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Os filhos da escravidão e o primeiro sacramento: batismo, compadrio e sociedade escravista na freguesia de Santo Antônio do Recife, Capitania de Pernambuco, no fim do século XVIII

The children of slavery and the first sacrament: baptism, cronyism and slave society in the parish of Santo Antônio do Recife, Capitania of Pernambuco, at the end of the eighteenth century

RESUMO

A pesquisa sobre a escravidão em Pernambuco tem por objetivo entender o funcionamento do apadrinhamento e as lógicas sociais seguidas por um grupo específico de homens e mulheres, os escravos. Para isso, usamos fontes eclesiásticas do final do século XVIII da freguesia de Santo Antônio do Recife, parte central e de grande movimentação na época. Através da catalogação e análise das fontes, conseguimos ter uma compreensão das dinâmicas existentes na localidade e entender as apropriações feitas pelos escravos. Identificamos formas de inserção social somadas às diferenças existentes dentro do grupo de escravos que, mesmo possuindo uma condição igual, eram díspares dentro do conjunto.

Palavras-chave
Escravidão; Pernambuco; Compadrio; Lógica Social; Século Dezoito

ABSTRACT

The research on slavery in Pernambuco aims at understanding the functioning of sponsorship and the social logics followed by a specific group of men and women, the slaves. For this purpose, we used ecclesiastical sources from the late eighteenth century of the parish of Santo Antônio do Recife, central region with great movement at the time. Through the cataloging and analysis of the sources, it is possible to understand the dynamics existing in that region and, through them, to understand the appropriations made by the slaves. Forms of social insertion were identified, together with the differences existing within the group of slaves, who were very different despite sharing slavery condition.

Keywords
Slavery; Pernambuco; Cronyism; Social Logics; Eighteenth Century

A escravidão na sociedade brasileira, entre os séculos XVI e XIX, promoveu adequações sociais e culturais em todos os níveis. Na legislação, não foi diferente: seja eclesiástica ou civil, existem títulos dedicados exclusivamente aos filhos do cativeiro. No caso do batismo, alguns são bem precisos em seus direcionamentos. As abordagens do batismo para os cativos, em especial os vindos da África ou os considerados “brutos e buçais (sic), e de lingoa (sic) não sabida” (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 20), como registram as Constituições, deveriam seguir regras próprias.

As Ordenações do Reino, que vigoraram no Brasil mesmo depois da Independência, expressaram, em seu Título XCIX, as exigências para quem tivesse sob sua propriedade escravos da Guiné. Vejamos a lei:

Mandamos, que qualquer pessoas, de qualquer estado e condição que seja, que escravos de Guiné tiver, os faça batizar, e fazer cristãos do dia, que a seu poder vierem, até seis meses, sob pena de os perder para quem os demandar.

E se algum dos ditos escravos, que passe de idade de dez anos, se não quiser tornar cristão, sendo por seu senhor requerido, faça-o o seu Senhor saber ao Prior ou Cura da Igreja, em cuja freguesia viver, perante o qual fará ir o dito escravo; e se ele, sendo pelo Prior e Cura admoestado, e requerido por seu senhor perante testemunhas, não quiser ser batizado, não incorrerá o Senhor em dita pena (ORDENAÇÕES, 2004CÓDIGO FILIPINO OU ORDENAÇÕES E LEIS DO REINO DE PORTUGAL: recompiladas por mandado d’el Rei D. Filipe I. Ed fac-similar da 14. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Livro V. Título XCIX. , p. 1247).

Como destacamos, eram uma obrigação imputada ao proprietário de escravos o batismo e a consequente inserção do seu cativo no seio da cristandade, sob o risco de perder o seu escravo caso fosse demandado por outra pessoa, que assumiria tal propriedade. Existia ainda uma opção para o dono do cativo: caso fosse comprovado, com testemunhas e perante os religiosos, que o escravo com mais de dez anos não aceitava o sacramento, estaria livre de punição seu senhor. Mas a lei ainda esclarece que:

E sendo os escravos de idade de dez anos, ou de menos, em toda a maneira os façam batizar até um mês do dia, que estiverem em posse deles: porque nestes não é necessário esperar seu consentimento.

E as crianças, que em nossos reinos e senhorios nascerem das escravas,que das partes da Guiné vierem, seus senhores as façam batizar aos tempos, que os filhos cristãos naturais do reino se devem e costumam batizar, sob as ditas penas. (ORDENAÇÕES, 2004CÓDIGO FILIPINO OU ORDENAÇÕES E LEIS DO REINO DE PORTUGAL: recompiladas por mandado d’el Rei D. Filipe I. Ed fac-similar da 14. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Livro V. Título XCIX. , p. 1247) [grifo nosso].

Tendo sido adquirido com menos ou até dez anos, o cativo não teria o direito de recusar o batismo católico. Seu senhor deveria, em menos de um mês do dia de sua compra, batizar o escravo. No caso dos filhos de suas escravas da Guiné, que em sua maioria foram crioulos, estes tinham de receber, conforme a lei, o mesmo tratamento dos filhos de seus senhores para com o sacramento do batismo, não deixando oportunidade para que não aceitassem a fé católica e conseguissem a salvação de sua alma.

Posteriormente, no século XVIII, as Constituições trazem mais especificações para com o batismo de africanos,1 1 O termo não aparece nas fontes consultadas, sendo uma apropriação que a historiografia usa para designar todo um grupo vindo da África. Ver: FARIA, 2004, p. 38. inclusive uma sequência de perguntas que deveria ser feita aos boçais depois de algum conhecimento, ou perante intérpretes. Eram seis perguntas, que prosseguiam mediante resposta dada pelo cativo:

Queres lavar a tua alma com água santa?

Queres comer o sal de Deus?

Botas fora de tua alma os teus pecados?

Não há de fazer mais pecados?

Queres ser filho de Deus?

Botas fora da tua alma o demônio? (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 20).

Perguntas que buscavam levar o candidato ao batismo a se livrar das dicotomias que permeavam o imaginário da sociedade da época, num mundo que era representado pelo bem e pelo mal - o primeiro expresso por Deus, a água santa, o sal divino, e o segundo pelos pecados já cometidos e a continuidade em uma vida pecadora, tudo sob o jugo do demônio que habitava a alma do escravo vindo da África,2 2 Laura de Mello e Souza lembra que “[...] componentes do universo mental, nunca estiveram isolados uns dos outros, mantendo entre si uma relação constante e contraditória: na esfera divina, não existe Deus sem o Diabo; não existe Paraíso Terrestre sem Inferno; entre os homens, alternam-se virtude e pecado [...]”. (SOUZA, 2005, p. 29). local que tinha sido constituído sob a concepção de uma terra de pecadores. Exaltava-se a superioridade europeia e branca, descendente de uma obra divina, construída por Deus e habitada por Japhe, descendente de Noé, que não pecou. Já a África era o local de pecados, ainda baseados nos castigos imputados a Cã, que por enganar o pai Noé foi punido com a negritude e o degredo para as terras em que surgiu a África (SILVA, 2010SILVA, Gian Carlo de Melo. Ocidentalização e mestiçagem no novo mundo: um olhar teórico-metodológico sobre a formação do Brasil colonial. In: Cadernos de História: oficina de história. Ano IV, n. 4, jun. 2005. Recife: Ed. Universitária UFPE, 2010., pp. 62-73).

Como o Brasil era uma terra em que havia muitos escravos, de várias origens, a legislação eclesiástica via que aqui existiam maiores necessidades de doutrinação. Só através deste exercício de vigilância e catequese conseguiriam trazer para a cristandade os cativos vindos da África. Conforme o Título III da legislação,

(...) os escravos no Brasil são os mais necessitados da doutrina cristã, sendo tantas as nações, e diversidades de línguas, que passam do gentilismo a este Estado, devemos buscar-lhes todos os meios, para serem instruídos na Fé, ou por quem lhes fale nos seus idiomas ou no nosso, quando eles já possam entender (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 4) [grifo nosso].

Ao chegarem de uma terra onde só existiam os “gentilismos”, a África, o papel da Igreja e dos senhores seria voltado para a conversão e a inserção no mundo cristão desses homens e mulheres cativos. Tal pressuposto, segundo Mariza Soares, traria os cativos de várias nações de um lugar anterior em que só existia gentilismo,3 3 Segundo Bluteau, o gentilismo seria uma “religião ou doutrina da gentilidade [...] os costumes desaprovados”. Quando observamos o verbete gentilidade, vemos que esta era “a falsa religião dos gentios”. Já o gentio seria um sinônimo de pagão ou de gente “baixa, popular”. Moraes e Silva diz que gentilismo é o mesmo que gentilidade, que seria mais usado para indicar o “errado culto do paganismo”, e o gentio seria um “bárbaro idolatra, pagão” ou ainda a “gente que serve o gentilismo, bárbara”. Por fim, apresenta uma associação para falar do gentio do Brasil, na qual diz que estes são “a gentalha, plebe”. Em nenhum momento as definições indicam o que seriam na prática cotidiana tais atos de gentilismos; o que existe é uma associação direta com a religião católica, neste caso a ausência do batismo que tira o homem do paganismo e o insere na cristandade. E o homem cheio de gentilismos era identificado ao que seria bárbaro, pagão, na visão da cristandade, sem fé. Ver: BLUTEAU, 1712, p. 57; MORAES E SILVA, 1789, p. 85. para outro no qual só chegariam com a doutrina e o batismo (SOARES, 2011SOARES, Mariza de Carvalho. A conversão dos escravos africanos e a questão do gentilismo nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. In: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011., pp. 303-321). Acrescentamos ainda que essa interpretação, quando aliada ao ideário salvacionista e missionário de levar a fé aos povos, ganha o sentido da purificação e de afastar o pecado da terra, um pensamento que se refletiu durante vários séculos de colonização, inclusive como justificativa para os seus atos.

Indo além, no mesmo Título III, as Constituições alertam sobre a rudeza e os gentilismos que ladeavam os boçais, e ratificavam para ensinar a doutrina a estes escravos devido à “não existência de outro meio mais proveitoso, que o de uma instrução acomodada a sua rudeza de entender, e barbaridade do falar”. Com isso, os párocos eram obrigados a fazer cópias de um catecismo para que os fregueses4 4 O uso do termo fregueses parte do que era posto na legislação eclesiástica, na qual todos os moradores atendidos pela Igreja na localidade eram denominados de tal forma. Além disso, existe uma referência ao termo freguesia, que seria o lugar da cidade onde vivem os fregueses. Ver: BLUTEAU, 1712, p. 206. pudessem instruir seus escravos na doutrina cristã. Após os ensinamentos, os cativos seriam examinados, respondendo às seis perguntas, conforme descrevemos anteriormente, para poderem confessar e comungar como cristãos.

O papel dos senhores era primordial para que a tarefa de salvação fosse encaminhada, retirando as heranças consideradas depreciativas que os cativos traziam da África. O trabalho, mesmo que árduo, deveria ser realizado para conquistar a conversão. Os senhores, além dos catecismos que podiam possuir em casa, tinham de mostrar aos seus escravos pagãos “o conhecimento dos erros, em que vivem, o estado de perdição, em que andam” (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., pp. 20-21). Para isso, poderiam contar com a ajuda de outras pessoas, consideradas virtuosas, que lhes ensinariam a doutrina para conquistar a salvação. Além disso, conforme Goldschmidt (1998GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado: na sociedade colonial paulista (1719-1822). São Paulo: Annablume, 1998., p. 29), para os senhores, a legislação, ao mesmo tempo em que pressionava com regras, levava o cativo à salvação e trazia-o para a submissão, pois a certidão de batismo seria um certificado de propriedade, o que no caso de Recife pode ser corroborado quando encontramos grafados nos assentos os nomes dos proprietários de escravos.

