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Nem liberto, nem escravo: os coartados em disputas judiciais (Mariana/MG - 1750-1819)

Neither Free, nor Slave: coartado people in legal disputes (Mariana/MG - 1750-1819)

RESUMO

De posse de um acordo de liberdade que previa o pagamento parcelado do seu valor, os coartados encontravam-se numa zona de incerteza entre a escravidão e a liberdade. Durante a vigência do coartamento, muitos já “viviam como forros”, mas alguns enfrentaram desafios para manter tal condição social e a expectativa de, em breve, transformar seu estatuto jurídico. A revogação da coartação por inadimplência ou desobediência das cláusulas previstas no papel de corte poderia resultar na reescravização. E para efetivá-la, evitá-la ou revertê-la, a Justiça foi acionada ora pelos outorgantes, ora pelos beneficiados. São esses conflitos registrados em dezenas de ações cíveis produzidas no juízo da cidade de Mariana, entre o século XVIII e primeiras décadas do XIX que este artigo enfoca. Busca-se, por meio deles, analisar as condições de validação e revogação da coartação, relacionando-as às diferentes estratégias dos litigantes para mover, sustentar e alcançar sentença favorável a seus interesses. É em meio a tais embates sobre a reescravização que sobressaem as práticas costumeiras que davam forma à coartação e, consequentemente, às possibilidades e limitações que marcaram as experiências dos coartados no cotidiano.

Palavras-chave
Coartados; Liberdade; Reescravização; Justiça; América Portuguesa

ABSTRACT

Coartado people were the slaves who had a contract predicting a payment in installments in exchange for their freedom, and therefore they found themselves in an uncertain zone between slavery and freedom. While they were coartados, many of these people “lived as freed people,” but some of them faced challenges to keep their social condition as well as their expectation of changing their judicial status in a short term. The revocation of a contract of coartação for non-payment or disobedience of another clause in the agreement could result in a lawsuit against slaves with the purpose of re-slavement. In order to avoid re-slavement, to reverse it or to put it into effect, sometimes masters sometimes slaves in process of being coartado recurred to the Court of Mariana to solve their conflicts. This article discusses these feuds between masters and slaves through dozens of Civil Actions in the Court of Mariana city between the beginning of the 18th Century and the first decades of the 19th century. The goal is to analyze the conditions of validation or revocation of lawsuits of coartação, relating different strategies of litigants to dismiss, sustain, or reach a favorable verdict according to their interests. It is in the middle of these disputes for or against re-slavement that emerged customary practices that shaped the processes of coartação, and consequently, that also shaped the possibilities and constraints faced by coartado people in their daily lives.

Keywords
Coartado People; Freedom; Re-enslavement; Court of Justice; Portuguese America

Enquanto antítese da escravidão, a liberdade foi quase sempre tomada como o destino almejado pelos sujeitos mantidos em cativeiro. Dentro dessa perspectiva, a conquista da alforria (ou a sua concessão sob o ponto de vista senhorial) destacava-se como a forma para se alcançar tal “progressão”. Percebidas como coisas distintas e totalmente segregadas, a passagem da escravidão para a liberdade só era possível por meio de uma mudança radical do estatuto jurídico - deixar de ser escravo para se tornar liberto. Melhor explicando em termos representativos, entre os dois universos paralelos - da escravidão e da liberdade - existia um caminho que promovia o trânsito no referido sentido: a alforria. Essa foi a visão que, sem dúvida, predominou na historiografia brasileira por muitos anos. Recentemente, porém, essa dicotomia e a ideia de uma transição num único sentido são questionadas. Aquela velha imagem bipolarizada tem sido substituída por outra que prioriza as interseções entre a escravidão e a liberdade, das quais resultavam movimentos nos diversos sentidos, ambiguidades e zonas de incerteza. Nelas se encontravam, por exemplo, os coartados, cujas experiências servem de fio condutor para a análise aqui proposta.

Fronteira nuançada

De início, vale lembrar que a coartação constitui uma modalidade de alforria. Alguns historiadores a identificaram como uma alforria onerosa por resultar da autocompra; o beneficiado se comprometia a pagar pela sua liberdade, quitando o valor previamente estabelecido em parcelas (PAIVA, 1995aPAIVA, E. F. Coartações e alforrias nas Minas Gerais do século XVIII: as possibilidades de libertação escrava no principal centro colonial. Revista de História, São Paulo - USP, n. 133, pp. 49-57, 1995a., p. 51). O prazo dado para sua inteira satisfação, a periodicidade dos pagamentos, o modo como seria adquirido o pecúlio, a delimitação dos locais onde o coartado poderia circular eram firmados e registrados no papel de corte1 1 Tratava-se de uma carta particular escrita de próprio punho pelo outorgante, ou a seu pedido. Após sua emissão, o corte poderia ser guardado por seu fiador (caso houvesse), ou entregue ao coartado para que lhe permitisse circular com autonomia em busca de trabalho, cujos rendimentos agenciariam sua liberdade. Depois de quitado, ele poderia ser registrado em cartório a fim de confirmar sua total quitação ou dar lugar a emissão de um novo documento: uma carta particular ou uma escritura pública de alforria. (ou no testamento). Por causa dessas condições, foi também salientado seu aspecto de alforria condicional (SOUZA, 1999SOUZA, L. de M. e. Coartação: Problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SOUZA, L. de M. e. Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, pp. 151-174., p. 158). Embora diferentes, essas classificações não são excludentes. Elas dão uma pequena mostra das dificuldades analíticas até então enfrentadas e, principalmente, evidenciam os aspectos singulares que caracterizaram tal prática.

Uma das singularidades apontadas é o fato de a coartação ter sido mais usual nas Minas Gerais, chegando mesmo a ser considerada uma “modalidade específica” da região (SOUZA, 1999SOUZA, L. de M. e. Coartação: Problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SOUZA, L. de M. e. Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, pp. 151-174., p. 156; AGUIAR, 2000AGUIAR, M. M. Quotidiano da população forra em Minas Gerais. Oceano, Viver no Brasil Colônia, Lisboa, n. 42, abril/jun., pp. 51-66, 2000.). A localização de casos dispersos pela América portuguesa (RUSSELL-WOOD, 2005RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Tradução de Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005., p. 69) confirma a impressão de que houve maior concentração de coartados na capitania das Minas Gerais, onde esse costume foi largamente difundido. Trata-se de uma particularidade do caso mineiro. Para Eduardo França Paiva (1995bEscravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume ; Belo Horizonte: Selo Universidade, 1995b., p. 90), ele estava atrelado à urbanização e ao dinamismo econômico resultantes da diversificação das atividades, aspectos que possibilitaram aos moradores das minas contornar a crise da extração aurífera (PAIVA, 1995bEscravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume ; Belo Horizonte: Selo Universidade, 1995b., p. 90). De fato, apenas na cidade de Mariana e seu termo, a libertação a prazo representou cerca de 30% dos 801 registros lançados nos livros de notas dos tabeliões, entre os anos de 1750 e 1779 (MONTI, 2001MONTI, C. G. O Processo de Alforria; Mariana (1750-1779). 2001. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001., p. 7-9 e 48), e sua ocorrência permaneceu significativa no século XIX (GONÇALVES, 1996GONÇALVES, A. L. As margens da liberdade: alforrias em Minas Gerais na primeira metade do século XIX. LPH: Revista de História, Ouro Preto, n. 6, 1996., p. 205).

Outra singularidade relevante para este artigo é a própria definição de coartado. Segundo Stuart Schwartz (1988SCHWARTZ, S. B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras/CNPq, 1988. , p. 214), “coartado era um escravo em processo de transição para a condição social de livre”. Dessa interpretação sobressai uma imprecisão: o coartado não podia ser equiparado a um escravo, mas também não era um liberto. Ele vivia numa fronteira nebulosa, entre a escravidão e a liberdade. E como tal foi reconhecido nos estudos subsequentes, como os que foram acima mencionados. Ao revisitá-los, chama a minha atenção o uso que fizeram de diversos documentos: escrituras dos livros de notas, testamentos, inventários, requerimentos e processos judiciais.

Com o manuseio e tratamento de uma ou mais fontes, os historiadores revelaram que a coartação possibilitava grande autonomia ao seu beneficiado, podendo o mesmo viver longe do proprietário, custeando o próprio sustento. Esse trato não estava restrito a um grupo específico, embora tenha favorecido em maior quantidade os escravos residentes em núcleos urbanos. Constataram também que a coartação era muito comum entre as libertações registradas em testamento, pois fora empregada como estratégia senhorial para assegurar o pagamento de suas dívidas, bem como a subsistência de seus dependentes. Já o acordo vigente ainda em vida permitia ao senhor incrementar seus rendimentos, sobretudo durante os períodos de recessão. Assim, passamos a conhecer melhor essa política de manumissão, ao mesmo tempo em que eram descobertas as estratégias dos coartados para obterem os recursos e investirem em sua liberdade.

Visando ao cumprimento dessa condição - a quitação das parcelas -, foi verificada a possibilidade de prorrogação do prazo dado inicialmente. Essa concessão e a punição prevista em caso de descumprimento foram observadas nas análises dos papéis de corte e verbas testamentárias. Se elas, por um lado, representaram uma flexibilidade na relação coartado-proprietário (como aponta PAIVA, 1995bEscravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume ; Belo Horizonte: Selo Universidade, 1995b., p. 88), por outro podem denunciar a dificuldade que os coartados encontravam para alcançar seu objetivo, sobretudo num cenário em que era grande o número de indivíduos nessa situação. A punição comumente registrada era a anulação da coartação e consequente retorno ao cativeiro de quem antes se encontrava num meio-caminho, entre a escravidão e a liberdade. Sabemos, hoje, que tal frustração e outros entraves enfrentados pelos coartados foram tratados em ações cíveis, algumas das quais já localizadas e investigadas por Laura de Mello e Souza e Renata Diório.

Ambas concordaram que a inadimplência gerou conflitos que escaparam da esfera privada de negociação e chegaram aos tribunais de Justiça, numa busca pela intermediação dessa instância pública para que a boa ordem fosse restabelecida. Diório (2008DIÓRIO, R. R. Negociando a liberdade: as coartações e seus entraves judiciais na cidade de Mariana na segunda metade do século XVIII. In: XIX ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA: PODER, VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Renata%20Romualdo%20Diorio.pdf >. Acesso em: 20 de maio de 2017.
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) destacou os processos movidos pelos proprietários que reivindicavam a revogação da coartação; Souza (1999SOUZA, L. de M. e. Coartação: Problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SOUZA, L. de M. e. Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, pp. 151-174.), por sua vez, expôs também casos em que os próprios coartados recorreram ao juízo, querendo obter garantias de que viveriam em liberdade após ser reconhecida a completa execução de suas coartações. De encontro com essas últimas demandas estão dois outros casos examinados por Paiva (2004 . Revendications de droits coutumiers et actions en justice des esclaves dans les Minas Gerais du XVIIIe siècle.Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, v. 53-54, pp. 11-29, 2004.).2 2 Eduardo França Paiva equipara os requerimentos enviados ao governador a litígios judiciais; porém, tais documentos apresentam praxes distintas em decorrência, inclusive, de suas finalidades. De modo geral, enviar um requerimento a uma autoridade para que esta interviesse em um desentendimento pode ser considerado uma forma alternativa de buscar proteção fora de um tribunal, evitando-se, com isso, a demora e o ônus de um processo. Também pode ter servido como estratégia para informar um juiz sobre o tipo processual a ser autuado, como veremos neste artigo. Daí se percebe a importância de se diferenciar um requerimento de uma demanda judicial. Em requerimentos encaminhados ao governador da capitania, os coartados manifestaram a vontade de garantir, sob a proteção de um representante do rei de Portugal, o cumprimento final de seus acordos de libertação.

