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A “Segunda Escravidão” na Princesa do Vale (Vassouras, RJ) e na Princesa do Oeste (Campinas, SP), 1797-1888

The “second slavery” in the Princess of the Valley (Vassouras, RJ) and in the Princess of the West (Campinas, SP), 1797-1888

RESUMO

O objetivo do artigo é fazer uma discussão da “segunda escravidão” à luz da experiência escravista de Campinas (SP), região pouco explorada pelos estudiosos dessa corrente de pensamento. O trabalho está dividido em três partes e a conclusão: na primeira analisamos a “segunda escravidão”, segundo seus principais formuladores; em seguida, fazemos a incursão pela historiografia de Vassouras (RJ), destacando os estudiosos da “segunda escravidão”. Na terceira parte, analisamos a escravidão em Campinas (SP) no momento de profundas transformações econômicas e sociais na passagem da economia açucareira para a cafeeira, ressaltando as semelhanças e as diferenças em relação à economia cafeeira de Vassouras (RJ). Nas considerações finais, voltamos ao ponto inicial - “segunda escravidão” - para pensar sobre sua capacidade em iluminar a experiência campineira e vice-versa.

Palavras-chave
“Segunda escravidão”; Economia açucareira; Economia cafeeira; Campinas (SP); século XIX

ABSTRACT

The paper aims to discuss the “second slavery”, in the light of the slave experience of Campinas (SP), a region until now scarcely studied by the main thinkers of this current of thought. The paper is divided in three parts and a conclusion: the first one analyzes the “second slavery” as formulated by its main proponents; the second one makes an incursion into the historiography of Vassouras (RJ), developed according to the “second slavery”; the third one we analyze slavery in Campinas (SP) at the moment of deep economic and social transformations in the transition from the sugar economy to the coffee, stressing similarities and differences vis-à-vis Vassouras (RJ). In the conclusions, a reflection on the capacity of the “second slavery” to illuminate the experience of Campinas, and vice versa.

Keywords
“Second slavery”; Sugar economy; Coffee economy; Campinas (SP); Nineteenth century

O objetivo do artigo é analisar a escravidão sob aspectos demográficos, econômicos e sociais na região compreendida no leste e nordeste da província de São Paulo com destaque para Campinas, entre 1797 e 1888. Essa área designada “da serra acima” ou “quadrilátero do açúcar” (Sorocaba, Piracicaba, Mogi Guaçu e Jundiaí), com destaque para Itu e Campinas, abrigou a produção açucareira (1797-1842) em extensas propriedades e com grandes contingentes escravos. A partir dos anos de 1840, uma parte da região, Campinas e seu entorno, sofreu uma grande transformação - as propriedades açucareiras se converteram paulatinamente em cafeeiras, e passou a ser chamada de “Oeste Paulista” em referência ao Vale do Paraíba, fluminense e paulista, conhecido como primeira região cafeeira do Brasil. Dos anos de 1870 até a abolição da escravidão, o Oeste Paulista tornou-se uma das principais zonas produtora de café.

Nossa intenção ao estudar Campinas e o Oeste Paulista é trazer o debate da “segunda escravidão” para uma região, até então, pouco explorada pelos estudiosos dessa corrente de pensamento.1 1 Uma primeira abordagem sobre o Oeste Paulista foi recentemente publicada por MARQUESE (2016). Antes de proceder à análise da escravidão na área escolhida, em especial, Campinas, exploramos os trabalhos dos estudiosos da “segunda escravidão” em Vassouras, RJ. Na verdade, elegemos este município como um contraponto para a análise de Campinas, por ter sido o mais estudado pela historiografia (STEIN, 1990STEIN, S. J. Vassouras. Um município brasileiro do café, 1850-1900. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. [1957]; COSTA, 1966 COSTA, E. V. Da senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1966.[1964]) e por ter recebido por parte dos pesquisadores da “segunda escravidão” um lugar de destaque ou de referência (SALLES, 2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008.; TOMICH, 2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011.; MARQUESE; SALLES, 2016MARQUESE, R. B.; SALLES, R. A escravidão no Brasil oitocentista: história e historiografia. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 99-161. ).

Menos importante, mas nem por isso desprezada, levamos em conta uma coincidência, no mínimo “interessante”: Vassouras recebeu designação de “Princesa” da região cafeeira onde se situava - a “Princesa do Vale” - e, Campinas, a “Princesa do Oeste”; uma, berço do Estado Imperial outra, palco do movimento republicano.

O artigo está dividido em três partes e a conclusão: na primeira analisamos o termo “segunda escravidão”, segundo seus principais formuladores (TOMICH, 2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011., 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. ; BLACKBURN, 2016BLACKBURN, R. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 13-54.); em seguida, fazemos a incursão pela historiografia de Vassouras, destacando os estudiosos da “segunda escravidão” (SALLES, 2013SALLES, R. A segunda escravidão. Revista Tempo, Rio de Janeiro, v. 19, n. 35, pp. 249-254, 2013., 2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008.; MARQUESE, 2013MARQUESE, R. B. . Estados Unidos, Segunda Escravidão e a Economia Cafeeira do Império do Brasil. Almanack. Guarulhos, n.05, pp.51-60, 1º semestre de 2013., 2004MARQUESE, R. B. . Feitores do corpo, missionários da mente: Senhores, letrados e o controle dos escravos na América, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.; MARQUESE; SALLES, 2016MARQUESE, R. B.; SALLES, R. A escravidão no Brasil oitocentista: história e historiografia. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 99-161. ). Na terceira parte, analisamos o desenvolvimento das culturas destinadas à exportação, açúcar e café, e a evolução da escravidão em Campinas, ressaltando as semelhanças e as diferenças em relação à economia cafeeira de Vassouras. Nas considerações finais, voltamos ao ponto inicial - “segunda escravidão” - para pensar sobre sua capacidade em iluminar a experiência campineira e vice-versa, ou seja, o que a escravidão na sociedade e na economia campineira traz para adensar a concepção de “segunda escravidão”?

“Segunda escravidão”: uma interpretação

Embora a “segunda escravidão” tenha sido desenvolvida ao longo da década de 1980, só recentemente, tem recebido maior atenção dos historiadores e cientistas sociais brasileiros. O interesse deve-se à publicação dos livros Pelo Prisma da Escravidão (2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011.) de Dale Tomich, historiador que a definiu, e Escravidão e capitalismo histórico no século XIX. Cuba, Brasil, Estados Unidos (2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. ), uma coletânea organizada por Rafael Marquese e Ricardo Salles.

A “segunda escravidão” foi pensada como uma chave para interpretar a intensificação da escravidão no século XIX no Sul dos Estados Unidos, em Cuba e no Brasil. Longe de imaginar que a escravidão seguiu uma trajetória linear em direção à extinção nos fins do século, Tomich (2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011.) reinterpreta a trajetória, demarcando uma ruptura entre a escravidão colonial, propriamente dita, ou a primeira escravidão e o surgimento de outra forma de escravidão - escravidão nacional - estimulada pelo desenvolvimento do capitalismo comercial, financeiro e industrial britânico dos oitocentos e pelos movimentos de Independência das colônias americanas, exceto Cuba. Como afirma Blackburn: “(...) a industrialização e o advento da modernização não representaram automaticamente o fim da escravidão, mas que, ao invés disso, a intensificaram e a difundiram” (BLACKBURN, 2016BLACKBURN, R. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 13-54., p.13).