Como o cotidiano era permeado por outras possibilidades, a legislação não deixa de se pronunciar nos casos em que tanto a “rudeza” quanto o fato de serem “buçais” fossem de encontro aos esforços dos senhores mais dedicados, que ensinavam com vagar e paciência os mistérios da fé aos seus cativos; mas estes, quanto mais eram ensinados, menos aprendiam devido à sua rudeza. Contra tal situação, recomendava-se a interferência dos vigários e curas, catequizando os escravos, diante da observância de que eles tinham adquirido conhecimento e soubessem da necessidade dos sacramentos. Seriam administrados a eles os seguintes sacramentos: batismo, penitência, extrema-unção e matrimônio (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 22).

A eficácia das medidas seria averiguada pelos vigários e curas, que iriam examinar os escravos africanos e os nascidos no Brasil, moradores da freguesia, buscando aquele que não soubesse a doutrina. Caso fosse encontrado na casa dos fregueses algum cativo que não soubesse “o Padre Nosso, Ave Maria, Credo, mandamentos da lei de Deus, e da Santa Madre Igreja” (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 21), sendo todos considerados aptos de aprender, os seus senhores seriam advertidos para que ensinassem ou solicitassem a alguém ensinar a doutrina para seus cativos, mandando-os para a Igreja em busca de aprendizado, pois só com tudo na ponta da língua é que iriam receber o sacramento.

Como é possível observarmos através das Constituições e do artigo XCIX das Ordenações, o que existia era uma preocupação com a conversão para o seio do catolicismo dos homens e mulheres considerados rudes e boçais, com a alma repleta de pecados e gentilismos no caso dos africanos. Somente um dos títulos fala diretamente dos escravos nascidos no Brasil, quando indica o batismo dele com pouco tempo de nascido, com o mesmo tratamento que receberia o filho do senhor no que se refere ao acesso ao sacramento batismal. Os originários de Guiné, Angola, Costa da Mina ou qualquer outra parte eram os que mereciam maior atenção, para que os seus gentilismos não fossem perpetuados na sociedade; sendo batizados, estariam adotados por Deus, conquistando o perdão do pecado original, o acesso ao mundo dos vivos, e teriam aberta a porta do céu para sua chegada caso viessem a falecer. Ficando na terra, teriam adentrado o mundo dos cristãos, igualando-se aos demais que os rodeavam. Assim, batizar um filho e/ou ser batizado trazia para o escravo, fosse africano ou nascido no Brasil, uma série de vantagens nos campos religioso, moral e social, permitindo que circulasse e fosse aceito, dentro dos limites permitidos devido à sua condição cativa.

Padrinhos e madrinhas: um novo parentesco

Principais atores ao lado dos batizados, os padrinhos são a outra ponta do elo formado a partir do compadrio, figura que une famílias e/ou que dá um novo amparo para os que estavam abandonados. O dicionarista Raphael Bluteau define o padrinho como “aquele que faz o ofício de pai, e impõe o nome nos sacramentos do batismo e confirmação” (BLUTEAU,1712BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino: 1712-1727. Coimbra: 1712., p. 177). No momento, interessa-nos o padrinho que estava presente nos batismos, pois sua escolha era permeada de artifícios e regras que vamos tentar desvendar através da análise das fontes.

Nas Constituições, o título XVIII é dedicado exclusivamente aos critérios para ser padrinho e madrinha de uma criança ou adulto. Sua quantidade é definida conforme as normas do Concílio de Trento; assim, “no batismo não haja mais que um só padrinho, e uma só madrinha, e que se não admitam juntamente dois padrinhos, e duas madrinhas” (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 26), regra que foi seguida em Santo Antônio, já que não encontramos casos como os proibidos na lei. O processo de escolha não fica claro, mas é frisado que “os padrinhos serão nomeados pelo pai, ou mãe, ou pessoa, a cujo cargo estiver a criança; e sendo adulto, os que ele escolher”, o que ao menos em teoria mostra um método “democrático”, pois os párocos não poderiam “tomar outros padrinhos” a não ser os escolhidos e nomeados pelos responsáveis. Ao pároco só restava exigir que fossem pessoas batizadas e com a idade correta para realizar tal ato, tendo consciência do que faziam - no caso dos homens quatorze anos, e das mulheres doze. A mesma exigência era feita para os que desejavam contrair matrimônio (SILVA, 2014 . Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife colonial (1790-1800). Maceió: Edufal, 2014., pp.138-154), salvo nos momentos em que fosse concedida uma licença especial.

No entanto, algumas pessoas estavam proibidas de ser padrinhos, o que mostra, além do cuidado eclesiástico, a tentativa de normatização e inserção de forma correta dos novos cristãos. Entre as proibições, existia a dos próprios pais, infiéis, hereges ou publicamente excomungados, interditos, surdos ou mudos, e os que ignorassem os princípios da fé, como, por exemplo, os boçais de que tratamos anteriormente. Ainda existiam os religiosos professos, exceto os que eram das Ordens Militares, freiras, frades, cônego regrante. Nem presencialmente nem por procuração estes poderiam apadrinhar (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 26).

Os padrinhos deveriam ter ciência das obrigações que contraíam para com os afilhados e a família destes. Após a criança receber sob seu corpo, em formato de cruz, a água benta, os padrinhos a recebiam em seus braços, sendo avisados de que tinham a obrigação de serem fiadores, perante Deus, da permanência do infante na fé católica, ensinando-o como pais espirituais não só a doutrina cristã, mas os bons costumes (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 26). Ao mesmo tempo, adquiriam parentesco espiritual com os pais da criança; tal laço, para a legislação, gerava um impedimento dirimente (SILVA, 2014 . Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife colonial (1790-1800). Maceió: Edufal, 2014., pp. 55-61), o que na prática impediria o padrinho ou a madrinha de contrair matrimônio com o afilhado ou com os compadres.

A fluidez do cotidiano colonial emerge dentro da legislação quando abordamos as questões do apadrinhamento, demonstrando como existiam possibilidades no dia a dia da população, como no caso em que não existisse outra pessoa presente no momento do parto ou outra necessidade em que a criança corria perigo. A legislação declara que “quando não houver outra pessoa, que saiba fazer o batismo, poderá batizar o pai, ou mãe da criança, porque então não nasce o dito parentesco espiritual, e se podem um ao outro pedir o débito” (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 27). Em outras palavras, nas relações legítimas o parentesco espiritual não nascia.

Já prevendo outra possibilidade, alertam as determinações das Constituições que “não sendo casados legitimamente o pai, e mãe, qualquer que fizer o batismo, ainda mesmo em extrema necessidade, ficará compadre, ou comadre do outro, e contraindo impedimento dirimente” (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 27). Nessa situação, os casais que não tinham o reconhecimento da Igreja, mesmo diante de uma necessidade de salvação, para não deixar seu filho morrer pagão contraíam o parentesco espiritual, ficando impedidos de algum dia casar. Talvez essa tenha sido mais uma maneira de coibir as uniões consensuais que existiam no cotidiano colonial, evitando a propagação de filhos naturais ou frutos de relações proibidas.

O compadrio na escravidão

No estudo de Solange Rocha, temos a configuração do apadrinhamento da gente negra na Paraíba oitocentista (ROCHA, 2009, pp. 215-259), mais especificamente em três freguesias situadas na zona da mata paraibana. Sua pesquisa enfatiza como os laços gerados pelo compadrio marcaram as três localidades da região, evidenciando as práticas e vivências que envolviam os agentes sociais a partir do parentesco espiritual. A autora revelou, em sua narrativa, como essa “gente negra”, em suas diversas condições civis, fossem cativos, livres ou forros, promoveu novas formas de adaptação e sobrevivência através das redes de sociabilidades criadas com o compadrio, existindo uma adaptação às regras católicas e a “(re)criação de lugares sociais na ordem escravista” (ROCHA,2009, p. 259), seja acionando um compadrio para evitar castigos e os excessos da dominação senhorial, ou ainda criando formas de melhoria em sua condição social. Assim, a autora nos mostra que na Paraíba também existiram outros significados, que não somente o espiritual, envolvendo o batismo e as obrigações que este gerava.

Um apontamento feito por Katia Mattoso, em Ser escravo no Brasil, caracteriza o compadrio como uma das formas de solidariedade procurada. Para a autora, mesmo tendo conhecimento das obrigações que os padrinhos assumiam, os laços que formavam seriam “o próprio fundamento da vida de relação” (MATTOSO, 2003MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003., p. 132), vida essa que permeava a sociedade brasileira baseada na família patriarcal, extensiva e ampliada, o que podemos dilatar, pois, no caso específico do compadrio, este trazia para as famílias envolvidas uma série de obrigações, fossem elas famílias formadas de forma legítima com pais casados, ou unidades comandadas por mulheres solteiras, que estão em maior número presentes nos batismos de Santo Antônio do Recife.

A autora afirma que vínculos de afeto poderiam ser formados por senhores e escravos através dos laços, que “não prendem apenas padrinho e afilhado, ligam o padrinho, sua família e os pais da criança batizada, cujo grupo, em seu conjunto, ganha promoção excepcional” (MATTOSO, 2003MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003., p. 132). Assim, no contexto da escravidão, o apadrinhamento ampliava as possibilidades dos envolvidos, favorecendo pessoas de condições diferentes, mas que ganhavam uma rede de apoio e solidariedade, que poderia ser acionada dentro e/ou fora do cativeiro.

John Monteiro, em estudo sobre a escravidão indígena, lembra que o papel da religião serviu para demarcar a diferença entre um estado em que viviam anteriormente os índios e o novo lugar que passavam a ocupar na cristandade a partir do batismo. Essa inserção proporcionada para os índios serviria como mais uma forma de dominação, trazendo para estes a dicotomia existente entre Deus e o Diabo. Em seus estudos, nos quais encontrou batismos coletivos, em sua maioria de índios ainda crianças trazidas do sertão, Monteiro conseguiu identificar que os laços de compadrio eram formados por índios já convertidos e moradores da mesma propriedade, na qual estavam sendo inseridos os recém-chegados. No caso dos adultos, o autor identifica que existia um “intervalo entre o apresamento e o batismo de adultos”. Com sua análise, concluiu que os índios já cativos, ao batizarem os novos, criavam “os primeiros laços entre os novos cativos e a sociedade escravista” (MONTEIRO, 1994MONTEIRO, Jonh Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 160). Em tal condição, os padrinhos cativos exerciam um relevante papel no processo de transformação do índio capturado no sertão para o índio escravizado.

Observando suas argumentações e as disposições encontradas na legislação civil e eclesiástica, é possível argumentarmos que os moradores de Sorocaba, em 1680, seguiam os cuidados das regras católicas que viriam a ser legisladas no Brasil pelo Arcebispado da Bahia anos depois. Contudo, suas práticas talvez fossem inspiradas não nas Constituições da Bahia, que na época já estavam sendo discutidas, mas no Concílio de Trento,5 5 Ver o prólogo das Constituições de autoria do Doutor Ildefonso Xavier Ferreira (DA VIDE, 2007,p. 12). além do que já estava inscrito nas Ordenações do Reino sobre a obrigação dos batismos para os menores de dez anos. Os senhores estavam batizando os escravos crianças, já que estes não tinham o direito de escolha; e trataram de ensinar a doutrina para os adultos, mesmo que não da forma correta, o que justificaria a inexistência de batismos coletivos de adultos, segundo Monteiro. Assim, eram aplicadas aos indígenas cativos as regras direcionadas aos africanos, o que mostra que, para os paulistas, não importava a origem, e sim a condição que possuíam os “negros da terra” ou os africanos - neste caso, a de cativos.

No cenário mineiro, Luciano Figueiredo aponta que os papéis do compadrio e do batismo assumiram funções diferentes para a população, a Igreja e o Estado português (FIGUEIREDO, 1997FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas Gerais no Século XVIII. Rio de Janeiro: Hucitec, 1997., pp.119-130). Analisando a formação de famílias, o autor verifica a crescente ilegitimidade no nascimento de crianças na região de Ouro Preto, fato que, segundo a Igreja, deveria ser combatido. Porém, ao mesmo tempo, a Igreja que combatia a ausência dos laços matrimoniais concedia o batismo para essa prole, fruto de uniões não reconhecidas. Garantia para estes rebentos a entrada na cristandade, buscando, desta forma, diminuir a culpa não só do pecado original, mas a de sua concepção. Já para a população, através do batismo existia a possibilidade de conquistar novas proteções, formando uma rede de ajuda mútua por meio dos laços de compadrio, que envolvem toda a família dos padrinhos e dos apadrinhados.

