Acessibilidade / Reportar erro

Tradição e experimentalismo: a dança dos sentidos na música popular

Tradition and experimentalism: the dance of the meanings of popular music

Resumo

Este pequeno ensaio é uma discussão sobre os significados da expressão música popular. Nosso ponto de partida provém das constatações de Richard Middleton sobre a polissemia da música popular. No entanto, problematizamos as questões de Middleton quando o cotejamos com a perspectiva dos Estudos Culturais sobre o que se entende por cultura popular, bem como com a perspectiva da teoria crítica sobre o que se entende por vanguarda. Assim, a expressão música popular, mais que um conceito, torna-se um campo em disputa pelas várias forças culturais que constituíram a sonoridade contemporânea, do folclore ao modernismo, da cultura de massa ao experimentalismo.

Palavras-chave
música popular; estudos culturais; música experimental; música tradicional

Absctract

This short essay is a discussion of the meanings of the expression popular music. Our starting point are Richard Middleton’s findings on the polysemy of popular music. However, we problematize the discussion of Middleton when we compare it with the perspective of Cultural Studies on what is meant by popular culture, as well as with the perspective of Critical Theory about what is understood by the vanguard. Thus, the expression popular music, rather than a concept, becomes a field for disputing various cultural forces that constituted the contemporary sonority, from folklore to modernism, from mass culture to experimentalism.

Keywords
popular music; cultural studies; experimental music; folk music; traditional music

Uma das dificuldades para o pesquisador de música popular consiste em delimitar, com certa clareza, seu campo de estudo. Em larga medida isso se deve ao caráter polissêmico da expressão (não a tratarei, aqui, como um conceito, devido mesmo a essa dificuldade de definição propiciada pelo alto grau de polissemia que a expressão carrega). Em seu conhecido Studying Popular Music, hoje já consagrado como uma das principais obras deste campo de estudo, Richard Middleton destaca quatro sentidos usuais, ou quatro definições, para a expressão música popular:

  1. Definição normativa: música popular é um tipo inferior de música.

  2. Definição negativa: música popular se define por aquilo que ela não é.

  3. Definição sociológica: música popular é associada (produzida por ou para) a um grupo social específico.

  4. Definição econômica/tecnológica: música popular é aquela disseminada pelos meios de comunicação de massa, ou pelo mercado de massa. (MIDDLETON, 1990MIDDLETON, Richard. Studying Popular Music. Glasgow, UK: Open University Press, 1990., tradução minha)

Nenhuma dessas definições, alerta Middleton, embora presentes no senso-comum (ou mesmo na academia, em alguns casos), são satisfatórias. A definição normativa evoca uma visão conservadora, um tanto quanto “aristocrática”, da música, segundo a qual a música erudita (seja lá o que for isso) é superior à música popular. Embora em total descrédito nos estudos acadêmicos sobre música popular, ainda mantém certo eco quando se tenta analisar a música popular por categorias como: simplicidade, espontaneidade, rusticidade etc. (mesmo quando tais categorias ganham sentido positivo, ainda assim é um eco da visão conservadora sobre o que seja música popular).

A definição negativa procura definir música popular por aquilo que ela não é: música popular, assim, não é música folclórica, não é música sinfônica, não é música de concerto, não é música artística etc. Como toda definição pelo negativo, falta algum critério para dizer o que seria, então, música popular, pois pela negação podemos muito bem dizer que música popular não é o canto das sereias e nem tão pouco o ronronar dos felinos domésticos.

A definição sociológica, por sua vez, ainda que tenha trazido reais contribuições para o campo de estudo da música popular, carrega ao menos duas dificuldades: a ideia de que a música popular é constante e possui algum tipo de “essência” e, decorrente desta visão, a ideia do autêntico e do inautêntico. Isto é, na medida em que a definição sociológica associa diretamente (sem maiores mediações) a música popular a algum grupo social específico (os trabalhadores, os negros, as mulheres, os camponeses, os moradores das periferias urbanas etc.) a questão da autenticidade musical desses grupos se coloca e o que não se explica por esse critério acaba se tornando uma falsa música popular (o que acarreta uma dificuldade a mais na dança dos sentidos da expressão música popular, a ideia do falso versus verdadeiro).

A quarta definição apontada por Middleton, a tecnológica/econômica, apesar de possuir contribuições importantes para a área de pesquisa, uma vez que possibilitou estudos sobre as plataformas tecnológicas por onde a música popular circula na sociedade (seja o LP, o CD, o MP3 ou outras), bem como um entendimento importante sobre o papel dos meios de comunicação de massa (rádio, TV, internet, etc.) na produção e na circulação da música popular, entre outras questões fundamentais, também tem suas dificuldades quando pensada isoladamente.