Destacam-se como marcos fundadores de uma nova forma de escravidão: a revolta escrava de São Domingos ou Haitiana (1791-1804), que liquidou o principal produtor de açúcar e de café, e as guerras napoleônicas (1803-1815), que desorganizaram os mercados coloniais e a relação metrópole-colônia, e permitiram a consolidação da Grã Bretanha como o Império, livre da concorrência das antigas metrópoles Portugal, Espanha, França e, até mesmo, Holanda (TOMICH , 2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011., p.87-90).

Outro elemento importante, ao mesmo tempo paradoxal, é que a despeito da abolição do tráfico de escravos nas colônias inglesas em 1807 e nos Estados Unidos em 1808, do aumento da consciência antiescravista e do crescente movimento abolicionista ao longo dos oitocentos, a escravidão recrudesceu nas três principais áreas responsáveis pelo abastecimento de matérias primas e alimentos para o mercado mundial (TOMICH, 2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011., p. 88). Distintamente da primeira escravidão, que floresceu quando a instituição não era tão contestada, a segunda escravidão sobreviveu em meio à “grande onda antiescravista”. Em 1815, no Congresso de Viena, as nações europeias condenavam e proibiam o tráfico transatlântico de escravos (BLACKBURN, 2016BLACKBURN, R. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 13-54., p. 45-53).

Mesmo assim, convivendo com o crescente sentimento antiescravista, a escravidão intensificou-se no Sul dos Estados Unidos, que se tornou o maior produtor de algodão para as fábricas têxteis inglesas; em Cuba, que despontou como o maior fornecedor de açúcar para o mercado mundial e, por fim, no Brasil, que se transformou no maior produtor mundial de café.

O recrudescimento da escravidão no Sul dos Estados Unidos, Cuba e Brasil, no momento de avanço do capitalismo comercial-financeiro e industrial levou uma corrente de historiadores a formular a “segunda escravidão”, para distinguir de uma primeira escravidão de caráter colonial, ocorrida sob a influência do capitalismo comercial estruturado na relação metrópole-colônia. Somente Cuba permaneceu como colônia espanhola. Estados Unidos e Brasil organizaram-se como sociedades nacionais, embora com regimes políticos e formas de governo bastante distintos: República federativa e Império.

Além da intensificação da escravidão, a “segunda escravidão” aponta para a melhoria na organização produtiva do trabalho escravo que atingiu o seu auge de eficiência na produção de mercadorias em larga escala e a preços baixos para promover a revolução industrial, a urbanização e a redução do custo de reprodução do operário industrial. Assim, no decorrer do século XIX, o capital para se desenvolver e avançar recorreu ao regime de trabalho escravo intensificado e reestruturado de forma mais produtiva de modo a absorver o progresso técnico, resultante das novas tecnologias da revolução industrial: aperfeiçoamentos nos instrumentos de trabalho, máquina a vapor, máquinas de beneficiamento do café, navio a vapor, ferrovias etc.

Até mesmo para o aperfeiçoamento do controle do trabalho escravo, o sistema escravista aumentou a demanda por artigos de metal tais como barras de ferro, grilhões, armas de fogo etc., estreitando os laços com a industrialização (BLACKBURN, 2016BLACKBURN, R. Por que segunda escravidão? In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016, pp. 13-54., p. 41). Marquese (2004MARQUESE, R. B. . Feitores do corpo, missionários da mente: Senhores, letrados e o controle dos escravos na América, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.) mostra como também as questões de “gestão” da mão de obra cativa foram incorporadas à organização do processo de trabalho escravista.

Dale Tomich, em seu enfrentamento com a Nova História Econômica2 2 Nova História Econômica (NHE) é a corrente historiográfica que domina a disciplina acadêmica História Econômica nos centros norte-americanos desde os anos de 1960. Sua abordagem é marcada pelo emprego de métodos quantitativos, matemáticos e estatísticos, e pela apropriação dos conceitos da teoria econômica neoclássica. Caracteriza-se pela forte reação às abordagens marxistas (Maurice Dobb, Studies in the Development of Capitalism, publicado em 1946). A publicação que marcou a NHE foi o livro Time on the Cross de Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman (TOMICH, 2016, p.55-70). Ver também http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1993/fogel-bio.html Acessado em 23 mar. 2017. , afirma que a escravidão não pode ser concebida como uma “categoria geral e universal” de análise, mas como “uma forma específica de produção social que é continuamente feita e refeita através da relação historicamente cambiante entre terra, trabalho e mercado” (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p.83). Conclui que “essa abordagem nos permite tanto diferenciar quanto especificar determinadas zonas de produção dentro da economia-mundo e ao mesmo tempo apreender seu quadro mais amplo” (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p. 83). Como parte da expansão do sistema-mundo, o trabalho escravo e a relação escravista “são continuamente formados e reformados”. A ideia do sistema-mundo ou da economia-mundo pressupõe que a cada momento há uma nova configuração da relação capital, terra e trabalho escravo que faz parte de uma nova divisão do trabalho. Ao analisar as curvas de produção de açúcar, de Cuba; algodão, dos Sul dos Estados Unidos e café, do Brasil, entre 1820 e 1870, Tomich assevera que elas em nada lembram as curvas de produção da Jamaica e da Guiana entre 1807 e 1866, pois, aquelas explicitavam níveis de produção sem precedentes para cada produto e uma “constelação específica de relações históricas de produção de mercadorias” que daria ensejo a elaboração da segunda escravidão (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p. 84).

Da perspectiva da economia-mundo, a produção escravista de algodão no Sul dos Estados Unidos e a produção com trabalho assalariado nas fábricas têxteis inglesas não são separadas, mas “dois polos da divisão de trabalho econômica e geográfica mundial. Eles são interdependentes e mutuamente formativos um do outro através da forma mercadoria” (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p.85).

A crescente mecanização do sistema fabril inglês demandava uma rápida expansão da produção algodoeira escravista do Sul dos Estados Unidos. Ao passo que as exigências de maior quantidade de açúcar e de café derivavam dos processos de industrialização, de urbanização e da “emergência de uma nova massa de classes trabalhadoras e classes médias” (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p.86). Algodão, açúcar e café eram as “três commodities que definem a cultura material moderna”. “Cada uma dessas zonas em discussão - o cinturão algodoeiro americano, a zona açucareira cubana, a zona cafeeira brasileira - era uma área previamente inexplorada que foi transformada para promover o cultivo sistemático de seu respectivo artigo” (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p.87). Por sua vez os requisitos de transporte - estradas de ferro, barcos a vapor - foram fundamentais para o desenvolvimento de cada zona produtora em função do ambiente, da topografia e da distância ao porto de exportação, o que geravam outras demandas para o capital industrial.

