco qualificados, seu rendimento caiu em 15% no início do novo regime (GRUNBERGER, 1971GRUNBERGER, Richard. A Social History of the Third Reich. London: Phoenix, 1971., p. 244). O trabalho compulsório de prisioneiros ou trabalhadores remanejados para as fortificações possibilitou a manutenção do valor dos salários em um patamar mínimo e o prolongamento da jornada de trabalho a ponto de mais que dobrarem os acidentes de trabalho (GRUNBERGER, 1971, p. 247), enquanto o governo procurava manter salários congelados, limitando a mobilidade dos trabalhadores no mercado de trabalho e elevando impostos (MASON, 1966, p. 138-140).

De igual forma, a argumentação de Arendt sobre a adesão generalizada ao regime não procede quando se leva em consideração os primeiros anos do regime, quando foi empreendida a eliminação dos opositores (comunistas, intelectuais, sindicalistas). Como afirma Richard Evans, o terror não era dirigido a minorias específicas, impopulares, mas era mais abrangente, afetando qualquer um que expressasse discordância pública: desviantes, vadios, inconformistas. A intimidação generalizada da população foi pré-condição para o processo de consolidação do nazismo, que se utilizou dos camisas-pardas, da SS e da polícia para propalar a violência. Realizavam batidas em bairros populares, pretensamente para combater a criminalidade, detinham prostitutas e homossexuais, invadiam clubes e sindicatos durante os primeiros anos de estabelecimento do regime (EVANS, 2010EVANS, Richard. A chegada do 3° Reich. São Paulo: Planeta, 2010., p. 460). Os sindicatos foram incorporados à estrutura corporativa do Partido Nazista, desaparecendo a autonomia política e reivindicatória da classe trabalhadora. Foram esses as principais vítimas do nazi-fascismo nos seus primeiros anos de afirmação, reforçando a ideia de que a exploração e dominação de classe estavam presentes.

Contrariamente ao que supôs Arendt, Brecht considerou o papel da recuperação econômica no processo de sujeição da classe trabalhadora. Ele escreveu em 1942, em seu Diário de Trabalho:

Como qualquer um pode ver, a burguesia alemã soube explorar uma situação social específica e neutralizar a consciência de classe dos trabalhadores e adotar certas medidas sociais. A classe operária se acostumara a ter seus interesses representados por instituições democráticas, a saber, o parlamento e os partidos parlamentares, mais os sindicatos. A dissolução dessas instituições privou a classe operária de representação organizada e deixou-a desamparada. Achando-se fraca demais para executar suas próprias políticas internacionalistas, sucumbiu às políticas nacionalistas da burguesia.

Eliminando o desemprego, introduzindo algumas instituições pseudo-socialistas e atraindo a juventude para as organizações “comunitárias populares”, enquanto instituía ao mesmo tempo um reinado de terror político e econômico, a burguesia criou um campo de existência social que terá de ser demolido por uma guerra de destruição antes que se possa restabelecer a estrutura clássica da sociedade (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 105).

O fechamento das instituições representativas da classe trabalhadora, partidos, sindicatos, lideranças, enfraqueceu-os ao ponto de não observar seus interesses classistas, mas em nome do nacionalismo, acompanhar as políticas da burguesia (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 105). Compreendia que, como parte do capitalismo (BRECHT, 2002, p. 53), ela não resistiu quando o Estado nazista quebrou as organizações autênticas do proletariado, conseguindo neutralizar sua consciência de classe, para reorganizá-lo sob sua tutela (BRECHT, 2005, p. 193). Para o dramaturgo, a maior vítima do nazi-fascismo europeu era, sem dúvida, o proletariado, em especial o movimento operário organizado e marxista: “Os crimes do regime consistem em seus crimes contra a classe trabalhadora proletária, e a Gleichschaltung dirige certos indivíduos e certas atividades para essa atuação criminosa” (BRECHT, 2002, p. 4).