Em conjunto, esses estudos evidenciaram que a coartação gerava tensões que, ocasionalmente, extrapolaram o âmbito doméstico das relações entre os envolvidos. Além disso, despertam grande interesse no avanço de tais investigações, pois se faz notória a necessidade de melhor compreendermos aspectos constituintes desse acordo de libertação, os quais podem ser explorados a partir dos embates que resultaram na autuação de processos judiciais. De fato, as estratégias e os argumentos de defesa de cada uma das partes que poderiam auxiliar nessa tarefa acabaram não sendo problematizados, mesmo sendo a Justiça percebida como instrumento de resistência ao ser acionada por “escravos coartados” (PAIVA, 2004 . Revendications de droits coutumiers et actions en justice des esclaves dans les Minas Gerais du XVIIIe siècle.Cahiers du Brésil Contemporain, Paris, v. 53-54, pp. 11-29, 2004.). Talvez essa desatenção resulte da crença de que a quebra do compromisso seria o bastante para que “ambos os lados se vissem desobrigados e desimpedidos para voltarem atrás” (SOUZA, 1999SOUZA, L. de M. e. Coartação: Problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SOUZA, L. de M. e. Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, pp. 151-174., p. 164); ou que a anulação de um papel de corte, tal como uma promessa verbal, seria mais fácil do que uma alforria registrada em cartório (DIÓRIO, 2008DIÓRIO, R. R. Negociando a liberdade: as coartações e seus entraves judiciais na cidade de Mariana na segunda metade do século XVIII. In: XIX ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA: PODER, VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 2008. Disponível em: <Disponível em: http://www.anpuhsp.org.br/sp/downloads/CD%20XIX/PDF/Autores%20e%20Artigos/Renata%20Romualdo%20Diorio.pdf >. Acesso em: 20 de maio de 2017.
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, p. 8). Nessa perspectiva, os desentendimentos que resultaram em litígios judiciais foram vistos pelos estudiosos como exceções; entretanto, a existência deles já constitui forte indício de que, na prática, os percalços poderiam ter sido mais frequentes, tanto que parte deles não dispensou a interferência do Estado.

Considerando a riqueza de informações coligidas nas ações cíveis, pretendo neste artigo utilizá-las de forma sistemática para aprofundar nosso conhecimento a respeito das condições de validação e anulação das coartações, visando lançar novo olhar sobre os desafios, as escolhas e estratégias de resistência dos coartados. Pretendo aqui seguir uma pista dada por Souza (1999SOUZA, L. de M. e. Coartação: Problemática e episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SOUZA, L. de M. e. Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999, pp. 151-174., p. 169): abordarei tal acordo de libertação como um “vasto espaço de manipulação mútua, em que senhores e escravos jogavam um xadrez complicado”. Revisitarei, então, suas peças para explorar suas regras. Antes devo questionar a própria ideia de que, invariavelmente, o coartado era reputado como um escravo, embora se diferenciasse dos demais por desfrutar de maior autonomia e viver na expectativa de uma liberdade já acertada. A história de Narcisa Ribeiro me permite, já de início, demonstrar as ambiguidades experimentadas por aqueles que se encontravam numa zona de interseção entre a escravidão e a liberdade.

Narcisa era uma coartada que vivia como forra e que, para sua surpresa e desaponto, acabou arrematada como escrava em praça pública, na cidade de Mariana, por Domingos Gonçalves Fontes.3 3 A arrematação em hasta pública significava a venda de um bem por intermediação da Justiça. Era realizada em casos de execução de dívidas e de necessidade de se desfazer da propriedade de um indivíduo ausente ou falecido. Para tanto, num determinado dia, os bens eram anunciados em praça pública, e os interessados deviam oferecer um preço para adquiri-los, alcançando esse objetivo aquele que desse maior lance. Descontente com a situação, vendo-se novamente submetida a um domínio senhorial, a crioula fugiu. Tempos depois, em janeiro de 1769, ela iniciou uma ação cível no Juízo Geral daquela cidade. Narcisa queria, com isso, que sua arrematação fosse julgada “nula e dolosa”. E mais: ela pedia que seu antigo acordo de liberdade fosse restaurado e conservado, sendo mantido “firme e valioso” o papel de corte (Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 317, Auto 7569). A existência desse documento explica, em parte, a resistência da crioula em aceitar um novo cativeiro. Ela declarou nos autos que os credores de seu senhor a tinham coartado por ordem deste, quando ele estava prestes a morrer. Com isso, João Antônio Galvão havia garantido um meio de saldar suas dívidas e, ao mesmo tempo, de libertar sua escrava. O acordo foi firmado em 100 oitavas de ouro, valor afiançado por Manuel Ribeiro de Souza, responsável também pela guarda do papel de corte, então emitido e assinado pelos próprios credores de Galvão.

Como era esperado, Narcisa Ribeiro “foi pagando o seu corte”. Mas, quando restavam 40 oitavas de ouro para a sua inteira satisfação, ela “se agastou com o seu fiador”. Por causa da desavença, quis ter consigo aquela prova de sua quase liberdade - o tal papel de corte e os recibos das parcelas quitadas. Com esse objetivo e tendo sido encorajada por várias pessoas, foi em busca de ajuda. A crioula estava convencida de que o supracitado Domingos Gonçalves Fontes “patrocinaria o pleito da cobrança [daquele documento] contra o dito fiador”. Ao encontrá-lo, Narcisa confirmou o fato de ele ser alguém interessado em seu caso, enquanto procurador de um dos credores do seu ex-senhor (portanto, um dos homens que havia firmado a sua coartação).4 4 Domingos Gonçalves Fontes era procurador de José Pereira Simas, ausente das Minas Gerais por ter retornado a Portugal. Narcisa contou a Gonçalves Fontes detalhes de seu conflito com o fiador de sua coartação e manifestou o desejo de lhe tomar seu papel de corte. Ao ouvir seu relato, seu suposto aliado lhe propôs a seguinte estratégia: “deixar-se arrematar para [conseguir] sua liberdade barata”. Segundo o conselho, Narcisa deveria descumprir a obrigação de quitar as parcelas faltantes da coartação; por conta disso e para que a execução das dívidas do falecido Galvão pudesse ser assegurada, ela seria puxada ao cativeiro e levada a leilão em praça pública. Então, depois de previamente acertar um pequeno valor com este pretenso arrematante, ela seria arrematada por ele e, em seguida, colocada em liberdade ao reembolsar a quantia despendida na sua compra.

Assim combinaram. E, com efeito, Narcisa, por ser considerada inadimplente, foi reduzida à escravidão, levada a leilão e adquirida por Gonçalves Fontes. Porém, não demorou muito para ela perceber que havia sido enganada. Diferente do que ajustaram informalmente, o arrematante a declarou e pretendeu mantê-la como sua escrava - o que explica a sua fuga e, mais tarde, seu recurso à Justiça para demonstrar a “falsidade” da sua arrematação e defender a validade e manutenção do acordo anterior, o de coartação, conforme já mencionei. Da tragédia vivida por Narcisa não poderia deixar de ressaltar o fato de sua coartação ter sido revogada. Tal situação, contudo, discutirei nas próximas seções, pois agora o que importa é destacar que não foi como coartada, muito menos como escrava, que ela recorreu ao tribunal marianense.

Na petição que deu início ao litígio, bem como nas outras que apresentou ao longo da tramitação desse processo, Narcisa se declarou forra. Foi como tal que ela própria requereu, em seu nome, que o juiz ordinário a conservasse em liberdade para satisfazer a sua coartação. Entretanto, como ela poderia ser forra se ainda não havia concluído o pagamento da sua coartação? Aqui está o imbróglio! Volto a afirmar que é comum na historiografia que o coartado seja reconhecido como escravo. De acordo com Paiva (1995PAIVA, E. F. Coartações e alforrias nas Minas Gerais do século XVIII: as possibilidades de libertação escrava no principal centro colonial. Revista de História, São Paulo - USP, n. 133, pp. 49-57, 1995a., p. 51), “em momento algum ele (o coartado) deixava de ser escravo, mesmo que se diferenciasse dos outros pelos privilégios temporários”. Disso, porém, discordava Narcisa. E devo salientar que, por ter recorrido à Justiça, ela considerava ser seu ponto de vista capaz de convencer o juiz. Sem dúvida, sua expectativa constitui um indício para retomarmos as interpretações acerca das coartações.

Na primeira metade do século XVIII, o dicionarista Rafael Bluteau definiu como forro “aquele a quem seu próprio senhor tem dado liberdade”, tal como o liberto, que designou como “escravo forro” ou “um escravo que tem carta de alforria” (BLUTEAU, R. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, vol. IV, p. 182; vol. V, p. 113-114). Portanto, forro e liberto eram sinônimos empregados para designar os indivíduos que gozavam de suas liberdades por terem alcançado título, isto é, uma carta ou escritura de alforria. Esse, sem dúvida, não era o caso de Narcisa. Com os instrumentos de que poderia dispor para definir seu estatuto jurídico - um papel de corte ou um título de arrematação -, a disputa jurídica parecia limitada a reconhecer um ou outro, e nenhum deles lhe conferia o estatuto de mulher forra. Apesar disso, ela alegou que sempre estivera “na posse da sua liberdade” desde que fora coartada.

Mesmo não tendo detalhado a expressão “viver na posse da sua liberdade”, é muito provável que para Narcisa isso significasse que, desde a morte do seu ex-senhor, ela vinha cuidando de sua própria sobrevivência material, trabalhando para se sustentar e pagar sua coartação. Ao desfrutar de tamanha autonomia, afastava-se do tratamento normalmente conferido aos escravos e aproximava-se das experiências vivenciadas pelos alforriados. Nessa circunstância, a coartação já havia conferido sua remissão do cativeiro e, talvez por isso, para ela e para as pessoas do seu convívio fosse adequada a identidade de “crioula forra” e “preta forra”, ambas registradas no seu processo.

O uso dessas expressões parece se ajustar mais ao conceito estabelecido por Antônio de Moraes Silva no dicionário publicado em 1789, em que forro era aquele “que saiu da escravidão”, assim como o liberto era “o que (foi) escravo e se acha[va] livre” (SILVA, A. de M. Diccionario da lingua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado... Lisboa, Typographia Lacerdina, 1813, vol. 2, p. 51; 221-222). Nota-se aqui um distanciamento das descrições de Bluteau que, no início do século XVIII, ainda mantinha a condição escrava para um forro e preconizava a concessão senhorial, bem como a emissão de título para se obter a liberdade e se tornar, portanto, um “escravo forro”. Diferentemente, escrevendo quase um século depois, as definições de Moraes enfatizam uma oposição entre escravidão e liberdade, sem, contudo, fazer referência aos meios para a transposição entre um e outro estado. Aqui a autorização senhorial e a existência da alforria não são mencionadas. Com isso, as expressões “sair da escravidão” e “se achar livre” transparecem maior mobilidade, amparada no usufruto do estado livre e não no domínio atestado em documento.

Ao que parece, por ter saído do cativeiro e ter se achado livre por muito tempo antes de sua arrematação, Narcisa preocupou-se em destacar bem sua posição: o de forra que havia “adquirido jus na sua liberdade” e que queria concluir o pagamento do seu corte para fora da escravidão permanecer. Em outras palavras, a crioula vivia como forra, essa era a condição social, a qual defendia em associação ao seu estatuto jurídico de mulher coartada e, ainda, em oposição ao de escrava - como queria Gonçalves Fontes após sua arrematação. Fica claro que havia uma distinção entre estatuto jurídico e condição social, e que a correspondência entre tais variáveis não caminhava de modo simples e direto.5 5 Creio que a disparidade entre o estatuto jurídico, ou seja, o domínio da liberdade, e a condição social entendida como o usufruto ou a posse da liberdade fora recorrente no século XVIII. Eram múltiplas as experiências em torno do domínio e do usufruto da liberdade. Por isso, a separação e a diferenciação entre tais concepções constituem uma importante chave de leitura para os conflitos judiciais acerca da coartação. Assim, compreende-se o fato de Narcisa Ribeiro requerer em juízo ser mantida em liberdade, como forra, para continuar pagando sua coartação, contestando a validade de sua arrematação e sujeição como escrava. Era a condição social vivida, ou seja, sua experiência em liberdade que lhe permitiria defender sua coartação, um meio de alcançar futuramente a posse do estatuto jurídico correspondente ou, como queira, o domínio legal da liberdade e seu título.