Como boa parte da população, no início do século XVIII, em Minas, era composta por gente de cor, alguns com fortes elos dentro do cativeiro podiam ser uma ameaça. Figueiredo argumenta que o Estado português, representado na região pelo Conde de Assumar, observava que os laços criados pelo compadrio, envolvendo uma “multidão de negros”, eram prejudiciais para a manutenção da ordem, e passou a exigir que os padrinhos fossem todos brancos. Buscava, em sua atitude, uma garantia de que a doutrina recebida por estes brancos conseguiria controlar a população de cor, evitando que estes, ao se tornarem compadres e comadres, fortalecessem seus laços. Conclui o autor que “ao lado dos quilombos, dos batuques e das pequenas vendas, o compadrio parece sustentar uma solidariedade forjada pelo cotidiano” (FIGUEIREDO, 1997FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas Famílias: vida familiar em Minas Gerais no Século XVIII. Rio de Janeiro: Hucitec, 1997., p.130), o que não poderia ser diferente, pois essas alianças, formadas principalmente no cativeiro, serviram para unir, no contexto mineiro, uma população de cor que se apropriava das regras, subvertendo-as para suas necessidades e aspirações.

Para o Campo dos Goytacazes, na segunda metade do século XVIII, uma região com grandes unidades escravistas, Sheila Faria conseguiu identificar a existência de redes horizontais formadas nos apadrinhamentos de filhos legítimos, em que muitos dos padrinhos dos escravos também eram cativos. Nesses casos, os escravos eram do mesmo dono; já dos filhos naturais, os padrinhos eram cativos de donos diferentes. Em ambas as situações, fossem naturais ou legítimos, a preferência por livres e libertos prevalecia, principalmente por parte das mães solteiras. Para a autora, “estes dados vêm demonstrar que relações de compadrio eram escolhas dos escravos, já que seria absurdo supor senhores indicando como padrinhos de seus cativos escravos de outros donos” (FARIA, 1998FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. , p. 321).

Tal argumento parece um tanto frágil, e nas argumentações da própria autora podemos encontrar posicionamentos mais sólidos, que se sobrepõem à assertiva anteriormente citada. Sheila Faria esclarece que, na vivência da escravidão, a escolha por parceiros e compadres seria algo concernente aos cativos, mas dentro das condições de seus senhores, que seriam interferências “no intuito de barrar a intromissão de terceiros na relação com seus cativos” (FARIA, 1998FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. , p. 322). Porém, existiam as individualidades da vida cotidiana, que levavam ao jogo de trocas entre senhores e escravos, ambos com desejos e anseios que precisavam ser supridos, ora com a concessão do senhor, ora com a ação direta do cativo. Assim, senhores concedendo a formação de compadrio com cativos de outras propriedades - em especial senhores católicos e fiéis aos preceitos do Concílio de Trento e das Constituições Primeiras - não era algo que “seria absurdo supor”, mesmo porque os senhores também possuíam laços; e, em algumas situações, tal postura poderia se configurar vantajosa.

Em Campinas, ao longo do século XIX, Slenes observou a formação de laços de compadrio entre escravos e pessoas pertencentes ao mundo dos livres (SLENES, 1997SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (Org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras , 1997., pp. 234-290). A partir de testamentos e analisando os inventários de fazendas da região, o autor verifica que, quanto mais próximo do trabalho doméstico estivesse o cativo, este teria facilidades para conquistar um compadrio com alguém mais favorável, melhor estabelecido, ou quem sabe com seu próprio senhor. Verificou ainda que um dos fatores para a escolha de compadres estaria na sua inserção no mundo dos livres, mas que esse compromisso de dependência assumido com alguém de outra condição poderia trazer problemas para os cativos, com algum custo nas relações cotidianas.

Argumenta Slenes que, entre as consequências para os compadres escravos, poderia existir “a renúncia à solidariedade com os cativos de seu senhor, ou um constante esforço de dirimir dúvidas dos parceiros a respeito do lado em que estava, de fato, sua lealdade” (SLENES, 1997SLENES, Robert W. Senhores e subalternos no oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (Org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras , 1997., p. 268). Nesse ponto de vista, é possível agregar o papel exercido pelo contexto paulista, principalmente das fazendas de café, como um fator diferencial, já que a vivência nestas localidades, com senzalas repletas de escravos, solicitava destes uma maior ligação através de redes horizontais. No caso do Recife colonial, parece não ter sido uma experiência tão fortemente solicitada no contexto das lealdades dentro do cativeiro, já que as escravarias estavam reduzidas pela conjuntura urbana e a distribuição dos sobrados, o que não impede a existência das redes espalhadas numa tessitura feita com escravos de outros senhores que circulavam nas ruas ou viviam contidos dentro dos sobrados nos afazeres domésticos. Enfim, as realidades e a forma de viver o cativeiro eram diversas.

Já na freguesia de São José dos Pinhais, na Comarca do Paraná, região marcada por uma economia voltada para a pequena lavoura e a criação de gado, Cacilda Machado também enveredou sua pesquisa para analisar o papel do compadrio entre o final do século XVIII e o início do XIX (MACHADO, 2008MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.). Utilizando como fontes as listas nominativas, testamentos e documentos eclesiásticos, a autora conseguiu observar como a sociedade escravocrata da região estava inserida nas práticas de compadrio. Em sua análise, chegou a uma conclusão que agrega as demais pesquisas citadas, outro caráter para o batismo e a consequente formação de laços da gente de cor, fossem cativos, forros ou livres. Para ela,

(...) ainda que o estabelecimento de relações de compadrio com pessoas de status superior pudesse funcionar bem na busca de proteção social e mesmo como mecanismo de manutenção e de ampliação de uma comunidade de negros e pardos, o fato é que aquele privilegiamento [...] acabou por reforçar, senão criar, o componente de dominação/submissão da relação, bem como ajudou a debilitar o caráter igualitário que o parentesco espiritual tridentino pressupunha.(MACHADO, 2008MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008., p. 199).

Suas conclusões nos levam a refletir sobre o caráter de dominação que o apadrinhamento e os laços de compadrio poderiam formar dependendo da escolha dos padrinhos e das madrinhas. A demarcação das diferenças poderia ser um fator que afastava e aproximava pessoas dentro do cativeiro; afinal, se existia uma hierarquia entre os padrinhos, quem tivesse “o melhor” padrinho, com mais qualidades e melhores condições, teria maior destaque dentro do grupo em que vivia. Pensando dessa forma, a relação de dominação/submissão à qual Machado faz referência funcionaria como uma via de mão dupla, beneficiando compadres, comadres, afilhados e afilhadas e, por consequência, toda a sua família, caso fossem feitas as escolhas e aceitações corretas por parte dos envolvidos, fortalecendo ou criando redes verticais e horizontais.

Outro estudo que também abordou a região de Curitiba, traçando comparações com a Bahia, foi o de Stuart Schwartz, que trouxe contribuições relevantes ao comparar regiões com dinâmicas sociais e econômicas diversas, mostrando similitudes e diferenças em períodos distintos entre os séculos XVIII e XIX (SCHWARTZ, 2001SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. , pp. 263-292). Na região dos Pinhais, na Curitiba oitocentista, havia uma escravaria crioula, com a entrada de poucos africanos, o que não trazia grandes mudanças para os escravos que já existiam. Junto a estes, ainda era encontrado o trabalho do indígena, muitas vezes cativo, que só foi reduzido a partir da segunda metade do século XVIII. Enquanto isso, na Bahia, mais especificamente no Recôncavo, região com muitos engenhos e uma economia voltada para a produção e a exportação do açúcar, existia uma mão de obra em sua maioria negra e africana.

Partindo de cenários tão diversos, Schwartz consegue identificar que existiam semelhanças entre os modelos de compadrio, prevalecendo a escolha por pessoas livres na hora do batismo nas duas localidades. No caso da Bahia, com as revoltas ocorridas no início do século XIX até 1835, tinha passado a existir uma diferença: enquanto no século XVIII os padrinhos dos cativos eram preferencialmente livres, no XIX eles pertencem ao núcleo da escravidão. Tal mudança para esse novo padrão indicaria “uma noção cada vez maior de comunidade entre a população escrava e uma noção de dependência cada vez menor da parte dos escravos ou do paternalismo da parte dos indivíduos livres” (SCHWARTZ, 2001SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. , p. 286).

Contudo, não deixa de ser considerado o papel do contexto social em que as solidariedades entre pessoas livres com os escravos estariam abaladas pelas revoltas e o medo que suas consequências poderiam trazer, o que mostra como o compadrio refletiu o momento social vivido pela Bahia na época. Conclui Schwartz que “[...] a vida vivida, as escolhas feitas e as estratégias adotadas pelos que sofriam com a escravidão eram continuamente moldadas e restringidas pela penetração e pelo poder do sistema social e econômico predominante, e não podem ser entendidas sem menção a ele” (SCHWARTZ, 2001SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. , p. 292).

Entendidas as questões levantadas pelas pesquisas realizadas em outras partes do Brasil, será possível enveredarmos na observação dos laços de compadrio que existiram entre os batismos de escravos na freguesia de Santo Antônio do Recife. Um cenário diverso das abordagens anteriores, principalmente pelo fato de ser um local urbano e portuário, sem a existência direta de uma lavoura canavieira ou de café, mas um local que congregava mercadorias que vinham de várias partes do mundo através das embarcações que atracavam no porto. Um espaço com vocação comercial e atrelado a idas e vindas de suprimentos e produtos, que interligavam o litoral e o sertão da Capitania de Pernambuco. Tais fatores tornam o contexto do Recife singular perante os demais, o que pode fornecer outros padrões de compadrio.

Para favorecer nossa compreensão, elaboramos o Quadro I, que engloba os casos de batismos com cativos, sejam adultos ou crianças, que estiveram no espaço da Igreja Matriz da localidade. Sua divisão leva em consideração a relação entre nação para os africanos, crioulos e índios, e de cor para os demais. Sendo analisadas de forma separada, visamos a um melhor entendimento dos dados e das características singulares de cada grupo.

Quadro I:
Condição jurídica dos padrinhos e madrinhas de escravos x cor/nação dos batizados entre 1790-1800

Já sabemos que a importância de possuir padrinhos para a sociedade colonial era algo que, no campo religioso, viria a suprir uma ausência repentina dos efetivos pais, além de inserir o afilhado no mundo cristão. Para os cativos, adultos ou crianças, também proporcionava inserção numa comunidade, tanto para os pais quanto para os afilhados. No caso dos africanos recém-chegados a uma localidade que era parcialmente ou completamente desconhecida, ter um padrinho podia representar uma questão não só de adaptação como de sobrevivência, pois precisavam se inserir de alguma forma. Como lembra Soares, “os padrinhos, ao mesmo tempo que serviam para a ‘integração’ daquele africano na nova ordem escravista, também podiam proporcionar alguma proteção ou interlocução” (SOARES, 2010SOARES, Calos Eugenio Líbano. “Instruídos na fé, batizados de pé”: batismo de africanos na sé da Bahia na 1ª metade do século XVIII, 1734-1742. In: Afro-Ásia, n. 39, 2010., p. 81). Com isso, sua escolha era algo importante para todos, especialmente a gente de cor. Os pais que escolhiam os padrinhos de seus filhos crioulos, cabras, pardos, pretos ou negros talvez estivessem fazendo uma escolha baseada em critérios como o acesso ao universo da condição dos livres, ou ainda relações de amizade que não emergem na documentação, ficando restritas às entrelinhas do documento. Assim, vejamos o que Recife tem para mostrar.