Apesar da pressão para a abolição do tráfico internacional de cativos, ele manteve-se em volumes crescentes para o Brasil e Cuba como resultado de “uma relação de força e coerção impulsionada pela demanda por trabalho na expansão das fronteiras da mercadoria”3 3 Tomich utiliza o conceito de Jason Moore de “fronteiras da mercadoria” “como um modo de expansão da economia-mundo” (TOMICH, 2016, p.87). . Tomich avalia que o deslocamento e a mobilização de escravos no século XIX foram sem precedentes na história, se ao tráfico transatlântico forem acrescentados o tráfico interno praticado nos Estados Unidos e no Brasil (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p.88).

A “segunda escravidão” foi forjada para contestar a concepção de que o trabalho escravo era atrasado, ineficiente, incapaz de incorporar progresso técnico, sendo o oposto do trabalho assalariado, e por essa razão, foi extinto (TOMICH, 2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011., p.81-83). Por fim, conclui Tomich,

A segunda escravidão consolidou uma nova divisão do trabalho e forneceu um volume considerável de matérias-primas e gêneros alimentícios aos poderes industriais centrais. Longe de ser uma instituição moribunda durante o século XIX, a escravidão demonstrou toda a sua adaptabilidade e vitalidade (TOMICH, 2011TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão. Trabalho, capital e economia mundial. São Paulo: Edusp, 2011., p. 96).

Vassouras, a “Princesa do Vale”: café e escravidão

A região do Vale do rio Paraíba, Rio de Janeiro e São Paulo, foi pioneira na produção cafeeira em larga escala, com trabalho escravo e em grandes propriedades no século XIX. No livro E o Vale era o escravo (2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008.), Ricardo Salles faz um estudo aprofundado da relação entre os senhores e os escravos em Vassouras, o município mais importante da economia cafeeira do Vale do rio Paraíba fluminense. Por essa razão, Vassouras foi objeto de numerosos trabalhos, como o clássico - Vassouras, um município brasileiro do café, 1850-1900 - de Stanley J. Stein, publicado em 1957. Para o propósito do nosso trabalho, elegemos o estudo de Salles, por estar dentro dos marcos da “segunda escravidão” explorada pelo autor. Neste item pretendemos analisar alguns temas abordados por Salles, destacando os aspectos demográficos e econômicos para, em seguida, compararmos com o estudo de Campinas exposto na terceira parte. Há inúmeros temas que deixaremos de lado, como o papel dos fazendeiros do Vale na política de construção e consolidação do Império, o debate sobre a “paternidade” da lei do Ventre Livre, o protagonismo escravo no movimento abolicionista e a abolição da escravidão no Brasil; não que essas questões não sejam relevantes e instigantes, mas para os fins visados, vamos nos circunscrever às questões demográficas e econômicas.

O objetivo expresso por Salles é investigar e verificar as conexões entre a ordem econômica e social escravista em Vassouras, coração do Vale do rio Paraíba, RJ, e a formação do Estado imperial, “como elemento central de dominação e hegemonia da classe senhorial, entendida como classe nacional de proprietários de escravos” (SALLES, 2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008., p.18 e 22). Nesse sentido, Salles entende que a segunda escravidão esteve associada à formação de uma classe senhorial e, simultaneamente, à formação do Estado imperial. A região fluminense foi o lugar de “preeminência” da base social desse processo (SALLES, 2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008., p.29).

É a segunda parte do E o Vale era o escravo que nos interessa mais de perto, em especial, os capítulos quatro, seis e sete. Nela, o autor desenvolve a análise das condições sociais, com base nos dados demográficos sobre a evolução da população escrava; distribuição da propriedade escrava; tamanho de escravarias; estrutura fundiária; origens dos escravos, africanos e crioulos; distribuição da população por idade e sexo. Como fonte documental, Salles utiliza a pesquisa realizada em 729 inventários de 1821 a 1880, que registraram a presença de 28.245 escravos. Ao mesmo tempo, Salles propõe uma periodização que delimita as fases do desenvolvimento da cafeicultura em Vassouras: o período de 1821 a 1835 denomina de implantação da economia cafeeira; 1836 a 1850, expansão; de 1851 a 1865, apogeu e, finalmente, de 1866 a 1880, grandeza.

Esse processo de evolução da economia cafeeira de Vassouras coincide com a “acumulação” e “concentração” da propriedade escrava, conforme é possível observar pelo comportamento das cinco faixas de proprietários de cativos estabelecidas de acordo com o tamanho da posse. Salles classificou as faixas de proprietários em: microproprietários, possuidores de 1 a 4 escravos; pequenos proprietários, de 5 a 19 cativos; médios proprietários, de 20 a 49; grandes proprietários, de 50 a 99 cativos e, finalmente, megaproprietários, de mais de 100 escravos. Conclui o autor que Vassouras foi distinta de outras regiões escravistas, pois apresentou maior dispersão na propriedade de escravos, evidenciada pela existência das cinco faixas, ao invés de três: pequena, média e grande, como tradicionalmente ocorre em outros lugares.

Outra especificidade de Vassouras é que a propriedade de escravos nasceu concentrada e, ao longo de quase um século, não sofreu mudanças significativas. Assim, a propriedade de escravos era diversificada, dispersa por micro e pequenos proprietários, e concentrada em grandes e megaproprietários de escravarias. Não houve um processo de concentração da propriedade de cativos à custa dos menores proprietários, ou seja, da crescente eliminação dos pequenos. Enquanto durou o tráfico transatlântico de escravos, o abastecimento de cativos atendeu a demanda de todos e, ao mesmo tempo, propiciou a “acumulação” da propriedade pelos grandes e megaproprietários (SALLES, 2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008., p.31). Após a abolição do tráfico internacional em 1850, a eliminação da oferta africana e a elevação do preço dos escravos restringiram o acesso dos micro e pequenos proprietários ao mercado de cativos, mas, segundo o autor, já na década de 1860, estes proprietários recuperaram sua participação, atingindo a posição desfrutada na década de 1830. No pós-abolição do tráfico, a prática das alforrias tornou-se rara nas grandes posses.

Abandonando a periodização proposta no capítulo quatro, a análise realizada nos capítulos seis e sete estende-se pela segunda metade da década de 1860 até aprovação da Lei de Ventre Livre em 1871 (1865-1871). Nesses capítulos repousa uma ideia inovadora, que surge da constatação de que ocorreu uma “alteração profunda na correlação material e demográfica de forças entre senhores e escravos em Vassoura” - a escravidão tornou-se estável na região, com uma clara tendência à reprodução natural positiva da população escrava (SALLES, 2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008., p.32). Esses dois capítulos tratam do surgimento de uma “sociedade escravista madura” que foi, segundo a interpretação de Salles, abortada pela Lei do Ventre Livre, que interrompeu o processo capaz de garantir a permanência dos interesses dos proprietários escravistas ao propiciar vida longa à escravidão! Na “sociedade escravista madura”, a reprodução da escravidão, que, até então dependia do tráfico internacional, muda radicalmente, e passa a depender da reprodução natural positiva, que por sua vez dependia da melhoria das condições de vida dos escravos, do equilíbrio entre os sexos, do estímulo ao casamento, do estímulo à formação de famílias, dos cuidados às crianças. Repetir-se-ia, segundo Salles, em Vassouras, a experiência dos estados do Sul dos Estados Unidos, “onde a reprodução natural da população escrava se consolidou plenamente (...)” (SALLES, 2008SALLES, R. . E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: Senhores e escravos no coração do Império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008., p.33). Entretanto, a Lei do Ventre Livre obstaculizou o pleno desenvolvimento da “sociedade escravista madura”. Com a liberdade do fruto do ventre da mulher escrava abriu-se uma divisão na classe senhorial - entre os proprietários de escravos e os senhores que conduziam a política e os negócios do Estado Imperial.