Nesse sentido, em fevereiro de 1942, Brecht reconhece a dimensão de classe do regime, pois percebe Hitler como representante da pequena burguesia, que é, para ele, um joguete da alta burguesia (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 64-65). Esse era condizente com o capitalismo tardio e com a guerra, pois “as fronteiras em que os bens não podem ser atravessados o serão por tanques” (BRECHT, 2002, p. 26-27). O regime, através do aparato que foi erigido pelo Estado a partir de 1933, instituiu uma ideologia em torno da qual logrou o consenso ativo, em torno do qual operavam, não apenas os ideólogos profissionais, mas milhões de pequenos burgueses e trabalhadores manuais que se encontravam politicamente “envolvidos”: barbeiros que eram membros ativos da SA, artesãos e pequenos lojistas, em suas inúmeras associações de classe, assim como professores e engenheiros (BRECHT, 2002, p. 3). Cooptados pelo Partido Nacional Socialista, atuavam como braços do partido em vários níveis e sentiam-se parte da “comunidade nacional” reafirmada por rituais, manifestações públicas e símbolos. Ainda assim, Brecht constatava que as “manifestações de apoio ideológico” não eram a força motriz da exploração, pois esta residia na lógica do próprio capitalismo (BRECHT, 2002, p. 4).

Ao longo dos anos da guerra, Brecht se pergunta por que os trabalhadores não se rebelaram - questão que também era objeto de discussões de seu círculo de exilados. A participação do proletariado nos “gigantescos exércitos alemães, as pujantes realizações da indústria e a estabilidade interna” tornava cada vez mais difícil acreditar que havia resistência e que o proletariado era contrário à guerra, ou separar-se, perante a visão internacional, a Alemanha da Alemanha de Hitler (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 105), ou ainda, os alemães dos nazistas (BRECHT, 2005, p. 214).

Uma das razões residia na dependência entre a guerra e a geração de empregos que foi sugerida em Terror e miséria do Terceiro Reich. No início do conflito mundial, em fevereiro de 1939, Brecht percebia semelhança entre a plebe romana, em seu estudo sobre César, e sua aceitação das guerras de conquista, que elucidava a situação dos trabalhadores alemães que “engoliram muito pela abolição do desemprego” e acreditam no regime que proclama que a ausência de guerra significa desemprego (BRECHT, 1993BRECHT, Bertolt. Journals 1934-1955. London: Methuen, 1993., p. 22). Em junho de 1940, escrevia no diário que o rearmamento era de fato a solução do problema do desemprego no campo do capitalismo e que a Alemanha teria chegado tarde para a distribuição imperialista do mercado mundial (causado pela chegada atrasada da revolução burguesa alemã e com a criação da unidade nacional) (BRECHT, 1993, p. 59).

Com isto, toda uma geração ainda muito jovem em 1933 - sob os efeitos ideológicos propagados por organizações como a juventude hitlerista e que cresceu e morreria durante os anos de ditadura - estava destinada a se tornar soldada do Reich. Em junho de 1940, o dramaturgo escrevia:

[...] é interessante que a guerra está sendo lutada por homens nascidos nos anos 1915-1920. Em 1933 os soldados tinham 13 ou no máximo 18 anos. Esta é a juventude da qual o futuro da Alemanha nazista depende. Eles não têm futuro, mas estão sangrando até morrer na França. Nós não precisaremos lidar com estes “jovens que são nazistas treinados mais e mais e não conhecem outra Alemanha além da Alemanha nazista” (BRECHT, 1993BRECHT, Bertolt. Journals 1934-1955. London: Methuen, 1993., p. 56).

Não obstante, Brecht esperava que os trabalhadores se conscientizassem de que a guerra não era de seu interesse e se rebelassem como resultado do acirramento das contradições, criando dialeticamente as condições para uma revolução proletária, como exprimiu quase dois anos mais tarde:

O fato de as guerras não poderem ser levadas adiante sem o proletariado (enquanto força produtiva) não significa que uma guerra desagradável para o proletariado não pode ser empreendida. Uma situação revolucionária só se cria quando, por exemplo, faz uso da iniciativa do proletariado de promover uma guerra que ele próprio apóia, ou quando uma guerra perdida pode ser liquidada pelo proletariado (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 45).

As guerras capitalistas empreendidas até então exigiram a participação do proletariado; porém, à medida que este assumisse atitude ativa, poderia mudar o rumo da guerra semeando o caminho para a revolução. Brecht explicava por que o proletariado, “enfraquecido por ilusões e crises econômicas” (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 241), desorganizado sem suas entidades de classe e de representação, ainda lutava em condições deploráveis em agosto de 1944:

Mas afinal por que os alemães continuam a lutar? Bem a população se vê acossada pelas SS e além disso carece de vontade política em qualquer direção, despojada que foi das poucas instituições parlamentares que possuía, por mais questionáveis que fossem, e economicamente está sob o tacão das classes abastadas, como sempre esteve. Os soldados lutam pela própria vida no contexto de operações estratégicas e táticas, enquanto alimentavam com sua força de trabalho a máquina de destruição, despreocupados dos resultados de seu esforço como se atuassem na máquina de produção. Em suma, os alemães ainda lutam porque as classes governantes ainda governam (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 236).