Transladado para Pernambuco desde meados do século XVI, o africano esteve entre os principais componentes da paisagem urbana das ruas do Recife setecentista, vindo através dos portos de embarque na Costa da Mina ou em Angola.6 6 Os números indicam uma maior presença de africanos classificados como Angola nos registros de batismo, sendo diminuto o número de Minas. Essa mudança pode ter relação com algo maior que ocorreu durante o século XVIII, quando existe uma mudança no comércio escravo em direção a alguns portos no Brasil. No caso de Pernambuco, existe um afluxo de mercado direcionado para o porto de Luanda, em Angola, afastando o tráfico a partir da Costa da Mina. A mudança de mercado pode ter sido favorecida devido à Coroa portuguesa ter encampado uma “propaganda” que favorecia o comércio por Angola, sob o domínio dos comerciantes portugueses. Conforme era propagado, os escravos vindos de Angola seriam mais fáceis de ser controlados, enquanto os da Costa da Mina eram qualificados como rebeldes (OLIVEIRA, 1997, p. 46). Ainda sobre os escravos trazidos da Costa da Mina, os homens são descritos como “homens de compleição atlética, pelo que no Brasil são estimados como servos, ao passo que se tornaram temidos pela natural altivez, próprias de homens nascidos para liberdade”; talvez decorresse daí a rebeldia destes africanos que nasceram para a “liberdade” (QUIRINO, 1988, p. 31). Não por acaso, os registros de batismo trazem um pouco de suas histórias, que podemos reconstruir, apesar das lacunas, porém ricas em possibilidades sobre as escolhas feitas por esses homens e essas mulheres no passado colonial. O Quadro II é uma derivação do anteriormente apresentado, e foca somente na origem africana e na relação com a condição dos padrinhos e madrinhas.

Quadro II:
Condição jurídica dos padrinhos e madrinhas de escravos africanos adultos (1790-1800)

Um dos principais círculos que os africanos buscaram e/ou em que foram inseridos é o do próprio mundo da escravidão em Santo Antônio do Recife. Observando a condição jurídica dos padrinhos desses recém-chegados, vemos que foi composta por padrinhos cativos com 28,2%, seguidos pelos forros, 19,4%, ficando em último lugar os laços com o mundo dos livres, com 9,6%. No caso das madrinhas, vemos que não existiam mulheres livres; e, apesar da ausência representativa, algo que apontou 50,8%, existiram outras que, sendo cativas 17,7% e forras 16,2%, aceitaram batizar africanos. Podemos considerar algumas hipóteses sobre tais números. Primeiramente que esses laços de compadrio com outros cativos e forros garantiam maior inserção para os africanos, já que precisavam aprender a língua, as regras da sociedade e do cativeiro de que passavam a fazer parte, e - acima de tudo - precisavam conquistar proteção e espaço, criando laços horizontais, que poderiam ser transformados com o tempo em laços mais sólidos de amizade, fraternidade e afeto entre os seus.

Tal conquista de laços poderia começar já no espaço da igreja, quando o senhor estava acompanhado de outros escravos de sua propriedade. Foi o caso do Mestre de Campos José Nogueira, morador da freguesia do Santíssimo Sacramento (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 10), que adquiriu uma nova “peça” e batizou-a de Antônio, um homem que embarcou no porto de Angola, e que em março de 1790 foi batizado juntamente com outros cativos, recebendo o nome de um santo católico. Seu padrinho o iria acompanhar por algum tempo, pois Manuel era o escravo que estava com o Mestre de Campos. Uma madrinha também não foi esquecida: Mariana dos Santos, mulher que conhecia de perto o cativeiro e, no entanto, tinha conquistado sua alforria.

No mesmo ano, em novembro, outro batismo realizado no Santíssimo chama atenção pelas possibilidades que emergem a partir de sua análise. Estamos falando do batizado de Antonia, filha de Thereza, ambas escravas de um certo Manoel José (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 96). Nada mais corriqueiro do que um senhor levar seu escravo para o batismo, seguindo o que ordenavam as leis civis e eclesiásticas. Contudo, foi registrado pelo padre Feliciano José Dornellas que Antonia era “do gentio de Angola”, filha de Thereza também “do dito gentio”, o que liga mãe e filha diretamente com a África. Neste caso, singular dentro dos batismos, existem duas vertentes. A primeira delas é a de que Thereza e Antonia foram embarcadas juntas, talvez até com outros membros da mesma família, que foram separados no momento das trocas entre os negreiros e os intermediários nos portos por onde a embarcação em que estavam atracou. Outra chance que podemos enveredar é a de que Thereza foi capturada e transportada gestante, parindo durante a travessia ou já desembarcada no Recife. Como não existe indicação de idade para Antonia, nem a classificação “adulta”, comum nos registros de africanos, é mais provável que fosse uma criança que conseguiu ficar unida e sobreviveu ao lado da mãe desde a captura até o desembarque na América. Os padrinhos ficam em segundo plano diante da singularidade do batismo, mas não deixam de ser importantes para entendermos a inserção que esta mãe e sua filha angariavam com os “santos óleos”, pois Leandro e Maria não tiveram sua origem indicada, somente sua condição jurídica, e eram escravos que compunham o cenário local.

O que existe em comum entre Antônio e Antonia, além do fato de serem escravos do gentio de Angola? Estes cativos conseguiram angariar, através de seus batismos, uma inclusão, mesmo sendo “boçais”: a da escravidão no Recife colonial. Antônio foi mais longe, por ter incorporado ao seu ciclo dois mundos: o do escravo, em que teria a companhia do padrinho Manuel no cotidiano do cativeiro, e o dos forros, já que Maria, sua madrinha, tinha conquistado uma condição ambicionada por muitos, e que poucos no período abordado conseguiram alcançar, principalmente no caso de africanos.7 7 No estudo das alforrias, ao menos no momento do batismo não existem africanos alforriados. Para este grupo, essa era uma conquista que ocorria ao longo da vida, como pode ser visto na obra Liberdade (CARVALHO, 2001). Esses escravos estavam garantindo sua inclusão e a proteção nas intempéries do cativeiro, talvez não suficiente, porém necessária para o novo dia a dia que os aguardava.

Outro grupo que também foi bastante representativo entre os padrinhos que batizavam os africanos são os forros, que vivendo fora do cativeiro não deixaram o mundo de que fizeram parte. Pelo contrário, regressavam, com uma condição diferente: agora eram como um segundo pai ou mãe para estes “novos filhos” que conquistavam. Os forros não foram uma exceção nos batismos pesquisados. Estiveram presentes e demarcavam o seu espaço numa via que, acreditamos, funcionava para ambos os envolvidos. Se, de um lado, o alforriado conquistava prestígio pelo fato de apadrinhar, para o cativo estava criado um laço que poderia facilitar o seu trânsito entre os dois mundos. Mesmo que de maneira simbólica, o padrinho forro trazia, para o contexto da escravidão em que o africano estava sendo inserido, um exemplo do que poderia ser conquistado ao longo do tempo. Contudo, não é possível averiguar se de fato esta situação ocorria, devido à ausência de registros que indiquem tais dados em que pudéssemos chegar aos índices de que africanos com padrinhos forros conquistaram alforria posteriormente. Só um cruzamento com documentos cartoriais e cartas de alforrias nos forneceria essas informações.

Porém, enquanto não são encontradas tais fontes, se é que existem para o Pernambuco colonial, fiquemos com os casos em que outros forros aparecem como padrinhos de africanos. Nos casos que vamos vislumbrar, temos mulheres denominadas como do gentio de Angola que, em meados de 1791, são batizadas. A primeira delas é Roza, que teve como padrinhos Floriano, um escravo sem indicação de cor ou proprietário, e Aguida, mulher forra. Já Ritta, que recebeu os “santos óleos” no mesmo dia de Roza, teve seus padrinhos, Domingos Rodrigues e Quiteria, registrados do mesmo modo, só que a condição dos dois era diferente: no seu caso, a alforria tinha sido conquistada por Domingos, enquanto sua madrinha, diferente de Aguida, continuava cativa (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 166).

Uma semana após os batismos de Ritta e Roza, “aos dezoito de junho de mil setecentos e noventa e hum”, foi a vez de Joanna, também designada por Angola ao ser batizada. No seu caso, vemos que os padrinhos são de mundos bem diferentes: enquanto sua madrinha, Leandra de Souza, moradora da freguesia de Santo Antônio do Recife, tinha uma história de vida marcada pelo cativeiro anterior, talvez uma descendente direta dos vários africanos que habitavam a localidade, já que era crioula forra, o padrinho de Joanna foi Jozé Maria Braine, um branco solteiro que descendia de uma família conhecida na região, os Braine - origens bem distintas, mas que estiveram unidas em certo momento para apadrinhar e legitimar o sacramento recebido por “Joanna adulta do gentio de Angola” (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 170).

Ritta, Roza, Joanna, Antônio e Antonia, alguns entre tantos outros vindos da África para Pernambuco, são frutos do comércio de escravos entre as duas margens do Atlântico. Pessoas que, através do batismo e de padrinhos, foram inseridas em uma sociedade constituída por outra lógica que não a de sua origem, representando este ato um primeiro passo para o aprendizado de como sobreviver e ser aceito neste novo mundo. Suas vivências, no cotidiano que se descortinava, fizeram surgir novos significados para o que já conheciam; e, acima de tudo, tiveram de enfrentar as dinâmicas do trabalho escravo até que viessem, quem sabe, a conquistar uma nova condição: a de alforriados.

Os padrinhos livres, que representam o menor quantitativo na análise para africanos, poderiam trazer a estes alguma segurança; porém, acreditamos que esta seja muito tênue, já que não necessariamente este padrinho ou madrinha livre estaria presente ou próximo ao seu afilhado, salvo algumas situações em que eram os próprios donos ou membros da família do senhor que apadrinhavam, o que garantia alguma presença mais efetiva, mas nem sempre certa, na vida do africano. Já que numa sociedade católica a cultura de proteção aos simples, noção de caridade e de obras que facilitassem a salvação da alma de quem as realizasse, era um incentivo para livres e brancos e com algumas posses, apadrinhar e dar apoio econômico a cativos do próprio plantel ou de parentes não era algo difícil de acontecer. O caso de Francisco pode seguir, entre os demais africanos batizados, a reflexão acima, pois seu padrinho é um homem branco solteiro.

O escravo Francisco era do gentio da Costa (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 36), muito provavelmente Costa da Mina, um dos locais em que ainda existia um comércio de escravos com a Capitania de Pernambuco, e foi batizado em maio de 1790. O fato de ter um padrinho não somente livre, como também branco, pode não ter sido ao acaso em sua trajetória no Recife de outrora; afinal, o seu dono, Francisco dos Remédios, era um homem que tinha laços com moradores do Engenho Catende. Talvez proceda daí o fato de Jozé Roriz ter aceitado batizar o escravo Francisco, para agradar ou demonstrar reconhecimento para com o Francisco senhor, e por toda a importância social que possivelmente possuísse na freguesia em que eram moradores, além do que já foi apontado acima.

Outro cativo, batizado em 7 de setembro do mesmo ano, teve como padrinho alguém que possuía uma condição social diferenciada, um clérigo (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 76). O padrinho de Dionízio foi o “reverendo Doutor Jozé Pereira Lobato”, que trazia para a nova vida do escravo vindo do gentio da Costa ao menos um laço com um homem cristão. Porém, observando mais de perto, assim como no caso de Francisco é possível entendermos o motivo da presença do reverendo Lobato. O cativo da “Costa” era propriedade de outro religioso, o “reverendo padre Fabricio Monteiro”. Assim, nada mais cômodo ou companheiro do que apadrinhar o escravo de um “padre amigo”, além, é claro, das questões em torno da contabilidade de sua alma.