Se na definição sociológica pouco se observa das mediações tecnológicas e econômicas da sociedade, na definição tecnológica/econômica corre-se o risco de se observar quase exclusivamente essas mediações, em detrimento de outros fatores sociais. Assim, a mediação tecnológica torna-se a própria música popular, e o popular, aqui, ganha o sentido de massa, de “o mais conhecido”, o que “vende mais”, algo bastante redutor e simplificador também. Como se pode observar, definições propriamente musicais estão ausentes quando se pensa a expressão música popular. Talvez, pela dificuldade mesmo que a expressão carrega. Dificuldade que se apresenta não tanto pela palavra música (um dos termos da expressão), mas pela palavra popular (o outro termo da expressão).

Embora o sentido do que seja música tenha variado ao longo dos tempos, em particular no Ocidente (consonância versus dissonância, sons musicais versus ruídos, som versus silêncio etc.), não quero aqui problematizar seu sentido histórico. No entanto, a constituição histórica do que chamamos de cultura popular se faz importante para se entender a polissemia da expressão música popular. Em seu ensaio “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”, o teórico dos Estudos Culturais ingleses, Stuart Hall, diz o seguinte:

No decorrer da longa transição para o capitalismo agrário e, mais tarde, na formação e no desenvolvimento do capitalismo industrial, houve uma luta mais ou menos contínua em torno da cultura dos trabalhadores, das classes trabalhadoras e dos pobres. Este fato deve constituir o ponto de partida para qualquer estudo, tanto da base da cultura popular quanto de suas transformações. (HALL, 2003HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”. In: Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al., Belo Horizonte: Editora da UFMG/Humanitas/Unesco, 2003., p. 247).

Em outra chave teórica, mais ligada aos Annales, o historiador inglês Peter Burke comenta uma situação semelhante à descrita por Hall. Diz Burke:

Foi no final do século XVIII e início do século XIX, quando a cultura popular tradicional estava justamente começando a desaparecer, que o ‘povo’ (o folk) se converteu num tema de interesse para os intelectuais europeus. Os artesãos e camponeses decerto ficaram surpresos ao ver suas casas invadidas por homens e mulheres com roupas e pronúncias de classe média, que insistiam para que cantassem canções tradicionais ou contassem velhas estórias. Novos termos são um ótimo indício do surgimento de novas ideias, e naquela época começou-se a usar, principalmente na Alemanha, toda uma série de novos termos. Volkslied, por exemplo: ‘canção popular’. (BURKE, 1989BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia. das Letras, 1989., p. 31).

Hall e Burke, ainda que em chaves teóricas distintas, possuem argumentos semelhantes sobre a questão do popular: a modernização capitalista e o surgimento da ideia de cultura popular como faces de um mesmo processo histórico. Assim, em um primeiro momento, a cultura popular se apresenta dubiamente: como uma reserva cultural de um mundo que estava em vias de desaparecer e, devido a essa mesma percepção, como um entrave à modernização. Ou seja, o mesmo impulso que coletava “velhas estórias e canções tradicionais”, também entendia a cultura popular como atrasada, primitiva, retrógada, tradicionalista, enfim, como um entrave à modernização. Surge, assim, a percepção binária do “erudito x popular”, do “moderno x atrasado”, do “complexo x simples”, do “sofisticado x primitivo” etc. Fosse para enaltecer a cultura popular (uma espécie de reservatório cultural dos Estados-nação que se formavam na época), ou fosse para torná-la alvo de projetos “modernizantes” e “moralizantes”, a cultura popular havia se tornado o centro deste processo histórico que havia se iniciado com o advento da Modernidade. Contudo, conforme observa Stuart Hall: “A cultura popular não é, num sentido ‘puro’, nem as tradições populares de resistência a esses processos, nem as formas que as sobrepõem. É o terreno sobre o qual as transformações são operadas.” (HALL, 2003, p. 248-149HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”. In: Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al., Belo Horizonte: Editora da UFMG/Humanitas/Unesco, 2003.).