Campinas, a “Princesa do Oeste”: açúcar, café e escravidão.

Na primeira metade do século XIX, Campinas consolidou-se como importante produtora de açúcar (PETRONE, 1968PETRONE, M. T. S. A lavoura canavieira de São Paulo. São Paulo: Difel ,1968. ; EISENBERG, 1989EISENBERG, P. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil - séc. XVIII e XIX. Campinas: Editora Unicamp, 1989.; BACELLAR, 1997BACELLAR, C. A. P. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista, 1765-1855. Campinas: Centro de Memória/Unicamp, 1997.; SLENES, 2011SLENES, R. W. Na senzala uma flor - esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrig. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2011.). Nos anos de 1850, despontou como o principal município cafeicultor escravista de São Paulo (Quadro Estatístico, 1855QUADRO Estatístico da População da Província de São Paulo Recenseada no Anno de 1854; Quadro Estatístico do Movimento da População da Província de São Paulo durante o Anno de 1854; Quadro Estatístico de alguns estabelecimentos rurais da Província de São Paulo 1854 e Mappas das Colonias Existentes na Província de São Paulo no anno de 1855, apresentados por José Joaquim Machado de Oliveira. 1854; MILLIET, 1982MILLIET, S. Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do Brasil. 4. ed. rev. e aum. São Paulo: Hucitec, INL,1982.; BASSANEZI, 1998BASSANEZI, M. S. C. B. (Org.). São Paulo do passado: dados demográficos. Campinas: NEPO/UNICAMP, 1998.). A evolução demográfica e política da localidade acompanhou sua expansão econômica.

O surgimento de Campinas está ligado à formação de um pouso destinado aos viajantes, tropeiros e viandantes que transitavam pelo caminho dos Goiases que interligava a cidade de São Paulo às regiões mineradoras de Goiás e Mato Grosso. Na primeira lista de habitantes da recém-restaurada Capitania de São Paulo (1765-1822), datada de 1767, a então Vila de Jundiaí abarcava em seu território o “bairro do Mato Grosso caminho de Minas” cuja população total era de apenas 268 habitantes (TEIXEIRA, 2011TEIXEIRA, P. E. A formação das famílias livres: Campinas, 1774-1850. São Paulo: Editora Unesp, 2011. , p.38). Dada a distância para Jundiaí, os moradores do bairro rural solicitaram a ereção de uma paróquia para sua assistência espiritual. Em 1774, o antigo bairro foi elevado à freguesia Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí, com 475 habitantes, dos quais 87 (18,3%) eram escravos. A criação da freguesia deveu-se não somente à demanda religiosa dos seus moradores, pequenos lavradores, mas, sobretudo, à política pombalina de revigoramento agrícola da capitania, a qual foi levada a cabo por Luiz Antonio de Souza Botelho Mourão, Morgado de Mateus, entre 1765 e 1775 (PETRONE, 1968PETRONE, M. T. S. A lavoura canavieira de São Paulo. São Paulo: Difel ,1968. , p.9-23). Vinte três anos depois, a freguesia desmembrou-se de Jundiaí e passou a ser denominada de Vila de São Carlos com 2.508 habitantes (livres e escravos).4 4 Empregaremos o nome atual, Campinas. O nome Campinas foi restabelecido em 1842, quando a localidade recebeu o foro de cidade (TEIXEIRA, 2011TEIXEIRA, P. E. A formação das famílias livres: Campinas, 1774-1850. São Paulo: Editora Unesp, 2011. , p.37-38).

A ocupação e povoamento efetivo de Campinas ocorreram em razão da migração de moradores de diversas localidades paulistas vizinhas como Atibaia, Bragança, Itu, Jundiaí, Mogi Mirim, Mogi Guaçu, Nazaré; de outras mais distantes, Cotia, cidade de São Paulo e Ponta Grossa, além de famílias vindas de Minas Gerais (TEIXEIRA, 2011TEIXEIRA, P. E. A formação das famílias livres: Campinas, 1774-1850. São Paulo: Editora Unesp, 2011. ; RIBEIRO, 2015RIBEIRO, M. A. R. . Riqueza e endividamento na economia de plantation açucareira e cafeeira: a família Teixeira Vilela/Teixeira Nogueira, Campinas, século XIX. Estudos Econômicos. São Paulo, vol. 45, n.3, pp. 527-565, jul.-set, 2015. ). Boa parte desses migrantes ocupou-se de atividades produtivas ligadas ao abastecimento interno - criação de animais (suíno, vacum, cavalar, lanígero) e plantação de gêneros de primeira necessidade (milho, arroz, feijão, cana etc.) e produção de aguardente e rapadura.

Apesar de as primeiras sesmarias datarem de 1740, a concentração de concessões ocorreu no final da década de 1790, quando tem início a implantação da economia deplantationda cana-de-açúcar. Segundo Nozoe, de 1790 a 1799, 22 cartas de sesmarias foram concedidas, ao passo que entre 1700 a 1789, 10 (NOZOE, 2008NOZOE, N. H. . A apropriação de terras rurais na Capitania de São Paulo. Tese (livre docência). Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008., p.172 e 2016NOZOE, N. H. Sesmarias e posse de terra rural no Entre Rios de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Matto Grosso. In: RIBEIRO, S. B. (Coord.). Sesmarias, engenhos e fazendas. Arraial dos Souzas, Joaquim Egydio, Jaguary (1792-1930). Campinas, 2016, pp.10-55., p.35-55). Alguns fatores foram determinantes para a implantação da cultura canavieira: a elevação do preço do açúcar no mercado internacional, em consequência da revolta escrava em São Domingos (1791-1804), que eliminou o principal produtor de açúcar e café; e as guerras napoleônicas (1803-1815); o acesso a terra pela concessão de sesmarias e a existência prévia de uma economia mercantil capaz de financiar a instalação dos primeiros engenhos e a compra de cativos africanos.

Seguem informações referentes à distribuição da propriedade escrava e da população cativa no período de implantação e de consolidação da economia agroexportadora açucareira (1798-1829). Segundo a Lista Nominativa de Habitantes de 1801, 72,3% dos fogos (domicílios) de Campinas contavam com até nove escravos, mas detinham apenas 27,2% da mão de obra cativa. Em 1829, ano em que a economia açucareira se encontra em plena atividade, é possível observar a concentração da propriedade escrava nas escravarias com mais de 10 escravos. A Lista de Habitantes para o ano de 1829 indica que os fogos com até nove escravos reduziram a participação para 64,5% dos domicílios e passaram a deter somente 12,9% da população cativa.

Em 1801, não encontramos proprietários com mais de 100 escravos. Já em 1829, cinco fogos contavam com a presença de mais de 100 escravos. Se em 1801, 72,8% dos escravos pertenciam a proprietários com 10 escravos ou mais, em 1829, este mesmo porcentual elevou-se para 87,1% (SLENES, 2011SLENES, R. W. Na senzala uma flor - esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrig. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2011., p.265-266).

