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Os contrarrevolucionários de 1817 e suas apropriações da história: “Os perigos das Revoluções”

The counterrevolutionaries of 1817 and their appropriations of history: “The dangers of Revolutions”

RESUMO

Este artigo tem por objeto as apropriações da história feitas pelos que se opuseram à Revolução Pernambucana de 1817. Parte das diferentes noções de história e dos tipos de experiências históricas então correntes no mundo luso-brasileiro, para analisar os personagens, fatos, períodos etc. da história profana e sagrada apropriados pelos contrarrevolucionários ou realistas em suas análises sobre a Revolução de 1817. Identifica uma linguagem (conceitos, procedimentos analíticos e até mesmo princípios) claramente inspirada pelas Luzes e, ao mesmo tempo, uma defesa da monarquia de Bragança, calcadas nas ideias de fidelidade à realeza e de honra dos vassalos.

Palavras-chave:
Pernambuco 1817; Contrarrevolução; Apropriações históricas; Noções de História; Estratégias políticas

ABSTRACT

The subject of this article is the appropriations of the history made by those who were against the Pernambuco Revolution of 1817, at that time called “counterrevolutionaries” or “royalists”. Firstly, It examines the different notions of history and the historical experiences types used in Brazil and Portugal around 1817. In a second part, it analyzes the characters, facts, periods, etc. of the profane and sacred history appropriated by the counterrevolutionaries or realists in their reports about the Revolution of 1817. It identifies a language (concepts, analytical procedures and even principles) clearly inspired by the Enlightenment and, also, based on the defense of the Royal Bragança dinasty, using the ideas of fidelity to royalty and the vassal’s honor.

Keywords:
Pernambuco 1817; Counterrevolution; Historical appropriations; History Notions; Political strategies

Aos 6 de março de 1817, há duzentos anos, eclodiu a Revolução Pernambucana de 1817, que, como bem avaliou Denis Bernardes, foi “a mais ousada e radical tentativa de enfrentamento até então vivida pela monarquia portuguesa em toda sua história” (BERNARDES, 2001BERNARDES, D. A. de M. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. 2001. 340 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001., p. 163). Apropriações da história pregressa figuraram nos impressos e proclamações do Governo Provisório instituído com a Revolução Pernambucana, bem como em documentos similares dos realistas, servindo, portanto, a propósitos políticos antagônicos. Neste texto, deter-me-ei unicamente na análise das apropriações da história feitas pelos contrarrevolucionários. Esclareço que não é o meu propósito discutir se o movimento foi ou não revolucionário. A opção pelo uso de “revolução” fia-se na tradição, ao mesmo tempo que considera a ousadia característica do movimento e a surpresa que ele causou nos contemporâneos, em Pernambuco, na Corte, na Europa e nas Américas.

As noções de História nos idos de 1817: entre processo e narrativa exemplar

Em português, a palavra História colava-se à ideia de relato. O Vocabulário Portuguez & Latino, de Raphael Bluteau, editado pela primeira vez em 1712, registra, no verbete “história”, ao lado da origem grega do termo, que ele significaria mais particularmente “narração de cousas memoráveis, que têm acontecido em algum lugar, em certo tempo & com certas pessoas ou nações”, destacando, ainda, que, de “todas as Histórias, a mais certa é a da Sagrada Bíblia” (BLUTEAU, 1716, v. 3, p. 39-40). O Diccionário da Lingua Portugueza (1789), de Antônio de Morais Silva - que seria convidado em 1817 para integrar o Conselho de Estado instituído pela Revolução de Pernambuco, da qual se mostrou opositor -, consagrava significado similar, porém, secularizando-o: “Narração de sucessos civis, militares ou políticos” (SILVA, 1789SILVA, A. de M. Diccionario da Lingua Portugueza. Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. 2 v. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/2/>. Acesso em: 29 nov. 2014.
http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/...
, v. 2, p. 116). Portanto, entre 1712 e 1789, malgrado a secularização do termo e sua desvinculação em relação à história sagrada, em português, ele permaneceu ligado à ideia de narrativa, não se definindo a partir dos acontecimentos, das ações cometidas ou sofridas.

Aproximadamente em 1750, conforme Reinhart Koselleck, em língua alemã, o termo “historie”, relato, cedeu espaço para “Geschichte”, “originalmente o acontecimento em si ou, respectivamente, uma série de ações cometidas ou sofridas”, termo que vinha, havia algum tempo, também designando relato (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, R. Futuro passado. Tradução de Wilma Patrícia Maas. Rio de Janeiro: Contraponto/ PUC-RJ, 2006., p. 50). Mais ou menos até a mesma época, além disso, predominava certa indistinção entre passado, presente e futuro, de tal sorte que se estabelecia uma identidade entre passado e futuro, situação que seria claramente superada apenas no início do século XIX (KOSELLECK, 2006, p. 22-24). A aludida indistinção acompanhava-se de uma expectativa referente ao fim do mundo, que era aguardado, ficando o homem numa situação de passividade, cabendo a Deus a ação (KOSELLECK, 2006, p. 24-25). Até o século XVIII, segundo Koselleck, ademais, difundia-se um topos cujas origens remetem a Cícero, o da Historia magistra vitae (história mestra da vida), concepção segundo a qual a história tinha um papel pedagógico, deixando-nos “livres para repetir sucessos do passado, em vez de incorrer, no presente, nos erros antigos” (KOSELLECK, 2006, p. 42). Logo, a própria ideia de repetição pressupunha uma identidade entre passado e presente, sendo isto a base para o caráter pedagógico da narrativa histórica.