Infelizmente, não é possível saber se sua estratégia foi vitoriosa;6 6 Sua contenda não tem um desfecho porque os autos estão incompletos. Suponho que partes dele tenham se perdido ao longo do tempo. independentemente disso, ela ilustra bem a complexidade das relações que marcaram o cotidiano dos coartados. Se para alguns deles essa fase intermediária foi uma experiência muito próxima ao cativeiro, para outros foi o momento de exercitar a autonomia, havendo ainda os que viveram alternando entre as relações de submissão e de emancipação. De modo geral, as incertezas, características dessa fase, resultam da instabilidade quanto ao usufruto da liberdade: não tinham certeza se dela poderiam ou não desfrutar durante o período da coartação. Era preciso negociar tais condições ao firmar tal acordo, mas também para mantê-lo vigente. Este era o desafio! E nada estava previsto na legislação do Império português sobre as coartações que iam tomando forma no cotidiano das relações interpessoais e, quando necessário, eram debatidas e ajustadas na arena jurídica.7 7 De certo modo, a atuação pontual para o restabelecimento da ordem é o que caracterizou o funcionamento da Justiça no Antigo Regime. A apreciação do caso concreto para solucioná-lo de forma mais adequada, estando atento às suas particularidades, era o que determinava a atuação dos advogados e juízes. Embora esses agentes fossem guiados por princípios gerais do Direito, eles também observavam a prática do lugar de seu foro quanto a questões semelhantes, havendo ainda a possibilidade de que inovações se mostrassem necessárias. Sobre o modo de funcionamento da Justiça no Antigo Regime e suas características principais - o pluralismo do ordenamento jurídico, o casuísmo, a equidade e a graça, ver Hespanha, 2006, pp. 21-41.

A defesa da liberdade usufruída ou perdida

No interior da colônia, em Mariana - um importante centro minerador e escravista -, dezenas de embates foram travados em torno das coartações. Em tais litígios, foram expostas várias situações vivenciadas pelos coartados. Geralda Felícia, por exemplo, manteve-se sob a tutela do capitão José Ferreira da Cunha Moniz (AHCSM - 2º Ofício, Justificações, Códice 148, Auto 3201). Foi o Dr. Antônio José Ferreira da Cunha Moniz que assim determinou em seu testamento. Ele queria que, após da data do seu falecimento, a “crioulinha” passasse para a companhia do seu testamenteiro, que ficou encarregado de lhe ocupar com os serviços que achasse conveniente e pelo tempo necessário para satisfazer 30$000 réis. Assim sucedeu e, a partir de outubro 1797, o capitão Souto reteve Geralda Felícia sob seu domínio, colocando-a para trabalhar em seus serviços minerais.8 8 Assim eram designadas as propriedades e os instrumentos usados na extração do ouro. Já sob o mando do seu próprio senhor permaneceu o pardo Domingos Pereira Fidalgo. Ele foi coartado em 15 de fevereiro de 1776 com a obrigação de quitar parcelas iguais a cada seis meses e não sair da casa de José Gonçalves Pardelhas até completar o valor total de 307$200 réis, no decurso de cinco anos. Sendo assim, tais coartados ficaram sujeitos à dominação de terceiro e do senhor outorgante, respectivamente, podendo pouco exercer suas vontades.

Diferentemente, maior autonomia conseguiram outros indivíduos que tiveram as relações de submissão rompidas desde o início de suas coartações. Ana Crioula, depois que recebeu seu papel de corte em 2 de janeiro de 1791, “saiu sem demora do domínio, e poder” de Diogo de Souza Cardoso. Logo “passou a andar, como livre, tratando da sua vida, por onde muito lhe parecia”; a prova disso é que ela habitava independente do outorgante do coartamento e distante dele, numa outra freguesia do termo marianense (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 359, Auto 9156, fl. 3v. - grifo meu). A preta Angola Mariana vivia “sobre si como forra, sendo constante que se achava coartada” por Rosa Fernandes da Silva, que lhe passou papel de corte em 13 de novembro de 1794 (AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 393, Auto 8602, fls. 8-8v - grifo meu). Antônio Benguela foi coartado em testamento e, com a morte do seu senhor em janeiro de 1790, também ficou “em estado livre, tratando da vida, e girando por onde muito lhe parecesse” (AHCSM - 2º Ofício, Justificações, Códice 149, Auto 3205, fl. 3 - grifo meu).

A leitura dos processos deixa a impressão de que, mais frequentemente, foi facultado aos coartados que desfrutassem da liberdade durante a vigência dos seus acordos de libertação. Talvez porque disso dependessem, em grande parte, a obtenção do pecúlio e o sucesso dessa empreitada. Isso os colocava em vantagem se comparados, por exemplo, aos alforriados sob condição. Muito provavelmente, por esse motivo, Catharina de Sena preferiu o corte em detrimento de outro acordo, que poderia forçá-la a continuar trabalhando por um período determinado para alcançar sua plena libertação. No papel de corte, escrito em abril de 1758, o Dr. Manuel da Guerra Leal de Souza e Castro declarou que anteriormente tinha passado a ela “um papel com adição, e cláusula de [lhe] servir cinco anos em [sua] casa e que cumprindo a dita condição, e mais [outras] (…), purificadas todas, (…) lhe daria a liberdade” (AHCSM - 2º Ofício, Notificações, Códice 173, Auto 4205, fl. 3). E acrescentou ele: “como a dita crioula recus[ou-se a] cumprir e satisfazer as ditas condições, e [lhe] ped[iu] antes a cort[asse]”, assim o fez pelo preço de 100$000 réis e por igual tempo de cinco anos, devendo ser quitadas cinco parcelas de 20$000 réis a cada ano.

Percebe-se que Catharina teve papel decisivo no ajuste do seu acordo de liberdade por ter conseguido ser coartada, em detrimento do “papel com adição” que a deixava numa condição de vida muito próxima à escravidão. Sua escolha deve ter sido pautada na autonomia que o corte poderia e, efetivamente, lhe proporcionou. Enquanto o cumprimento da prestação de serviços do “papel com adição” a obrigaria a permanecer na companhia do Dr. Souza e Castro, o pagamento de parcelas anuais da coartação lhe permitiu gerir a própria vida, tanto que se ausentou do termo de Mariana. De fato, a crioula estava no Rio de Janeiro em fins do ano de 1762 (antes de quitar sua coartação), e lá, no dia 10 de dezembro, fez uma procuração para nomear um representante capaz de cuidar de seus interesses na cidade que deixou em Mariana. Nesse instrumento público, Catharina de Sena foi identificada como “preta forra”, portanto, apta para lavrá-lo em cartório.

Em fevereiro de 1763, Catharina usou tal procuração para ser representada no tribunal marianense numa notificação movida contra o Dr. Souza e Castro. Este havia recusado aceitar o restante do valor da coartação da crioula e, por esse motivo, ela demandou que o mesmo fosse intimado a receber tal quantia para, em troca, lhe emitir a manumissão. É muito provável que ele tivesse se arrependido de ter passado a coartação, mas não fez nenhuma intervenção no processo após ser notificado. Talvez por saber, sendo ele advogado, que diante das provas apresentadas - o papel de corte dentro do prazo nele estabelecido e o recibo do pagamento de mais da metade do valor devido9 9 Ela desobedeceu à condição de pagar parcelas anuais, mas não creio que isso tenha sido motivo para invalidar sua coartação. - a causa não lhe era favorável. Dando prosseguimento, Catharina depositou em juízo a última parcela da sua coartação e solicitou que o réu não pudesse levantá-la sem, “ao mesmo tampo”, lhe passar a carta de alforria. Em resumo, depois de negociar e alcançar a coartação, gozar de um estado livre ainda na vigência desse acordo, essa mulher lutou para saldá-lo e, enfim, conquistar sua manumissão.10 10 O “papel com adição”, ou melhor dizendo, a alforria condicional de Catharina foi escrita em 6 de dezembro de 1757 e registrada em cartório um ano depois, quando a crioula já detinha sua coartação (o papel de corte foi feito, portanto, nesse intervalo). Curiosamente, Catharina de Sena estaria, ao mesmo tempo, forra sob condição e coartada. O ato de lançar no livro de notas do tabelião aquele primeiro documento pode ser entendido como uma garantia do usufruto senhorial… e talvez tivesse acontecido após Catharina ter deixado o termo de Mariana sem tratar de avisar qual o seu destino. Essa, porém, é apenas uma suposição levantada na tentativa de explicar o fato bastante intrigante. Nada a esse respeito consta no processo movido por Catharina de Sena, e é bem possível que ela não tivesse conhecimento de tal registro cartorial. Tal informação encontrei em outro estudo sobre alforrias, Monti, 2001, p. 132.

Se ela alcançou o objetivo, não sabemos; nada mais foi acrescentado aos autos, nem mesmo suas custas. Apesar dessa incerteza, a história de Catharina reforça a impressão de que o caminho entre a coartação e a alforria poderia ser bloqueado. E o mais interessante: do seu caso sobressaem suas opções, tanto para construir tal caminho de libertação, como para superar seu bloqueio. Depois de escolher a coartação em detrimento a uma alforria condicional ela acionou a Justiça como forma de obter - de um versado em leis - o título capaz de lhe dar o domínio da liberdade que já usufruía. Catharina moveu suas peças no tabuleiro de xadrez... fez escolhas audaciosas, porém ao seu alcance. Assim, reagiu diante da possibilidade de ter sua coartação frustrada e se ver reduzida novamente ao cativeiro. E ela não foi a única que resistiu. Como Catharina de Sena, outros coartados se opuseram às ameaças ou às efetivas práticas de reescravização, fosse como autores ou réus de ações cíveis.

É certo que o temor de a coartação ser revogada atormentou os beneficiados desse acordo, em especial aqueles que já viviam em liberdade. Em resposta, alguns buscaram firmar judicialmente a validade do papel de corte e, com isso, conservar o usufruto da liberdade e a expectativa de alcançar seu domínio (a libertação plena), quando a totalidade do seu preço estivesse paga. Ciente dessa possibilidade e de que Antônio Carvalho da Silva havia colocado capitães do mato à sua procura para levá-la de volta à casa e companhia dele, a coartada Josefa Maria requereu, em 1772, que o mesmo fosse notificado a não “reduzi-la ao cativeiro” sem que essa vontade fosse autorizada pelo juiz de Mariana, ou melhor dizendo, “que [ele] não intend[esse] com a Suplicante sem primeiro a convencer por Sentença” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 611, Auto 23552, fl. 2 - grifo meu). Dessa forma, Josefa Maria alegou que não bastava a parte outorgante (ou seu herdeiro) desistir do acordo de libertação para se desobrigar a cumpri-lo. Não obstante a força e autoridade senhorial, sua revogação deveria passar pelo crivo de um juiz.

A preta Mina afirmou ter sido coartada pela sogra de Carvalho da Silva e, como tal, “esta[va] na sua liberdade tratando de sua vida”. Nesse estado, reivindicava ser mantida, opondo-se ao esforço de reescravização empreendido pelo parente de sua falecida senhora. Para afastar a suspeita de que fosse escrava fugida e impedir sua prisão por capitães do mato, Josefa Maria anexou aos autos uma certidão da verba do testamento em que fora coartada. Sem dúvida, o documento serviu para fortalecer seu pedido de manutenção da liberdade, por atestar a concessão do corte como última vontade senhorial. E parece que a estratégia deu certo. Os autos foram abandonados depois de o advogado de Carvalho da Silva tomar conhecimento da sua matéria e os devolver sem nada intervir em sua defesa. Esse desfecho sugere que ela conseguiu seu objetivo no âmbito privado e que o resultado favorável à liberdade não foi submetido a uma apreciação judicial.

Noutro caso, a publicação de uma sentença confirmou um desfecho favorável para dois coartados, Antônio Angola e João Angola. Em janeiro de 1806, eles recorreram ao governador da capitania para reclamar de um ato fraudulento que invalidava seus papéis de corte e ignorava o fato de eles “estarem no uso dos referidos coartamentos, tendo já dado as parcelinhas [lançadas] em recibo” (AHCSM - 2º Ofício, Notificações, Códice 167, Auto 4003, fl. 2 - grifo meu). Afirmaram que seu senhor, depois de sofrer um acidente na lavra, não havia recuperado a saúde e, além de doente, achando-se velho, fizera um testamento no qual passava todos os seus bens para o capitão José Rodrigues Durão. Além disso, havia o boato de que “fizeram ao enfermo assinar um papel pelo qual dava tudo quanto possuía ao dito comandante”, e nessa doação em vida teriam sido os dois africanos arrolados como escravos. Por causa dessa suposta e dolosa transferência de bens, eles achavam que eram procurados por capitães do mato para serem apreendidos e entregues ao domínio daquele novo senhor.