Quanto ao equilíbrio entre homens e mulheres cativos para 1801, Slenes calculou uma razão de sexo (número de homens para 100 mulheres) de 192, considerando apenas a população cativa acima de 15 anos (SLENES, 2011SLENES, R. W. Na senzala uma flor - esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrig. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2011., p. 265). Em 1829, a razão de sexo para a população escrava com 15 anos e mais se elevou para 286, evidenciando a expansão da economia açucareira que demandou a aquisição de mão de obra escrava africana, especialmente masculina e em idade produtiva (SLENES, 2011, p.266). “Em 1801, os africanos constituíam 70,1% dos cativos acima de 15 anos de idade. A proporção provavelmente se manteve próximo ou até superior a esse patamar até meados do século” (SLENES, 2011SLENES, R. W. Na senzala uma flor - esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrig. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2011., p. 79).

A tabela 1 mostra os senhores de engenho com mais de 100 escravos que foram recenseados em Campinas em 1829. Os indicadores demográficos apontam uma variação expressiva entre as escravarias, refletindo especificidades de cada proprietário: ciclo de vida, trajetória individual e familiar, heranças recentes, aquisição de cativos via tráfico internacional e doméstico. Por exemplo, em 1820, o Capitão-mor Floriano de Camargo Penteado comprou escravos oriundos de Moçambique, transportados pelo navio negreiro Conceição Esperança, da viagem organizada por Antonio da Silva Prado, futuro Barão de Iguape (MARCONDES; MOTTA, 2016MARCONDES, R. L.; MOTTA, J. F. As viagens do Conceição Esperança: Tráfico de escravos entre São Paulo e Moçambique (1820-22). São Paulo, FEA-USP, Seminário de História Econômica . Hermes &Clio, 2016.).

Tabela 1:
Indicadores da população cativa de cinco proprietários com mais de 100 escravos. Campinas-SP, 1829.

De acordo com o marechal Daniel Pedro Müller (1923MÜLLER, D. P. (Org.). Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923.), em 1836, Campinas despontava como a principal produtora de açúcar da Província de São Paulo, seguida de Constituição (atual Piracicaba-SP). Ao todo, a província paulista foi responsável por 563.108 arrobas de açúcar, das quais 158.447 arrobas (28,1%) eram provenientes de Campinas.

O quadrilátero do açúcar, como ficou conhecido o conjunto de municípios canavieiros, recebeu menção no Ensaio d’um Quadro Estatístico da Província de São Paulo: “Nas Villas ao Occidente da Capital, de Jundiahy, S. Carlos, Ytu, Capivary, Porto Feliz, Sorocaba, e Constituição, é o assucar a sua principal cultura, e ramo de commercio” (MÜLLER, 1923MÜLLER, D. P. (Org.). Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923., p.25 grafia no original).

O café também estava presente na lista de produtos, mas com pequena participação, apenas 8.081 arrobas, o que representou meros 1,4% da rubiácea produzida em solo paulista. Em seu relatório, o marechal assim se referiu à Vila de São Carlos (Campinas): “occupão-se seos habitantes na cultura da canna de assucar, algum café, e mantimentos. Não tem terrenos devolutos” (MÜLLER, 1923MÜLLER, D. P. (Org.). Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923., p.58). As localidades paulistas do Vale do Paraíba eram as maiores produtoras de café da província, com destaque para Areias, responsável por 17,5%.5 5 Sobre a região produtora de café, assim se referiu Müller: “O terreno para Leste, para onde corre o rio Parahyba, e seus confluentes, é uma grande parte de mattos; n’este além dos gêneros que plantão para alimento, como milho, feijão, arroz e mandioca, fazem a força do seu commercio na cultura de Café, assim também em Aguardente, Tabaco, creação de Porcos, e Gado Vaccum” (MÜLLER, 1923, p.25).

As terras férteis e a ocupação relativamente recente contribuíram para a produção diversificada de gêneros alimentícios em Campinas (MARTINS, 1996MARTINS, V. Nem senhores, nem escravos: os pequenos agricultores em Campinas, 1800-1850. Campinas: CMU/UNICAMP, 1996.). Como se pode verificar na tabela 2, destaca-se o aumento expressivo da produção em um curto período, em especial, o café que passou de 480 arrobas para 8.081 arrobas e o açúcar de 120.195 arrobas para 158.447 arrobas.

Tabela 2:
Produtos e Produção. Vila de São Carlos (Campinas), 1829 e 1836.

Para o conjunto da província, o valor da produção de Campinas era bastante expressivo, 308:225$620 (trezentos e oito contos e duzentos e vinte e cinco mil seiscentos e vinte réis), sendo o valor da produção total de 4.766:918$493 (quatro mil setecentos e sessenta e seis contos, noventos e dezoito mil réis). O valor da produção de Campinas era superior ao registrado em Bananal, 259:426$000 (duzentos cinquenta e nove contos, quatrocentos vinte seis mil réis), em Areias, 85:772$836 (oitenta contos setecentos setenta e sete mil oitocentos e trinta e seis réis) e nas demais localidades que produziam café (MÜLLER, 1923MÜLLER, D. P. (Org.). Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923., p. 124-129).

Além da produção, Müller, em seu Ensaio (1923MÜLLER, D. P. (Org.). Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923., p.130), informou o número de “estabelecimentos de agricultura existentes nos districtos”. Campinas contava com 93 engenhos de açúcar com destilação de aguardente, 93 destilarias de aguardente, 06 fazendas de criar, 09 fazendas de café e 16 engenhos de serrar. Apesar de um possível subregistro de estabelecimentos6 6 Os dados demográficos apresentados por Müller (1923) para Campinas não serão utilizados em razão de uma provável subnumeração. A população de 1836 é inferior à observada em 1829, respectivamente, 6.689 habitantes (2.772 livres e 3.917 escravos) em 1836 e 8.545 moradores (3.746 livres e 4.799 escravos) em 1829 (BASSANEZI, 1998, para o ano de 1836 e TEIXEIRA, 2011, para 1829). Importante ressaltar que Campinas não sofreu desmembramentos ao longo do século XIX. , é preciso ressaltar o início da transição de culturas da cana para o café.

As informações econômicas apresentadas por Müller atestam a força e a importância da economia açucareira em Campinas nas primeiras décadas do século XIX. A população escrava ultrapassou a livre em 1829, 1836 e 1854, ou seja, antes de o café se instalar como principal atividade no município. O acesso à mão de obra escrava ocorria por meio da importação de escravos vindos da África (até 1850-51) e, após a extinção do tráfico transatlântico, por meio do tráfico interno proveniente de outras províncias e municípios paulistas.