Com a Revolução Francesa, contudo, uma nova perspectiva se imporia, consagrando o homem como construtor de sua própria história e, neste sentido, de um novo tempo, de um futuro dourado, de felicidade e liberdade, o que era preconizado por Robespierre, por exemplo (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, R. Futuro passado. Tradução de Wilma Patrícia Maas. Rio de Janeiro: Contraponto/ PUC-RJ, 2006., p. 25). Essa transformação de perspectiva foi preparada ao longo de séculos, envolvendo um adiamento do fim do mundo e, mais do que isto, ainda nos horizontes da política absolutista, uma modificação na ideia de futuro, que, antes profetizado, tornou-se prognosticável: o futuro ainda deixava-se contemplar no presente; as previsões cristãs eram mantidas, mas a história assumia um caráter estatístico (KOSELLECK, 2006, p. 34-35).

No pensamento das Luzes, ao lado da razão,1 1 Uma força, uma faculdade, entendida apenas em ação, pertencente a todos os homens pensantes, de todas as épocas e culturas, que deveria ser repartida com os semelhantes, que lhes permitiria descobrir e conquistar parcelas do saber, e que não reconhecia outra autoridade que não a si mesma (CASSIRER, 1993, p. 28-29; BLANCO MARTÍNEZ, 1999, p. 69-70). a ideia de progresso tinha um lugar central, ambas conferindo grande autonomia intelectual ao homem. Imanuel Kant, em 1784, consideraria essa autonomia intelectual como a essência das Luzes. Ao responder à questão “O que são as Luzes (Aufklärung)?”, tomou-as como “a saída do homem do estado de tutela do qual ele mesmo é o responsável” e, inversamente, o “estado de tutela” como a incapacidade do homem “de se servir de seu entendimento sem a condução de outrem” (KANT, 2006KANT, E. Vers la Paix Perpétuelle. Que signifie s’orienter dans la Pensée? Qu’est-ce que les Lumières? Et autres textes. Tradução de Françoise Proust e Jean-François Poirier. Paris: GF Flamarion, 2006., p. 43-51). Em congruência com essa perspectiva, ele postulava o uso livre da razão pública por indivíduos privados, na qualidade de sábios e eruditos, como membros da “sociedade civil universal” (e não no exercício dos deveres específicos de seus cargos).2 2 Sobre este assunto, veja: Habermas (1984, p. 50-57) e Chartier (2008, p. 45). Portanto, para Kant, as Luzes corresponderiam à audácia de pensar livremente, à liberdade de combater os preconceitos, à coragem de servir ao seu próprio entendimento (COTTRET, 1998COTTRET, M. Jansénismes et Lumières: pour un autre XVIIIe siècle. Paris: Albin Michel, 1998., p. 7-8), comportando, assim, uma alteração no estado presente do homem. Logo, razão e história traziam, implícita e necessariamente, a ideia de progresso. Segundo Monique Cottret, a interpretação da supracitada resposta de Kant ao que seriam as Luzes não estaria correta, na medida em que, em alemão, Aufklärung é singular, o que dá uma conotação de um único processo, de um encaminhamento na direção de uma claridade. Por causa disso, muitos autores propuseram traduzir aquela pergunta de Kant por: “o que é ‘o progresso’ das Luzes?”, progresso este que, na perspectiva das Luzes francesas, se opunha ao obscurantismo clerical (COTTRET, 1998, p. 8).

A discussão sobre a história como narrativa era anterior a Kant e às Luzes no geral. Ela punha em foco questões como sua relação com a verdade, a moral e a retórica, bem como os métodos de sua produção. Na passagem do século XVII para o XVIII, segundo Anthony Grafton, circulava a ideia de que a história, como campo do conhecimento, sujeitava-se à “arrumação” (GRAFTON, 2007GRAFTON, A. What was History? The Art of History in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 2-4). Havia, então, por um lado, pouca confiança em relação à história, considerando-se o passado como algo impossível de ser captado, algo sempre falso e, àqueles que pretendiam conhecê-lo, senão como mentirosos, ao menos como vítimas de enganos. Por outro lado, os próprios historiadores, ainda que tivessem muitos desacordos, compartilhavam das ideias segundo as quais a história “era uma escola moral, um tribunal soberano, um teatro para os bons princípios, um cadafalso para os maus” (HAZARD, 1994HAZARD, P. La crise de la conscience européenne (1680-1715). Paris: Fayard, 1994., p. 38). Na obra Ars Critica, publicada em 1697, com efeito, Jean Le Clerc critica o historiador romano Quintus Curtius Russus, dos começos do período Imperial, por subordinar a história à retórica: em detrimento da veracidade, cuidava do que se pode chamar “arrumação”. Le Clerc, pelo contrário, defendia que o trabalho da história exigia o exame das fontes, delas se tomando o que fosse crível e se reproduzindo as informações sob a forma de prosa, sem inclusão de qualquer ideia ou fala que conviesse para uma melhor arrumação (GRAFTON, 2007, p. 2-4 e 11-12). Ele renunciava, portanto, ao decoro prescrito pela retórica, à adequação necessária das falas e ações, às situações e aos atores particulares, às especificidades de sua condição social e pessoal, enfim, à sujeição às prescrições ditadas pelos retores.

