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O caso Antônio Confusão: um fazendeiro e um ex-escravo nas barras da Justiça. Por uma análise do pós-abolição através dos Processos Crimes do Arquivo Público e Histórico de Rio Claro

The Antônio Confusão affair: a farmer and an ex-slave in the bars of Justice. For an analysis of post-abolition through the Crimes Processes of the Public and Historical Archives of Rio Claro

RESUMO

O presente artigo pretende estudar e conhecer melhor a história de relações entre grupos étnicos em sociedades de imigração. O estudo tenta analisar o processo de diferenciação e as relações cotidianas entre imigrantes, negros e brasileiros brancos na cidade de Rio Claro, no Oeste Paulista, nos últimos anos antes da Abolição e nas primeiras décadas imediatamente depois desse evento (1887-1914).

Palavras-chave
Processo crime; Violência racial; Ex-escravo; Imigrantes

ABSTRACT

The present article intends to study and to know better the history of relations between ethnic groups in immigration societies. The study tries to analyze the process of differentiation and daily relations between immigrants, blacks and white Brazilians in the city of Rio Claro, in the West of São Paulo, in the last years before Abolition and in the first decades immediately after that event (1887-1914).

Keywords
Criminal proceedings; Racial violence; Former slave; Immigrants

O artigo pretende estudar a história de relações entre grupos étnicos em sociedades de imigração. A historiografia, de maneira geral, afirma que a entrada em massa de imigrantes no Estado de São Paulo prejudicou os ex-escravos (a etnia negra de forma geral após a Abolição), deixando-os às margens do desenvolvimento de atividades econômicas e sociais (BEIGUELMAN, 1969BEIGUELMAN, P. O encaminhamento político do problema da escravidão no Império. In: HOLANDA, S. B. (org.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico. Reações e Transações. Tomo II, 3vol. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1969, p. 189-219.; LAMOUNIER, 1986LAMOUNIER, M. L. Da Escravidão ao Trabalho Livre. Campinas: Papirus, 1986. ). Com o tempo, uma parte significativa dos imigrantes e seus descendentes ascenderam econômica, social e politicamente, ao passo que os caminhos da mobilidade social pareciam interditados para os negros. A pesquisa, que faz parte de um projeto de pós-doutorado, tenta analisar este processo de diferenciação e as relações cotidianas entre imigrantes, negros e brasileiros brancos na cidade de Rio Claro, no Oeste Paulista, nos últimos anos antes da Abolição e nas primeiras décadas após a irrupção desse evento (1887-1914).

O objetivo central é quantificar e qualificar os tipos de crimes praticados ou que tiveram negros envolvidos no município de Rio Claro, na tentativa de procurar entender as diferenças das situações dos negros e dos vários grupos de imigrantes e sua interação no dia a dia, comparando suas relações com fazendeiros, autoridades locais e indivíduos comuns, suas identidades coletivas e seus padrões de mobilidade social e violência.

Como destacado por Warren Dean (1977DEAN, W. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. ), Rio Claro integrou o cinturão cafeeiro na época da Abolição. Nesse período, portanto, teve um número significativo de escravos e também recebeu enormes levas de imigrantes, principalmente de italianos. Em função do grande número de imigrantes e da mistura de grupos, a cidade de constitui um caso muito oportuno para a pesquisa sobre a construção das identidades, a mobilidade social e as relações interétnicas e raciais.

Além disso, ressalta-se que o Arquivo Público e Histórico de Rio Claro “Oscar de Arruda Penteado” possuí sob sua guarda o acervo do Cartório do Registro Criminal (entre 1837 a 1930). Tal acervo foi indexado por um grupo de trabalho do Arquivo de Rio Claro. Tal indexação permite ao pesquisador, antes mesmo de colocar suas mãos na documentação física, pesquisar no computador os elementos principais de seu interesse dentro de um determinado processo criminal. Por exemplo: se em um determinado processo criminal os indivíduos arrolados (tanto vítima quanto réu) eram brancos ou negros, italianos ou brasileiros, entre outras diversas possibilidades. Tal ferramenta, apesar de se apresentar como factível de lacunas maximiza muito a pesquisa para o interessado.1 1 Para observar e analisar a complexidade de trabalhar com documentação e processos sequenciais, ver: MONSMA, 2011.

É importante frisar que existe falta de diálogo clara e evidente entre a literatura sobre imigrantes em São Paulo e a sobre a história de negros e relações raciais. A maior parte das pesquisas sobre imigração no período menciona o negro ou ex-escravo somente como parte do contexto - o advento da Abolição aumentando a necessidade de mão de obra nas fazendas de café e a atração do Brasil como país de destino para os imigrantes europeus (ALVIM, 1986ALVIM, Z.M.F. Brava gente! Os italianos em São Paulo, 1870-1920. São Paulo, Brasiliense, 1986. ). Embora tal historiografia reconheça a marginalização do brasileiro pobre, ela, infelizmente, focaliza a experiência e as lutas dos imigrantes, especialmente as dificuldades de vida nas fazendas e os conflitos com os fazendeiros.2 2 Entre outros podemos citar: DEAN, 1977; FAUSTO, 2001; HOLLOWAY, 1984; STOLKE, 1986; TRENTO, 1989; VANGELISTA, 1982.

No entanto, o estudioso desse período e dessa literatura deve levar em conta que parte desse desencontro entre os escritos está justamente na questão dos objetivos, interesses e ajustes de foco dessas pesquisas e suas características de analisarem períodos distintos. Neste sentido, atenta-se que os estudos sobre a imigração em São Paulo deram prioridade para o período após a Abolição e a chegada em massa de imigrantes. Já os estudos históricos sobre negros se voltaram para as últimas décadas da escravidão (MACHADO, 1994MACHADO, M. H. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1994.) ao analisar e colocar em suspensão as rebeliões e fugas de escravos (CHALHOUB, 1990CHALHOUB, S. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.), o medo das elites com relação à revoltas e desorganização do trabalho, as lutas individuais e coletivas para a liberdade ou para ampliar a autonomia dentro da sociedade (AZEVEDO, 1987AZEVEDO, C. M. M. de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.), ou ainda a experiência de ex-escravos, ingênuos e libertos na sociedade escravista (XAVIER, 1996XAVIER, R.C.L. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas, CMU/ UNICAMP, 1996.).

Ora, tais pesquisas não visualizaram que os estudos comparativos são essenciais para entender por que uma parte dos imigrantes conseguiu crescimento e desenvolvimento econômico, político e social. Ao lado disso, encontravam-se os negros que, com poucas exceções, não tiveram chances de experiências de mobilidade semelhantes anos depois da Abolição.3 3 No entanto, Karl MONSMA, 2007 destaca que existem exceções encontradas em algumas pesquisas: ANDREWS, 1991, focaliza o período pós-abolição em São Paulo; partes de XAVIER, 1996 extrapolam a barreira de 1888; SCOTT, 1994, compara a situação de ex-escravos após a abolição nas regiões açucareiras do Nordeste brasileiro, de Cuba e do estado de Louisiana, EUA; MACIEL, 1997 fez um levantamento de artigos de jornais sobre negros após a abolição em Campinas. Muitos escritos sobre este período abordam os negros como integrantes de categorias maiores, como “classes populares” ou “trabalhadores nacionais”, o que tende a diluir sua experiência específica e atenuar questões de discriminação racial.