Ainda que tudo não passasse de uma suspeita, Antônio e João preferiram não esperar que a boataria que corria pela vizinhança se confirmasse. “Por astúcia escaparam fugidos” e decidiram lutar para que “não fossem violentados os seus sossegos”. Com esse intuito, foram se valer do amparo de um representante da Coroa, que presumiram fosse capaz de enfrentar o poderio local do capitão Durão. Para melhor fundamentar o pedido de proteção, junto ao relato anexaram suas coartações e recibos. Em vista desses documentos, os pretos Angolas solicitaram ao governador que encaminhasse o caso ao juiz de fora do termo de Mariana, para que este cuidasse de averiguar a verdade dos fatos e, se necessário, impedisse qualquer violência contra a liberdade deles. Em deferimento, no dia 12 de maio de 1806, o capitão Durão e o senhor que outorgou as coartações foram notificados a comparecer no tribunal para responderem à acusação de transgressão do acordo de liberdade.

Mas, em vez de cumprir tal determinação, o capitão Durão remeteu uma carta alegando a impossibilidade de ele e o velho senhor se deslocarem da freguesia do Inficionado, onde moravam, até a cidade. Confirmou a existência e a autenticidade do papel de doação mencionado e, portanto, assegurou que os litigantes eram seus escravos. Para validar sua versão, ele também remeteu ao juiz de fora um documento: a carta particular que tratava dessa matéria. Diante dos papéis de corte, de seus recibos e do papel de transferência de bens, o magistrado decidiu que Antônio e João, depois do susto, deviam ser “manutenidos na posse de seus coartamentos”; por outro lado, reservou ao capitão Durão o direito de “reduzi-los à escravidão pelo meio ordinário”. Ou seja, o suposto senhor poderia tentar impor sua autoridade movendo outra ação cível para provar que os implicados eram seus escravos. Enquanto isso, sem uma decisão judicial a respeito do estatuto jurídico de Antônio e João, ambos continuariam desfrutando da liberdade e, muito provavelmente, assim viveram bem longe daquela pequena localidade onde seu oponente poderia lhes impor violentamente o seu poder de mando.

Querendo também continuar em liberdade, a coartada Jacinta Vieira da Costa buscou maior prevenção. Ela já havia alcançado sentença semelhante àquela proferida em benefício de Antônio e João. O juiz de fora assegurou que a crioula “não dev[ia], sem ser ordinariamente convencida, sofrer o cativeiro em poder” de Manuel Vieira da Costa, que já havia apreendido a crioula fiandeira (AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 468, Auto 10374, fl. 3v. - grifo meu). A soltura de Jacinta foi ordenada depois de ter o magistrado apreciado o conteúdo do requerimento por ela encaminhado ao governador com documentos anexos: o papel de corte e os vários recibos das parcelas quitadas (como sucedeu no caso anterior). Depois desse episódio, tendo já retornado à liberdade e desejando nesse estado ser mantida, em 14 de novembro de 1811 ela solicitou a autuação dos referidos documentos que lhe garantiam proteção contra o risco da reescravização, para assim conseguir um mandado de manutenção de liberdade.

A medida visava garantir a preservação do estado livre da crioula coartada: com o mandado em mãos, ela poderia resistir às novas tentativas de captura e assegurar que ficaria em liberdade durante toda a tramitação de um libelo cível de redução ao cativeiro, caso essa ação fosse movida por Manuel Vieira da Costa. Josefa considerou o recurso necessário porque “tem[ia] ainda ser perturbada na posse da sua liberdade” e acreditava ser essa medida de segurança suficiente para combater o perigo de retornar ao cativeiro de modo violento, fora da instância jurídica. Ela já havia sofrido uma tentativa de ser empurrada novamente para a escravidão, e essa situação certamente passou a pautar sua conduta e estratégias no âmbito doméstico e público. Sua experiência e, supostamente, a de outros conhecidos lhe ensinaram sobre a importância de se amparar nos documentos que já tinha consigo - como a carta de coartamento e seus recibos - como também produzir outros que lhe permitissem afastar a ameaça da reescravização - como o mandado de manutenção.

Essa foi a lição também aprendida e ensinada por Quitéria Maria Corrêa. Ela reivindicou sair do cativeiro em que estava submetida e retornar à liberdade que antes usufruía enquanto cortada. Assim como Narcisa, personagem já conhecido do leitor, Quitéria Maria teve sua coartação interrompida e acabou reescravizada. De acordo com sua versão, ela fora escrava de um casal de moradores no arraial do Calhambau, freguesia de Guarapiranga (termo de Mariana) e dada em dote à filha, Juliana Maria, casada com Joaquim Vieira de Souza. Os novos senhores a coartaram pelo preço de 192$000 réis a ser pago em quatro anos e meio, e imediatamente Quitéria Maria apresentou pessoa responsável por abonar sua dívida. O papel de corte ficou em poder do tal fiador, e a coartada logo passou a “tratar de sua vida para satisfazer o seu preço”. Assim, conseguiu efetuar parte do pagamento, “tornando firme e valioso o contrato de liberdade” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 295, Auto 7134, fl. 2 - grifo meu).

Gozando de autonomia, mas ainda tratando de alcançar sua plena libertação, a crioula resistiu às investidas do senhor que com ela pretendia manter “ilícita amizade ou mancebia”. Enraivecido com a recusa, Joaquim Vieira de Souza “foi ter com o fiador e exigiu a si o dito papel de coartamento e o rasgou”. Em seguida, apreendeu Quitéria Maria e a vendeu como escrava a João Severino Ventura, também morador em Guarapiranga. Nesse cativeiro, a crioula esteve por quatro meses e meio, e reagiu ao perceber que seria vendida para “paragem não sabida”. Temendo tal deslocamento, ela fugiu e refugiou-se na casa de sua “senhora velha”, a mãe de Juliana Maria. Em seguida, reivindicou sua restituição ao estado livre num requerimento encaminhado ao futuro Visconde de Condeixa, então governador da capitania. Ele, por sua vez, remeteu o poder de decisão ao juiz de fora de Mariana.

Este, assim encarregado, ordenou que os réus fosse citados um pronunciamento daqueles que coartaram. Na ocasião, Joaquim Vieira de Souza entregou ao oficial de justiça uma carta na qual confessou ter concedido papel de corte à crioula e depois a vendido. Diferente do que ela alegou para justificar esse ato, o ex-senhor afirmou que tal negociação resultou do descumprimento das condições do acordo de liberdade. Ele havia determinado limites geográficos à circulação da coartada, mas ela foi apanhada fora desse espaço; com isso, considerou “que bastava ter ela arrebentado as condições do ajuste para ser apreendida como foi (…) e que também a podia dispor como a dispôs por entender assim ser a mesma justiça”. Quitéria Maria replicou. Disse que não havia “excedido o convencionado”, e principalmente que “jamais devia [ter sido] pega e vendida pelo Suplicado por sua própria autoridade e sem ser a Suplicante ouvida e convencida competentemente”. Para ela, não cabia a Vieira de Souza anular sua coartação: esta seria a atribuição de um juiz. Ela não poderia, portanto, ter sido reescravizada antes de se defender e perder a causa em juízo.

Em razão das manifestações das partes envolvidas, o juiz de fora determinou a abertura do processo para que o casal de réus fosse chamado a contestar o requerimento feito por Quitéria Maria sobre a restituição da liberdade “em que antigamente se achava” por ter sido coartada. Mas, antes de isso acontecer, a crioula informou, numa petição, que Vieira de Souza havia se ausentado para o Rio de Janeiro, requereu a citação da esposa e a emissão de um a carta precatória geral para se proceder a intimação dele onde quer que fosse encontrado.11 11 Por meio de uma precatória geral, um juiz autorizava, por carta, que outros juízes pudessem citar o réu fugitivo, cujo local de residência tornou-se desconhecido. Por fim, pediu também um mandado de manutenção de liberdade. O juiz a tudo deferiu; no entanto, nada mais foi registrado nesses autos. De posse do mandado solicitado, a crioula teria voltado a desfrutar da liberdade e, segura de que não seria mais transferida para um cativeiro afastado dali, certamente não teve a preocupação de seguir com o pleito. Afinal, ela havia conseguido preservar sua autonomia em Guarapiranga e afastar o risco de ser transferida como escrava para região ignorada.

Impossível não admirar a conquista de Quitéria Maria. Muito embora não tenha sido determinado o seu estatuto jurídico - se escrava coartada ou simplesmente escrava -, ela pôde sair do cativeiro e voltar a viver em liberdade teve o usufruto. Afinal, foi para isso que ela resistiu. E para melhor entender tal resultado, torna-se necessário enfatizar sua defesa. A crioula afirmou que alguns fatores tornavam “firme e valioso” seu “contrato da liberdade” e lhe permitiram, durante sua vigência, desfrutar do estado livre “sem sujeição de pessoa alguma”. Sua autonomia resultou da satisfação da primeira parcela da sua coartação (48$000 réis do total de 192$000 réis). Ela havia cumprido a condição do pagamento, efetuando-o antes de completar o primeiro ano do seu ajuste e - o mais importante - havia prestado um fiador para sua coartação. Ao firmar tal acordo, como mencionei anteriormente, Quitéria apresentou ao seu senhor uma pessoa abonada que, por ela, quando impedida, pagaria o valor contratado para a sua libertação, assegurando sua completa quitação. Por causa de tais procedimentos, a crioula passou a "viver sobre si" quando ainda estava em vias de alcançar a alforria. Se tudo isso não bastou para evitar sua reescravização por ordem senhorial, garantiu maiores chances de sucesso em seu pleito.

A estratégia de Quitéria Maria foi semelhante à de Catharina de Sena, Josefa Maria, Antônio Angola, João Angola e Jacinta Vieira da Costa. Todos eles se opuseram à reescravização que se pronunciava ou se efetivava, buscando proteção judicial. Para tanto, a maioria deles (com exceção de Catharina e Josefa Maria) recorreu, inicialmente, ao governador da capitania. Por intermediação dessa autoridade, tais casos chegaram ao conhecimento do juiz de fora do termo de Mariana, local de residência dos implicados. Em decorrência dessa intermediação, o magistrado acabou instaurando processos sumários12 12 As ações sumárias, ao contrário das ordinárias, eram consideradas ações especiais, produzidas com o objetivo de debater casos que não precisavam ser meticulosamente averiguados, ou que deviam obter uma rápida resolução - como pedidos de alimentos, de depósito judicial, de habilitação de herdeiros. Esses e outros assuntos davam forma a ritos processuais variados: autos de justificação, notificações, exibições, requerimentos, etc. Sendo assim, eram muitos e diversos os tipos processuais, e a autuação de um deles em detrimento aos demais era deferida pelo juiz ao apreciar a razão alegada pelo autor - objeto e finalidade da causa. Sabendo disso, convém destacar como uma importante estratégia jurídica a possibilidade de os autores optarem pelo início de uma ação ordinária, ou de um processo sumário qualquer, tendo em consideração a probabilidade de sua escolha ser aceita ou não, dado o “estilo” costumeiro de cada tribunal. , cujo objetivo não era definir o estatuto jurídico dos autores, mas sim determinar a possibilidade ou não de os mesmos se manterem ou retomarem a condição que desfrutavam antes de serem perturbados. Dito de outra forma, o que estava em jogo era uma proteção, ainda que temporária, ao usufruto da liberdade daqueles que se diziam e procuravam mostrar que foram coartados e que “viviam sobre si”. Assim reagiram quando se viram ameaçados, ou de fato foram puxados de volta ao cativeiro, em detrimento do acordo de libertação. Para conseguirem a manutenção ou a restituição do estado livre, africanas, africanos e crioulas apostaram na confirmação da concessão dos seus coartamentos, apresentando documentos comprobatórios e, no caso de Quitéria Maria (como no de Narcisa), nome de testemunhas que conheciam sua trajetória e que poderiam suprir a falta do papel de corte destruído. Como se vê, subjugar um coartado não era tarefa simples como se costuma supor. No tribunal, alguns senhores ou seus herdeiros enfrentaram grande resistência ao serem chamados a responder como réus, mas também quando se constituíram autores dos litígios autuados para reescravizar coartados.

A imposição do cativeiro aos coartados

Como é sabido, o retorno ao cativeiro dos inadimplentes era comumente previsto nos papéis de corte, deixando transparecer a possibilidade do descumprimento desse acordo de liberdade. O registro dessa advertência tornou-se um costume entre os senhores, porque configurava numa garantia de restituição da propriedade não liquidada. Assim se resguardou Domingos Vieira de Souza em relação a Miguel de nação Mina. No corte escrito em 6 de janeiro de 1752, o senhor esclareceu suas condições e a cláusula da sua anulação. Determinou o preço em 270$000 réis e o tempo para seu pagamento de três anos; declarou ter recebido 64$200 réis e estabeleceu que o valor restante fosse quitado em parcelas anuais e iguais. Ao saldar a terceira parcela, Miguel receberia sua carta de alforria; mas, se não satisfizesse tal exigência, Vieira de Souza informou que “tudo o que o preto tive[sse] dado [ao longo do prazo estipulado] ficaria por jornais, e ele dito [por] cativo” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 375, Auto 10020, fl. 8).