Montesquieu, Voltaire e Condorcet, entre os pensadores das Luzes, podem ser destacados na discussão sobre a história. Montesquieu, em Do Espírito das Leis - obra e autor muito citados, em livros e na imprensa, pelos atores políticos luso-brasileiros do século XIX -, mostrou-se interessado em identificar regularidades, leis, com base no exame de fatos concretos, o que lhe permitiu construir tipos ideais, que remetem mais ao que deveria ser do que propriamente ao que se encontrava na realidade empírica, fazendo o pensador, aqui e acolá, menções a exemplos que fugiam dos tipos por ele construídos; além disso, manifestou a crença de que a história, como processo, marcharia para o estabelecimento de uma ordem que seria comparável em rigor e segurança às leis naturais (MONTESQUIEU [1748], 2005; CASSIRER, 1993CASSIRER, E. Filosofia de la Ilustración. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993., p. 235-240).

Voltaire preocupava-se em identificar o “espírito das épocas”, o “espírito das nações”, interessando-se pela marcha da cultura e pela íntima conexão de seus elementos, fixando-se no gênero humano como sujeito e no objetivo de identificar leis valendo-se do exame do turbilhão dos fenômenos, crendo na ideia de progresso (CASSIRER, 1993CASSIRER, E. Filosofia de la Ilustración. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993., p. 242-44). Voltaire, em seu Tratado sobre a Tolerância (1763), com fina sensibilidade, foi capaz de exprimir essa nova perspectiva da história corporificada pelas Luzes, assentada na ideia de progresso e, por conseguinte, na possibilidade de inauguração de um tempo em que não se perpetuassem os traços do passado, nomeadamente a superstição. É claro que não logrou prognosticar a conjuntura revolucionária que estava por se iniciar, embora deixasse elementos para se presumir que intuía que estava por acontecer uma convulsão política. Num dos textos do referido livro, Voltaire analisa a utilidade de manter os povos na superstição e, para tanto, ele diferencia esta última e a religião. Ao mesmo tempo, afirma certos pressupostos e identifica as transformações mentais que se operavam na França às vésperas da Revolução Francesa. Voltaire, por um lado, pressupunha, implicitamente, que a história das sociedades possuía certa analogia com os processos biológicos de maturação, definhamento, morte-putrefação e geração de nova vida e, por outro, entendia que a religião era uma necessidade para o homem, tendo em vista que, sendo este fraco e perverso, precisava de um freio que o contivesse. Assim, as leis puniriam os crimes conhecidos, enquanto a religião faria o mesmo em relação aos crimes secretos (VOLTAIRE, 2008VOLTAIRE. Traité sur la Tolérance: à l’occasion de la mort de Jean Calas. Paris: Gallimard, 2008., p. 104).

Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain [Esboço para um quadro histórico do progresso do espírito humano], obra publicada em 1794, após a morte de Condorcet, é considerada “o testamento das Luzes” e uma síntese da “filosofia” destas últimas, conforme afirma Jean-Pierre Schandeler (2016SCHANDELER, J.-P. Les Lumières dans le monde contemporain: l’exemple de Condorcet. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL A GLOBALIZAÇÃO DAS LUZES. 2016, Belo Horizonte; Mariana, 2016. (Comunicação apresentada, 15 p.).), endossando a avaliação da crítica filosófica e histórica. Trata-se de uma obra, como seu título sugere, que faz um relato do progresso humano, contra todo tipo de tiranias, de imposturas políticas e religiosas, demarcando nove períodos e concebendo como ponto culminante de avanço o século XVIII. Compartilhando a ideia de que o homem é indefinidamente perfectível, compreende que o futuro comporta possibilidades de progressos, que não dependem senão da vontade política, isto é, da capacidade de luta do corpo político e, assim, a obra distancia-se de todo traço messiânico (SCHANDELER, 2016SCHANDELER, J.-P. Les Lumières dans le monde contemporain: l’exemple de Condorcet. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL A GLOBALIZAÇÃO DAS LUZES. 2016, Belo Horizonte; Mariana, 2016. (Comunicação apresentada, 15 p.)., p. 2). Se Condorcet, como Voltaire, cria no progresso, ao mesmo tempo entendia que o devir histórico não afetaria o espírito, que os costumes diferentes corresponderiam a uma superfície, sob a qual se encontraria uma unidade, dada pela natureza (CASSIRER, 1993CASSIRER, E. Filosofia de la Ilustración. 2. ed. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993., p. 244-245).3 3 Sobre circulação de livros de Condorcet no Brasil, veja: Andrade (2012, p. 248). Condorcet, ao que parece, foi uma referência em Pernambuco em 1817, sendo muito, lido por dois dos revolucionários, o padre João Ribeiro e o padre Miguel Joaquim de Almeida e Castro, o padre Miguelinho (ANDRADE 2012ANDRADE, B. G. A guerra das palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817. 2012. 297 f. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. , p. 20, 147 e 255-256). Montesquieu, como se verá mais à frente, foi citado por um contrarrevolucionário.

Segundo Hayden White, os pensadores das Luzes objetivavam realizar uma análise histórica assentada na identificação de nexos causais nos processos históricos e, destaque-se, afastada das “mentiras”, uma história que desse lugar apenas à “verdade”. Ao mesmo tempo, eles criticavam a sociedade “à luz de um ideal que era moral e valorativo”, com o que se estabeleceu uma tensão entre os meios da representação histórica e o fim para o qual ela deveria contribuir, resultando numa posição que era notória e militantemente irônica (WHITE, 1992WHITE, H. Introdução: A tradição recebida: o Iluminismo e o problema da consciência histórica. In: WHITE, H. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1992. p. 59-144., p. 62-63).