O conceito de cultura popular vem oscilando, desde então, entre os polos deste processo histórico, entre ser a reserva de um manancial cultural que deve ser preservado de modo mais ou menos intacto, ou como matéria-prima para impulsos modernizantes. Cultura popular vai, então, ganhando vários sentidos que vão se sobrepondo, variando desde o corriqueiro “cultura popular é aquilo que o povo faz” até o senso-comum do “popular como o mais conhecido”. Sobre o primeiro sentido, de aspecto antropológico e basicamente descritivo, trata-se de um inventário que pode ser expandido ao infinito, além de ser tautológico: é cultura popular aquilo que o povo faz (ou, no caso da música, é música popular aquela que o povo faz, ou aquela que grupos oriundos do povo faz). Nas palavras de Hall:

Quase tudo que o ‘povo’ já fez pode ser incluído na lista. Criar pombos ou colecionar selos, patos voadores na parede e anões de jardim. O problema é distinguir essa lista infinita, de uma forma que não seja descritiva, daquilo que a cultura popular não é. (HALL, 2003HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”. In: Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al., Belo Horizonte: Editora da UFMG/Humanitas/Unesco, 2003., p. 256).

Em relação à ideia de popular “como o mais conhecido”, o que se apresenta, de fato, é a ideia da cultura popular como idêntica à chamada cultura de massa. Neste caso, as discussões sobre a cultura popular ou vão dar pouca importância para as mediações tecnológicas e, portanto, tratar efetivamente a cultura popular como sinônimo de cultura de massa, naturalizando a ideia de que “o mais conhecido” é assim porque é popular, ou vão jogar todo o peso da análise nas medições tecnológicas (TV, rádio, imprensa etc.), transformando a cultura popular num mero enfeite diante de “forças extremamente poderosas”. Além disso, quando se pensa a cultura popular por este viés, trazemos de imediato a questão da autenticidade versus falsidade da cultura popular. Isto é, a cultura popular se legitima ou se falsifica diante das mediações tecnológicas, ela se coloca como resistência a esses meios, ou capitula diante deles. Seja como for, a questão da capitulação ou da resistência, que não é sem importância alguma, pode ser colocada de outro modo, independente de se ter ou não mediações tecnológicas envolvidas no processo. Muito mais importante do que definir o que é cultura popular, o surgimento histórico da expressão traz à luz um processo que antes era subterrâneo: a luta cultural, ou a cultura como um campo de luta. Não se trata de dizer, de modo um tanto quanto simplificador, que é cultura popular aquilo que luta contra a cultura hegemônica. O que importa destacar aqui é a luta, o conflito, a percepção de que a cultura é um campo de luta e não um local de harmonia e de identidades apaziguadoras. Nas palavras de Stuart Hall: “A cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou contra a cultura dos poderosos é engajada: é também o prêmio a ser conquistado ou perdido nessa luta. É a arena do consentimento e da resistência.” (HALL, 2003, p. 263HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”. In: Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al., Belo Horizonte: Editora da UFMG/Humanitas/Unesco, 2003.).

A música popular, tal como a cultura popular, também é fruto do processo histórico iniciado com a Modernidade. Conforme observou o historiador Marcos Napolitano:

A música popular, entre outras propriedades, é uma espécie de repertório da memória coletiva. Por outro lado, tal como se configurou ao longo do século XX, é filha da sociedade capitalista moderna, da industrialização da cultura e do mercado de massas. Portanto, mesmo sendo produto de uma ruptura - a modernidade -, articula-se enquanto tradição, que pode assumir características próprias, conforme a configuração de cada país. (NAPOLITANO, 2007NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias. A questão da tradição na música popular. SP: Fundação Perseu Abramo, 2007., p. 5)

A música popular, contraditória desde seu início, acabou ganhando uma variedade de sentido, que foi se sobrepondo, por oscilar entre a manutenção da tradição e seus momentos de rupturas. Não é o caso, portanto, de tentarmos fixar algum sentido único para o que seja música popular. Ao contrário, e pensando com Stuart Hall, música popular é também um campo de luta. A música popular, independente da maneira como possamos defini-la, é um campo de disputa política. A música popular não precisa falar (em suas letras, por exemplo) de política para ser política. Ela mesma é política. Ela mesma concentra as várias disputas políticas que a formam. Sua polissemia, antes de mais nada, expõe essas várias disputas internas. A música popular, portanto, é inseparável da disputa política.