Chama a atenção, na tabela 3, o comportamento da exportação de açúcar: a queda da produção exportada em 1842 reflete o impacto da Revolução ou Revolta Liberal na economia açucareira campineira. Alguns senhores de engenho7 7 Da Revolta de 1842 participaram membros das famílias campineiras: Teixeira Nogueira, Moraes Sales, Ferraz Leite, Assis Pupo, Dias Aranha, Cerqueira Leite e Joaquim Bonifácio do Amaral (PUPO, 1969, p.134-135). envolveram-se na luta política contra a ascensão dos conservadores regressistas ao gabinete do Império. Aqueles acontecimentos abalaram profundamente Campinas, onde a derrota dos liberais pelas tropas legalistas foi selada no Combate da Venda Grande, com um saldo de 17 mortes e vários feridos. Antonio Manoel Teixeira, um dos maiores senhores de engenho, atuou como comandante militar designado por Rafael Tobias de Aguiar (PUPO, 1969PUPO, C. M. M. Campinas, seu berço e juventude. Campinas, Academia Campinense de Letras, n.20, 1969., p.123-136; HÖRNER; OLIVEIRA, 2010HÖRNER, E.; OLIVEIRA, C. H. S. Projetos políticos e luta armada: a Revolução de 1842 em São Paulo. In: ODALIA, N.; CALDEIRA, J. R. C. (Org.). História do Estado de São Paulo: a formação da unidade paulista - Colônia e Império. Editora UNESP; Imprensa Oficial; Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010, pp. 407-425., p.407-425; RIBEIRO, 2016RIBEIRO, M. A. R. Hercules Florence e a Fazenda Soledade. In: RIBEIRO, S. B. (Coord.). Sesmarias, engenhos e fazendas. Arraial dos Souzas, Joaquim Egydio, Jaguary (1792-1930). Campinas, 2016, pp. 206-243., p.208-210).

Na tabela 3, podemos observar também o crescimento constante da exportação de café pelo porto de Santos a partir da segunda metade dos anos de 1830. O ano de 1854/1855 é o ponto de inflexão, quando o café se transforma no principal produto de exportação de Campinas. Petrone considera o ano de 1850/1851 como o ano no qual a produção cafeeira da província superou a açucareira. A partir desse ano o café toma a dianteira tornando-se o principal produto de exportação (PETRONE, 1968PETRONE, M. T. S. A lavoura canavieira de São Paulo. São Paulo: Difel ,1968. , p. 224).

Tabela 3:
Açúcar e café produzidos por Campinas e exportados por Santos, 1836-1855

Se a fase como Vila de São Carlos teve o açúcar como principal produto, é a partir da condição de cidade que a lavoura de café irá se destacar em Campinas. Segundo o Quadro Estatístico de Alguns Estabelecimentos Rurais da Província de São Paulo (1855QUADRO Estatístico da População da Província de São Paulo Recenseada no Anno de 1854; Quadro Estatístico do Movimento da População da Província de São Paulo durante o Anno de 1854; Quadro Estatístico de alguns estabelecimentos rurais da Província de São Paulo 1854 e Mappas das Colonias Existentes na Província de São Paulo no anno de 1855, apresentados por José Joaquim Machado de Oliveira. 1854), com informações referentes a 1854, o café sobrepujou o açúcar em diversos indicadores: maior número de fazendas (177 versus 44), número de escravos (6.000 versus 1.967), produção (335.550 arrobas versus 62.290 arrobas), área destinada ao cultivo (44 léguas e meia versus 16 léguas) e, por fim, o rendimento muito mais elevado do café (MELO, 2006MELO, J. E. V. Café com açúcar: a formação do mercado consumidor de açúcar em São Paulo e o nascimento da grande indústria açucareira paulista na segunda metade do século XIX. Saeculum. Revista de História. João Pessoa, [14], jan./jun, 2006, p.74-93., p.77).

Até 1850-1851 a oferta de mão de obra escrava dependia fundamentalmente do comércio transatlântico de cativos africanos, o que resultou em uma participação elevada de africanos na população escrava de Campinas. Após a extinção do tráfico transatlântico, o comércio interno de cativos realizado entre os municípios paulistas e as províncias tornou-se a alternativa de fornecimento. Uma possibilidade de reposição e crescimento da população escrava era através da reprodução natural positiva, a qual sempre foi descartada pelos contemporâneos, senhores da elite, viajantes, cronistas, e pela historiografia, que a reconhecia como negativa.

Ao recorrer ao tráfico interno, principalmente, interprovincial, os proprietários de escravos adquiriram preferencialmente cativos em idade produtiva, o que resultou na manutenção do desequilíbrio de sexo, como mostram as pirâmides populacionais para Campinas referentes aos anos de 1854 e 1872-1874 (Gráfico 1 e Gráfico 2)8 8 O Recenseamento Geral do Império de 1872 não foi realizado neste ano em todas as províncias do Brasil. O munícipio de Campinas possuía duas paróquias em 1872: a paróquia Nossa Senhora da Conceição e N. S. do Carmo e Santa Cruz. Na primeira, a idade das crianças escravas foi registrada a partir de dois anos, o que indica que o levantamento foi realizado em 1873, e não contabilizou as crianças nascidas após da Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871. Já para a paróquia de N. S. do Carmo e Santa Cruz, as crianças cativas foram registradas a partir de 3 anos indicando que o censo foi realizado em 1874. .

Gráfico 1
População escrava por sexo e faixa etária, Campinas, 1854

Gráfico 2
População escrava por sexo e faixa etária. Campinas, 1872/74

Em 1872-74, a razão de sexo da população escrava com 15 anos ou mais era de 184. Quanto à origem ou procedência, apenas 9% da população escrava era composta de pessoas de origem africana (BASSANEZI, 1998BASSANEZI, M. S. C. B. (Org.). São Paulo do passado: dados demográficos. Campinas: NEPO/UNICAMP, 1998.).

Campinas chegou a ter mais escravos (13.685) em 1872-74 do que algumas províncias do Brasil como Paraná, Rio Grande do Norte, Goias, Mato Grosso e Amazonas (LUNA; KLEIN, 2010LUNA, F. V.; KLEIN, H. S. Escravismo no Brasil. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial, 2010., p. 93). Após 1872, a população escrava passa a declinar, invertendo a trajetória de crescimento que teve início com povoamento de Campinas. Uma série de fatores contribuiu para a queda do contingente escravo, dentre os quais se destacam: a lei de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre ou Rio Branco, que considerou livres os filhos de mãe escrava, passando a não serem mais contabilizados como cativos nos censos de população; a Lei de 28 de setembro de 1885, também conhecida como Lei dos Sexagenários ou Saraiva-Cotegipe, pelo qual o escravo beneficiado deveria continuar servindo seu antigo proprietário por mais três anos ou até atingir 65 anos; o aumento da prática de alforrias e a pressão dos movimentos abolicionistas e dos próprios escravizados para o fim da escravidão.