Mas invalidar uma coartação não era algo fácil como induz a leitura do papel de corte de Miguel Mina. Muitas vezes, a resolução senhorial de ignorar o acordo de liberdade não foi suficiente para trazer de volta ao cativeiro um coartado que já “vivia como forro”; foi preciso obter uma sentença judicial. A necessidade de os coartados serem “convencidos” judicialmente de que perderam seus coartamentos já foi manifestada nos casos acima narrados. De fato, mesmo considerando que a coartação não proporcionava total libertação, entendia-se que sua anulação constituía uma “causa de estado”13 13 Esse termo foi empregado por um advogado, o Dr. Joaquim José Varela de Almeida, na defesa de um coartado num “libelo de redução ao cativeiro”, movido em razão do não pagamento do corte. Esse caso será analisado mais adiante: AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 308, Auto 7387, fl. 23. , isto é, devia ser objeto de um processo cível no qual se disputava a validade do coartamento. Mais especificamente, constituíam ações cíveis de redução ao cativeiro por visarem à transformação de coartados que desfrutavam de grande autonomia, em escravos totalmente submetidos ao domínio senhorial e destituídos dos seus antigos títulos de compra parcelada da liberdade.

Obedecendo a esse preceito, muitos foram os senhores e seus representantes que recorreram ao tribunal marianense para derrogar coartações por falta ou atraso de suas parcelas. Foi o que fez Manuel da Costa Arcos ao demandar contra Joaquim Angola. Como testamenteiro do seu tio, em abril de 1782, Arcos instaurou um libelo cível14 14 Os libelos cíveis eram os processos que possuíam uma ordem processual comum, isto é, ordinária. O autor inicialmente apresentava sua demanda ao juiz. Em seguida, realizava-se a citação do réu. Depois de feito o chamamento a juízo, esperava-se o tempo determinado pela sua resposta. Prosseguia-se com a produção de provas por meio de testemunhas, instrumentos (documentos públicos e particulares), confissão e juramento. Com base nessas evidências, os litigantes (primeiro o autor, depois o réu) passavam a ratificar seus argumentos. Por último, o juiz examinava os autos, todas as partes que o compunham, e pronunciava sua decisão. Esses constituíam os procedimentos básicos de uma ação ordinária, apta a ser aplicada com maior frequência em diferentes matérias de disputa. para reduzir ao cativeiro o africano que nada havia quitado “do preço porque foi coartado (…), estando já vencido todo o tempo do coartamento” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 283, Auto 6916). Do mesmo modo agiu anos mais tarde, em 1811, outro testamenteiro, o alferes José Pires Barroso, que requereu em juízo a reescravização do cabra Severino, igualmente faltoso com o pagamento de sua coartação (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 412, Auto 11991). O prazo contratado já havia terminado sem que ele tivesse contribuído com alguma quantia. Em comum, esses dois processos foram promovidos em observância da “obrigação” de zelar pela testamentaria dos senhores defuntos; porém, nenhum documento ou certidão foi apresentada para comprovar a legitimidade da representação de seus autores, bem como o descumprimento das condições do corte. Possivelmente, por esse motivo ou por consequência disso, não foram levados adiante.

Mais cautelosos mostraram-se os testamenteiros que cuidaram de exibir uma certidão das verbas do testamento que expunham a outorga da coartação, seus termos, a nomeação dos encarregados pela execução dos legados e sua aceitação. Desse modo procederam, por exemplo, Miguel Peixoto de Araújo contra José Mina, em 1760 (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 335, Auto 7969), e as irmãs, Dona Thereza de Jesus Maria e Dona Francisca Maria da Anunciação, contra Antônio Lopes anos depois, em 1814 (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 419, Auto 12398). Naquele primeiro processo, a certidão foi apresentada juntamente com o libelo do autor, peça em que era detalhada a razão da causa; no segundo, tal documento foi entregue em seguida às razões finais das autoras, tendo a intenção de melhor persuadir o juiz sobre a conveniência da reescravização. Independentemente das diferentes de suas estratégias, ou do tempo empenhado para produzir tais documentos, ambas ampararam a alegação de descumprimento do acordo de liberdade para justificar o pedido da sua revogação. E obtiveram êxito: nos dois processos, os coartados foram condenados a retornar ao cativeiro.

A apresentação de prova documental era o principal recurso para demonstrar a razão da causa, conseguir sustentá-la e alcançar uma sentença final favorável. Essa foi a lição aprendida por Paulo de Araújo Barreiros num libelo que ajuizou em 16 de maio de 1791, como testamenteiro de Thereza Pinto Mourão. De início, ele demandou a invalidação da coartação de Ângelo Pinto com base exclusivamente na sua alegação “da falta de satisfação” do seu preço, sendo findo o prazo ajustado. Araújo Barreiros disse que a testadora, quando viva, havia coartado o crioulo “no ano de 82 ou 83 (…) pelo preço de 100 oitavas de ouro para as pagar no espaço de três anos” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 308, Auto 7387). Declarou mais que sendo conferido o papel de corte “determinou a testadora do Autor fosse o Réu trabalhar e tratar da vida, e cuidar em agenciar com que pudesse remir a sua liberdade”. Em vista dessa concessão, Ângelo já usufruía da liberdade sem, contudo, pagar inteiramente sua coartação, tendo apenas dado a sua conta 42 oitavas, ¼ de ouro e 2 vinténs. Essa era a soma que o testamenteiro declarou constar dos recibos registrados no verso do coartamento.

Tal papel, no entanto, estava em poder do crioulo e, por causa disso, Araújo Barreiros não pôde exibi-lo como prova do descumprimento das suas condições. Diante do impedimento, ele se limitou a produzir testemunhas para confirmar seu relato. Assim fizeram três homens brancos que depuseram a seu favor; todos ratificaram “por ser público e notório” que o crioulo não havia saldado sua coartação, embora tivesse autonomia para “melhor procurar o meio de poder ganhar para se poder libertar”. Diante das inquirições, o advogado de Araújo Barreiros julgou estar a ação “plenamente provada”, acrescentando contra Ângelo o fato de ele não responder a essa ação, “vindo por isso a confessar [sua culpa] tacitamente”. De fato, o crioulo não compareceu em juízo, nem nomeou um procurador para representá-lo; sem sua defesa, os autos foram entregues ao juiz ordinário para que tomasse uma decisão, apreciando tão somente a acusação e as provas testemunhais do testamenteiro.

Diante dos autos, considerando ser “a presente causa de tanta ponderação qual é a de redução a cativeiro de um chamado escravo que sendo coartado vive há muitos anos na sua liberdade” (grifo meu), o sentenciador advertiu que provas eram “indispensáveis” e que nenhuma prova fazia a “vaga inquirição” das testemunhas. Logo, o crioulo foi absolvido, e o testamenteiro condenado a pagar as custas do processo. Araújo Barreiro, no entanto, embargou a sentença e, para sustentar sua oposição, alcançou e anexou aos autos uma certidão com o teor de parte do testamento de Thereza Pinto Mourão. Nela continha a declaração de que o crioulo possuía um papel de corte e que cabia a ele, testamenteiro, cobrar o pagamento das parcelas e conceder maior tempo para a total quitação do valor acertado, caso fosse necessário exceder o prazo contratado.

Desse modo, Araújo Barreiros comprovou que Ângelo já era coartado antes da morte de sua senhora (em 24 de setembro de 1784), e assim ratificou que muitos anos se passaram sem que fosse pago o preço da liberdade. Diante dessa novidade - uma prova documental -, o juiz aceitou os embargos e os julgou comprovados. Na segunda sentença publicada em 10 de junho de 1793, Ângelo foi condenado a voltar “para o antigo cativeiro”, sendo declarado “cativo da herança e testamentaria de sua defunta senhora”. Portanto, ter um documento capaz de expor a data de início, o espaço de tempo e demais requisitos ajustados numa coartação parecia algo determinante nas disputas legais sobre sua anulação e consequente reescravização. Convém aqui ressaltar que, nas ações promovidas por testamenteiros, havia a possibilidade de requerer, assim como fez Araújo Barreiros, uma certidão do testamento, em que a coartação tivesse sido conferida ou mencionada pelo testador que a concedeu. Desse instrumento, porém, não dispuseram os senhores outorgantes que litigavam com seus coartados. Para eles, não existia outro registro documental do acordo além do próprio escrito particular do corte, entregue a quem devia pagá-lo para obter a alforria. Nesses casos, a reescravização de um coartado inadimplente era algo bem mais difícil.

Isso foi o que Maria de Souza Ribeiro percebeu ao chamar Maria Mina para responder, em janeiro de 1804, uma ação cível de redução ao cativeiro (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 329, Auto 7844). A senhora afirmou ter passado a Maria um corte, datado de 30 de janeiro de 1797, para ser quitado em quatro anos; mas, depois de esgotado o tempo, a coartada continuava sem saldá-lo, tendo oferecido uma limitada quantia. A data de início e o tempo conferido para o vencimento das parcelas constavam num escrito, em que também foram registrados os recibos dos pagamentos efetuados. E, como tal documento encontrava-se nas mãos da coartada, a senhora pediu a ela que “o exibi[sse] para prova”. Mais do que essa declaração e solicitação não podia fazer Maria de Souza Ribeiro, enquanto esperava a pronunciação de Maria Mina. Esta, por sua vez, nada articulou a seu favor e não designou advogado para representá-la judicialmente; em contrapartida, a requerimento da senhora, o juiz nomeou um curador para tratar da defesa da africana.

Ao esperar informações de Maria Mina para formar sua contrariedade, o curador deixou extrapolar seu prazo e devolveu os autos sem intervenção alguma. A tramitação prosseguiu sem a contestação de sua parte: foram tomados os depoimentos das testemunhas da senhora, e então o advogado admitiu serem tais inquirições “meia prova”15 15 Pascoal José de Melo Freire, proeminente jurista e estudioso da história do Direito português no século XVIII, definiu “meia prova” ou “semiprova” como aquela “pela qual se faz alguma fé ao juiz acerca do fato controverso ou coisa duvidosa, mas não tamanha que se possa sem outro auxílio decidir a questão com ela”. Cf. FREIRE, P. J. de M. Instituições de Direito Civil Português; tanto público como particular. Trad. Miguel Pinto de Menezes. Boletim do Ministério da Justiça, ns. 161, 162, 163, 164, 165, 166, 168, 170 e 171,1967, Tomo IV, Título XVI, parágrafo 3, pp. 127-128. . Para recompensar a ausência de testemunhas fidedignas e “de fato”, ou seja, pessoas que presenciaram o ato da coartação, o bacharel em direito reivindicou o deferimento do supletório, juramento empregado para suprir a insuficiência das provas.16 16 Ainda de acordo com Melo Freire, supletório é o juramento que “o juiz sem ser requerido defere ao autor ou ao réu por carência de prova”. Para que o supletório fosse deferido ao autor, exigia-se: “1 - que se haja feito pelo menos prova semiprova, o que se faz ou por uma só testemunha fora de toda suspeição, ou por duas menos insuspeitas, ou por confissão extrajudicial ou por escritura particular, e comparação da letra (…); 2 - que a causa não seja muito valiosa ou criminal, mas cível e módica, o que varia conforme a qualidade dos litigantes; 3 - que aquele a quem é deferido o juramento, tenha a probabilidade de saber a verdade (…); 4 - que o jurante seja homem bom, de comprovada fé, e íntegra reputação”. Cf. FREIRE, 1967, Tomo IV, Título XIX, parágrafo 3, pp. 92-93. Esse foi o meio por ele apontado para contornar também a falta da exibição do papel de corte “com que só realmente se podia provar passado o tempo da espera” para a satisfação do pagamento. Quanto a esse ponto, a negação da coartada em apresentar o documento foi destacada pelo advogado de Maria de Souza Ribeiro para convencer o juiz de que o prazo contratado “era mais que findo”. Com sagacidade, o Dr. José dos Santos de Azevedo e Mello assegurou que “a falta de defesa [de Maria Mina] era prova”, porque era presumível que a coartada se eximiu de comparecer em juízo para não ter que entregar o papel de corte, pois sabia que contra seu conteúdo não lhe assistia defesa alguma.