De meados do século XVIII aos inícios do século XIX, como se depreende de todo esse quadro - que sei ser lacunar, deixando de lado vários autores e obras importantes -, a ideia de história transformou-se, marcando-se pela passagem de uma concepção centrada num relato de caráter pedagógico, moldado segundo doutrinas coevas e prisioneiro de uma compreensão de um tempo quase imutável, no qual Deus figurava como o grande protagonista, para uma concepção de curso de acontecimentos, de processo, que dava ao homem o protagonismo e ao futuro uma feição de novidade, de liberdade, de claridade, de progresso. Assim, abandonava-se a ideia de permanência do passado no presente e no futuro. Pode-se supor que, com isso, se abria a possibilidade para críticas às narrativas, às “histórias”, que tinham um fim moral, educativo, seja porque o futuro distinto que se antevia não dava margem para repetições, seja porque tais narrativas se opunham ao que se entendia como progresso, claridade. Todavia, isso não se deu de maneira tão linear e frontal.

Valdei Lopes Araújo (2011ARAÚJO, V. L. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX Brasileiro. In: NICOLAZZI, F.; MOLLO, H. M.; ARAÚJO, V. L. (Org.). Aprender com a História? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: FGV, 2011. p. 131-147.), em estudo sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX brasileiro, dá inúmeras contribuições para se pensar sobre as concepções de história no período, que, de modo muito simplificado, podem ser condensadas em três campos: primeiramente, a comparação feita entre os tipos “antigo” e “moderno” de experiência histórica, sistematizando as reflexões de Koselleck; em segundo lugar, a identificação de dois usos da expressão historia magistra vitae no período em questão, como topos e como um simples “lugar comum” e, ainda, de dois empregos de sentidos diferentes da expressão pelos historiadores; em seguida, a distinção entre tipos de registro histórico, entre uma história dos especialistas (produzida pelas universidades, na Europa e pelos Institutos, no Brasil) e a história ensinada nas escolas e/ou divulgada para um público mais amplo, de fins colados à difusão de modelos morais e políticos, a serviço da construção da nacionalidade.

Quanto aos tipos de experiência histórica, o “antigo” se caracteriza pelos seguintes traços: um “campo de experiência contínuo”, “natureza humana estável”, “estabilidade de valores”, “exemplaridade, repetição e imitação”, “campo de experiência voltado para o futuro”, “valorização da proximidade temporal do historiador-testemunha”, “coincidência entre a história e o seu relato (historie)”, “aprender com a história é aplicar exemplos”, “aprende-se com a história nos livros”, “tempo circular ou de evolução por etapas fechadas” (ciclos), “futuro previsível, mas não planejável”, “dialética entre virtude e fortuna”, “o historiador e a história julgam conforme valores estáveis” (ARAÚJO, 2011ARAÚJO, V. L. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX Brasileiro. In: NICOLAZZI, F.; MOLLO, H. M.; ARAÚJO, V. L. (Org.). Aprender com a História? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: FGV, 2011. p. 131-147., p. 132-133). O tipo “moderno”, por sua vez, teria por traços: “campo de experiência descontínuo”, “relatividade do humano”, “relatividade de valores”, “singularidade, novidade e formação”, “campo de experiência voltado para o futuro”, “esvaziamento da história do presente” e “valorização da distância temporal”, “crescente complexificação das condições da história (sua constante reescrita)”, “aprender com a história é avaliar a conjuntura e aumentar a previsibilidade do futuro”, “a história em si é um processo formativo”, “tempo linear e progressivo”, “futuro imprevisível, mas planejável”, “dialética entre sentido histórico e ação histórica” e, por fim, “o historiador compreende, exibe os contornos gerais; o próprio processo julga” (ARAÚJO, 2011, p. 132-133). Segundo Araújo, porém, foi entre as décadas de 1820 e 1830 que, no Brasil, abriu-se de forma definitiva uma experiência moderna do tempo, o que não se fez sem instabilidade conceitual e ambiguidades (ARAÚJO, 2011, p. 136).

Da leitura desses traços, é possível depreender, com facilidade, que os ilustrados e, como poderemos constatar a seguir, também contrarrevolucionários de 1817, apresentam traços preponderantemente “modernos”, a saber: a concepção de tempo como algo linear e progressivo; uma experiência voltada para o futuro, concebido como imprevisível, mas planejável; um entendimento de que aprender com a história implica analisar as conjunturas; a relação dialética entre o sentido e o agir na história; uma certa relatividade do humano e de valores, sem que se rompa com uma compreensão de que há uma natureza humana universal. Os contrarrevolucionários, entretanto, não abandonam de todo os traços antigos, reafirmando-os, em alguns casos, menos por crença e mais por estratégia de defesa da ordem: “natureza humana estável”, “estabilidade de valores”, “exemplaridade, repetição e imitação”, e “aprender com a história é aplicar exemplos”. Esses últimos elementos e, mais ainda, o recurso persistente à fórmula historia magistra vitae, sinalizam que as transformações entre o “antigo” e o “moderno” e, ainda, os modos como elas se deram entre ilustrados e, sobretudo, entre os contrarrevolucionários de 1817 - do que só se poderá ter uma ideia mais precisa apenas ao final deste trabalho - não foram isentos de ambiguidades e instabilidades conceituais.