Na Tabela 4 fazemos uma comparação entre Campinas e Vassouras quanto à concentração da propriedade escrava por diversos tamanhos de escravaria para anos e períodos próximos. Cabe esclarecer que as fontes são distintas: para Campinas, os dados correspondem à lista de população de 1829 e às listas de matrícula de 1872 (SLENES, 2011SLENES, R. W. Na senzala uma flor - esperanças e recordações na formação da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. 2ª ed. corrig. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2011., p.266- 267); para Vassouras, as informações foram extraídas dos inventários post mortem para os períodos indicados.9 9 O ideal para fazer a comparação seria contar com dados extraídos da mesma fonte. O que pensamos fazer, proximamente, é trabalhar com dados dos inventários post mortem de Campinas. As informações da Tabela 4 permitem concluir que em Vassouras havia uma forte concentração da propriedade escrava nas grandes (50-99) e megapropriedades (+100) e que essa aumentou no tempo transcorrido entre os períodos selecionados. A dispersão da escravaria entre micro (1-4 escravos) e pequenos (5-19 escravos) proprietários reduziu-se ainda mais, embora ela fosse menor do que em Campinas para o primeiro período. Em Campinas, a propriedade escrava no ano de 1829 era mais dispersa entre as micro e pequenas posses, 78,5% das propriedades detinham 26% da escravaria. Os dados de 1872 mostram a redução da dispersão da propriedade escrava e aumento da concentração da escravaria, sobretudo nas propriedades com 100 ou mais escravos. O café e a elevação dos preços dos escravos a partir de 1850 provavelmente restringiram o acesso dos micro, pequenos e médios proprietários à posse escrava.

Tabela 4:
Acumulação e concentração da propriedade escrava. Vassouras e Campinas, 1821-1880.

Os dados descritos na tabela 5 apontam para um melhor equilíbrio de sexo em Vassouras, principalmente após a interrupção do tráfico escravo; ou seja, Vassouras privada da importação de cativos africanos tendeu a estabilizar uma menor razão de sexo. Apesar de Campinas ter reduzido o desequilíbrio de sexo, este se manteve elevado, bem acima do verificado em Vassouras. Campinas ao ingressar na produção cafeeira tinha um estoque de escravos envelhecido, tendo sido imediatamente atingida pela abolição do tráfico africano, assim, a renovação das escravarias se fez via tráfico interno interprovincial.

Para sustentar a expansão cafeeira, a demanda dos cafeicultores dirigiu-se preferencialmente para escravos adultos em idade produtiva. Adicionalmente ao tráfico interno que importou mais homens jovens, o nascimento de crianças escravas em Campinas também contribuiu para que a idade média entre a população escrava baixasse de 33 anos em 1854 para 26 anos em 1872-74 e a idade mediana passasse de 32 anos para 26 anos nos respectivos anos (BASSANEZI, 1998BASSANEZI, M. S. C. B. (Org.). São Paulo do passado: dados demográficos. Campinas: NEPO/UNICAMP, 1998.). Novamente, cabe a ressalva quanto à natureza diversa das fontes dos dados.

Tabela 5:
Evolução da Razão de Sexo da população escrava em Campinas e Vassouras - 1821-1887.

O café, diferentemente do açúcar, empregava agregados e colonos, respectivamente, 28 e 198 pessoas em 1854 (Quadro Estatístico, 1855QUADRO Estatístico da População da Província de São Paulo Recenseada no Anno de 1854; Quadro Estatístico do Movimento da População da Província de São Paulo durante o Anno de 1854; Quadro Estatístico de alguns estabelecimentos rurais da Província de São Paulo 1854 e Mappas das Colonias Existentes na Província de São Paulo no anno de 1855, apresentados por José Joaquim Machado de Oliveira. 1854). O açúcar contava tão somente com os braços negros para sua produção. As primeiras experiências de colônias de parcerias com imigrantes suíços e alemães foram realizadas em 1852. O pioneiro em Campinas foi o cafeicultor Joaquim Bonifácio do Amaral, Visconde de Indaiatuba, que manteve o sistema até a década de 1870 (RIBEIRO, 2014RIBEIRO, M. A. R. . O visconde imigrantista e a sua escravaria, Campinas, 1887. História e Economia - Revista interdisciplinar. São Paulo, v. 12, n. 1, pp. 105-126, 1º sem., 2014.). Antes da grande imigração subsidiada pela província de São Paulo (1884), imigrantes da Europa central foram os primeiros trabalhadores livres alocados nas atividades de lavoura cafeeira: capina, colheita e beneficiamento.

O desenvolvimento da economia cafeeira em Campinas provocou efeitos de encadeamento derivados das próprias necessidades da expansão sob restrição da oferta de escravos, das dificuldades de transporte e da longa distância em relação ao porto de exportação. Para contornar esses obstáculos, a imigração, as ferrovias e a incorporação do progresso técnico, principalmente, de máquinas de beneficamento do café, foram fundamentais.

Campinas tornou-se uma cidade com um importante entroncamento ferroviário: duas ferrovias, Companhia Paulista de Estradas de Ferro (1872) e Companhia Mogiana de Estradas de Ferro (1873) cortaram o território do município e mais três ou quatro ramais foram construídos para atender as necessidades de escoamento da produção cafeeira. As duas companhias drenavam toda a produção cafeeira do Oeste Paulista para a ferrovia São Paulo Railway ou Santos-Jundiaí, única estrada com destino o porto de exportação de Santos.

A inauguração da estação ferroviária em Campinas dinamizou a vida urbana, a circulação de pessoas e de mercadorias. O almanaque de 1873 listou 158 proprietários, 337 lavradores e 60 capitalistas, além de uma série atividades comerciais, industriais, serviços e ocupações (LUNE; FONSECA, 1873LUNE, A. J. B.; FONSECA, P. D. (Org.). Almanak da Província de São Paulo para 1873. São Paulo: Edição Fac-similar/Imprensa Oficial do Estado S. A. - IESP, 1873., p.331-336). Segundo o gráfico 3, a população de Campinas dobra de tamanho entre 1854 e 1872, especialmente a livre.

Gráfico 3
População livre e escrava. Campinas, 1814-1886

De acordo com os dados apresentados por Sérgio Milliet (1982MILLIET, S. Roteiro do café e outros ensaios: contribuição para o estudo da história econômica e social do Brasil. 4. ed. rev. e aum. São Paulo: Hucitec, INL,1982.), Campinas teve o auge de sua produção cafeeira em 1886, quando produziu 1.500.000 arrobas. Campinas não era só café. Entre 1852 e 1887, a “Princesa do Oeste” transformou-se numa cidade industrial com a presença de empresas industriais e do operariado. Além das oficinas da estrada de ferro Mogiana, havia um núcleo de empresas produtoras de máquinas para beneficiamento de café, secadores, descascadores e despolpadores como Cia Lidgerwood, Arens, Bierrenbach, Mac-Hardy e Faber. Todas as empresas eram ligadas à produção de máquinas e instrumentos para a agricultura, de material de transporte, de veículos de tração animal, trolys, carroças, e até “ventiladores para matar formiga”(CAMILLO, 1998CAMILLO, E. E. R. Guia histórico da indústria nascente em Campinas (1850-1897). Campinas: Mercado de Letras; Centro de Memória - Unicamp, 1998. , p.49). Afora o setor metal mecânico, funcionavam fábricas de produtos alimentícios (pastifício), bebidas, cervejas, vestuários, calçados, chapéus etc. Mais da metade dos proprietários industriais eram estrangeiros (CAMILLO, 1998CAMILLO, E. E. R. Guia histórico da indústria nascente em Campinas (1850-1897). Campinas: Mercado de Letras; Centro de Memória - Unicamp, 1998. ). Em 1875, o jornal Gazeta de Campinas anunciava a “Festa Operária”, “congraçamento entre patrões, caixeiros e operários” das oficinas e fábricas do senhor Bierrenbach (CAMILLO, 1998CAMILLO, E. E. R. Guia histórico da indústria nascente em Campinas (1850-1897). Campinas: Mercado de Letras; Centro de Memória - Unicamp, 1998. , p.33).A “festa operária” ocorria na sociedade escravista, por excelência. A urbanização foi um desdobramento do processo de expansão da economia cafeeira, seguindo-se a construção da rede de água e esgoto; iluminação a gás, mercados públicos etc. Somente a eclosão da epidemia de febre amarela em 1889 interrompeu por dez anos o crescimento da cidade. De 1889 a 1898 anualmente eclodia a epidemia de febre amarela, que representou o retrocesso daquela cidade que algum dia aspirou ser a Capital da província de São Paulo.