Os casos de Francisco e Dionízio assemelham-se, somados ao fato de virem da “Costa”, quando estabelecemos uma relação entre os seus proprietários e a condição jurídica dos padrinhos e encontramos que a associação do mundo dos livres para com os africanos não era algo ao acaso. Nesses casos, acreditamos que a escolha dependia do status e/ou lugar social ocupado por seu dono, o que seria mais atrativo para um padrinho livre, fortalecendo seus laços horizontais, neste caso com outros homens que pertenciam ao grupo de proprietários de escravos e com uma situação diferenciada dos demais, seja ela financeira ou social.

Mais uma possibilidade que emerge para justificar o número reduzido de homens e a não existência de mulheres livres batizando os escravos africanos talvez seja em decorrência da questão apresentada por Mariza Soares sobre o gentilismo (SOARES, 2011SOARES, Mariza de Carvalho. A conversão dos escravos africanos e a questão do gentilismo nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. In: FEITLER, Bruno; SOUZA, Evergton Sales (orgs.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011.). O fato de serem os frutos de uma terra, em que o estado natural era voltado para atos e crenças gentílicas, pode ter afastado os padrinhos e madrinhas livres destes africanos, mesmo não sendo mais boçais e tendo recebido corretamente a doutrina pelos seus senhores. Algo que não é possível mensurar, pois as especificidades que envolvem tal relação não estão presentes nas fontes consultadas; porém, não deixa de ser revelador que essa associação fosse possível, pois quanto mais próximo da África se considerava a influência de heranças africanas todas depreciativas, o que no caso da gente com condição de livre e forra era mais “correto” evitar.

Não podemos esquecer que, até o momento do batismo na Igreja, o africano já tinha passado por um processo de aprendizado, como mostram as regras. Os senhores e os párocos deveriam ensinar a doutrina. Assim, neste tempo, desde a compra e o recebimento simbólico do chapéu de palha, como afirma Tollenare (1956TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais. Recife: CEPE, 1956., p. 143), o cativo africano já tinha algum aprendizado, o que pode ter-lhe facultado, dentro dos limites existentes, possibilidades de direcionamento na escolha de seus padrinhos - mas tal assertiva é só uma possibilidade, e não algo comprovado de fato.

Ao longo da década de 1790, é possível observar a ocorrência de batismos coletivos em que todos os batizandos são africanos adultos.8 8 Os registros não trazem indicação da idade dos batizandos. Somente no ano de 1800, alguns africanos têm uma possível idade indicada, sempre com a expressão “parece”. A faixa etária varia dos 12 aos 20 anos. Além destes, só o caso citado de Thereza e Antonia, que aparenta ser uma criança, mas não tem idade registrada. Nos meses iniciais de funcionamento da Matriz, encontramos a primeira ocorrência, que vai se repetir ao longo dos anos, ao menos duas vezes no ano, em grupos formados por algumas dezenas, ou menores, com até três africanos. Katia Matoso afirma que “[...] para os africanos adultos batizados em série, o padrinho é um desconhecido, imposto como o próprio batismo” (MATTOSO, 2003MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003., p. 132), algo que diverge do que foi encontrado por Soares na Sé da Bahia.9 9 O autor identificou que a maioria dos africanos batizados tinha padrinhos africanos classificados como jejes, o que indica que os jejes dominavam os mecanismos de proteção da comunidade escrava (SOARES, 2010, p. 95). A partir da sua afirmação, principalmente do trecho em que fala de batismos em série, é possível pensar que tais batismos ocorriam num momento de chegada dos africanos após sua quarentena, e que esses homens e essas mulheres estariam no espaço sagrado para, depois do batismo, serem direcionados às terras em que iriam ter sua força de trabalho explorada. Contudo, quando analisamos mais de perto as ocorrências, vamos encontrar detalhes diferentes que fornecem outras indicações para a realização de batismos coletivos de africanos em alguns períodos do ano.

Em 3 de abril, no ano de 1790, um total de doze cativos africanos foram batizados na Matriz de Santo Antônio do Recife, inaugurando o que chamamos de batismo coletivo. O grupo era dividido em quatro mulheres e oito homens, tendo indicadas suas origens como Angola e Costa, sendo oito da primeira e quatro da segunda localidade.10 10 Lovejoy lembra que, nas últimas décadas do século XVIII, a região da África centro-ocidental, da qual fazia parte Angola, era a maior exportadora de africanos, contribuindo, neste período, com mais de um terço na quantidade de homens escravizados e transladados pelo comércio atlântico (LOVEJOY, 2002, p. 98). Todos eles foram batizados pelo reverendo José Gonçalves da Trindade, em um dia que não deixaria de ser rememorado, pois era o Sábado de Aleluia, entre os feriados religiosos da Sexta-Feira Santa e o domingo de Páscoa. Infelizmente, a maioria dos dados foi corroída pelo tempo, só nos restando alguns detalhes expressos na borda do documento, o que impossibilita uma análise mais profunda.

No mês de maio do mesmo ano, ocorre outro batismo coletivo. São batizados novamente doze africanos, sendo nove mulheres e três homens, como os do mês de abril indicados como Angola, num total de sete, e cinco como Costa. Nesses registros, é possível observarmos o local de moradia dos cativos e seus senhores, além dos nomes cristãos dos escravos. Esses nomes indicam uma evocação a santos católicos e personagens da cristandade, como Maria e José, sendo Maria o nome empregado mais vezes, seguidos por referências a São Francisco e Santo Antônio. Neste grupo, somente um batismo tem a presença de um homem branco. Todos os demais têm como padrinhos homens e mulheres cativos e forros, um indício de que poderiam existir laços horizontais e, quem sabe, uma possível escolha - o que vai de encontro ao que afirma Mattoso (2003MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003., p.132), de que o padrinho também era imposto.

Dentro do calendário cristão, o sábado em que ocorreu essa celebração conjunta é de grande importância, pois representa a véspera do dia de Pentecostes, que ocorre cinquenta dias depois do domingo de Páscoa. Assim, o sábado 22 de maio de 1790 seria mais um período de devoção cristã, marcado pela observância e vigilância das práticas católicas no seio da comunidade. Neste caso, a freguesia estava demonstrando sua fé e devoção, fazendo jejuns e estando presente na vigília de Pentecostes, uma data comemorativa móvel em que existia a obrigação de jejuar pela descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007., p. 160).

Em 1791, no mesmo Sábado de Aleluia, ocorre um novo batismo coletivo de africanos, desta vez em maior número, num total de vinte e dois batismos, com oito homens e quatorze mulheres. Como os cativos do ano anterior, todos são Angolas ou Costa, oito no primeiro caso e quatorze no segundo. Os nomes para os homens estão divididos entre Francisco, Joaquim, José e Manuel, nomes católicos e bíblicos. Para as mulheres, temos uma maior variedade, até por seu número ser superior ao dos homens, com nomes de Francisca e Rosa ocorrendo mais vezes, seguidos de Leonor, Vitoriana e outros. Cinquenta dias depois, ocorre um novo batismo coletivo, no dia 11 de junho, com outros doze africanos, quantidade que parece ter sido a média de batismos para essas datas importantes em que os vinte e dois ocorridos em abril tenham sido uma exceção. Tais batismos possuem informações sobre os donos e padrinhos, que serão analisadas em outros momentos. Por ora, se fizermos uma associação com o que pregavam as Constituições Primeiras e as Ordenações do Reino, vemos que existia uma coerência entre o discurso e as práticas cotidianas; afinal, todos os cativos mencionados e seus respectivos donos eram moradores da freguesia de Santo Antônio do Recife. Os senhores realizaram o ensinamento da doutrina para com seus cativos; e o pároco, após fazer as perguntas, concedeu para esses novos moradores a graça de ser filho adotivo de Deus.

Uma observação importante é que todos esses africanos foram batizados numa data que marca a cristandade, talvez como uma maneira encontrada pelos párocos, em Santo Antônio, de tornar público o ato numa data festiva em que os cristãos estariam mais voltados para as virtudes da fé, guardando o jejum recomendado e realizando os atos concernentes ao período. Dessa forma, além do papel doutrinador, o batismo receberia em sua realização para com os africanos um papel simbólico, que serviria para educar e demonstrar o poder da fé para toda a sociedade, e os senhores estariam salvando almas e garantindo o exercício público da demonstração de sua fé e de seus escravos.

Após entendermos algumas especificidades do batismo de africanos e os cuidados que as leis tinham para com essa gente vinda de África, vejamos os demais casos, agora a partir da cor e não da origem dentro do cativeiro. Primeiro, vamos observar os homens e as mulheres inclusos dentro do termo cabra, seguidos por crioulos e pardos, e findamos com pretos, negros e índios para chegarmos a uma configuração do papel do batismo e, consequentemente, do apadrinhamento no universo da escravidão.

Para a historiografia, a classificação cabra ainda é algo que não foi definido para todas as localidades.11 11 Para um maior conhecimento, consultar o texto de Márcia Amantino, que trata do termo “cabra” (AMANTINO, 2016, pp. 83-98). Sua origem mestiça é um fato aceito; porém, a partir de qual momento começa a surgir é algo que ainda precisa ser desvendado. Ao analisar sua existência a partir dos padrinhos em Recife, estamos contribuindo para que, ao menos localmente, existam algumas respostas para o homem e a mulher cabra. O que sabemos, na observação da escravidão em Santo Antônio, é que existiam cabras cativos circulando no cotidiano da freguesia, servindo aos seus senhores, construindo e mantendo laços sociais dentro e fora do grupo de escravos.

Alguns desses homens e dessas mulheres deixaram seus rastros nos batismos da Matriz do Santíssimo, o que nos permite conhecer traços de suas histórias. No caso dos escravos, encontramos os padrinhos inseridos nas mesmas condições dos apadrinhamentos de africanos; contudo, os cabras apresentam algumas especificidades e similitudes, como veremos a seguir (Quadro III).

Quadro III:
Condição jurídica dos padrinhos e madrinhas de escravos cabras (1790-1800)

Entre as semelhanças, existe a presença de madrinhas e padrinhos cativos representando, juntos, mais de 20%, como é o caso de Ignácio de Mello e Maria, que são padrinhos de Lourenço em março de 1790 (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 6). O afilhado era uma criança cabra, filho natural de uma mãe africana, do gentio de Angola escrava; e, por ter nascido de um ventre cativo, Lourenço herdou de sua mãe a condição da escravidão e passou a ser propriedade de Jozé Francisco Peixe. Ainda no mesmo ano, foi a vez de Domingas, “cabra nascida nesta freguesia a vinte e três de maio”, filha de “Felicia do gentio de Angola escrava de Manoel de Barros Ferreira”, sendo batizada com alguns dias de vida, em doze de junho; teve como padrinhos “Miguel e Maria escravos” (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 40). Domingas e Lourenço são frutos de algum encontro fortuito ou de uma relação que não era bem-vista aos olhos da sociedade; pois, ao serem batizados somente com o nome da mãe, fica marcado o nascimento de um fruto ilegítimo, como eram classificados os batismos de filhos sem indicação paterna, como cabras filhos de mães africanas. Seguindo os indícios apresentados no capítulo anterior, Domingas e Lourenço tiveram pais pardos.

Como já nasceram no seio da escravidão, ao terem seus padrinhos também cativos, esses cabras e muitos outros com a mesma classificação, caso conseguissem sobreviver aos primeiros anos de vida, estariam inseridos nas redes horizontais formadas a partir de uma condição em comum, a de escravo. Nem Ignácio, Miguel e ambas as Marias eram escravos do mesmo proprietário, o que coloca os seus afilhados numa rede que extrapolava o cativeiro de seus senhores, insere-os na comunidade escrava de Recife e mostra que existia alguma autonomia dentro do sistema, pois os padrinhos, ao não terem seus donos referidos, indicam que são conhecidos e que gozam de “fios de liberdade”, por não serem impedidos de apadrinhar sem autorização de seus senhores.