Os usos da expressão historia magistra vitae, que permanece entre os modernos, são indicativos dessas ambiguidades e instabilidades. O próprio Araújo registra que uma coisa é o emprego feito em obediência à tópica e aos preceitos ditados pela retórica, na realidade anterior à emergência dos Estados nacionais; outra, seria quando esta última realidade estava estabelecida e, ainda, quando o pensamento sistemático-dedutivo, a observação e a exploração da natureza encontravam-se dinamizados, situação que se constrói progressivamente no Brasil desde fins do século XVIII (ARAÚJO, 2011ARAÚJO, V. L. Sobre a permanência da expressão historia magistra vitae no século XIX Brasileiro. In: NICOLAZZI, F.; MOLLO, H. M.; ARAÚJO, V. L. (Org.). Aprender com a História? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: FGV, 2011. p. 131-147., p. 134). Sob essa condição, a expressão historia magistra vitae se tornou um simples lugar comum, ou como o autor define com mais precisão, um “protocolo”, elemento que se fazia presente num contexto de incorporação da cultura clássica, sem ter efetividade nos textos, sendo objeto de uma apropriação que arruinava sua coerência (ARAÚJO, 2011, p. 140, grifos nossos). O autor, além disso, fala de um uso estrito da expressão historia magistra vitae, que pressupõe que a história ensina pelo exemplo e pela imitação e outro, lato, como indicador de uma história cujo propósito é ensinar e moralizar (ARAÚJO, 2011, p. 137). Disso derivaria que a historia magistra vitae seria aquela destinada para a educação em geral, não servindo para os especialistas (ARAÚJO, 2011, p. 139). No caso dos contrarrevolucionários de 1817, posso adiantar, a natureza necessariamente estratégico-política dos usos da história, que tornava dispensável qualquer rigor “de especialistas”, era perfeitamente ajustável à “história mestra da vida” - isto é, da história como fonte de exemplos para a imitação no presente -, sem eliminar-se uma compreensão da história como um processo.

Todas essas transformações levam à necessidade de se pensar que havia uma clivagem entre os produtores de história propriamente ditos e os leigos que a empregavam, isto é, grosso modo, entre historiadores e leitores. Conforme João Luís Lisboa, em trabalho pioneiro referente ao papel da história entre os leitores do século XVIII e cujas constatações são válidas para os inícios do século XIX luso-brasileiro, a história é

[...] um motivo de interesse para as camadas dirigentes da sociedade pelo seu espaço pedagógico, pela sua informação política e pela sedução de suas narrativas. Tem um interesse acrescido se trouxer novidades em relação à história recente, e ainda mais se essas novidades tiverem implicações no debate e na crítica política (LISBOA, 1993LISBOA, J. L. O papel da história entre os leitores do século XVIII. Ler História, Lisboa, n. 24, p. 5-16, 1993., p. 8).

O mesmo autor, com acuidade, registra que, à época, as noções de crítica e de verdades modificavam-se, o que alimentava as expectativas em relação à História (LISBOA, 1993LISBOA, J. L. O papel da história entre os leitores do século XVIII. Ler História, Lisboa, n. 24, p. 5-16, 1993., p. 8).

Todas essas afirmações são parcialmente válidas em relação àqueles que foram contrarrevolucionários nos idos de 1817. Deve-se enfatizar que tais homens eram, sobretudo, “leitores” da História e, nos textos que serão analisados, não demonstram a menor pretensão de produzir conhecimentos históricos ou de questioná-los, mas simplesmente de divulgá-los estrategicamente em suas ações históricas, visando à construção de determinados futuros, vistos como possíveis e planejáveis, sem ter qualquer caráter de fatalidade. Os realistas esboçaram uma compreensão da história como um processo, mas não deixaram de compartilhar da ideia de que ela era (às vezes, também) “mestra da vida”. Grosso modo, esses realistas, ao menos em alguns casos, imbricaram a história profana à história sagrada e, insistentemente, brandiram os perigos que eram possíveis aos seus olhos no presente e no futuro. Isso denota que, para eles, já inexistia aquela identidade concebida outrora entre passado, presente e futuro, havendo aqui e acolá indícios de que a ideia de progresso, como possibilidade, não como certeza, era por eles compartilhada, a depender das ações dos sujeitos humanos (por mais que a mão da Providência pudesse interferir através dos homens).

Apropriações da história pelos contrarrevolucionários

Os contrarrevolucionários de 1817, em muitos casos, fizeram escolhas comuns aos revolucionários em termos de personagens, movimentos e processos. Houve entre eles, frequentemente, convergências em termos dos períodos, movimentos, personagens e processos históricos escolhidos. Embora se movessem geralmente por fins distintos, esses sujeitos históricos por vezes recorreram a procedimentos similares em suas apropriações históricas. Excepcionalmente, até mesmo em termos de fins houve coincidências, ainda que tais atores se diferenciassem num ponto essencial: uns, por terem aderido à Revolução de 1817, outros, por serem seus antagonistas. As noções de história subjacentes às apropriações dos contrarrevolucionários, por vezes, igualmente, foram as mesmas que aquelas identificadas entre os revolucionários. Em boa parte, as convergências e similitudes originaram-se no fato de haver uma linguagem (conceitos, princípios e modos de argumentar) que era comum, tributária do pensamento das Luzes quanto aos aportes conceituais e problemas focalizados.