Apesar de toda a articulação do advogado da senhora, o juiz de fora do termo de Mariana não autorizou a reescravização da coartada Maria Mina. Justificou sua decisão, e a sentença proferida é bastante esclarecedora sobre a importância das provas numa ação dessa natureza. Por isso, segue abaixo sua transcrição quase na íntegra:

Pede a autora Maria de Souza Ribeiro em seu libelo que a Ré Maria Mina seja reduzida ao cativeiro (…), [mas] nenhuma prova por parte da Autora a respeito do preço do coartamento, do tempo dele, e das parcelas que à conta do mesmo a Ré dera [há] para veracidade de sua ação, segue-se que desta deve ela decair, apesar de que contra a predita Ré nasça a presunção da falta de cumprimento da sua parte, quando em Juízo não apresenta o papel do coartamento que em si tem, como porém em semelhantes ações se não decide por presunções, mas sim por provas perfeitas e convincentes, qual não é a da Autora, que no número das suas testemunhas apenas se descobre a terceira que depondo mais circunstanciadamente, o não faz contudo compridamente para se dizer meia prova e deferir-se então o supletório à Autora como pretende em reconhecimento da falta da prova (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 329, Auto 7844, fls. 15-15v. - grifo meu).

Conforme o juiz, nem a presunção do motivo pelo qual a coartada não respondeu ao libelo (sua inadimplência), nem as testemunhas produzidas pela senhora constituíam provas suficientes nessa causa. A única prova “perfeita e convincente” para a matéria em disputa era o escrito da coartação que Maria Mina mantinha em seu poder e não exibia em juízo. Tendo essa percepção, o juiz considerou não provada a ação intentada e, consequentemente, absolveu a preta Mina.

Mas Maria de Souza Ribeiro não se contentou com o resultado. Ela embargou a decisão final e seu advogado afirmou que a coartada, sendo detentora do seu papel de corte, “só para não o exibir se deixou ir à revelia sendo moradora nesta cidade e tendo notícia dos movimentos desta causa”. Em razão desse recurso, a senhora requereu, mais uma vez, que Maria Mina entregasse tal escrito. Depois, fez novamente essa reivindicação numa audiência. A coartada foi citada com o único propósito de cumprir tal determinação, mas permaneceu sem fazer a entrega do documento. Maria de Souza Ribeiro insistiu, pediu para que a coartada mostrasse seus recibos e continuou sem resposta. Por fim, foram somadas as custas, indício de que não houve uma decisão final. Certamente, a senhora nada conseguiu arrancar da coartada na Justiça; cansada dessa empreitada e talvez querendo evitar maiores gastos, ela pode ter lançado mão de outros meios, como uma negociação direta ou através da intermediação de terceiros. Fato irrefutável é que o processo foi abandonado depois de constatada a dificuldade de comprovar a versão senhorial, em vista da recusa da coartada de comparecer em juízo e mostrar seu corte e recibos.

Ao que parece, deixar a causa correr à revelia era mesmo a principal estratégia dos coartados para se oporem às tentativas de reduzi-los ao cativeiro na Justiça. Agindo desse modo, escapavam da obrigação de exibir o papel de corte, documento capaz de provar o descumprimento do pagamento parcelado da liberdade. Era comum os coartados deixarem a contestação da ação a cargo dos curadores nomeados pelos juízes, que faziam suas intervenções fundamentadas exclusivamente no conhecimento das leis, do “estilo” do tribunal e no poder de argumentação, já que não recebiam informação alguma daqueles que representavam (ou assim os orientavam para que permanecerem em silêncio).17 17 Seguem outros exemplos de processos em que os réus coartados deixaram a causa correr à revelia, tornando sua defesa uma incumbência exclusiva dos curadores: AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 400, Auto 8762; AHCSM - 1º Ofício,Ações Cíveis, Códice 393, Auto 8602; AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 380, Auto 10218; AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 378, Auto 8244. De praxe, os curadores dos coartados contrariavam a causa por negação e, no final do processo, arrazoavam contra a fragilidade das provas reunidas pelos senhores: depoimentos de testemunhas duvidosas, sendo poucas delas “de fatos”. Geralmente, essa alegação encontrava o respaldo dos juízes que acabavam isentando os coartados do retorno à escravidão por falta de “plena prova” acerca da sua inadimplência.

Só eventualmente os coartados promoveram sua defesa no tribunal. Ao empregarem essa estratégia - o enfrentamento -, os detentores dos papéis de corte os expunham. Tão logo se preocupavam em mostrar sobretudo os recibos das parcelas liquidadas, pois a existência dos pagamentos era o que lhes permitia resistir à reescravização, em concordância com a alegação de Quitéria Maria Corrêa, uma das personagens da seção anterior. Além dela, cabe aqui evocar outro exemplo e, para tanto, retomo o processo movido por Paulo de Araújo Barreiros contra Ângelo Pinto, descrito acima. Relembro o leitor que a primeira sentença que absolvia o coartado foi reformada graças à reprodução do conteúdo do testamento, no qual foi mencionada a concessão da coartação. Ao alcançar decisão favorável à reescravização, o testamenteiro fez com que ela fosse intimada ao coartado para que o mesmo tomasse conhecimento de que deveria voltar ao cativeiro. Só então Ângelo se manifestou. Ele nomeou um advogado e embargou a execução dessa última sentença.

Seu defensor, o Dr. Joaquim José Varela de Almeida, confirmou que o prazo contratado havia terminado em 20 de novembro de 1785, três anos após a celebração da coartação, conforme atestava o papel de corte, que finalmente foi apresentado e anexado aos autos. Porém, retrucou em favor do coartado que, desde a data do início desse acordo até o presente ano de 1793, vinha ele contribuindo com pequenos pagamentos. Tanto era verdade que apresentou os recibos passados por ordem da testadora, quando viva, e os emitidos pelo sobredito testamenteiro. Em seus embargos, declarou que

[...] foi o embargado [Paulo de Araújo Barreiros] tão doloso que propondo esta ação em 16 de maio de 91 recebeu em março e dezembro de 92, em abril de 93 (…) enganando [Ângelo Pinto] o pobre embargante com dizer-lhe que lhe fosse pagando pois a causa estava parada, ao mesmo tempo que a [pôs] até os termos presentes, tudo a fim de o convencer a sua revelia como sucedeu (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 308, Auto 7387, fl. 22v. - grifo meu).

Segundo esta versão, Ângelo havia sido ludibriado por Araújo Barreiros, que continuou a receber dele, um “crioulo rústico e ignorante”, as parcelas da coartação, enquanto sorrateiramente sustentava uma ação para invalidá-la. Além de imputar má-fé, essa acusação estabelecia como ilícita a ação de redução ao cativeiro, porque foi mantida a cobrança e a recolha do ouro oferecido para o cumprimento do acordo de liberdade, mesmo depois de excedido o seu prazo e movida a ação. Segundo a alegação do advogado de Ângelo, “para se ter lugar a reivindicação da coisa vendida há certo espaço em razão de se não pagar dentro dele é requisito necessariamente indispensável que o vendedor não receba coisa alguma do comprador depois que se enchesse o tempo espaçado”.

A coartação é aqui entendida como uma relação contratual de compra e venda, cujo objeto da negociação é a liberdade, com pagamento ajustado dentro de um período determinado. Portanto, para o vendedor (senhor ou seu representante) retomar “a coisa” negociada e não liquidada (a liberdade), não poderia receber do comprador (o coartado) nenhuma quantia após o vencimento do prazo combinado. Ou simplesmente, o senhor ou seu testamenteiro não poderia mover ação cível de redução ao cativeiro, caso continuasse a receber as parcelas da coartação depois de concluído o seu tempo. A continuidade dos pagamentos e seu recebimento significavam que o vendedor havia “transferido ao comprador o domínio da coisa”, a qual não poderia mais reclamar.18 18 Depois que o coartado formou embargos à segunda sentença, não foi dado prosseguimento aos autos. Passados mais de dois anos, a pedido do testamenteiro, Ângelo Pinto foi novamente citado para retomar a tramitação do processo, mas em seguida faleceu, e assim encerrou-se a batalha judicial.

Da outra parte, a mesma concepção de coartação enquanto uma relação contratual de compra e venda foi também explicitada. O dispositivo legal comumente citado pelos advogados dos senhores ou seus testamenteiros era o Título 5, parágrafo 2 do Livro 4 das Ordenações Filipinas - Do comprador, que não pagou o preço ao tempo, que devia, por a causa não ser do vendedor, o qual estabelecia:

E se o vendedor ao tempo do contrato deu espaço ao comprador para lhe pagar o preço, se lho ele não pagar ao tempo, que lhe foi outorgado, poderá o vendedor logo cobrar a cousa do comprador, se a tiver em seu poder, ou de qualquer outra pessoa, em cujo poder a achar. E não se poderá escusar de lha tornar, posto que lhe ofereça o preço, pois lho não pagou, nem ofereceu ao tempo, que se obrigou. Porém, se o vendedor quiser antes haver o preço, que a cousa vendida, pode-lo-há demandar e haver, quando lhe aprouver (ALMEIDA, C. M. de (ed.). Código Philippino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal recopiladas por ordem d’elrey d. Philippe I. 14. ed. Rio de Janeiro, Typographia do Instituto Philomathico, 1870, p. 783 - grifos meus).

No texto, não há referência direta à coartação, isto é, ao acordo de parcelamento do preço da liberdade que envolvia senhores e escravos. Mas, por mediar as relações de compra e venda a prazo, ou melhor, o descumprimento dessa negociação, a norma foi selecionada entre os demais Títulos das Ordenações e leis extravagantes do Reino para embasar os pedidos de anulação dos papéis de corte não quitados.

O sobredito texto legal deliberava que em caso de inobservância da condição do pagamento, sendo concluído o tempo concedido para seu acerto, competia ao vendedor uma escolha: cobrar a restituição da coisa vendida que já estava em poder do comprador, ou demandar a satisfação do seu preço. Com base nesse direito e optando pela restituição da propriedade, os senhores outorgantes de coartações vencidas e não liquidadas (ou seus testamenteiros) reivindicaram, por meio de ações cíveis, a redução ao cativeiro de coartados inadimplentes. Desse recurso também lançou mão Lúcio Bernardino dos Reis contra Rosa, justificando seu acesso à Justiça como uma proteção cabível, pois “a lei permit[ia] a reivindicação da coisa não paga, e [era] a ré compradora da liberdade não paga em tempo, [motivo pelo qual] ela pode ser-lhe reivindicada, ficando reduzida ao estado de cativa” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 309, Auto 7597).

Com efeito, a coartação era então reconhecida como uma relação contratual ou comercial em que a coisa negociada era a liberdade, e os personagens dessa transação eram o senhor e o escravo. Espantosamente, o senhor negociava com sua própria propriedade! Pois bem, essa é uma percepção possível quanto às alforrias onerosas, entre as quais se destacavam as coartações (de pagamento a prazo e parcelado). Mas, ao que parece, a realização desse trato dotava o coartado de personalidade - a de comprador - que podia ser chamado a responder em juízo a falta da condição ajustada. Sobre a equivalência da coartação a um contrato de compra e venda e as consequências da sua violação esclarece o libelo de Diogo de Souza Cardoso acionado contra Ana Crioula, em 31 de julho de 1797. Em sua intervenção, o advogado do senhor afirmou ser:

[...] lei expressa na Ordenação do Livro 4, Título 5, parágrafo 2 que o vendedor ao tempo do contrato deu espaço ao comprador para lhe pagar o preço, e este não pagou no tempo outorgado, pode o vendedor cobrar a coisa do comprador, tendo-a em seu poder, ou de terceiro qualquer que o tiver. Ora, sendo esta ação de rigorosa reivindicação, como proveniente de um contrato de compra e venda que fez o Autor da liberdade da Ré a ela mesma, pelo tempo e preço já mencionados, segue-se que tendo a Ré faltado às condições, e lei do contrato, não há razão para que se exima do cativeiro a que deve voltar, por ser do domínio do Autor, assim como todos os seus proventos, em consequência da proposta ação (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 359, Auto 9156, fl. 14 - grifo meu).