Os soldados lutavam na máquina de destruição como operários em uma máquina de produção. Brecht constata que a dominação e a opressão de classe permaneciam, assim como a lógica de subordinação capitalista que transformava o corpo do trabalhador em máquina de produzir e de matar. A possibilidade de instituição de um governo operário que conduzisse ao socialismo dependia da sua capacidade de se rebelar ao final da guerra, auxiliada pelas tropas soviéticas, o que não ocorreu porque, segundo Brecht, os russos não derrotaram os nazistas sozinhos (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 274).

Brecht acreditava que a arte poderia contribuir para essa emancipação, para tornar vitoriosa a luta pelo poder, para a qual a classe operária precisava de realismo no pensamento e na ação. Era imperativo conceber uma arte realista que contrapunha a realidade às ideologias e tornava possível sentir, pensar e agir de maneira realista (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 212). Por isso, adotou o realismo em Terror e miséria do Terceiro Reich, ao enfatizar o aspecto de resistência e o empobrecimento da classe trabalhadora, revelando as contradições do sistema que, conforme acreditava, iriam se avolumar e fazer nascer o novo, qualitativamente superior (BRECHT, 2002, p. 60).

Brecht acompanhava com interesse o posicionamento do proletariado alemão, classe que perdeu sua autonomia, pois foi desorganizada e doutrinada pelas instituições criadas pela ditadura e seduzida pelo nacionalismo. Em seu teatro, sua correspondência e diários de trabalho, analisava dialeticamente o processo histórico e concluía que o regime nazista era uma forma eficaz que assumiu o capitalismo. Quando os trabalhadores adentraram a esfera política, muito diferentemente de quando foram instruídos pelo marxismo, o fizeram negativamente. O grande dramaturgo alemão esperava a revolução proletária que nunca se efetivou, uma revolução decorrente da constatação da falência do nazismo, que partisse dos próprios trabalhadores e soldados alemães. Nela, “a Alemanha deveria se emancipar não como nação, mas como povo, mais precisamente como classe operária” (BRECHT, 2005BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. 1941-1947. v. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2005., p. 215).

Referências

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Notas

  • 1
    Leopold Jessner era um judeu alemão e socialista, diretor de cinema e teatro. Quando da ascensão de Adolf Hitler, ele emigrou para os Estados Unidos, onde faleceu em 1945.
  • 2
    Carta de Brecht a Leopold Jessner, Berlim, 10 de abril de 1926.
  • 3
    Erwin Piscator (1893-1966) foi ator, diretor teatral e idealizador do teatro épico, que prescrevia que a arte dramática deveria ser política, levando ao público uma “mensagem”. Na execução de seus projetos, a ação principal da peça era interrompida por recursos narrativos e explicativos, como projeção de filmes, cinejornais, utilizando também efeitos de luz, autofalantes, sirenes, múltiplos cenários, dispositivos mecânicos.
  • 4
    No total, foram 80 listas e 40 mil pessoas, que não incluía judeus deportados. Ver: 1935: Nazistas retiram a cidadania alemã de escritores e oposicionistas. Deutsche Welle Notícias. Disponível em: <http://www.dw.de/1935-nazistas-retiram-a-cidadania-alemã-de-escritor>.
  • 5
    Além disso, redigiu peças que continham críticas ao Nacional Socialismo e a Hitler, como Os cabeças redondas e os cabeças pontudas (1932-1933), e, mais tarde, A resistível ascensão de Arturo Ui (1941).
  • 6
    Em 1996, outras cinco cenas não publicadas foram encontradas, perfazendo um total de 30 cenas.
  • 7
    A Anschluss retirava a autonomia da Áustria e a tornava departamento da Alemanha.
  • 8
    Slatam Dudow foi um diretor búlgaro, marxista, membro do Partido Comunista alemão. Ele preso em um campo de concentração e extraditado pelos nazistas logo que chegaram ao poder, em 1933.
  • 9
    Até 1938, 300 mil trabalhadores considerados antissociais foram enviados para construir fortificações na fronteira com a França. Ver: MASON, Timothy. Labour in the Third Reich 1933-1939. Past and Present, Oxford University Press, n. 33, p. 116, 136, apr.1966.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2016
  • Aceito
    29 Jul 2017
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