A obra clássica de Florestan Fernandes (1978FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed., São Paulo: Ática, 1978.) foi que balizou boa parte das pesquisas sobre a transição da escravidão ao trabalho livre em São Paulo onde compara as trajetórias de imigrantes e negros. A afirmação central desse autor consiste asseverar que a escravidão, além de deixar um legado de racismo, deixou os libertos anômicos (largados literalmente à própria sorte), faltando laços familiares e comunitários sólidos, irresponsáveis e sem disciplina interna, por isso incapazes de competir com imigrantes no mercado de trabalho.

Mulatos e negros foram, na sua maioria, segregados por um sistema socioeconômico de dinamismo moderado e de limitadas possibilidades. Os que foram incorporados à elite, pela via do sistema de clientela, adquiriram automaticamente o status de branco, identificando-se - não obstante a ambiguidade de sua situação - com a comunidade dos brancos. Tal foi a sorte de homens como Machado de Assis, o poeta Cruz e Souza e o engenheiro André Rebouças, dentre tantos outros (COSTA, 1999COSTA, E. V. da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999., p. 13).

Deve ficar claro que a expansão do mercado internacional e a revolução no sistema de transportes abriram novas possibilidades para a agricultura brasileira a partir da segunda metade do século XIX. O desenvolvimento da cultura cafeeira em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo tornou urgente a solução de dois problemas interdependentes: a questão da mão de obra e o da propriedade da terra. Os fazendeiros das áreas novas como o Oeste Paulista, preocupados com a derrocada do tráfico de escravos, e em busca de encontrar na imigração a solução para o problema da força de trabalho, propuseram uma legislação com o objetivo de limitar o acesso a terra e de forçar os imigrantes ao trabalho nas fazendas (COSTA, 1999COSTA, E. V. da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999., p. 14).

Alguns setores da sociedade, apoiados por intelectuais que se identificavam com o pensamento ilustrado, defenderam uma política colonizadora baseada na distribuição de pequenos lotes aos imigrantes, aos quais encaravam não como substitutos dos escravos, mas como agentes civilizados (ALONSO, 2002ALONSO, A. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.). A Lei de Terras de 1850 reforçaria, no entanto, o poder dos latifundiários em detrimento do pequeno proprietário (Silva, 1996SILVA, L. O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da Lei de 1850. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996.). As primeiras tentativas de substituir os escravos pelos imigrantes falharam (MARTINS, 1998MARTINS, J. de S. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Editora Hucitec, 7. ed. 1998.). Os fazendeiros de café supriram-se de escravos praticando o tráfico interprovincial de áreas em que a economia estava decadente. A partir de 1850, porém, a criação de novos tipos de investimentos (estradas de ferro, bancos, manufaturas, melhoramentos urbanos) tornou cada vez menos produtiva a imobilização do capital em escravos, afinal, “num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa” (MARTINS, 1998MARTINS, J. de S. O Cativeiro da Terra. São Paulo: Editora Hucitec, 7. ed. 1998., p. 32).

O aumento da pressão abolicionista nos centros urbanos, a promulgação de leis emancipacionistas no Parlamento, a melhoria dos meios de transporte, produção agrícola e a agitação dos escravos, que passaram a contar com o apoio de parte da população, acabaram por desarticular a economia escravista. O processo nessa altura era inevitável, e muitos capitaram os sinais, a exemplo de fazendeiros como Antônio Prado (SOUZA, 2009SOUZA, A. C. V. de. Martinico Prado: um empresário agrícola no interior paulista. Histórica, n.35, p. 1-15, 2009.). Os fazendeiros das áreas mais progressistas voltaram-se para os imigrantes. “Promovida por brancos, mulatos e pretos que tinham sido assimilados pelas elites, a Abolição liberou os brancos do peso da escravidão e abandonou os ex-escravos à sua própria sorte. Os maiores beneficiários foram, uma vez mais, as elites e a sua clientela” (COSTA, 1999COSTA, E. V. da. Da monarquia à república: momentos decisivos. 6. ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999., p. 14).

A pesquisa, neste sentido, leva em consideração dois argumentos essenciais de Florestan Fernandes (1978FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed., São Paulo: Ática, 1978.) a respeito do período depois da Abolição para a análise dos motivos, as caraterísticas e as tipologias dos crimes que envolveram ex-escravos: 1º) que os empregadores, tanto na área rural como no ambiente cidadino tiveram preconceito contra os negros e os discriminaram. Conforme as pesquisas de Karl Monsma (2004MONSMA, K. . Imigração e Violência Racial: italianos e negros no oeste paulista, 1888-1914. Impulso, Piracicaba, 15(37): 49-60, 2004.) indicam, os empregadores quase sempre preferiam o imigrante quando este estava disponível para o mercado como empregado; 2º) que os imigrantes substituíram os negros nos setores mais dinâmicos da economia paulista e nas profissões que apresentavam mais oportunidades para a mobilidade social, deixando aos negros à margem da economia: atividades instáveis, com poucas oportunidades para a formação de pecúlio, como o trabalho ocasional ou empregos que implicavam a dependência pessoal, como o serviço doméstico (FERNANDES, 1978FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed., São Paulo: Ática, 1978.).

Neste sentido - e aqui reside o escopo da hipótese de trabalho da pesquisa -, a substituição do negro pelo imigrante resultou de uma combinação do despreparo e da indisciplina daquele com o preconceito das elites, conforme assinalou Florestan Fernandes (1978FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed., São Paulo: Ática, 1978.).

Essa pesquisa, em suma, quer compreender que o destino dos dois lados (negros, brancos imigrantes ou nacionais) não dependia somente dos preconceitos das elites ou da competição com os imigrantes por oportunidades no mercado de trabalho, mas também da interação entre eles, que podia aumentar ou limitar oportunidades, ambições, solidariedades, tensões, medos e conflitos raciais. E aqui reside o fundamental: em tal ambiente - de concorrência e discriminações -, relações conflituosas invariavelmente existiram com frequência. Tais relações acabaram com recorrência no âmbito criminal que culminou em depoimentos e julgamentos e, no limite, originou a possibilidade do pesquisador em apreender o ambiente social, econômico e espacial vivido no período.