Levando em conta o referido dispositivo legal e os argumentos dos advogados, os papéis de corte representavam contratos de compra e venda da liberdade, nos quais se estipulava o preço, o número de parcelas e o prazo para seu pagamento. A obrigação do coartado em satisfazer tais condições decorria não da sua coparticipação na feitura e assinatura desse documento, mas sim do seu consentimento em aceitá-lo, o que fazia com o recebimento e a guarda do escrito (FREIRE, 1967, Tomo IV, Título VI, parágrafo 27, p. 127). Esse é um aspecto essencial para o entendimento da coartação como uma relação contratual bilateral. Enquanto tal tornava-se revogável com a quebra de suas cláusulas, dando lugar à mencionada “ação de reivindicação”, ou seja, um libelo cível no qual o legítimo proprietário reivindicava a devolução de uma coisa contra quem a desfrutava (FREIRE, 1967, Tomo VI, Título VI, parágrafo 10, pp. 113-114).

Para entender essa relação, é preciso ter em mente a distinção entre domínio e posse, já mencionada anteriormente. Ao aplicar os termos da sobredita lei - senhorio/domínio e posse - mantém-se, igualmente, a separação entre ter o título da propriedade e o seu usufruto, nessa ordem. A percepção dessa distinção é o que torna inteligível a usual expressão da época - ser “senhor e possuidor” de algo - registrada em escrituras públicas, como as de compra e venda, e nas de alforria. A expressão “senhor e possuidor” significava que um indivíduo tinha o domínio e o usufruto de um determinado bem, o qual, por vezes, poderia também constituir uma propriedade de alguém e ser desfrutado por outra pessoa. Deste outro modo, o coartado que “vivia sobre si”, gozando de grande autonomia, tinha a posse da sua liberdade porque dela poderia usufruir durante o período do seu corte, mas não detinha seu domínio, pois seu título (a alforria) somente seria alcançado com a total satisfação do seu preço. Por isso viviam entre a escravidão e a liberdade, numa situação de ambiguidade - com estatuto jurídico de escravo e condição social de liberto -, podendo valer-se dessa última como fizeram vários dos personagens deste artigo, a exemplo de Narcisa Ribeiro.

Ciente disso, voltemos à análise da oposição que puderam fazer alguns dos coartados que, como réus, responderam em juízo tais litígios. Eles lançaram mão da alternativa prevista no sobredito texto legal (Ordenações Filipinas, Livro 4, Título 5). Asseguravam que os senhores ou seus testamenteiros haviam optado em receber o preço da liberdade, pois teriam continuado aceitando as parcelas oferecidas após o vencimento do corte. Em consequência, a ininterrupção do recebimento anulava o direito de reivindicação. Essa era, sem dúvida, uma estratégia capaz de evitar a redução ao cativeiro por revogação da coartação, e dela fizeram uso alguns dos advogados e curadores de coartados. Uma parte dos defensores da manutenção do corte afirmou que os autores das ações cíveis de redução ao cativeiro antes “quiseram haver o preço”19 19 Um exemplo de processo em que o advogado do coartado empregou esse argumento é aquele que foi autuado pelo alferes Paulo de Araújo Barreiros, testamenteiro de Thereza Pinta Mourão: AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 308, Auto 7387. ; outra parte suscitou dúvidas quanto à datação dos recibos, deduzindo que alguns eram posteriores ao vencimento do prazo contratado.20 20 Um exemplo desse outro argumento consta no processo movido Francisco Fernandes de Barros Loureiro contra Paulo Mina: AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 267, Auto 6596. Portanto, havia uma variação do modo como o mesmo dispositivo legal era usado para proteger o usufruto da liberdade e a possibilidade de transformação futura do estatuto jurídico.

E uma aplicação mais extensiva dele também foi possível na interpretação de um juiz. Numa sentença final, proferida em 19 de novembro de 1811, o Dr. Antônio José Duarte Araújo Gondim julgou improcedente a ação, porque “só competiria ao autor [o alferes Lúcio Bernardino dos Reis] o direito de haver da Ré [Rosa] o resto da quantia ajustada [no coartamento] e nunca o de a fazer reduzir ao seu domínio com prejuízo da Ré pela quantia já satisfeita” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 309, Auto 7597, fl. 18v.). O mais interessante nesse caso é que todo o pagamento mencionado foi efetuado durante o prazo definido na coartação, e nada após o seu término. De qualquer modo, a quitação de parte do preço da liberdade serviu para tornar firme o “contrato de compra e venda parcelada da liberdade”, tal como propalava a sobredita Quitéria Maria Corrêa. Dentro dessa perspectiva, a exibição em juízo dos recibos poderia inviabilizar, ou ao menos dificultar a tentativa de anulação do corte.

Talvez isso explique por que parte das ações de reescravização movidas contra coartados inadimplentes propunha, inicialmente, uma cobrança do valor restante para a quitação do acordo de liberdade. Nesses casos, o retorno ao cativeiro aparece como uma penalização prevista à perda dessa última chamada para regularização da coartação. A exemplo disso, em meados de 1764, Sebastião Martins da Costa reivindicou judicialmente que Ana da Rocha pagasse as 128 oitavas de ouro que faltavam da sua coartação, ou fosse reescravizada pelo não cumprimento dessa obrigação (AHCSM - 1º Ofício,Ações Cíveis, Códice 460, Auto 10098). Igualmente procedeu José Ribeiro de Carvalho num processo iniciado em 17 de novembro de 1777: atuando como testamenteiro, ele requereu que Rosa Mina desse inteira satisfação ao seu corte e, se não obedecesse, que fosse finalmente declarada escrava da herança de Antônia Paes (AHCSM - 2º Ofício,Ações Cíveis, Códice 430, Auto 13016).

A cobrança acompanhada da tentativa de redução ao cativeiro era também um procedimento aplicado antes de terminar o prazo da coartação, havendo parcelas vencidas. O testamenteiro de Alexandre de Abreu Pereira solicitou de Antônio Mina o pagamento do atrasado durante o período de vigência da sua coartação (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 276, Auto 6779). Em 30 de julho de 1759, início do processo, o preto Mina devia 197$200 réis, a maior parte do valor total da coartação, e a essa altura já era quase findo o tempo que lhe foi concedido para o seu completo acerto. Por isso, além de cobrar o devido, o testamenteiro admoestou Antônio sobre a necessidade de saldar as últimas parcelas dentro do prazo estabelecido. Do contrário, ele seria reduzido ao cativeiro, sendo declarado cativo da testamentaria, pronto para servir ou ser vendido.

Apesar de saber do risco que corria, tal africano nada manifestou: não pagou as parcelas atrasadas, nem as que venceram durante o processo, e não se opôs a esse recurso judicial. Segundo informação do próprio autor da ação, Antônio estava doente, e por essa razão encontrava-se impedido de preparar sua defesa, dando informações ao advogado que havia nomeado para lhe representar nessa causa. Consequentemente, ele foi julgado “por servo e por parte da herança do dito Alexandre de Abreu [Pereira]”. A sentença foi publicada dois dias após o fim do prazo para a total satisfação da coartação. Indefeso na ação de redução ao cativeiro e, porventura, ainda enfermo, ele acabou novamente submetido à escravidão.

A debilidade provocada por doença foi também o que levou outra coartada de volta ao cativeiro no ano de 1810. Felizarda deixou correr à revelia o libelo de reescravização movido por Dona Ana Joaquina de Godoy. Para cuidar da defesa da coartada, o juiz nomeou um curador. Tal defensor solicitou que a africana, de nação Mina, fosse citada a dar-lhe esclarecimentos sobre a matéria em disputa. Assim sucedeu, e Felizarda cumpriu o chamado judicial. Mas, em vez de resistir à tentativa de redução ao cativeiro, a preta declarou que “por doente não pôde satisfazer ao seu coartamento (…), e nem ainda tem dado à conta do dito [corte] coisa que a releve do primeiro pagamento e, consequentemente da sujeição” (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 438, Auto 13485, fl. 7v. - grifo meu). Estando nessa situação instável, o curador da coartada afirmou que ela estava pronta para confessar “dever servidão à Autora e se obrigar a tornar a servi-la e dar-lhe a obediência que os escravos devem a seus senhores”. Com efeito, tal termo de confissão foi tomado e registrado nos autos; portanto, é provável que Felizarda tenha voltado ao domínio de Dona Ana Joaquina, tendo preterido a coartação e a vivência de anos em liberdade.

A não oposição de Felizarda à ação cível de redução ao cativeiro e seu consentimento em voltar ao domínio senhorial por não conseguir quitar a coartação sugere sua dificuldade em sobreviver fora do cativeiro. Seu caso suscita a análise de Manuela Carneiro da Cunha sobre a decisão de Joana Batista de fazer “venda de si” como escrava, visto não ter como sobreviver em liberdade (CUNHA, 1984CUNHA, M. C. da. Sobre a servidão voluntária: outro discurso. Escravidão e contrato no Brasil colonial. Dédalo, São Paulo, n. 23, pp. 57-66, 1984.). É provável que, numa situação de extrema pobreza, o cativeiro tenha igualmente representado a Felizarda uma garantia de sustento, mesmo que parco. A doença que a impediu de trabalhar para alcançar os meios de quitar o corte provavelmente também a atrapalhou adquirir os recursos para sua sobrevivência. Avaliando sua carestia, essa mulher poderia ter julgado valer a pena trocar o usufruto da liberdade vivida com precariedade pela garantia da obtenção do alimento, vestuário, moradia e ainda assistência para a sua cura, como era de obrigação senhorial. Fazendo esse cálculo, Felizarda não insistiu na manutenção da sua coartação; antes confessou querer voltar para o domínio de Dona Ana Joaquina.

Do mesmo modo reagiu Miguel Angola, que não resistiu à intenção do testamenteiro do seu senhor de reduzi-lo à escravidão (AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 433, Auto 13236). Logo na audiência de autuação do processo, em 13 de maio de 1782, o africano confessou não ter satisfeito sua coartação dentro do prazo contratado. Considerando tal comportamento, o juiz imediatamente invalidou seu corte e o condenou a retornar ao cativeiro. Diferente de Felizarda, Miguel não explicitou por que não cumpriu seu acordo de liberdade, mas acredito que dificuldades financeiras também embaraçaram sua sobrevivência enquanto coartado, e consequentemente inviabilizaram a mudança do seu estatuto jurídico para liberto.

Foram poucos os coartados que, em juízo, diante do prenúncio da volta ao antigo cativeiro, admitiram sua inadimplência. Esse fato, entretanto, não os afastava da realidade vivida pelos demais envolvidos nas ações de reescravização por não satisfação do corte: tanto os que deixaram a causa correr à revelia, quanto os que promoveram sua defesa alegando pagamento de parte da coartação (durante o prazo contratado ou mesmo após o seu término), igualmente enfrentaram problemas para saldar o parcelamento do preço da liberdade, segundo as condições impostas pelos senhores. Geralmente, descumpriam a condição de efetuar parcelas anuais ou semestrais de igual valor e satisfaziam parte do corte com serviços prestados aos próprios senhores outorgantes (a seus herdeiros ou testamenteiros) e com a entrega de mercadorias - metros de fios de algodão, roupas, galinhas, farinha e outros gêneros alimentícios. A sensação é de que a precariedade tenha sido uma experiência compartilhada pelos coartados, mesmo entre 1780-1819, décadas marcadas por uma reorganização das atividades rentáveis nas Minas Gerais.21 21 Esse período ficou conhecido por uma “acomodação evolutiva da economia” mineira. A expressão foi cunhada por Douglas Cole Libby, e a periodização é resultado das investigações de Carla Maria Carvalho de Almeida; Libby, 1988; C. M. C. de Almeida, 1995. O que variou, sem dúvida, foi o grau da precariedade vivida e o modo como eles encararam a chamada em juízo para solucionar tal pendência.

Considerações Finais

O uso generalizado das coartações em Minas Gerais foi tradicionalmente explicado como um resultado negativo da “crise da mineração”, e atualmente passa a ser entendido como uma solução mais frequentemente aplicada após 1770 e possível graças ao dinamismo de outras atividades econômicas. Nesse momento, os senhores já acostumados com a coartação de escravos perceberam que tal acordo parcelado da liberdade era um meio de assegurar rendimento e, ao mesmo tempo, de reduzir gastos com a manutenção da mão de obra excedente. Para entender essa lógica, não podemos esquecer que a muitos coartados era dada autonomia para “tratar da vida”, o que significava desfrutar da liberdade e arcar com as despesas de sua própria sobrevivência material. Mas, ao que parece, um número maior de coartados num mercado de trabalho instável trouxe complicações de faturamento para muitos deles. A retração da atividade mineradora, sem dúvida, diminuiu a circulação do ouro e afetou muitas atividades desempenhadas pelos coartados: a venda de quitutes no tabuleiro, a prestação de serviços qualificados dos oficiais mecânicos, e sobretudo o garimpo nas faisqueiras. E entre os possíveis resultados dessa dinâmica estavam tanto a autuação de ações cíveis de redução ao cativeiro por não pagamento da coartação, como a abertura de ações cíveis que visavam, por vezes, à manutenção do estado livre já desfrutado pelos coartados e, em algumas situações, à sua restituição.