O batismo de Antônio, em junho de 1792 (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 275), caracteriza a existência da família no espaço das relações de compadrio. Aos três dias do referido mês, “Gertrudes do gentio da Costa” esteve na Matriz do Santíssimo com o seu senhor, Jozé Ferreira dos Santos, para batizar o seu filho. Estavam acompanhados dos padrinhos, “Vicente Martins e sua irmã Rita Ferreira dos Santos”, os irmãos eram “pardos forros” e viviam em locais diferentes. Enquanto ela era moradora em Santo Antônio, o irmão tinha como moradia a freguesia de São Frei Pedro Gonsalves, espaço vizinho que abrigava o porto e as principais trocas comerciais da região. Essa diferença de moradia pode significar que os irmãos tinham um estado civil diferente, vivendo a experiência de formar uma nova família. Além disso, entre as possibilidades que emergem, talvez estejamos diante de um caso em que os padrinhos são ex-escravos do senhor de Antônio, ou ainda que Jozé, Vicente e Rita são parte de uma família que mudou sua condição: saiu de um cativeiro e passou a ser dona de escravos. Em outras palavras, ascenderam socialmente e juridicamente na sociedade colonial: no passado, foram cativos, e depois, no final do Setecentos, passaram a ser senhores.

Oscilando entre os mundos da escravidão e da liberdade, que conviviam no cenário colonial, encontramos em 1791 o caso de Joaquim, “cabra nascido nesta freguesia aos vinte e nove de setembro do dito ano, filho de Luzia do gentio de Angola”. Ambos, mãe e filho, eram escravos de Manoel Nunes da Fonseca, que, como os demais proprietários, teve seu nome inscrito no documento, demarcando o seu bem. Os padrinhos ligam Joaquim a um mundo que talvez não conseguisse conquistar, como sua madrinha Quitéria de Barros “do gentio da Costa”, que era forra e mais distante da condição jurídica de seu padrinho, Luiz João, um homem branco casado (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 208).

Em junho de 1792, foi a vez de “Luiz cabra”, que não traz indicação do dia de seu nascimento, sendo somente marcado pela presença da mãe “Ignácia crioula escrava de Serafim Jozé de Assumpção”. O que se segue na vida de Luiz é que o “mesmo senhor”, juntamente com “Francisca de tal, parda forra”, são os seus padrinhos. Com isso, o Luiz cabra tinha uma possibilidade de vida próxima ao seu padrinho, que era ao mesmo tempo seu senhor. Por outro lado, sua madrinha apresentava a condição de forra, algo que com o passar dos anos e uma benesse de Serafim poderia ser alcançado por seu afilhado cabra (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 274).

Enquanto o número de padrinhos livres para os africanos representa o menor quantitativo, para os cabras verificamos uma inversão. Entre os apadrinhamentos de cabras, os homens livres representam sozinhos 24,5% dos casos, ficando em primeiro lugar, algo que não ocorre com os africanos. Tal apadrinhamento fornece para estes afilhados um estatuto diferenciado, se comparado aos batismos de africanos.

Os registros que emergem com relação a esses agentes sociais livres mostram que não era preciso demarcar uma situação pública e notória para a sociedade da época, não existindo a indicação de “livres” após o nome ou informações de moradia dos padrinhos. Como no exemplo de “Lino da Costa e sua mulher Anna Maria de São José” (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 225), um casal de pardos que morava na freguesia e batizou a filha de “Romana crioula”, chamada de Ursula cabra, com quinze dias de nascida; a criança foi levada por sua proprietária Dona Roza Maria e sua mãe para receber os “santos óleos” em 26 de dezembro de 1791. No registro de Paulina, outra criança escrava classificada como cabra e filha de “Anna do gentio de Angola”, também existe um casal como seus padrinhos, porém de estados civis diferentes (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 172). Enquanto “João Baptista Pereira Lobato branco solteiro” era colocado como padrinho, sua madrinha foi “Antonia Baptista branca casada”, que não compareceu à igreja, mas enviou um procurador, chamado de “Jozé da Costa” branco, como a mulher que representava. Com padrinhos livres e brancos, Paulina foi uma criança que estava cercada por pessoas com um estatuto jurídico diferente do seu, possuíam outra cor de pele; e o fato de sua madrinha Antonia enviar um representante caracteriza, a nosso ver, que houve uma importância dada pela madrinha ao batismo da afilhada, mesmo que fosse caridade.

Como observamos até o momento, os africanos e os cabras possuíam, mesmo dentro de uma condição cativa, diferenças tênues que emergem pelos seus padrinhos. Enquanto os primeiros são inseridos num ciclo de laços horizontais dentro da escravidão, com outros homens e outras mulheres também cativos como padrinhos, os cabras, que já eram nascidos na região e com pais que tinham algum conhecimento e inserção social, por menor que fosse, buscaram trazer para sua prole laços que extrapolassem a vivência do cativeiro, com padrinhos forros e livres em maior quantidade. Talvez fosse uma tentativa para garantir, com tais mecanismos, aparentemente maiores e melhores possibilidades de vida e , porque não dizer, de alforria para os seus rebentos.

Depois de observarmos um pouco as relações existentes entre os padrinhos e os afilhados africanos e cabras, precisamos analisar o segmento social mais representado entre os escravos e também na sociedade do Recife setecentista. Falaremos, a partir de agora, das dinâmicas que emergem dos batismos de crioulos e pardos cativos, que foram levados ao espaço sagrado para receber as bênçãos da Igreja Católica, para que possamos compilar os registros desses homens e dessas mulheres, em sua maioria crianças com alguns meses de nascimento (Quadro IV).

Quadro IV:
Condição jurídica de padrinhos e madrinhas de escravos pardos e crioulos (1790-1800).

Ao representar a maioria dos escravos de cor batizados em Santo Antônio do Recife, os crioulos e os pardos agregam aspectos importantes de uma camada que estava inserida nos diversos espaços sociais e mais próxima da alforria. Se pensarmos nos números no primeiro momento, a ausência de informações sobre a condição desses padrinhos representa para os crioulos 45% do total de batismos - um valor alto, que pode encontrar justificativa na escolha por homens que tivessem uma fama pública e notória, com inserção e reconhecimento, na freguesia, de sua condição de livres. No caso dos pardos, a porcentagem é de 51%, um resultado mais elevado, porém próximo ao dos crioulos, sobre o qual podemos concluir que as diferenças entre esses apadrinhamentos são tênues, e só emergem a partir de análises de casos. Nesse contexto, elencamos exemplos em que surgem padrinhos dentro das porcentagens encontradas.

Começamos com a história de Maria, uma criança parda, que nos serve como primeiro passo para descortinarmos quem eram os padrinhos livres - que consideramos livres, mas que não tiveram tal condição informada (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 4). O batismo de Maria ocorreu nos primeiros meses de funcionamento da Matriz do Santíssimo, ao 14 de março de 1791, e recebeu o sacramento pelas mãos do padre José Eloi da Silva, que esteve à frente da igreja nos anos iniciais. A sua mãe era “Andreza crioula”, e tinha dado à luz menos de vinte dias do batismo, em 24 de fevereiro. Nascendo saudável e resistindo aos primeiros dias de vida, Maria foi levada para o batismo por sua mãe e seu senhor, Marcelino Antônio Alvares. Seu padrinho era morador da freguesia e conhecido na localidade, por ser o padre Jozé Felippe da Fonseca. Era um homem que tinha a sua condição de livre assegurada por sua pertença ao mundo clerical, um status notório, que não precisou ser grafado no registro. Assim, o padrinho de Maria é um dos casos de apadrinhamentos em que a condição não foi informada, fazendo parte dos mais de 40% de homens que apadrinhavam.

Outra Maria, crioula filha de “Josefa do gentio de Angola”, também foi batizada no primeiro ano de funcionamento da igreja (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 57). Neste caso, ressaltamos a importância da função exercida por seu dono, o “tenente-coronel Manuel Caetano de Almeida”, cargo que foi um dos mais presentes nos registros de escravos, ora como proprietário, ora como padrinho. O tenente Manuel residia na localidade e era um homem casado, fato que pode ter contribuído para que o padrinho de Maria fosse “Francisco das Chagas branco solteiro”, que também era morador da freguesia, e por ser “branco” não precisou de indicação no documento, pois já possuía a cor que o associava com a liberdade desde o nascimento. Francisco é um dos poucos livres que são padrinhos. Seu grupo era afastado do apadrinhamento com crioulos, representando pouco mais de 12% dos casos. O mesmo não ocorre para os pardos, como veremos a seguir.

Já Matheus Paulo e Luzia Maria, um casal de pardos moradores da freguesia, respectivamente padrinho e madrinha de Antônio, pardo nascido em maio de 1792, exemplifica, mais uma vez, a existência de um reconhecimento (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 273). Matheus e sua mulher tomaram a função de padrinhos do filho de Maria do gentio de Angola - uma cativa que tinha como seu senhor Antônio Lopes - em junho, poucos dias após o nascimento da criança, que recebeu o mesmo nome de seu dono. Assim, o padrinho senhor e o seu escravo tinham o mesmo nome, talvez herdado para demarcar a propriedade dentro da condição cativa, que foi herança materna. Os padrinhos, apesar de pardos, tinham conseguido afastar alguns dos símbolos de uma ancestralidade africana, já que não eram referidos por forros, o que teoricamente significa que pertenciam a uma geração em que um cativeiro pregresso não era mais lembrado ou que tinha sido silenciado, não somente no registro, mas também na memória da localidade. Estava esse casal inserido no mundo dos livres, mas sem deixar de construir laços de compadrio com o universo cativo. Talvez tenham sido escolhidos pelas possibilidades de sobrevivência fora do cativeiro que trariam para o pardo Antônio; afinal, eram elos entre dois mundos, pardos como o afilhado, quem sabe representavam simbolicamente uma fresta que poderia ser alcançada no futuro.

O crioulo Luiz apresenta um caso em que ambos os padrinhos são cativos e constroem laços verticais com Luiz e sua mãe (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 188). Apesar de escravos de donos diferentes, construíram uma relação de compadrio que transcendia e enlaçava os cativeiros dos quais faziam parte. Maria do gentio de Angola e seu filho eram escravos de Maria Ferreira, uma mulher casada. Já Luiz, o padrinho, também de Angola, e a madrinha Anna crioula, apesar de escravos, não tinham os nomes de seus donos grafados; mas, por serem moradores da freguesia, o pároco e os demais tinham as informações de que precisavam e sabiam quem eram os proprietários desses padrinhos. Observando o registro, vemos que o fato de residirem numa mesma localidade pode ter levado à formação do parentesco espiritual. E este talvez ainda transcenda o cotidiano do Recife e aponte para ligações com as origens africanas das quais comungavam a mãe Maria e o padrinho Luiz - e talvez, não por acaso, tenha em seu afilhado o mesmo nome que o seu.

Em agosto de 1791, a “preta Thereza do gentio de Angola” compareceu à Matriz de Santo Antônio para batizar seu filho Antônio com quatorze dias de nascido, período que extrapolava o limite de dois e oito dias dados pela legislação eclesiástica, o que era bastante comum como já apresentamos anteriormente (Livro de Batismo 1: 1790-1792, p. 189). Talvez a dona de Thereza, a senhora Anna Maria, possa ter pagado alguma multa ou ter sido chamada a atenção pela demora em batizar o seu escravo. Porém, o detalhe deste batismo fica por conta dos padrinhos, que tinham condições e origens bem distintas. O padrinho era um homem branco e solteiro chamado Domingos da Silva, livre como característica inerente de sua tez. A sua madrinha era “Rita preta forra”, sem que nada mais tenha sido indicado junto ao seu nome, como o fato de ser solteira, pois, sendo casada, deveria ter tal indicação no registro. Com isso, Antônio estava sendo inserido num universo de liberdades - uma que foi conquistada pela sua madrinha, e a outra que era exercida com plenos direitos pelo homem branco que o tomou como afilhado.