Considerações finais

Voltamos ao ponto de partida - “segunda escravidão”. O crescimento da escravidão nas ex-colônias americanas, Estados Unidos e Brasil, promoveu a exportação de produtos como algodão, café e açúcar que se inseriram no mercado mundial, propiciando a expansão do capitalismo no século XIX. A escravidão nas sociedades nacionais não está apartada da dinâmica do capital no âmbito internacional; ao contrário, a escravidão faz parte da própria expansão do capitalismo. No século XIX, em função do momento porque passava a expansão do capital, transmutando-se em novas formas - capital industrial, comercial e financeiro - o recurso à escravidão intensificou-se nas áreas produtoras de matérias primas e alimentos para atender à crescente população dos centros urbanos e a indústria têxtil inglesa. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que ocorre a intensificação do uso do trabalho escravo também cresce o sentimento contrário à escravidão.

Vassouras e Campinas fazem parte do processo de intensificação da escravidão para a produção de mercadorias agrícolas para a exportação. A economia cafeeira de Campinas não nasceu em terras inexploradas, mas em um território onde havia uma próspera economia açucareira que formou a elite de grandes proprietários, trouxe o escravo e preparou uma rede de transporte para a exportação de mercadorias pelo porto de Santos. Em Campinas, não foi possível, com os dados disponíveis, identificar a presença de uma “sociedade escravista madura” - equilíbrio entre os sexos; reprodução natural positiva; melhorias nas condições de vida dos escravos.

Embora tenha mantido a população escrava marcada pelo desequilíbrio entre sexos, alta razão de masculinidade, reprodução natural negativa - Campinas foi palco da transição do trabalho escravo para o trabalho livre; das primeiras experiências com mão obra imigrante e da adaptação da escravidão ao progresso técnico. Tornou-se um polo da indústria produtora de máquinas e equipamento para a agricultura e desfrutou de um rápido crescimento urbano, coisa que nunca antes ocorrera. Campinas não seguiu o destino das “cidades mortas”.

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REFERÊNCIAS

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  • TOMICH, D. . Pelo prisma da escravidão Trabalho, capital e economia mundial São Paulo: Edusp, 2011.

Notas

  • 1
    Uma primeira abordagem sobre o Oeste Paulista foi recentemente publicada por MARQUESE (2016MARQUESE, R. B. Exílio escravista: Hercule Florence e as fronteiras do açúcar e do café no Oeste paulista (1830-1879). Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v. 24, n. 2, pp. 11-51, maio-agosto, 2016.).
  • 2
    Nova História Econômica (NHE) é a corrente historiográfica que domina a disciplina acadêmica História Econômica nos centros norte-americanos desde os anos de 1960. Sua abordagem é marcada pelo emprego de métodos quantitativos, matemáticos e estatísticos, e pela apropriação dos conceitos da teoria econômica neoclássica. Caracteriza-se pela forte reação às abordagens marxistas (Maurice Dobb, Studies in the Development of Capitalism, publicado em 1946). A publicação que marcou a NHE foi o livro Time on the Cross de Robert W. Fogel e Stanley L. Engerman (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p.55-70). Ver também http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1993/fogel-bio.html Acessado em 23 mar. 2017.
  • 3
    Tomich utiliza o conceito de Jason Moore de “fronteiras da mercadoria” “como um modo de expansão da economia-mundo” (TOMICH, 2016TOMICH, D. A escravidão no capitalismo histórico: rumo a uma história teórica da segunda escravidão. In: MARQUESE, R. B.; SALLES, R. Escravidão e capitalismo histórico no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2016, pp.55-97. , p.87).
  • 4
    Empregaremos o nome atual, Campinas.
  • 5
    Sobre a região produtora de café, assim se referiu Müller: “O terreno para Leste, para onde corre o rio Parahyba, e seus confluentes, é uma grande parte de mattos; n’este além dos gêneros que plantão para alimento, como milho, feijão, arroz e mandioca, fazem a força do seu commercio na cultura de Café, assim também em Aguardente, Tabaco, creação de Porcos, e Gado Vaccum” (MÜLLER, 1923MÜLLER, D. P. (Org.). Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923., p.25).
  • 6
    Os dados demográficos apresentados por Müller (1923MÜLLER, D. P. (Org.). Ensaio d’um quadro estatístico da Província de São Paulo. São Paulo: Reedição Litteral, Secção de Obras d’ “O Estado de São Paulo”, 1923.) para Campinas não serão utilizados em razão de uma provável subnumeração. A população de 1836 é inferior à observada em 1829, respectivamente, 6.689 habitantes (2.772 livres e 3.917 escravos) em 1836 e 8.545 moradores (3.746 livres e 4.799 escravos) em 1829 (BASSANEZI, 1998BASSANEZI, M. S. C. B. (Org.). São Paulo do passado: dados demográficos. Campinas: NEPO/UNICAMP, 1998., para o ano de 1836 e TEIXEIRA, 2011TEIXEIRA, P. E. A formação das famílias livres: Campinas, 1774-1850. São Paulo: Editora Unesp, 2011. , para 1829). Importante ressaltar que Campinas não sofreu desmembramentos ao longo do século XIX.
  • 7
    Da Revolta de 1842 participaram membros das famílias campineiras: Teixeira Nogueira, Moraes Sales, Ferraz Leite, Assis Pupo, Dias Aranha, Cerqueira Leite e Joaquim Bonifácio do Amaral (PUPO, 1969PUPO, C. M. M. Campinas, seu berço e juventude. Campinas, Academia Campinense de Letras, n.20, 1969., p.134-135).
  • 8
    O Recenseamento Geral do Império de 1872 não foi realizado neste ano em todas as províncias do Brasil. O munícipio de Campinas possuía duas paróquias em 1872: a paróquia Nossa Senhora da Conceição e N. S. do Carmo e Santa Cruz. Na primeira, a idade das crianças escravas foi registrada a partir de dois anos, o que indica que o levantamento foi realizado em 1873, e não contabilizou as crianças nascidas após da Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871. Já para a paróquia de N. S. do Carmo e Santa Cruz, as crianças cativas foram registradas a partir de 3 anos indicando que o censo foi realizado em 1874.
  • 9
    O ideal para fazer a comparação seria contar com dados extraídos da mesma fonte. O que pensamos fazer, proximamente, é trabalhar com dados dos inventários post mortem de Campinas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2017
  • Aceito
    05 Ago 2018
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