O impulso da modernidade, que criou a música popular, também criou a música moderna e a vanguarda musical. No caso da vanguarda, que é o que aqui nos interessa mais de perto, cabe salientar desde já: é um termo que também possui vários sentidos. O termo vanguarda (avant-gard), como se sabe, surge originalmente ligado à determinadas funções militares: romper frentes de batalhas, destruir infraestruturas, destroçar retaguardas, enfim, desarticular e inutilizar as forças de combate e de subsistência do inimigo. De acordo com o filósofo espanhol Eduardo Subirats,

Esse conceito militar de vanguarda designava uma dissolução geral de tudo quanto fora sólido em proveito de um princípio arcaico de violência e poder. Seus meios eram a surpresa, a rapidez, a eficácia, a universalidade ou a economia de suas estratégias. Um carisma heroico inflamava suas aventuras de “antenas da tropa”. A destruição vanguardista expressou sempre a virtude exemplar de um originário princípio constituinte do poder. (SUBIRATS, 1993SUBIRATS, Eduardo. Vanguarda, Mídia, Metrópoles. SP: Studio Nobel, 1993., p. 10)

Em pouco tempo, o termo migrou do terreno militar para a esfera da política. As ideias socialistas provenientes do século XIX, de certo modo, radicalizaram o significado da palavra vanguarda perante as novas tarefas histórico-universais da revolução proletária. Assim, nas palavras de Subirats,

As vanguardas socialistas e revolucionárias acrescentaram à função militar dos grupos de assalto o significado metafísico de um destino histórico e civilizador: uma organização disciplinada e racionalizada da produção industrial, a configuração global da existência, do mais insignificante até os grandes acontecimentos históricos, a partir das normas e definições da história e da sociedade, diretamente instauradas pelo novo Estado, uma produção sistemática dos símbolos e mitos universais de seu novo poder. (SUBIRATS, 1993SUBIRATS, Eduardo. Vanguarda, Mídia, Metrópoles. SP: Studio Nobel, 1993., p. 11)

Essa origem militar-política do termo acabou se tornando, no senso-comum, a ideia mais vulgar do que seja vanguarda quando pensada nas artes. Isto é, a ideia de “algo que vai à frente”, “algo que rompe barreiras”, “algo que está à frente de seu tempo”, enfim, quase um sinônimo de pioneirismo. No entanto, seu sentido, quando pensado nas artes, se difere em muito da concepção mais vulgar do termo. Em 1939, o importante crítico norte-americano e teórico do modernismo, Clement Greenberg, em seu hoje famoso ensaio Vanguarda e Kitsch, utiliza o termo como o oposto do kitsch (GREENBERG, 2013GREENBERG, Clemente. “Vanguarda e Kitsch”. In: Arte e Cultura. Trad. Otacílio Nunes. SP: Cosac & Naify , 2013., p. 27-44). NO entanto, o sentido dado à vanguarda por Greenberg é o mesmo de modernismo. Para Greenberg, vanguarda e modernismo não se diferenciam. Coube a outro autor, o teórico alemão Peter Burger, estabelecer uma distinção entre vanguarda e modernismo. De acordo com Burger:

Para os vanguardistas, a característica dominante da arte na sociedade burguesa é o seu deslocamento da práxis vital. Isso foi possível, entre outros motivos, porque o esteticismo havia transformado esse momento constitutivo da instituição arte em seu conteúdo essencial das obras. A coincidência de instituição e conteúdo, obedecendo a uma lógica de desenvolvimento, foi a condição de possibilidade do questionamento vanguardista da arte. Os vanguardistas tencionam, portanto, uma superação da arte - no sentido hegeliano da palavra: a arte não deve simplesmente ser destruída, mas transportada para a práxis vital, onde, ainda que metamorfoseada, ela seria preservada. É importante ver que, com isso, os vanguardistas assumem um momento essencial do esteticismo. Este havia transformado a distância em relação à práxis vital em conteúdo das obras. A práxis vital à qual - ao negá-la - o esteticismo se refere é a vida cotidiana do burguês ordenada segundo a racionalidade voltada para os fins. Não é objetivo dos vanguardistas integrar a arte a essa práxis vital; ao contrário, eles compartilham da rejeição a um mundo ordenado pela racionalidade-voltada-para-os-fins, tal como a formularam os esteticistas. O que os distingue destes é a tentativa de organizar, a partir da arte, uma nova práxis vital. (BURGUER, 2008BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Trad. José Pedro Antunes. SP: Cosac & Naify, 2008., p. 105-106).

Isto é, para Burger, a vanguarda não apenas intenciona uma superação do modernismo, como também, e simultaneamente, da sociedade burguesa. A separação entre arte e vida (autonomia da arte), promovida pelo modernismo deveria ser superada pela vanguarda, ordenando um novo modo de vida e um novo modo de arte. Uma nova relação entre arte e vida, portanto. Ainda de acordo com Burger, a vanguarda (do começo do século XX) falhou em seu intento, e a relação arte e vida sonhada pela vanguarda, de criar uma vida que fosse ela mesma uma experiência estética, se deu em outros modos: por meio da relação fetichizada dos meios de comunicação de massa com a arte e os homens. No entanto, a música popular e a vanguarda mantiveram, em alguns momentos, pontos de contato. E esses pontos de contato quando pouco, criaram um tipo de música popular que se costumou chamar, por falta de termo melhor, de experimental, criando assim, mais um sentido para a já polissêmica expressão: música popular.