A gente de cor que aparece em menor quantidade entre os cativos é composta pelo grupo dos pretos, negros e índio. Este último foi escrito no singular por ser único em nossa amostra; e, mesmo não podendo ser escravizado pelas leis pombalinas, foi levado a cativeiro devido à sua condição, como veremos adiante. Já abordamos, no capítulo anterior, que preto e negro podem representar simplesmente a cor do indivíduo, como também funcionar para designar um escravo, sendo por vezes sinônimos que devem ser analisados a partir do contexto do documento. Nos registros eclesiásticos, existem casos em que é possível identificar uma relação direta com a cor, e em outros com a condição jurídica do batizando.

No Quadro V, são colocados os números referentes à presença desses homens e dessas mulheres escravos que foram marcados por pretos, negros e índio. A presença diminuta deles pode representar a fluidez que existia no cotidiano, percebida através da pena que registrou os nomes e as cores/nação desses indivíduos. Fato interessante é que somente no final da década de 1790 surgem mais batismos com pessoas classificadas como pretos, o que talvez indique uma mudança de nomenclatura ou classificação, pois, enquanto aumentam os pretos, ocorre uma diminuição entre crioulos e africanos. Estariam os crioulos passando a ser registrados como pretos?

Quadro V
Condição jurídica de padrinhos e madrinhas de escravos pretos, negros e índio

Analisando o ano de 1800, vemos que, enquanto são registrados oito crioulos e apenas um africano, o número de pretos salta de três em 1799, para dezesseis no ano seguinte, o que representa o dobro do número de crioulos. Ao observar no quadro o número de padrinhos cativos de gente preta, identificamos que é bastante significativo, representando mais de um terço da amostra. Quando comparamos com os africanos mencionados anteriormente, veremos que ambos possuíam muitos padrinhos com condição semelhante, o que liga diretamente a homens e mulheres demarcados com a cor preta, assim como o grupo de africanos ao universo escravo. Essa semelhança pode significar que existia, no final do século XVIII, um processo de incorporação de significado para o homem preto, passando a ser cada vez mais um termo ligado à escravidão, como mostrou Moraes e Silva (1789SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. [1. ed. em Lisboa, Oficina Simão Tadeu Ferreira, em 1789, 2v.].) quando o descreveu em seu dicionário.

As informações que podem ser extraídas a partir dos poucos casos encontrados indicam que pretos e negros apresentam aspectos semelhantes quando observada a condição jurídica de seus padrinhos. Começa pela ausência, em ambos, de madrinhas livres: todas as que são identificadas estão ligadas ao cativeiro, seja no momento do batismo ou em momento anterior. Mais de um terço delas têm alguma ligação com o cativeiro, algo que também ocorre com os padrinhos, pois mais da metade deles são homens que conheceram a escravidão de perto.

Alguns casos em que são identificadas pessoas como pretas nos servem para mostrar um pouco da associação entre a escravidão e quem era preto. Entre os exemplos, temos os registros de Felippa, Maria, Bonifacio e Bonifacia, todos realizados no mês de maio de 1800 e registrados pelo mesmo vigário (Livro de Batismos 4: 1708-1801, pp. 281-282; 285; 287). Tais registros diziam que:

Aos dez dias do mês de maio de mil oitocentos anos nesta Matriz do Sacramento da Villa do Recife o padre Antônio Gonsalves Leitão de minha licença, batizou, e pos os Santos Oleos a Felippa preta nascida ao primeiro do dito mês, e ano, filha de Benedita do Gentio de Guiné escrava de Manoel Joaquim Pereira Portugal branco, solteiro, morador nesta freguesia. Foi padrinho Bazilio da Costa pardo casado, morador na Boa Vista desta Praça, e para constar mandei fazer este assento que assinei. [grifo nosso].

Ignacio Alvares Montr.o

Vigr.o do S. An.to do Re.c

Aos vinte e dois dias do mês de maio de mil oitocentos anos nesta Matriz do Sacramento da Villa do Recife o padre Manuel Pereira Camello de minha licença, batizou, e pos os Santos Oleos a Maria preta nascida aos doze de abril do dito ano, filha de Maria do gentio de Angola escrava de Antônio Joze de Faria. Foi padrinho Manuel preto escravo de Manuel Antônio, todos moradores nesta freguesia, e para constar mandei fazer este assento, que assinei. [grifo nosso].

Ignacio Alvares Montr.o

Vigr.o do S. An.to do Re.c

Aos vinte e quatro dias do mês de maio de mil oitocentos anos nesta Matriz do Sacramento da Villa do Recife o padre Antônio Gonsalves Leitão de minha licença batizou, e pos os Santos Oleos a Bonifacio nascido aos quatro do dito mês, e ano, filho de Felippa do gentio de Costa escrava de Ana Maria da Costa viúva. Foi padrinho Bonifacio preto, escravo do Convento de São Francisco desta Vila, e para constar mandei fazer este assento que assinei. [grifo nosso].

Ignacio Alvares Montr.o

Vigr.o do S. An.to do Re.c

Aos vinte e cinco dias do mês de maio de mil oitocentos anos nesta Matriz do Sacramento da Villa do Recife o padre Manuel Pereira Camello de minha licença, batizou, e pos os Santos Oleos a Bonifacia preta nascida aos quatorze do dito mês, e ano, filha de Maria do gentio de Angola escrava de Joze Antônio da Silva branco casado; foram padrinhos Matheos escravo, e Florencia Maria forra, todos moradores nesta freguesia, e para constar mandei fazer este assento, que assinei. [grifo nosso].

Ignacio Alvares Montr.o

Vigr.o do S. An.to do Re.c

Nos registros, é possível perceber uma permanência entre a origem dessas crianças. Ao observarmos mais detidamente as mães, identificamos que elas têm como origem localidades como Guiné, Angola e Costa. Vale ressaltar que a mãe de Felippa é a única em nossa amostra que tem a Guiné como o seu gentio. Todas as mães eram escravas na época do nascimento de seus filhos, e ao que tudo indica não eram mulheres casadas, pois em nenhum dos casos existe a indicação paterna. Seus senhores são todos nomeados, ratificando mais uma vez que o registro de batismo também servia para demarcar a propriedade de um cativo. Outro aspecto que merece ser ressaltado é o fato de mulheres africanas terem seus filhos nomeados como pretos, e não como crioulos, como indicam os dicionários. Tal fato pode apontar para nossa assertiva de que a diminuição de crioulos encontradas no ano de 1800 não seja acaso, mas sim reflexo de uma mudança de nomeação para designar os filhos de africanas.

Entre os padrinhos e a única madrinha que existe, é possível observar a presença de outros indivíduos de cor formando laços com as mães africanas e seus filhos pretos. Bazilio, o padrinho de Felippa, era um homem que podia ter melhores condições; pois, além de casado e pertencente ao grupo de pardos, era morador da Boa Vista, parte que se expandia no final do século XVIII e era local de moradia, com menos movimentação de comércio do que Santo Antônio. Já Manuel e Bonifacio eram homens de condição diferente: tiveram marcada sua escravidão nos registros e foram inscritos como pretos, mesma designação de seus afilhados. Bonifacio era um cativo pertencente à Ordem Franciscana, localizada próxima à Igreja de Santo Antônio, o que talvez possa ter lhe permitido ser padrinho, conhecer sua comadre antes mesmo de ter engravidado, ou quem sabe ser o pai da criança que leva o seu nome. Os padrinhos de Bonifacia apresentam as diferenças que são encontradas nos registros de pretos. Quando ocorre a presença de madrinhas, estas são cativas ou forras; esse é o caso de Florencia Maria, que, sendo forra, também possui um sobrenome. Já o padrinho, Matheos, um homem escravo, só tem seu nome inscrito com a condição.

Partindo para os cativos nomeados como negros e índio, menores ocorrências de toda a amostra, veremos os casos de Jeronimo (Livro de Batismos 2: 1792-1795, p. 245), Luiza (Livro de Batismos 4: 1798-1801, p. 57) e da índia Anna (Livro de Batismos 2: 1792-1795, p. 66), que podem servir de exemplos de como os registros eclesiásticos poderiam refletir o cotidiano. Os batismos nos dizem que:

Aos doze de outubro de mil setecentos e noventa e quatro nesta Matriz do Sacramento do Bairro de Santo Antônio batizei e pus os Santos Oleos a Jeronimo negro nascido aos vinte e seis de setembro do dito ano, filho da negra Maria escravos de Maria de Jezus. Foram padrinhos Simão de Araujo Gondim, e Angelica Maria de Jezus ambos solteiros e moradores nesta freguesia, e para constar mandei fazer este assento, e por verdade assinei. [grifo nosso].

Feliciano Joze Dornellas

Vigr.oencomend.o

Aos doze de outubro de mil setecentos e noventa e oito nesta Matriz do Sacramento do Bairro de Santo Antônio de minha licença o reverendo Jozé Ignacio de Azevero batizou e pos os Santos óleos a Luiza negra filha de Roza do gentio de Angola escravas de Francisca Jeronima de Jezus foi padrinho Theodorico crioulo escravo de Simão Pinto morador na freguesia do Recife de que mandei fazer este assento e por verdade assinei. [grifo nosso].

Ignacio Alvares Montr.o

Vigr.o do S. An.to do Re.c

Aos dois de março de mil setecentos e noventa e três nesta Matriz do Sacramento do Bairro de Santo Antônio de minha licença o reverendo Joze Eloi da Silva batizou e pôs os Santos óleos a Anna Índia nascida aos dezesseis de fevereiro do dito ano filha de Pascoal Gonsalvez Índio, e de sua mulher Florencia parda escrava de Rita Maria Joaquina. Foi padrinho Francisco Rodrigues Paiva Junior branco casado e morador nesta freguesia de que mandei fazer este assento e por verdade assinei. [grifo nosso].

Feliciano Joze Dornellas

Vigr.oencomend.o

Em outubro de 1794, surgiu na Matriz a primeira criança batizada como negra. Tal fato foi registrado pelo vigário Feliciano Joze Dornellas. Em toda a amostra, o número de negros é diminuto: são somente dezenove casos, em um universo com mais de mil ocorrências de escravos. O registro de Jeronimo apresenta não somente sua nomeação como negro, como também a de sua mãe, chamada Maria negra, fato que pode ter sido o motivo de Feliciano ter colocado o pequeno Jeronimo como negro, numa associação direta à sua mãe e ao cativeiro, já que ambos eram escravos de Maria de Jezus. Seus padrinhos fazem parte do grupo que não teve sua cor/nação e a condição informadas, somente o estado civil em que se encontravam, ambos solteiros.

Quatro anos após Jeronimo, outra criança foi batizada no mesmo dia em que ele. Foi o caso de Luiza negra, uma menina filha de Maria do gentio de Angola, ambas eram escravas de Francisca de Jezus. Neste registro, emerge outra possibilidade para uma origem negra, que poderia ser o fruto de um ventre africano, termo aplicado, assim como preto, no lugar de crioulo. Se nos lembrarmos de Bluteau,12 12 Bluteau traz as seguintes definições: “Negro: Cor negra, ou tinta negra. É um dos dois extremos das cores, e é oposto ao branco [...] Coisa negra [...] Algo um tanto negro [...] Coisa, ou cor, que tira a negro [...] Negro. Infausto. Desgraciado. Da cor negra, que é a mais escura de todas, tomamos motivo para chamarmos negro toda a coisa que nos enfada, moléstia, e entristece [...] Negro. Homem da terra dos negros, ou filho de pais negros” (BLUTEAU, 1712, pp.702-704). o negro seria um filho de pais negros ou homem da terra dos negros, o que no caso de Luiza adéqua-se perfeitamente, afinal a terra dos negros era a África, local de origem de sua mãe.

Por fim, temos a índia Anna, um registro que traz em sua escrita uma possibilidade singular. Primeiro, seu conteúdo mostra que Anna era filha de pais casados, o índio Pascoal e sua mulher Florencia parda. Porém, estes possuíam condições jurídicas diferentes: ele era livre, e ela escrava de Rita Maria. Pela lógica de que a escravidão é herdada a partir do ventre, Anna seria uma escrava, porém o seu registro não demarca tal condição, dando destaque à sua nação de índia herdada de seu pai. Não sabemos se estamos diante de um registro em que foi considerada a proibição da escravidão indígena, ou se de fato Anna passou a ser propriedade de Rita Maria, como sua mãe. Porém, não podemos deixar de considerar a ausência de uma indicação de alforria, o que libertaria Anna. Como não existe tal indicação, optamos por deixar a pequena índia no universo cativo, ao lado de sua mãe.