Desta maneira, destacam-se os objetivos de nossa pesquisa, quais sejam: conhecer melhor os tipos e características dos crimes onde o negro foi envolvido diretamente no município de Rio Claro, entre 1887-1914, período conhecido como a “Belle Époque brasileira” (SEVCENKO, 2003SEVCENKO, N. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultura na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2. ed., 2003. ), em uma cidade que recebeu milhares de imigrantes e com passado escravista. Observar a ocorrência de preconceito racial e as violências que tiveram origem a partir disso. Realizar um diagnóstico e levantamento quantintativo dos crimes que envolveram ex-escravos, negros libertos e ingênuos no período de 1887 a 1914; Levantamento qualitativo e análise dos crimes que envolveram ex-escravos, negros, libertos e ingênuos no período de 1887-1914, privilegiando os que tiveram relação com imigrantes ou brasileiros para analisar os motivos da origem dos fatos e a existência de preconceitos, violência, respeito, tensão e conflito nos autos e depoimentos. Inventariar os tipos de crimes, suas qualificadoras, réus e vítimas dentro do processo. Realizar um amplo levantamento de dados com o inventário dos crimes em Rio Claro dentro do período para estabelecer novas possibilidades de pesquisas junto ao Arquivo Público de Rio Claro, tendo em conta que a documentação do Cartório do Registro Criminal foi pouco analisada na historiografia, pelos pesquisadores e pelo público de Rio Claro.

Uma hipótese central da presente pesquisa é observar, nos anos que se seguiram a Abolição, como os imigrantes se esforçaram para distinguir-se dos negros justamente para não serem tratados como estes. A preocupação dos imigrantes em salientar o contraste racial ia de encontro à insistência dos negros em não serem humilhados ou rebaixados por causa de sua cor, resultando em interações tensas e a intimidação de negros por imigrantes (MONSMA, 2007MONSMA, K. Identidades, desigualdade e conflito: imigrantes e negros em um município do interior paulista, 1888-1914. Notas de pesquisa. História. Unisinos. Jan. v. 11, n. 1, 2007, p. 111-116.). Com isso pretendemos propiciar o levantamento do cenário e do ambiente histórico onde os moradores do município de Rio Claro viviam que incluam as relações econômicas e sociais do período.

Como a maior parte dos enfrentamentos entre ex-escravos, imigrantes e brasileiros brancos envolvia questões materiais, os pesquisadores, de maneira geral, deram pouca atenção aos aspectos simbólicos da resistência dos negros. Além de ganhar maior autonomia, recursos e apoio social, os imigrantres esperavam abrandar o estigma da escravidão e aproximar o trato que recebiam ao dos negros livres (MONSMA, 2000MONSMA, K. . Histórias de violência: processos criminais inter-étnicos. In: XXIV Encontro Anual da ANPOCS, Petrópolis, RJ, outubro de 2000, p. 1-25.). Isso gerou conflitos violentos e agressões de diferentes matizes e qualidades que deverão ser contempladas na pesquisa.

Da metodologia ou as vozes ocultas do passado

Como é saliente na historiografia, a camada mais pobre da população deixou poucos rastros para o pesquisador que deseja analisá-la, estudá-la e compreendê-la (GINZBURG, 2012GINZBURG, C. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2012.). Na cidade de Rio Claro é possível ter acesso aos censos e outras estatísticas produzidos pelo Estado, município ou por particulares que trazem informações sobre as condições de vida, composição familiar, trajetórias profissionais, entre outros aspectos de sua população de maneira geral.

No entanto, estas fontes dizem pouco a respeito do modo de compreender a sociedade e a colocação no mundo a partir dos indivíduos e as interpretações populares, que são de importância ímpar para o estudo das relações entre etnias. As motivações e os entendimentos dos atores podem ser inferidos do seu comportamento, como é comum nas pesquisas sobre a ação coletiva e contestação (TILLY, 1986TILLY, C. The Contentious French. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1986.).

Conforme destacou Karl Monsma (2003MONSMA, K.; TRUZZI, O.; CONCEICAO, Silvano da. Solidariedade étnica, poder local e banditismo: uma quadrilha calabresa no oeste paulista, 1895-1898. Revista Brasileira de Ciências Socias [online]. 2003, vol.18, n.53, pp. 71-96.) em sua pesquisa para o município de São Carlos, interior de São Paulo, os inquéritos e processos criminais são uma das poucas fontes que preservaram as palavras dos pobres, mesmo quando transcritas na terceira pessoa. Os depoimentos (em processos criminais) de réus, vítimas e testemunhas geralmente tomam a forma de narrativas. Esses depoimentos relatam as razões para culpar ou absolver o réu na forma de histórias que ressaltam aspectos distintos da interação de réu e vítima. Quando se trata de relações interétnicas, as interpretações de pessoas de etnias distintas podem revelar muito sobre os entendimentos e as linhas de clivagem da época.

Ao tomar contato com os processos criminais, fica evidente algumas de suas peculiaridades que de saída podem indicar diversas questões do período. Conforme observou Boris Fausto (1984FAUSTO, B. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed., São Paulo, EDUSP, 2001.), os depoimentos de várias testemunhas podem indicar ao pesquisador que o processo foi instaurado em um bairro distante, com fortes marcas rurais, por exemplo. Nos processos, pobreza e riqueza deixam por vezes nítidas pegadas distintivas:

Em um extremo, a relativa uniformidade resultante da sucessão de declarações, que não é cortada pelas petições de advogado; os requerimentos em letra vacilante, ou assinados a rogo, onde os requerentes esclarecem que deixam de selar por falta de recursos. No outro, as transcrições dos diferentes atos processuais entremados de petições de advogado, em papel linho timbrado; os memoriais impressos, distribuídos aos desembargadores; a peça de defesa datilografada que, sobretudo em épocas remotas, revela o prestígio do próprio defensor. Isoladamente, talvez o texto mais carregado de significações seja o documento de antecedentes, juntado em regra pelo réu, valendo-se de sua rede de relações - vizinhos, patrões, colegas, compatriotas, conterrâneos, fregueses. Ele serve para demonstrar, conforme o caso, a conformidade do acusado com o modelo sócio-familiar, sua origem respeitável etc., etc. Toda uma gradação da eficácia do documento se insinua, segundo quem o emite, a força de seu conteúdo verbal, os signos normais de que está revestido (FAUSTO, 1984FAUSTO, B. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed., São Paulo, EDUSP, 2001., p. 20-21).

O documento físico em si revela muito dos atores que os escreveram ou estavam envolvidos. Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a dois acontecimentos diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a partir da atuação do aparelho repressivo. Os autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver (FAUSTO, 1984FAUSTO, B. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed., São Paulo, EDUSP, 2001., p. 202-23).

Neste sentido, a metodologia da pesquisa consiste na análise dos processos criminais sob a guarda do Arquivo Público de Rio Claro. Além disso, o cruzamento de informações de fontes distintas, como as Atas da Câmara Municipal de Rio Claro, Almanaques históricos e jornais do período visam entender os pontos de vista de pessoas de etnias e posições sociais diferentes e que deverão ser contempladas. Para isso, complementam-se estes procedimentos por análises estatísticas de dados demográficos referentes a padrões de mobilidade social, bem como os jornais do período.

Espera-se como resultado da pesquisa sobre as caraterísticas dos processos criminais envolvendo negros e ex-escravos numa sociedade de imigração, de uma forma geral, alcançar um melhor conhecimento da realidade étnica e social da cidade de Rio Claro dentro do período em foco.