No geral, da História Antiga, os contrarrevolucionários tiraram os “bons exemplos”, de personagens cujas condutas deveriam ser imitadas. A Restauração Pernambucana foi igualmente a fonte de onde se extrairiam “condutas exemplares”, a serem imitadas e que, por isso, em tudo contradiziam aquilo que fizeram os atores da Revolução de 1817. As Revoluções em geral, com destaque para as Revoluções Francesa e a do Haiti, traziam os resultados nefastos a serem evitados, condenáveis, ainda que embalados em belos princípios, muitas vezes qualificados como enganadores das gentes e ameaçadores à ordem constituída. A história pregressa do mundo luso-brasileiro, Portugal e Brasil, por seu turno, também foi empregada de formas similares àquelas observadas em relação à História Antiga, às histórias das Revoluções e à história da Restauração: nela se encontrariam exemplos a serem imitados ou, pelo contrário, situações de perigo, ou ainda transformações a serem consideradas no seu “devido alcance”. A História, enfim, servia para fazer com que os contrarrevolucionários pensassem sobre o momento em que viviam, seus desafios, as próprias inserções que nele tinham e, é claro, sobre o futuro que almejavam. Para os contrarrevolucionários, fosse como narrativa, fosse como processo, a História era algo essencial a ser considerado na luta pela conservação da ordem monárquica.

1 O governador deposto de Pernambuco e suas apropriações e representações históricas

Caetano Pinto de Miranda Montenegro, o governador de Pernambuco deposto aos 06 de março de 1817, produziu uma Representação, posteriormente à Revolução de 1817 - e cuja data é anterior a 10 de agosto de 1817, quando se lhe deu despacho favorável -, em que faz uma solicitação e uma descrição muito interessante, ilustrativa das apropriações e usos possíveis da História por um governador e, de resto, por um nobre de então. No documento, ele pede que lhe sejam remetidos papéis, livros, mapas, objetos etc., que se encontrariam em Pernambuco, dando uma preciosa descrição de sua “livraria”. Justifica seu pedido dizendo que o atendimento dele ajudava-o a defender-se das acusações que lhe eram imputadas, do que, portanto, infere-se que os livros de História e, além disso, os livros, manuscritos e papéis em geral, teriam uma utilidade aos seus possuidores que passava pela defesa dos seus próprios interesses (no caso, defender-se de acusações).4 4 Quase um século antes, algo similar foi feito (e dito) por outro governador, o Conde de Assumar, que, premido pela necessidade de defender-se perante El-Rei, por medidas por ele tomadas em seu governo em Minas Gerais, decidiu buscar socorro nos livros (SOUZA, 1995, p. 40-41). Como se pode imaginar, havia ali livros que se referiam ao exercício de sua função de governador, e isso valia tanto em relação à sua passagem pelo governo de Mato Grosso quanto pelo de Pernambuco:

Sete livros de folhas, que contêm o registro particular do seu Governo da Capitania de Mato Grosso [...] sete livros [que] estavam na estante da sua livraria” e “Sete, ou oito livros encadernados com capa de carneira, que contêm o registro particular do Governo de Pernambuco. Dois destes livros, dos primeiros anos do dito Governo, estavam na mesma livraria; e os outros, na Secretaria do Governo [...] (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).

A localização física diferenciada de parte desses livros, alguns na estante de sua biblioteca e outros na Secretaria de Governo, caso de parte dos livros relativos a Pernambuco, explica-se pelo uso que tinham no passado imediato, de exercício da atividade de capitão general na última Capitania. Para além da sua própria história como governador de duas capitanias, Montenegro interessava-se também por outros tipos de impresso, tais como atlas, mapas e livros de viagens, referentes à circunscrição geográfica em que atuou ou a outras, próximas, ou mesmo distantes no espaço, mas, quem sabe, convergentes com suas preocupações e interesses, como homem das Luzes e de governador que era. O curioso é que justamente um único desses materiais, um mapa da América Meridional, procedente dos EUA, encontrava-se em local da maior intimidade do governador deposto, o seu quarto de dormir:

O grande mapa geográfico da Capitania de Mato Grosso, que estava na sobredita livraria, dentro de um canudo de madeira. Atlas de le Sage e uma Carta Inglesa da América Meridional, dividida em várias peças assentadas em pano e dobrada dentro da sua caixa, que estavam em um almario [sic] novo junto ao quarto em que dormia. Viagem de Condamine pelo rio Amazonas, à qual ajuntou o Coronel Engenheiro Ricardo Franco de Almeida Serra, um dos da Partida das Demarcações estipuladas no Tratado Preliminar de 1777, um mapa, em que corrigiu alguns erros do original, o qual estava em uma das estantes da livraria (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).

A Geografia e a História são saberes interligados, não só por suas afinidades, mas também pelos usos que delas se fazem no exercício do poder. Elas, as Instruções e os Tratados firmados por autoridades governamentais, com efeito, contêm uma mesma possibilidade de utilização: servem ao exercício do governo. Por isso mesmo, Montenegro queria ter de volta:

Todos os papéis que estavam nas gavetas da carteira em que escrevia, na referida livraria: a saber, borrões de ofícios e despachos, memórias, mapas, descrições, Tratados entre Portugal e Espanha sobre limites dos seus domínios na América, e alguns papéis mais sobre este mesmo objeto, instruções dadas aos Governadores de Mato Grosso e as que deixou o Vice-Rei Marquês de Lavradio ao Vice-Rei Luís de Vasconcelos [...; a] descrição de História Natural, feita pelo Naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, quando esteve em Mato Grosso [...] (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).

Livros e papéis similares aos anteriores aparecem na representação referida, diferenciando-se deles, todavia, por serem certamente manuscritos, mas versando sobre preocupações essenciais da administração portuguesa da época (pedras, metais, rendas e, ainda, a Colônia de Sacramento) ou fornecendo-lhe balizas preciosas, a saber:

[...] um maço de conhecimentos passados à boca do Cofre Diamantino do rio Coxipó dos diamantes, que ofereço gratuitamente à Real Fazenda [...;] O Índice das Ordens Reais da antiga Provedoria da Fazenda de Pernambuco, feita por Francisco de Brito Bezerra Cavalcante de Albuquerque; a Doação de Pernambuco a Duarte Coelho e o Foral dado à mesma Capitania; o Mapa, ou Relação dos Contratos e Rendas Reais daquela Capitania, pelo Escrivão Deputado Maximiano Francisco Duarte [...] junto a eles, segundo sua lembrança, estava outro manuscrito, relativo à Colônia do Sacramento, que pede seja também remetido (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).