No dossiê Música popular: tradição e experimentalismo, que agora o leitor tem em mãos, intentamos publicar textos que aprofundassem essas discussões em torno da expressão música popular, embora não de modo exclusivamente teórico, mas tendo um objeto singular, concreto, histórico. Assim, no artigo A ópera no projeto de modernização do Brasil (Rio de Janeiro, 1889-1914), de Liliane Carneiro dos Santos Ferreira, a autora discute os primórdios da modernização musical no Brasil, por meio da ópera na então capital da recente República, apresentando o que seria, na época, uma escuta, uma música, uma prática musical e um gosto musical civilizados, elementos-chave para se entender, ainda que por oposição e/ou negação, os primórdios do surgimento da música popular no Rio de Janeiro.

Já no artigo Pianos, violões e batuques: caminhos da invenção artística e folclórica da ‘Musica Negra’ na Amazônia Paraense (1923-1940), Antonio Mauricio Costa apresenta outro aspecto da música popular, não a modernização, mas o outro da modernização, ou seja, o folclore. Esses dois artigos, conjugados, são estudos sobre os primeiros momentos do surgimento da música popular no Brasil, de fins do século XIX até a primeira metade do século XX. Dão conta, por meio de pesquisas específicas, dos dilemas em torno do erudito versus popular, bom gosto versus mau gosto, folclore versus modernidade, permanências versus rupturas, reflexões sobremaneira importantes quando o assunto é a música popular.

No artigo Show Opinião: quando a MPB entra em cena (1964-1965), Miliandre Garcia aborda um dos momentos centrais da constituição da chamada moderna música popular brasileira. A MPB - sigla surgida em meados dos anos de 1960 e que carrega consigo toda uma carga política - é estudada pela autora em sua relação com o teatro político da época, procurando estabelecer os contatos entre elementos da cultura popular e elementos mais intelectualizados na constituição daquele que seria o principal veio da música popular no Brasil ao longo de décadas, a saber, a própria MPB. O aspecto político da música popular, aqui, é explícito e a autora não se furta em demonstrar essa luta cultural/política travada na passagem de 1964, ano do golpe civil-militar, para 1965. Um momento crucial para o estabelecimento da MPB como força-motriz da música popular brasileira, desde então.

Por sua vez, em A fabricação da Pernambucália em Recife (1967-1973), Fabio Leonardo Castelo Branco Brito discute outro aspecto fundamental na constituição da moderna música popular brasileira, no caso, a Tropicália. No entanto, ele não o faz pensando no movimento tropicalista mais conhecido, ocorrido em São Paulo e liderado por baianos: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, entre outros. O autor centra sua pesquisa em Pernambuco, de onde emergem novos atores. Se a Tropicália, em sua versão mais conhecida, primou pela aproximação de opostos, o folclore e a cultura de massas, o experimentalismo e o cafona, a Pernambucália estudada por Brito não foi diferente, embora o autor destaque as singularidades da cena de Pernambuco, em geral, e de Recife, em particular. A “dança dos sentidos” da música popular, aqui, se concentra e se abre para novos sentidos. Trata-se de uma dança que não pretende ter um fim. E nem queremos que ela termine!

Referências

  • BURGER, Peter. Teoria da Vanguarda Trad. José Pedro Antunes. SP: Cosac & Naify, 2008.
  • BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
  • GREENBERG, Clemente. “Vanguarda e Kitsch”. In: Arte e Cultura Trad. Otacílio Nunes. SP: Cosac & Naify , 2013.
  • HALL, Stuart. “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”. In: Da Diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende et al., Belo Horizonte: Editora da UFMG/Humanitas/Unesco, 2003.
  • MIDDLETON, Richard. Studying Popular Music Glasgow, UK: Open University Press, 1990.
  • NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias. A questão da tradição na música popular. SP: Fundação Perseu Abramo, 2007.
  • SUBIRATS, Eduardo. Vanguarda, Mídia, Metrópoles SP: Studio Nobel, 1993.
  • Dossiê Música Popular: tradição e experimentalismo. Organizador: José Adriano Fenerick

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2018
  • Aceito
    01 Nov 2018
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br