Algumas conclusões

Como foi mostrado, os batismos de pretos e negros escravos apresentam semelhanças com relação à pertença de uma ancestralidade africana, uma ligação direta com a “terra dos negros”, como disse Bluteau. Similar a eles encontramos os crioulos, que, como foi explanado, não seriam somente descendentes de africanos, mas também de outros crioulos. Abordando esse grupo, é preciso trazer dados apresentados no início deste capítulo, em que mostramos o total de escravos encontrados sendo batizados. Num total de 1.008 registros de escravos, a divisão que analisamos compreendeu os seguintes números: crioulos, 506; pardos, 258; africanos, 124; pretos, 51; cabras, 49; negros, 19 e índio, 1.

Vistos a partir das ocorrências, podemos afirmar que a geração de escravos que estava sendo inserida na freguesia era majoritariamente crioula, seguida por pardos e africanos. Se considerarmos que pretos e negros também podem compor o segmento de crioulos, pelas lógicas dos dicionários da época, o número de crioulos seria acrescido de mais 70 casos, o que representaria 53% da escravaria batizada. O número de pardos encontrados em menor quantidade pode significar que esse grupo tinha menos possibilidades de continuar escravo, já que são encontrados no momento da alforria mais pardos sendo libertados. Mesmo assim, são muito presentes no cotidiano da freguesia: seu percentual equivale a 24% do total.

Os africanos que foram batizados eram todos adultos, com exceção de Antonia, filha de Thereza, apresentada anteriormente. Esses homens e essas mulheres, seja individualmente ou nos batismos coletivos, representam numa freguesia urbana uma porcentagem de 11% do total de cativos, o que pode indicar que a presença destes africanos, no final do século XVIII, estava mais voltada para os engenhos e demais propriedades rurais. Com isso, o espaço urbano e os serviços que nele existiam seriam um ambiente da gente crioula, parda, e em menor quantidade africanos que, diferente dos outros, precisariam de um processo maior de adequação e aprendizado, algo que “às crias da casa” já poderia ser ensinado desde cedo.

Como foi possível observar, ao compararmos os casos de africanos, cabras, crioulos, pardos, pretos e negros, a formação de laços de compadrio dependia da cor/nação de quem era batizado, pois quanto mais próximo de uma origem africana, menos padrinhos livres são encontrados. Isso muda quando o batismo refere-se a um pardo ou crioulo, que são os únicos que possuem madrinhas livres indicadas nos registros, algo que não acontece com os demais, mesmo que todos fossem escravos. Talvez esse fator tenha ligação com a doutrina católica, já que os escravos nascidos no Brasil estariam teoricamente afastados de costumes e práticas consideradas gentílicas, imputadas aos que vinham da África. Além disso, os pardos e os crioulos tinham a vantagem de que seus pais já conheciam as lógicas sociais em que estavam inseridos, dentro e fora do cativeiro.

Os cabras, pretos e negros são grupos em menor quantidade, o que oferece um risco a análises mais profundas. Porém, acreditamos que sua proximidade com o cativeiro deva-se à origem de seus pais; afinal, suas denominações nos dicionários sempre os colocam como frutos de pretos, negros, do continente dos negros ou uma mistura depreciativa que é associada à escravidão. Contudo, é preciso ter em mente que as semelhanças com o apadrinhamento de africanos pode indicar que esses grupos seriam socialmente colocados como algo intermediário entre os homens e as mulheres recém-chegados da África e os crioulos. Por fim, todos os dados apontam que existia uma lógica de apadrinhamento no Recife de outrora. Essa dinâmica deveria funcionar para esses atores sociais como uma troca ou concessão social, em que o cativo, em especial o pardo, construía laços com pessoas pertencentes ao mundo dos livres. Já aos demais escravos restava, em primeiro plano, construir redes horizontais dentro do cativeiro, ou fora dele, com outros em igual condição jurídica.

REFERÊNCIAS

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  • BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino: 1712-1727. Coimbra: 1712.
  • CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo - Recife, 1822-1850. Recife: Editora UFPE, 2001.
  • CÓDIGO FILIPINO OU ORDENAÇÕES E LEIS DO REINO DE PORTUGAL: recompiladas por mandado d’el Rei D. Filipe I. Ed fac-similar da 14. ed. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004. Livro V. Título XCIX.
  • DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007.
  • FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
  • Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese de professor Titular. Niterói, 2004.
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  • LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
  • MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.
  • MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil São Paulo: Brasiliense, 2003.
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  • QUIRINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil Recife: Fundaj/Editora Massangana/Funarte, 1988.
  • SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. [1. ed. em Lisboa, Oficina Simão Tadeu Ferreira, em 1789, 2v.].
  • SILVA, Gian Carlo de Melo. Ocidentalização e mestiçagem no novo mundo: um olhar teórico-metodológico sobre a formação do Brasil colonial. In: Cadernos de História: oficina de história. Ano IV, n. 4, jun. 2005. Recife: Ed. Universitária UFPE, 2010.
  • Um só corpo, uma só carne: casamento, cotidiano e mestiçagem no Recife colonial (1790-1800). Maceió: Edufal, 2014.
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  • SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 2005.
  • SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes Bauru: Edusc, 2001.
  • TOLLENARE, L. F. Notas Dominicais Recife: CEPE, 1956.

Notas

  • 1
    O termo não aparece nas fontes consultadas, sendo uma apropriação que a historiografia usa para designar todo um grupo vindo da África. Ver: FARIA, 2004 . Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese de professor Titular. Niterói, 2004., p. 38.
  • 2
    Laura de Mello e Souza lembra que “[...] componentes do universo mental, nunca estiveram isolados uns dos outros, mantendo entre si uma relação constante e contraditória: na esfera divina, não existe Deus sem o Diabo; não existe Paraíso Terrestre sem Inferno; entre os homens, alternam-se virtude e pecado [...]”. (SOUZA, 2005SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras , 2005., p. 29).
  • 3
    Segundo Bluteau, o gentilismo seria uma “religião ou doutrina da gentilidade [...] os costumes desaprovados”. Quando observamos o verbete gentilidade, vemos que esta era “a falsa religião dos gentios”. Já o gentio seria um sinônimo de pagão ou de gente “baixa, popular”. Moraes e Silva diz que gentilismo é o mesmo que gentilidade, que seria mais usado para indicar o “errado culto do paganismo”, e o gentio seria um “bárbaro idolatra, pagão” ou ainda a “gente que serve o gentilismo, bárbara”. Por fim, apresenta uma associação para falar do gentio do Brasil, na qual diz que estes são “a gentalha, plebe”. Em nenhum momento as definições indicam o que seriam na prática cotidiana tais atos de gentilismos; o que existe é uma associação direta com a religião católica, neste caso a ausência do batismo que tira o homem do paganismo e o insere na cristandade. E o homem cheio de gentilismos era identificado ao que seria bárbaro, pagão, na visão da cristandade, sem fé. Ver: BLUTEAU, 1712BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino: 1712-1727. Coimbra: 1712., p. 57; MORAES E SILVA, 1789SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. [1. ed. em Lisboa, Oficina Simão Tadeu Ferreira, em 1789, 2v.]., p. 85.
  • 4
    O uso do termo fregueses parte do que era posto na legislação eclesiástica, na qual todos os moradores atendidos pela Igreja na localidade eram denominados de tal forma. Além disso, existe uma referência ao termo freguesia, que seria o lugar da cidade onde vivem os fregueses. Ver: BLUTEAU, 1712BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino: 1712-1727. Coimbra: 1712., p. 206.
  • 5
    Ver o prólogo das Constituições de autoria do Doutor Ildefonso Xavier Ferreira (DA VIDE, 2007DA VIDE, Sebastião Monteiro. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial , 2007.,p. 12).
  • 6
    Os números indicam uma maior presença de africanos classificados como Angola nos registros de batismo, sendo diminuto o número de Minas. Essa mudança pode ter relação com algo maior que ocorreu durante o século XVIII, quando existe uma mudança no comércio escravo em direção a alguns portos no Brasil. No caso de Pernambuco, existe um afluxo de mercado direcionado para o porto de Luanda, em Angola, afastando o tráfico a partir da Costa da Mina. A mudança de mercado pode ter sido favorecida devido à Coroa portuguesa ter encampado uma “propaganda” que favorecia o comércio por Angola, sob o domínio dos comerciantes portugueses. Conforme era propagado, os escravos vindos de Angola seriam mais fáceis de ser controlados, enquanto os da Costa da Mina eram qualificados como rebeldes (OLIVEIRA, 1997OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos africanos na Bahia. In: Afro-Ásia, n. 19/20, 1997. , p. 46). Ainda sobre os escravos trazidos da Costa da Mina, os homens são descritos como “homens de compleição atlética, pelo que no Brasil são estimados como servos, ao passo que se tornaram temidos pela natural altivez, próprias de homens nascidos para liberdade”; talvez decorresse daí a rebeldia destes africanos que nasceram para a “liberdade” (QUIRINO, 1988QUIRINO, Manuel. Costumes Africanos no Brasil. Recife: Fundaj/Editora Massangana/Funarte, 1988., p. 31).
  • 7
    No estudo das alforrias, ao menos no momento do batismo não existem africanos alforriados. Para este grupo, essa era uma conquista que ocorria ao longo da vida, como pode ser visto na obra Liberdade (CARVALHO, 2001CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo - Recife, 1822-1850. Recife: Editora UFPE, 2001. ).
  • 8
    Os registros não trazem indicação da idade dos batizandos. Somente no ano de 1800, alguns africanos têm uma possível idade indicada, sempre com a expressão “parece”. A faixa etária varia dos 12 aos 20 anos. Além destes, só o caso citado de Thereza e Antonia, que aparenta ser uma criança, mas não tem idade registrada.
  • 9
    O autor identificou que a maioria dos africanos batizados tinha padrinhos africanos classificados como jejes, o que indica que os jejes dominavam os mecanismos de proteção da comunidade escrava (SOARES, 2010SOARES, Calos Eugenio Líbano. “Instruídos na fé, batizados de pé”: batismo de africanos na sé da Bahia na 1ª metade do século XVIII, 1734-1742. In: Afro-Ásia, n. 39, 2010., p. 95).
  • 10
    Lovejoy lembra que, nas últimas décadas do século XVIII, a região da África centro-ocidental, da qual fazia parte Angola, era a maior exportadora de africanos, contribuindo, neste período, com mais de um terço na quantidade de homens escravizados e transladados pelo comércio atlântico (LOVEJOY, 2002LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002., p. 98).
  • 11
    Para um maior conhecimento, consultar o texto de Márcia Amantino, que trata do termo “cabra” (AMANTINO, 2016AMANTINO, Márcia. Cabras. In: PAIVA, Eduardo; CHAVES, Manuel F. & GARCÍA, Rafael M. (orgs.). Do que estamos falando? Antigos conceitos e modernos anacronismos: escravidão e mestiçagens. Rio de Janeiro: Garamond, 2016., pp. 83-98).
  • 12
    Bluteau traz as seguintes definições: “Negro: Cor negra, ou tinta negra. É um dos dois extremos das cores, e é oposto ao branco [...] Coisa negra [...] Algo um tanto negro [...] Coisa, ou cor, que tira a negro [...] Negro. Infausto. Desgraciado. Da cor negra, que é a mais escura de todas, tomamos motivo para chamarmos negro toda a coisa que nos enfada, moléstia, e entristece [...] Negro. Homem da terra dos negros, ou filho de pais negros” (BLUTEAU, 1712BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e Latino: 1712-1727. Coimbra: 1712., pp.702-704).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2017
  • Aceito
    25 Abr 2018
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