A análise quantitativa e qualitativa pode nos trazer informações essenciais para compreender o universo social do período, onde os desajustamentos, conflitos e tensões eram constantes, cotidianos e presentes naquela sociedade. Ou seja, o escopo essencial da presente pesquisa é compreender as consequências da imigração europeia para o Brasil e a construção de novas identidades étnicas e raciais no processo de interação com brasileiros e com outros grupos de imigrantes.

Além desses resultados, espera-se vislumbrar aspectos da economia, do mercado de trabalho, do comércio e o ambiente no qual viveram os habitantes da cidade de Rio Claro pela atuação dos agentes envolvidos nos processos criminais através do levantamento de dados quantitativos e qualitativos das fontes a serem pesquisadas.

O caso Antônio Confusão: um fazendeiro e um ex-escravo nas barras da Justiça em Rio Claro-SP

Em 1886 Rio Claro era o terceiro maior produtor de café da Província de São Paulo. De acordo com Warren Dean (1977DEAN, W. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. ), os fazendeiros em 1870 a 1880, ainda não estavam convencidos sobre a viabilidade da mão de obra assalariada. Preferiam até mesmo a contratação de chineses, mesmo considerando estes como “degenerados, viciados e doentios”, radicalmente inferiores, mas que se mostravam aptos ao serviço na lavoura (DEAN, 1977DEAN, W. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. , p. 151). Na verdade, a partida dos escravos representava para os fazendeiros a falência e a perda de uma posição de elite. Eles queriam que o governo pagasse a passagem dos imigrantes que ficariam coagidos a permanecer em determinada fazenda. Queriam também a adoção de leis mais rígidas para os trabalhadores do campo com penas de prisão aos agitadores de 1 a 2 anos e julgamentos sumários. Em maio de 1884 a Assembléia Provincial aprovou o pagamento da passagem completa.

A agência importadora de imigrantes era a Sociedade Promotora de Imigração fundada em 1886 por um grupo de fazendeiros dos quais nove possuíam terras em Rio Claro. Portanto, “apenas quando a escravidão já entrava em colapso em São Paulo que os fazendeiros tomaram medidas efetivas para substituir os braços da lavoura” (DEAN, 1977DEAN, W. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. , p. 152). Em 1887 a imigração ultrapassou 100 mil almas anuais. No entanto, era indispensável que a escravidão fosse abolida antes que a migração maciça pudesse começar. Os imigrantes eram indiferentes com os negros e a instituição da abolição devido ao seu preconceito. “O fim do sistema escravagista, porém, significava para eles o colapso de uma sociedade hierarquizada que lhes barrara a ascensão social e igualara o seu trabalho com o de africanos e seus descendentes.” (DEAN, 1977DEAN, W. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. , p. 153).

Os imigrantes e brasileiros, trabalhadores livres, viveram ao lado dos negros antes e depois da escravidão. Eram dois sistemas diferentes de trabalho e duas maneiras diversas de encarar o homem. Nem sempre foi possível ao fazendeiro e ao administrador da fazenda fazer distinções de tratamento em relação ao homem livre, ao qual por vezes abordava como a um escravo. Isto fatalmente gerou conflitos. Além disso, é preciso lembrar a dificuldade de aceitação, do elemento negro pelo europeu e ainda a necessidade de ombrear com ele nos eitos das fazendas de café (MESSIAS, 2003MESSIAS, R. C. O cultivo do café nas bocas do sertão paulista: mercado interno e mão-de-obra no período de transição - 1830 -1888. São Paulo: Editora UNESP, 2003.).

Ora, parece claro que num ambiente como esse de fazendeiros procurando a melhor forma de manterem e aumentarem seus lucros, de imigrantes querendo “fazer a América” carregados de uma cultura cívica, moral e trabalhista mais avançada do que a que havia na São Paulo escravista do período, e de ex-escravos procurando ou tentando manter seu trabalho na lavoura ocasionariam rixas e disputas muitas vezes violentas. É o caso que aconteceu com o Processo Crime n. 14/1892 do ex-escravo Antônio Conceição Ribeiro contra o fazendeiro Oseias Modesto de Abreu em Rio Claro.

Antônio Ribeiro era negro, ex-escravo e tinha 41 anos em 1891. Morava a 11 anos em Itaqueri (de cima da serra, atual Itirapina-SP), um bairro rural vinculado à Rio Claro no período.4 4 Sobre o conceito de bairro rural nos baseamos em QUEIROZ, 1973 e MELLO E SOUZA, 1975. Trabalhava em lavoura e sabia ler e escrever. Era natural da Bahia e deve ter chegado à região com a corrente do tráfico interprovíncial de escravos décadas antes. Vejamos o conteúdo do processo que logo na sua capa traz o apelido do querelado: Antônio Confusão.

O crime aconteceu em meados de 1891. O subdelegado Raphael da Silva Maia anotou no inquérito policial de corpo de delito, como Antônio, ex-escravo de Zacarias Machado de Oliveira. Em 28 de agosto de 1891, Antônio Confusão apareceu na casa do fazendeiro Antônio de Oliveira Guimarães para se entregar, pedindo que o amarrasse. No auto de corpo de delito feito na cadeia de Morro Pelado (distrito de Rio Claro), os peritos encontraram escoriações no antebraço esquerdo de Antônio Confusão que deram como proveniente da corda que amarram para prendê-lo, ou por alguma queda e que não por instrumento contundente. Naquele tempo os peritos não eram profissionais especializados. Na casa de Confusão encontraram a arma do crime: uma faca com vestígios de sangue da vítima.

Foram arroladas dezenas de pessoas para compor o corpo de testemunhas na investigação do crime. No entanto, o delegado concluiu pela infelicidade de não haver testemunhas de “vista”. Somente pessoas que estavam nas redondezas e que não foram testemunhas oculares do assassinato. Contudo, todos sabiam o motivo da desavença: o fazendeiro tinha a prática de surrupiar a colheita de seus empregados, aliás, uma prática recorrente aos fazendeiros do período (DEAN, 1977DEAN, W. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. , p. 100).5 5 Ver também: STOLKE, 1986; WITTER, 1982.

Contra o querelado o escritório de advogados da defesa (M.P. Siqueira Campos; J. I. de Figueiredo; J. P. de Castro de Rio Claro) apresentou a seguinte queixa de Emidia da Silva Maia, esposa de Oseias: que seu marido contratou Antônio Confusão para prestar serviços em sua propriedade agrícola no início de agosto de 1891. Mas, como era muito rixoso6 6 Que gosta de provocar rixas; briguento, brigão, rixoso, bulhento, desordeiro. e malandro, foi despedido do trabalho. Contudo, Antônio ficou na fazenda até terminar seu serviço de juntar o café derriçado.