Montenegro, além disso, arrolava um outro agrupamento de papéis, que compreendia livros, alguns deles cartas e talvez textos administrativos e, ainda, manuscritos, tudo indica, apontamentos seus sobre cartas e comédias, havendo referências a autores consagrados da cultura luso-brasileira, tais como Alexandre de Gusmão e o padre Antônio Vieira. Os livros impressos pareciam ter uso administrativo direto, ao passo que os manuscritos, Montenegro registra que foram empregados tendo em vista a “linguagem”, do que se pode inferir que continham exemplos de boa escrita a serem por ele imitados. Cortesão e governador que era, Montenegro tinha de reunir informações úteis ao bom governo e também modelos de boa redação:

Quatro pequenos livros, dois de oitavo e dois de quarto pequeno, que contêm cartas e mais escritos de Alexandre de Gusmão; alguns apontamentos sobre História e Legislação, e outros sobre linguagem, extraídos das Cartas do Padre Vieira e das Comédias de Jorge Ferreira de Vasconcelos (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).

Cortesão, nobre, governador, Caetano precisava ter conhecimentos de Leis e, além disso, de história da realeza lusitana. O que seria do governo sem conhecimento de História daqueles que se consagravam às atividades de governo, os reis, e das Leis, que as balizavam? Significativamente, Caetano solicitava prioridade no envio destes textos, o que deveria se dar antes mesmo dos demais:

Além dos sobreditos manuscritos e papéis, e enquanto não pode mandar vir tudo que lhe ficou naquela Capitania, se ainda existir, desejaria que lhe fosse remetida a coleção que tinha da Legislação Pátria: a saber as Ordenações Afonsinas e Filipinas, Assentos da Casa da Suplicação, Leis dos Reinados do Senhor Dom José Primeiro, da Senhora Dona Maria Primeira e de Sua Majestade que Deus guarde, Sistema ou Coleção dos Regimentos Reais e dois tomos do Código Brasiliense. Todos estes livros estavam na sua livraria; e com eles estimaria viesse também a História Genealógica da Casa Real, com os tomos das Provas (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830, grifo nosso).

Ainda antes de receber seus papéis (manuscritos, livros, mapas e atlas), aos 15 de julho de 1817, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, em seu esforço repetido e continuado de justificar sua deposição - para ele, o pior dia de sua vida fora o 06 de março de 1817 -, elaborou um ofício dirigido ao Conde da Barca. Nele, o ex-governador desculpa-se, explica a Revolução de 1817, aponta as razões pelas quais foi incapaz de reprimi-la, regozija-se pela Restauração Realista e analisa a conjuntura histórica em que se encontrava e, por conseguinte, emprega-a em sua defesa. É interessante notar que Montenegro exprime uma compreensão acerca da História que denota uma ideia de processo, cujo desenrolar depende das ações dos homens e que contém certos desfechos que, ainda que maus, além de não se poder deter, convém sofrer para que o bem triunfe; aliás, bem e mal se alternavam no curso dos fatos. Em outras palavras, “homens malvados” agiram em Pernambuco para fazer uma Revolução contra d. João VI, iludindo outros tantos com as “falsas teorias de liberdade, igualdade e independência”, que sacudiam a Europa e a América fazia trinta anos, tendo articulações com outras capitanias e com o estrangeiro; se ele, Montenegro, tivesse prendido aqueles homens, não passaria pelos “incômodos” por que passara, nem seria vítima de “vagos juízos”:

Está, pois, restaurada aquela importante Capitania, e como os bens e os males se alternam neste mundo, parece-me que, da sua próxima [passada] revolução, regulou um grande bem, qual foi o desenvolvimento das seguintes verdades. Primeira, que havia alguns homens malvados, que pretendiam subtrair-se ao legítimo e suavíssimo império de El-Rei Nosso Senhor; e que acharam outros, que os seguiram, iludidos com falsas teorias de liberdade, igualdade, independência, três palavras de prestígio e encantamento, que de trinta anos para cá têm feito correr rios de sangue na Europa e na América. Segunda, que estes homens malvados tinham correspondências em outras Capitanias, como provam as cartas que trazia o seu ímpio emissário, o Padre José Inácio Roma [, interceptado e morto na Bahia]. Terceira, que eles mesmos tinham também algumas relações externas, como denota a chegada nesta mesma ocasião ao Brasil de algumas embarcações com armamentos, petrechos e até cartuchos com pólvora e bala. Se eu tivesse conseguido a prisão dos rebeldes, não teria sofrido os incômodos, que tenho tido, nem me veria exposto aos vagos juízos dos homens, que, abundando em suas opiniões e sendo melhor ao longe, que ao perto, uns têm para si, que eu podia prever a revolução, outros que lhe podia ter obstado (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).