Ao invés de exceções, os conflitos entre os envolvidos no coartamento constituíram parte integrante desse fenômeno, podendo alguns deles chegar até a instância pública de intermediação - o tribunal. O que estava em causa em tais litígios eram o reconhecimento da existência do acordo de liberdade, sua validação ou anulação e, consequentemente, a reescravização ou não dos coartados. Enquanto ameaça ou prática efetiva, a redução ao cativeiro, como os muitos exemplos já demonstraram, assombrava aqueles que ainda se encontravam no meio do caminho, entre a escravidão e a liberdade. Em especial, aterrorizavam os coartados que já desfrutavam da condição social de libertos. Para eles, a reescravização significava submeter-se novamente ao domínio de outra pessoa e, de modo geral, implicava a perda da expectativa de tornar-se alforriado em um futuro próximo. Sendo assim, a reescravização estava no horizonte dos coartados que cotidianamente aprenderam a lidar com as ambiguidades e as incertezas que caracterizavam suas experiências.

Entretanto, uma suposta tendência da interrupção de tais acordos de liberdade por vontade dos proprietários outorgantes (ou seus representantes) não se confirma. Aliás, as histórias de Quitéria Maria Corrêa, Antônio Angola, João Angola, Maria Mina, Ângelo Pinto entre outros, contrariam tal expectativa. E mais: sugerem que, durante o período colonial, mesmo antes de a abolição entrar em pauta, a justiça pôde ser acionada para impor limites à autoridade senhorial. Esta era a expressão da resistência desses indivíduos. Surpreende, no entanto, que a imposição violenta de uma volta ao cativeiro tenha sido evitada inclusive por alguns senhores que buscaram a intermediação do tribunal, mesmo quando não encontraram oposição por parte dos coartados, como ocorreu nos casos de Felizarda e Miguel Angola. Talvez a intenção fosse evitar futuros questionamentos em juízo. Fosse qual fosse a razão que levou coartados e proprietários a mover e sustentar um recurso judicial, por ora importa ressaltar que as provas documentais, as testemunhas, a legislação e os argumentos compuseram as peças do tabuleiro de xadrez representado pelo tribunal colonial de Mariana. Entraram nesse jogo aqueles que, além de dispor dos recursos necessários, conheciam e manipulavam suas regras em prol dos seus interesses.

REFERÊNCIAS

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Notas

  • 1
    Tratava-se de uma carta particular escrita de próprio punho pelo outorgante, ou a seu pedido. Após sua emissão, o corte poderia ser guardado por seu fiador (caso houvesse), ou entregue ao coartado para que lhe permitisse circular com autonomia em busca de trabalho, cujos rendimentos agenciariam sua liberdade. Depois de quitado, ele poderia ser registrado em cartório a fim de confirmar sua total quitação ou dar lugar a emissão de um novo documento: uma carta particular ou uma escritura pública de alforria.
  • 2
    Eduardo França Paiva equipara os requerimentos enviados ao governador a litígios judiciais; porém, tais documentos apresentam praxes distintas em decorrência, inclusive, de suas finalidades. De modo geral, enviar um requerimento a uma autoridade para que esta interviesse em um desentendimento pode ser considerado uma forma alternativa de buscar proteção fora de um tribunal, evitando-se, com isso, a demora e o ônus de um processo. Também pode ter servido como estratégia para informar um juiz sobre o tipo processual a ser autuado, como veremos neste artigo. Daí se percebe a importância de se diferenciar um requerimento de uma demanda judicial.
  • 3
    A arrematação em hasta pública significava a venda de um bem por intermediação da Justiça. Era realizada em casos de execução de dívidas e de necessidade de se desfazer da propriedade de um indivíduo ausente ou falecido. Para tanto, num determinado dia, os bens eram anunciados em praça pública, e os interessados deviam oferecer um preço para adquiri-los, alcançando esse objetivo aquele que desse maior lance.
  • 4
    Domingos Gonçalves Fontes era procurador de José Pereira Simas, ausente das Minas Gerais por ter retornado a Portugal.
  • 5
    Creio que a disparidade entre o estatuto jurídico, ou seja, o domínio da liberdade, e a condição social entendida como o usufruto ou a posse da liberdade fora recorrente no século XVIII. Eram múltiplas as experiências em torno do domínio e do usufruto da liberdade. Por isso, a separação e a diferenciação entre tais concepções constituem uma importante chave de leitura para os conflitos judiciais acerca da coartação.
  • 6
    Sua contenda não tem um desfecho porque os autos estão incompletos. Suponho que partes dele tenham se perdido ao longo do tempo.
  • 7
    De certo modo, a atuação pontual para o restabelecimento da ordem é o que caracterizou o funcionamento da Justiça no Antigo Regime. A apreciação do caso concreto para solucioná-lo de forma mais adequada, estando atento às suas particularidades, era o que determinava a atuação dos advogados e juízes. Embora esses agentes fossem guiados por princípios gerais do Direito, eles também observavam a prática do lugar de seu foro quanto a questões semelhantes, havendo ainda a possibilidade de que inovações se mostrassem necessárias. Sobre o modo de funcionamento da Justiça no Antigo Regime e suas características principais - o pluralismo do ordenamento jurídico, o casuísmo, a equidade e a graça, ver Hespanha, 2006HESPANHA, A. M. Porque é que existe e em que consiste um Direito Colonial Brasileiro. In: PAIVA, E. F. (org.). Brasil-Portugal. Administração, sociedade e cotidiano: formas de integração. São Paulo: Annablume, 2006, pp. 21-41., pp. 21-41.
  • 8
    Assim eram designadas as propriedades e os instrumentos usados na extração do ouro.
  • 9
    Ela desobedeceu à condição de pagar parcelas anuais, mas não creio que isso tenha sido motivo para invalidar sua coartação.
  • 10
    O “papel com adição”, ou melhor dizendo, a alforria condicional de Catharina foi escrita em 6 de dezembro de 1757 e registrada em cartório um ano depois, quando a crioula já detinha sua coartação (o papel de corte foi feito, portanto, nesse intervalo). Curiosamente, Catharina de Sena estaria, ao mesmo tempo, forra sob condição e coartada. O ato de lançar no livro de notas do tabelião aquele primeiro documento pode ser entendido como uma garantia do usufruto senhorial… e talvez tivesse acontecido após Catharina ter deixado o termo de Mariana sem tratar de avisar qual o seu destino. Essa, porém, é apenas uma suposição levantada na tentativa de explicar o fato bastante intrigante. Nada a esse respeito consta no processo movido por Catharina de Sena, e é bem possível que ela não tivesse conhecimento de tal registro cartorial. Tal informação encontrei em outro estudo sobre alforrias, Monti, 2001MONTI, C. G. O Processo de Alforria; Mariana (1750-1779). 2001. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001., p. 132.
  • 11
    Por meio de uma precatória geral, um juiz autorizava, por carta, que outros juízes pudessem citar o réu fugitivo, cujo local de residência tornou-se desconhecido.
  • 12
    As ações sumárias, ao contrário das ordinárias, eram consideradas ações especiais, produzidas com o objetivo de debater casos que não precisavam ser meticulosamente averiguados, ou que deviam obter uma rápida resolução - como pedidos de alimentos, de depósito judicial, de habilitação de herdeiros. Esses e outros assuntos davam forma a ritos processuais variados: autos de justificação, notificações, exibições, requerimentos, etc. Sendo assim, eram muitos e diversos os tipos processuais, e a autuação de um deles em detrimento aos demais era deferida pelo juiz ao apreciar a razão alegada pelo autor - objeto e finalidade da causa. Sabendo disso, convém destacar como uma importante estratégia jurídica a possibilidade de os autores optarem pelo início de uma ação ordinária, ou de um processo sumário qualquer, tendo em consideração a probabilidade de sua escolha ser aceita ou não, dado o “estilo” costumeiro de cada tribunal.
  • 13
    Esse termo foi empregado por um advogado, o Dr. Joaquim José Varela de Almeida, na defesa de um coartado num “libelo de redução ao cativeiro”, movido em razão do não pagamento do corte. Esse caso será analisado mais adiante: AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 308, Auto 7387, fl. 23.
  • 14
    Os libelos cíveis eram os processos que possuíam uma ordem processual comum, isto é, ordinária. O autor inicialmente apresentava sua demanda ao juiz. Em seguida, realizava-se a citação do réu. Depois de feito o chamamento a juízo, esperava-se o tempo determinado pela sua resposta. Prosseguia-se com a produção de provas por meio de testemunhas, instrumentos (documentos públicos e particulares), confissão e juramento. Com base nessas evidências, os litigantes (primeiro o autor, depois o réu) passavam a ratificar seus argumentos. Por último, o juiz examinava os autos, todas as partes que o compunham, e pronunciava sua decisão. Esses constituíam os procedimentos básicos de uma ação ordinária, apta a ser aplicada com maior frequência em diferentes matérias de disputa.
  • 15
    Pascoal José de Melo Freire, proeminente jurista e estudioso da história do Direito português no século XVIII, definiu “meia prova” ou “semiprova” como aquela “pela qual se faz alguma fé ao juiz acerca do fato controverso ou coisa duvidosa, mas não tamanha que se possa sem outro auxílio decidir a questão com ela”. Cf. FREIRE, P. J. de M. Instituições de Direito Civil Português; tanto público como particular. Trad. Miguel Pinto de Menezes. Boletim do Ministério da Justiça, ns. 161, 162, 163, 164, 165, 166, 168, 170 e 171,1967, Tomo IV, Título XVI, parágrafo 3, pp. 127-128.
  • 16
    Ainda de acordo com Melo Freire, supletório é o juramento que “o juiz sem ser requerido defere ao autor ou ao réu por carência de prova”. Para que o supletório fosse deferido ao autor, exigia-se: “1 - que se haja feito pelo menos prova semiprova, o que se faz ou por uma só testemunha fora de toda suspeição, ou por duas menos insuspeitas, ou por confissão extrajudicial ou por escritura particular, e comparação da letra (…); 2 - que a causa não seja muito valiosa ou criminal, mas cível e módica, o que varia conforme a qualidade dos litigantes; 3 - que aquele a quem é deferido o juramento, tenha a probabilidade de saber a verdade (…); 4 - que o jurante seja homem bom, de comprovada fé, e íntegra reputação”. Cf. FREIRE, 1967, Tomo IV, Título XIX, parágrafo 3, pp. 92-93.
  • 17
    Seguem outros exemplos de processos em que os réus coartados deixaram a causa correr à revelia, tornando sua defesa uma incumbência exclusiva dos curadores: AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 400, Auto 8762; AHCSM - 1º Ofício,Ações Cíveis, Códice 393, Auto 8602; AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 380, Auto 10218; AHCSM - 1º Ofício, Ações Cíveis, Códice 378, Auto 8244.
  • 18
    Depois que o coartado formou embargos à segunda sentença, não foi dado prosseguimento aos autos. Passados mais de dois anos, a pedido do testamenteiro, Ângelo Pinto foi novamente citado para retomar a tramitação do processo, mas em seguida faleceu, e assim encerrou-se a batalha judicial.
  • 19
    Um exemplo de processo em que o advogado do coartado empregou esse argumento é aquele que foi autuado pelo alferes Paulo de Araújo Barreiros, testamenteiro de Thereza Pinta Mourão: AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 308, Auto 7387.
  • 20
    Um exemplo desse outro argumento consta no processo movido Francisco Fernandes de Barros Loureiro contra Paulo Mina: AHCSM - 2º Ofício, Ações Cíveis, Códice 267, Auto 6596.
  • 21
    Esse período ficou conhecido por uma “acomodação evolutiva da economia” mineira. A expressão foi cunhada por Douglas Cole Libby, e a periodização é resultado das investigações de Carla Maria Carvalho de Almeida; Libby, 1988LIBBY, D. C. Transformação e trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.; C. M. C. de Almeida, 1995ALMEIDA, C. M. C. de. Minas Gerais de 1750 a 1850: bases da economia e tentativa de periodização. LPH: Revista de História, Ouro Preto, n. 5, pp. 88-111, 1995..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2017
  • Aceito
    10 Mar 2018
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