No dia 28 de agosto, por volta das 10 horas da manhã, segundo constou Emidia, Oseias saiu de sua fazenda Monte Alegre, no bairro de Itaqueri, de chinelo e em mangas de camisa, completamente desarmado e despreocupado de qualquer agressão, a fim de receber o café que Antônio havia colhido

[...] mas, como o querelado havia premeditado o assassinato de Oseias, levantou dúvidas a respeito da medição do café, que não foram aceitas por Oseias, então o querelado, que se achava armado de espingarda e de uma formidável faca acomenteu seu amo e patrão, que, para defender-se, apenas lançou mão de um pequeno pedaço de cabo de rodo”. No entanto, o pedaço de rodo “que encontrou ao seu alcance e de nada lhe valeu, porque o querelado o agrediu com tanta violência que em poucos momentos lhe cravou nada menos de 14 facadas, como se vê do auto de corpo de delito, além dos outros ferimentos, que lhe produziram a morte instantânea.

Cometido o assassinato, o querelado fugiu para a fazenda de Antônio Oliveira Guimarães, a quem confessou o crime em presença de outras pessoas e pediu que o amarrasse para ser entregue à Justiça, sendo que o querelado não tinha a menor ofensa física, quando se apresentou em casa de Guimarães. Conduzido o querelado amarrado à sede do distrito, no Morro Pelado, ainda aí o querelado confessou cinicamente o bárbaro assassinato, na frente da autoridade policial, perante o subdelegado e outros cidadãos [...] (APHRC, PC 14/1892Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892)7 7 Arquivo Público e Histórico de Rio Claro, Processo Crime 14/1892. Adoravante APHRC, PC. Grifos nossos. .

Confusão confessou ainda, segundo o advogado de Emidia, “publicamente que o assassinato devia ter sido praticado na terça-feira anterior, 25 de agosto, mas que, por circunstâncias que não declarou, deixou de fazer.” No intuito de convencer o juiz e o jurí, o advogado tentou difamar ainda mais o ex-excravo, acusado de matar seu “amo e patrão”, diminuindo sua masculinidade, seu caráter e acentuando sua personalidade valente e briguenta:

O querelado é homem, mas, de péssimos precedentes, briguento, rixoso e de índole perversa. Como atestam os fatos notoriamente conhecidos e dos quais passamos a relatar alguns.

Ficando escravo do finado Zacarias Machado de Oliveira, era mau, desordeiro, vadio e havido por valentão, a ponto de Zacarias temer-se dele; a cerca de 4 anos deu uma facada em um camarada de Zacarias Machado, conhecido por Joaquim Fogueteiro; a cerca de 2 anos tentou esfaquear a Lázaro, filho de João de Godoy Bueno; há bem pouco tempo, sendo camarada do morijerado cidadão Leopoldo Junqueira, este despediu por vadio e viu-se na necessidade de repeli-lo armado, para se defender (APHRC, PC 14/1892Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

Pelo conteúdo da queixa da esposa do fazendeiro e de seu advogado contra Antônio vemos as marcas indeléveis do preconceito e discriminação: Antônio era desordeiro, indolente, valentão e briguento. Além disso, fica claro pela narrativa das testemunhas e do próprio querelado que o crime não se deu pelas circunstâncias narradas, muito menos por achar-se Antônio munido de uma arma de fogo e uma faca avantajada.

Na fazenda de Antônio de Oliveira Guimarães, 38 anos; casado; lavrador; natural e residente na freguesia de Itaqueri, fora onde Antônio Confusão tentou se esconder após ter cometido o assassinato de seu patrão. O fazendeiro narra os fatos de que o querelado apareceu em sua propriedade lançando-se aos seus pés pedindo que fosse protegido, “porque julgava ter morto o fazendeiro Oseias” - numa clara atitude de medo de linchamento e morte por ter matado (ou agredido) um branco e fazendeiro. Guimarães conhecia Confusão. Confusão, por seu turno, deve ter procurado a casa do fazendeiro porque confiava que ele iria protegê-lo de eventual vingança. Acreditou que o fazendeiro iria entregá-lo a polícia onde estaria protegido de qualquer ameaça a sua vida. Ledo engano.

Sobre a briga, o fazendeiro declarou que se deu pela divergência sobre a medição de café colhido por Antônio. O fazendeiro Oseias achava que não havia colhido tanto café quanto Antônio afirmava ter colhido, e que não iria pagar o quanto ele queria tendo isso em vista. A partir disso deu-se uma luta na qual Oseias conseguiu se armar de pedaço de cabo de madeira e que partira para cima de Antônio. Os dois se atracaram e caíram no chão, tendo Oseias agarrado o pescoço de Antônio - “foi então que gritando - valha-me Nossa Senhora - que o querelado deu deveras facadas em Oseias, até que este, perdendo as forças, deu lugar a que ele fugisse” (APHRC, PC 14/1892Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

O fazendeiro destacou ainda que conhecia o querelado a 4 ou 5 anos e que nunca soube de mau procedimento do mesmo. O querelado foi empregado de seu sócio durante 4 ou 6 meses. A única coisa que tinha para dizer sobre ele era que tiveram uma “pequena briga”, e que o querelado queria esfaquear um camarada de seu “ex-senhor”, Zacarias Machado de Oliveira, “que temia-se dele”. Acrescentou ainda que o réu fora despedido da propriedade de Leopoldo Junqueira também após uma desavença.

José Galvão de Siqueira, outra testemunha, tinha 28 anos; solteiro, negociante, natural de Rio Claro e morador em Morro Pelado. Disse que ouviu do próprio querelado o seguinte: Que houve uma “altercação entre ele e Oseias, por causa da medição de café, em seguida a qual este deu-lhe bordoadas, defendendo-se o querelado com uma faca e produzindo em Oseias os ferimentos constantes do auto de corpo de delito”. Além disso, disse que esta luta deveria ter acontecido antes, na terça-feira, “mas, que por ter paciência, ficou adiado”. Portanto, que o crime fora premeditado (APHRC, PC 14/1892Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

José Gomes Botão, 34 anos, solteiro, negociante, natural de Itaqueri e residente em Morro Pelado, confirmou as outras versões que, ao encontrar Antônio preso e sendo transportado para a cadeira pelos praças do destacamento policial, perguntado porque fazia-se preso, respondera que havia assassinado Oseias, seu patrão. Botão afirmou ainda que Confusão era briguento e que seu ex-senhor tinha receios dele, “o que afirma de consciência própria, porque Zacarias por duas vezes veio pousar em sua casa, dizendo que temia que o preto (ilegível) o matasse” (APHRC, PC 14/1892Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

Ora, pelo depoimento das pessoas podemos concluir que a briga deu-se por causa da discussão sobre a medida de café que Oseias afirmava que Antônio havia colhido. No entanto, Antônio afirmava ter colhido mais do que Oseias considerava. Antônio, um ex-escravo, certo ou não sobre a partida de café que devia de entregar para Oseias, era um trabalhador que carregava a pecha de arredio, briguento, nervoso e valente tanto em seu passado como ex-escravo e como trabalhador livre. No entanto, apesar de briguento e de sangue quente, Antônio Ribeiro não havia ainda proporcionado nenhum crime de maior envergadura, apenas brigas, ameaças e discussões, uma coisa bem típica do meio rural do período (MONSMA, 2004MONSMA, K. . Imigração e Violência Racial: italianos e negros no oeste paulista, 1888-1914. Impulso, Piracicaba, 15(37): 49-60, 2004.).

Não me parece que Antônio fosse esse criminoso delinquente como passaram à impressão as testemunhas do processo, bem como o advogado da vítima. Parece que o trabalhador defendia seu ponto de vista perante a um possível erro de contas de seu patrão sobre a medida do café colhido. Não obstante, o fato de um negro desafiar a conta matemática, a honra e a inteligência de um branco (Oseias Modesto), fazendeiro, patrão do trabalhador negro foi demais para Modesto que estava saturado com a maneira de trabalho de Antônio (preguiçoso e mal feito, segundo consta dos depoimentos). Ao tirar satisfações esperava uma pessoa que se convencesse que estava errada e negasse a certeza de que sua conta sobre a colheita fosse maior do que a do fazendeiro. Na certa Oseias esperava submissão e resignação pela diferença social e racial entre ambos.

Contudo, Antônio Confusão não foi submisso e nem bobo. Sabia ler e escrever e não é demais supor que possuía senso crítico e personalidade muito mais forte do que Oseias imaginava. Defendendo seu ponto de vista até as últimas consequências, Antônio levou Oseias, seu patrão, ao limite da argumentação. No limiar da discussão, as vias de fato ocorreram quando o fazendeiro se serviu de um cabo de rodo (um instrumento utilizado para limpar as ruas do cafezal após a colheita e ajuntar o grão caído ao chão), e partiu para agredir seu empregado. Depois de algumas bordoadas, os envolvidos se atracaram e caíram no chão, tendo Oseias levado a vantagem de ter segurado Antônio pela garganta com o fim de asfixia-lo. Ao pedir socorro, Antônio sacou de sua faca e desferiu diversos golpes levando seu patrão a óbito.

Além disso, demissões de trabalhos anteriores e possíveis conflitos passaram a ser de conhecimento das pessoas do bairro e de outras propriedades agrícolas, o que fez com que Antônio ganhasse o apelido de Antônio Confusão. Na verdade, pode ser que Antônio não se ajustasse as formas de trabalho, assim como descreveu Maria Silvia de Carvalho Franco (1997, p. 11-14). A desagregação do regime escravocrata e senhorial operou-se no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Eles foram largados pelos seus antigos senhores, pelo Estado e pela Igreja a sua própria sorte, sem encargos e obrigações especiais para prepará-lo ao novo regime. “O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva” (FERNANDES, 1978FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed., São Paulo: Ática, 1978., p. 15).

Ao que parece Antônio defendia sua honra, seu trabalho e sua fonte de renda com relação a medida de café, o que levou até o limite. Podemos indagar o porquê de tantas rixas, brigas e demissões de Antônio de outros lugares dando amostras do que era importante naquela sociedade: café igual a dinheiro e trabalho; ser contrariado igual a defender sua honra e honestidade o que poderia levar a brigas sérias e, em última instância, ao assassinato.

Chegamos então ao depoimento de Antônio Ribeiro. Antônio era natural da vila de Ceutossé8 8 Não sabemos se essa é a grafia correta. Não encontramos referência a essa cidade. , estado da Bahia. Residia em Itaqueri (de cima da serra) a 11 anos. Profissão de trabalhador da roça. Perguntado pelo juiz se havia fatos que poderiam provar sua inocência destacou que entre Oseias Modesto e seus empregados, existia um há bastante tempo que trabalhava com o fazendeiro e que teve problemas de medição de café: “seu Oseias recebia numa carroça, cuja capacidade era muito maior do que a que lhe era dada pelo mesmo Oseias”; entretanto, o primeiro a reclamar a quantia de tal medição de café não foi ele respondente, mas muitos outros mais antigos do que ele na fazenda (APHRC, PC 14/1892Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

Antônio destaca que reclamou da medição da colheita de café com outros trabalhadores, com o intuito de protestarem junto a Oseias sobre sua desonestidade ou falta de cálculo. No entanto, os trabalhadores não quiseram reclamar, mas os mormurinhos de que Antônio reclamava do patrão chegaram aos seus ouvidos. Foi quando Oseias quis resolver essa questão com Antônio de forma truculenta e subserviente, mesmo tendo antes dele outros empregados que reclamaram.

Na manhã do fatídico dia, sabendo Oseias das reclamações de Antônio, foi até o local onde ele se encontrava trabalhando no meio do cafezal e convidou-o para ir a sua casa para conversarem. Antônio Confusão receoso de que poderia sofrer algum mal não quis seguir seu patrão. Nisto, Antônio se virou para seguir seu rumo e sentiu Oseias se aproximar. Ao se virar para Oseias novamente, Antônio viu que ele se armara de um cabo de rodo e vinha em sua direção para agredi-lo.

O que importa frisar é que as reclamações de Antônio, um negro ex-escravo tinham chegado até Oseias, seu patrão, fazendeiro, branco e ex-senhor de escravos

[...] de modo que já havia ameaça de Oseias contra si. E no dia do conflito, depois de conceder a palavra, Oseias convidou-o para vir até a sua casa no intuito, porém, de fazer-lhe algum mal; que ele respondente não quis acompanhá-lo e voltou depois de ter dado dois ou três passos, o que percebendo Oseias, voltou-se e empunhando um cabo de rodo, começou a descarregar-lhe bordoadas, que ele depoente procurou evitar, desviando-se e dando alguns passos para traz, até que caiu sendo subjugado por Oseias, que continuava a estrangulá-lo; que nesta ocasião, lembrando-se ele que estava armado de faca, empregou-a em sua defesa, não soube quantas vezes feriu seu agressor, tal era o estado de perturbação em que se achava (APHRC, PC 14/1892, F. 56-57Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

O Juiz Carlos Samuel de Araujo apresentou ao Tribunal do Juri o libelo do crime acusatório de Antônio Confusão em 23 de novembro de 1891, ao que consta:

1º no dia 28 de agosto de 1891 Antônio assassinou Oseias a facadas

2º Que o réu cometeu o crime premeditadamente.

3º que o réu cometeu o crime com surpresa.

4º que o réu cometeu o crime contra seu amo, por estar o mesmo réu ao tempo do crime ainda ao serviço do assassinado.

5º Que o réu cometeu o crime impelido por motivo frívolo.

6º Que o réu cometeu o crime em superioridade em armas, de modo que o assassinado não pode defender-se com probabilidade de repelir a ofensa (APHRC, PC 14/1892, F. 61-62Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

No entanto, o Tribunal do Jurí não conseguiu condenar o querelado e o juiz não pode concluir pela absolvição ou não do réu. Novo Tribunal do Juri foi marcado para 14 de dezembro de 1892. Neste dia, os jurados absolveram Confusão e o Juiz de Direito retirou o crime contra o ex-escravo que foi solto e julgado inocente, pois praticara o crime em legítima defesa.

O linchamento

O caso Antônio Confusão não para por aí. Antes da conclusão da absolvição ou não do querelado encontramos outro processo: o 33/1891. Neste há a denúncia contra o subdelegado Raphael da Silva Maia, Benedicto Primo, Manoel José de Oliveira, Maximiano Delphino, Antonio de Paula, Zepherino Jospe Luiz, João Mendes - “acunhado João Ruiva, Izidoro de Tal, o preto Benedicto de Tal, um filho natural do finado Oseias Modesto de Abreu e Sebastião Negrão, pelos fatos criminais” (APHRC, PC33/1891, F. 1Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892) que assim foram expostos: Na noite do dia 28 para 29 de agosto de 1891, entre uma e duas horas da madrugada, em Morro Pelado, bairro rural de Rio Claro, os denunciados,

[...] reunidos em grupo, o qual se avaliava pelo concurso de muitos outros indivíduos, que passaram desconhecidos, e armados de cacetes e facas, dirigiram-se à cadeira, onde, desde a tarde do dia 28 referido se achava encarcerado Antônio Conceição Ribeiro, e ali chegando, penetraram no interior do cárcere a que este fora recolhido, investiram contra ele, e praticaram em sua pessoa ferimentos descritos no auto de corpo de delito (APHRC, PC33/1891, F. 1Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

O encontro de “tão insólita e bárbara manifestação de força, a qual, no seu truculento exercício, caracterizou-se acentuadamente pelo superior desrespeito à autoridade pública concretizada no subdelegado de polícia”, segundo oportunamente desenvolveu o promotor, e “pelo mais grosseiro ultraje aos soldados” (APHRC, PC33/1891, F. 1-2Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892), que guarneciam a prisão, encontrava-se no fato de haver Antônio da Conceição Ribeiro assassinado, algumas horas antes, o fazendeiro Oseias Modesto de Abreu, seguidamente a uma discussão, “em que se empenharam sobre a capacidade de uma carroça empregada no serviço de transportar café para os terreiros do fazendeiro” (APHRC, PC33/1891, F. 1-2Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

De acordo com o relato, Antônio Ribeiro, depois de assassinar a facadas o seu patrão, dirigiu-se ao subdelegado de Itaqueri, expôs-lhe a ocorrência, em que acabara de figurar, ofereceu-se à prisão, sendo por aquela autoridade preso e logo depois conduzido à cadeira de Morro Pelado.

Não transcorreram muitas horas, e começou a vulgarizar-se a notícia de que um troço de indivíduos, exacerbados pela impressão do recente homicídio aludido, aprestavam-se para o assalto da cadeia e o emprego do bárbaro e pré-histórico talião9 9 Olho por olho, dente por dente. contra o assassino de Ozeias, cujo cadáver ainda quente devia ser naquele mesmo dia exumado (APHRC, PC33/1891, F. 1-2Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

A trama para invadir a delegacia e matar Antônio Ribeiro já estava armada no mesmo dia da morte do fazendeiro. O promotor no processo anota com segurança que os envolvidos até mesmo alertaram os guardas da cadeia que um bando de pessoas iria atacar o local e pegar o réu para vingar a morte do fazendeiro. Efetivamente, à hora da noite referida, apresentou-se na cadeira o acusado Sebastião Negrão, que ainda empregou, em relação ao soldado Procópio Cezar,

[...] a mesma sugestiva linguagem em que se dirigira ao sargento Antônio Mendes, exortando-lhe que não procurasse complicar os acontecimentos por uma resistência impossível, e como esse soldado repelisse dignamente a corvarde insinuação ou conselho, o mesmo denunciado poz-se a gritar repetidas vezes - “o que quer você comigo Procópío!”, presumivelmente como senha aos seus companheiros, visto que estes não tardaram a afluir-lhe em redor, numerosos e armados (APHRC, PC33/1891, F. 2Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

O decorrer dos acontecimentos são narrados de forma detalhada e melancólica pelo promotor:

Chegados em frente à cadeia, os assaltantes quedaram-se um momento, hesitantes, porventura terrorizados perante a enorme gravidade do crime em que caiu macular as mãos e a consciência, num momento de loucura, o qual marcaria para cada um dos que cooperassem no maldito atentato a honra crepusenlar da integridade moral, em que, extintas as lumieiras da virtude cívica, cuja substância é a obediência inviolada à lei, principiaram a escaldar-lhe as paredes do crânio as chamas devoradoras do ineludível remorso - quando a voz do denunciado Raphael da Silva Maia, arrancando-as desse estado dubitativo, por meio de veementes incitações, endereçadas ao Amor próprio de cada um (nem pode ser outro o conteúdo das exclamações - que rapaziada sem coragem! Pois bastam dois guardinhas para incutir-nos medo! Façamos ao Procópio a mesma coisa que temos de fazer ao preso!, as quais reproduzimos, com indispensável modificação de forma, sem o qual não fora possível transcrevê-las, tão baixa era a linguagem de que usava o denunciado), forneceu-lhes o ardimento necessário para investirem contra os dois soldados de que se compunha a força, sob cuja guarda estava a cadeia, desarmarem um deles (o segundo, de nome Manoel da Costa Pimenta, salteado vergonhosamente pelo medo, desertou o seu posto, indo esconder-se embaixo de uma cama), e, subsequentemente, penetraram no cárcere, onde se achava encerrado Antônio da Conceição Ribeiro, contra quem descarregaram golpes consecutivos de cacetes e diversas facadas, cujos vestígios bem minuciosamente descrito no auto de corpo de delito pertencente (APHRC, PC33/1891, F. 2-3Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892).

O processo se extende por dezenas de páginas. Os relatos das testemunhas arroladas e da promotoria revelam detalhes de como foi planejado o assalto à cadeia, as agressões sofridas por Confusão, os envolvidos, as ameaças à força pública, os mandantes e articuladores intelectuais da tramoia. No final apenas alguns artífices e os principais mentores do caso foram arrolados como réus. No entanto, dezenas de pessoas participaram da ofensiva à cadeia, mas a maioria não chegou a ser arrolada no processo porque, ao que parece, as testemunhas e envolvidos tanto da força pública como os civis não puderam ser identificados.

Os principais artífices foram condenados pelo juiz a sentenças diversas. No entanto, a maioria não cumpriu um dia sequer de cadeia. O principal mentor do linchamento, Sebastião Negrão, um filho de fazendeiro da localidade, passou anos impune e foragiu da região sendo levado à Justiça apenas em 1911 quando foi absolvido por um novo Tribunal de Juri.

Conclusões

De acordo com José de Souza Martins (1996MARTINS, J. de S. Linchamento, o lado sombrio da mente conservadora. Tempo social - Revista de Sociologia da USP. v. 8, n. 2. São Paulo, 1996., p. 12), no século XIX o negro motivava linchamento quando ultrapassava a barreira da cor e invadia espaços, situações e concepções próprias do estamento branco; quando, enfim, fazia coisas contra o branco que, feitas pelo branco contra o negro, não seriam crime. Ora, fora justamente isso que aconteceu com o caso Antônio Confusão. Ainda mais: “O que move a multidão à prática do linchamento é a motivação conservadora, a tentativa de impor castigo exemplar e radical a quem tenha, intencionalmente ou não, agido contra valores e normas que sustentam o modo como as relações sociais estão estabelecidas e reconhecidas ou os tenham posto em risco” (MARTINS, 1996MARTINS, J. de S. Linchamento, o lado sombrio da mente conservadora. Tempo social - Revista de Sociologia da USP. v. 8, n. 2. São Paulo, 1996., p. 12-13).

O que tentamos demonstrar com esse artigo é que os processos criminais são importantes documentos e ferramentas que trazem em si ocorrências documentais que constituem a ponta visível de processos sociais e da estrutura de uma determinada sociedade. Conforme assinalou Mattos e Rios (2004MATTOS, H. M.; RIOS, A. M. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, pp. 170-198., p. 175), o grande crescimento, tanto da lavoura cafeeira paulista quanto da cidade de São Paulo, “após a abolição do cativeiro, demograficamente embasado na imigração subvencionada, subverteu muito rapidamente as relações de dependência entre ex-senhores e libertos, permitindo que aqueles pudessem muito mais facilmente ignorar as reivindicações colocadas por estes”.

Nos processos criminais o pesquisador pode se deparar com o processo histórico do período que procura cercar e problematizar as principais demandas por inclusão, ou cidadania10 10 Sobre a dificuldade em se falar de cidadania no Brasil nos dias atuais, e na história, levando a pêlo o período que o presente estudo se debruça, a obra de José Murilo de Carvalho (2004) é fundamental. , perseguidas pela última geração de escravos (ou antes) e por seus filhos e netos. Antônio Confusão protestou contra o roubo de seu patrão e sustentou isso até as últimas consequências. Sofreu um grave atentado a sua vida por ter matado seu patrão branco. Estas demandas se organizaram a partir de noções de direito peculiares a esta população que, obviamente, também mudaram ao longo do tempo. Indícios dos elementos que constituíram estas expectativas de direitos podem ser percebidos através da documentação e da análise de processos criminais.

Neste sentido é que concordamos com a análise de Mattos e Rios (2004MATTOS, H. M.; RIOS, A. M. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, pp. 170-198.). Para as autoras, a grande preocupação das elites contemporâneas aos processos de emancipação era definir quem poderia ser cidadão. E por isso passamos muito tempo discutindo as visões das elites a respeito de cidadania, e não a dos “novos cidadãos”, os ex-escravos. “É exatamente esta questão que pesquisas sobre o pós-abolição nos permite estabelecer em uma nova perspectiva. Cidadania, na compreensão dos novos estudos sobre o pós-abolição, é um conceito essencialmente mutável, e apenas começamos a nos aproximar de uma história que dê conta de suas múltiplas facetas” (MATTOS; RIOS, 2004MATTOS, H. M.; RIOS, A. M. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, pp. 170-198., p. 191-192).

FONTE PRIMÁRIA

  • Processo Crime n. 14/1892. Cartório do Registro Criminal de Rio Claro. Arquivo Público e Histórico “Oscar de Arruda Penteado” de Rio Claro. 1892

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  • MONSMA, K. Identidades, desigualdade e conflito: imigrantes e negros em um município do interior paulista, 1888-1914. Notas de pesquisa. História Unisinos. Jan. v. 11, n. 1, 2007, p. 111-116.
  • MONSMA, K. . O problema de viés de seleção na pesquisa histórica com fontes judiciais e policiais. História Social, n. 21, 2011, p. 27-46.
  • MONSMA, K. . Imigração e Violência Racial: italianos e negros no oeste paulista, 1888-1914. Impulso, Piracicaba, 15(37): 49-60, 2004.
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  • SCHWARCZ, L. K. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questões raciais no Brasil - 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.
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  • TRENTO, A. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989.
  • XAVIER, R.C.L. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas, CMU/ UNICAMP, 1996.

Notas

  • 1
    Para observar e analisar a complexidade de trabalhar com documentação e processos sequenciais, ver: MONSMA, 2011MONSMA, K. . O problema de viés de seleção na pesquisa histórica com fontes judiciais e policiais. História Social, n. 21, 2011, p. 27-46. .
  • 2
    Entre outros podemos citar: DEAN, 1977DEAN, W. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura 1820-1920. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. ; FAUSTO, 2001FAUSTO, B. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed., São Paulo, EDUSP, 2001.; HOLLOWAY, 1984HOLLOWAY, T. H. Imigrantes para o Café: Café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Trad. Eglê Malheiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1984.; STOLKE, 1986STOLKE, V. Cafeicultura: Homens, Mulheres e Capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986. ; TRENTO, 1989TRENTO, A. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989. ; VANGELISTA, 1982.
  • 3
    No entanto, Karl MONSMA, 2007MONSMA, K. Identidades, desigualdade e conflito: imigrantes e negros em um município do interior paulista, 1888-1914. Notas de pesquisa. História. Unisinos. Jan. v. 11, n. 1, 2007, p. 111-116. destaca que existem exceções encontradas em algumas pesquisas: ANDREWS, 1991ANDREWS, G. R. 1991. Blacks and whites in São Paulo, Brazil, 1888-1988. Madison, University of Wisconsin Press., focaliza o período pós-abolição em São Paulo; partes de XAVIER, 1996XAVIER, R.C.L. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas, CMU/ UNICAMP, 1996. extrapolam a barreira de 1888; SCOTT, 1994SCOTT, R. J. Defining de boundaries of freedom in the world of cane: Cuba, Brazil and Louisiana after emancipation. The American Historical Review, 99(1):70-102, 1994., compara a situação de ex-escravos após a abolição nas regiões açucareiras do Nordeste brasileiro, de Cuba e do estado de Louisiana, EUA; MACIEL, 1997MACIEL, C. da S. Discriminações raciais: negros em Campinas (1888-1926). 2. ed., Campinas, Centro da Memória-UNICAMP, 1997. fez um levantamento de artigos de jornais sobre negros após a abolição em Campinas. Muitos escritos sobre este período abordam os negros como integrantes de categorias maiores, como “classes populares” ou “trabalhadores nacionais”, o que tende a diluir sua experiência específica e atenuar questões de discriminação racial.
  • 4
    Sobre o conceito de bairro rural nos baseamos em QUEIROZ, 1973QUEIROZ, M. I. P. Bairros rurais paulistas: dinâmicas das relações bairro rural-cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades , 1973. e MELLO E SOUZA, 1975MELLO E SOUZA, A. C. de. Os Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. 3. Ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975..
  • 5
    Ver também: STOLKE, 1986STOLKE, V. Cafeicultura: Homens, Mulheres e Capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986. ; WITTER, 1982.
  • 6
    Que gosta de provocar rixas; briguento, brigão, rixoso, bulhento, desordeiro.
  • 7
    Arquivo Público e Histórico de Rio Claro, Processo Crime 14/1892. Adoravante APHRC, PC. Grifos nossos.
  • 8
    Não sabemos se essa é a grafia correta. Não encontramos referência a essa cidade.
  • 9
    Olho por olho, dente por dente.
  • 10
    Sobre a dificuldade em se falar de cidadania no Brasil nos dias atuais, e na história, levando a pêlo o período que o presente estudo se debruça, a obra de José Murilo de Carvalho (2004CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2004.) é fundamental.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2017
  • Aceito
    06 Ago 2018
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