Porém, todos esses males identificados no curso dos fatos permitiriam que o bem triunfasse - e, neste ponto, a história profana encontrava analogias com a história sagrada, em que não há salvação sem pecado - e desnudaria as “verdades” más, retirando-as das “cinzas”. Ou seja, se Montenegro tivesse detido a Revolução:

Se assim tivesse acontecido, ficariam ocultas e escondidas, debaixo das cinzas dos traidores, aquelas verdades, as quais, pela sua grande importância (de profundíssimos desgostos me não têm alienado a razão) me obrigam a dizer: feliz a revolução de Pernambuco, feliz a minha desgraça! Não estranhe V. Exa. esta expressão, porque também a nossa Santa Religião chama feliz o pecado, por ser causa de vir um Deus remir os homens (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).

Portanto, deduz-se, a superação dos males da Revolução de Pernambuco, assim como a dos pecados, não seria possível sem sua explicitação: a Restauração realista, em suma, requereria a ocorrência da Revolução, assim como a Redenção do Homem, o pecado.

Antes de 13 de outubro de 1820, 5 5 Essa data é a da provisão que lhe foi passada, atendendo ao seu pleito, não datado (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830). já depois da Revolução do Porto, ocorrida em agosto daquele ano, Caetano Pinto de Miranda Montenegro, sem que se possa dizer que tivesse conhecimento do movimento, ao solicitar nova prorrogação de licença para habitar na Praia Grande, atual Niterói, deu nova interpretação à Revolução de Pernambuco. Ao fazê-lo, ele apelou para uma causalidade histórica que escaparia do contingente e, ao que parece, retiraria de si mesmo a responsabilidade, como governador, pela eclosão do movimento. A causalidade que ele invoca seriam as mesmas que muito teriam perturbado e ainda perturbariam o “Antigo” e o “Novo Mundo”, tendo Leibniz, em Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, obra publicada em 1804, previsto suas “funestas influências”, que se arrastariam até aquele momento em que ele escrevia sua petição (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830). Foge ao propósito deste artigo analisar a compreensão de Leibniz sobre a relação entre causalidade e necessidade, certeza e necessidade, verdade e necessidade.6 6 Sobre isso, ver: Mendonça (2011). Todavia, cumpre reconhecer que Caetano identificava uma causalidade comum a fatos históricos ocorridos na Europa e na América desde fins do século XVIII até 1820, padecendo a Revolução de Pernambuco de 1817, em particular, da mesma origem. Ao apelar em 1820 para Leibniz, filósofo que aborda as relações entre a liberdade humana e omnisciência divina, assim como quando fizera em 1817 ao rememorar a história do pecado, Caetano Pinto de Miranda Montenegro deixava claro que sua compreensão da história imbricava o sagrado e o profano. Não era ele, portanto, tributário de uma noção de história totalmente laicizada, ainda que fique claro que ele concebia a história como um processo e os homens como seus atores; Deus, assim, seria o protagonista oculto, sendo o Senhor dos desfechos dos processos humanos.

2 As “Memórias Históricas da Revolução de Pernambuco”, escritas por um “economista”

“Memórias Históricas da Revolução de Pernambuco” (DOCUMENTOS HISTÓRICOS [doravante, DH], 1955, v. CVII, p. 230-244) é outro documento contrarrevolucionário que contém apropriações da história, bem como noções de história. Tais apropriações e noções guardam similitudes com as observadas entre os revolucionários e seus defensores. Nas “Memórias”, com efeito, tem-se uma leitura claramente realista e ilustrada sobre o movimento de 1817 e apropriações históricas condizentes com esta perspectiva. O autor, tudo indica algum burocrata, que se subentende tomar-se como “economista”- num trecho do documento menciona que providências relativas à escravatura deveriam ser sugeridas por “outros economistas” (DH, 1955, v. CVII, p. 238) -, explica que identificar as causas das revoluções é tarefa difícil quando se está perto temporalmente do movimento. Dizia-se, segundo ele, que a “Revolução do Brasil” era tramada fazia tempo, que “antes mesmo da vinda do Príncipe já se encadeavam algumas correspondências desse negócio”, hipótese que ele julga inverossímil (DH, 1955, v. CVII, p. 230-231). Ele se propõe a discutir essa ideia e afirma que a avaliação mais certa sobre o princípio da organização do movimento foi dada por seus cabeças, “José Luís de Mendonça e o Padre João Ribeiro, já falecidos, relembrando suas palavras: ‘Ora Graças a Deus; trabalhamos há dez anos, mas vencemos afinal’” (DH, 1955, v. CVII, p. 232). Dizendo não ter documentos para tanto, mas fiar-se em depoimentos de anônimos, ele levanta a suspeita de que, da Corte, por obra de pessoas com peso nas decisões lá tomadas, tenham sido enviados homens afinados com a causa dos insurgentes para governar Pernambuco, Paraíba e outras capitanias. Antônio Carlos Ribeiro de Andrade e Silva, segundo suas fontes, seria um desses homens (DH, 1955, v. CVII, p. 232).

Para explicar o movimento, seu ponto de partida é as Revoluções da América inglesa, da França e da América espanhola, que influenciaram a “Revolução do Brasil” (DH, 1955, v. CVII, p. 230-231). Para além dessas influências, porém, na sua avaliação, pesaram outros fatores: “As leituras dos livros corruptores, a libertinagem e, enfim, o desleixamento, venalidade e abandono da Justiça também cooperaram muito, porém os motivos mais fortes [...] foram os da corrupção, novidade e imitação”. Portanto, na análise do autor, primeiramente, atuaram “leituras” de “livros corruptores”, a “libertinagem” e o “desleixamento”, do que se depreende que, para ele, as leituras e os livros podem estar nas origens das revoluções, o mesmo sendo possível dizer-se quanto à autonomia ou intelectual, ou religiosa, ou política, ou moral dos súditos, autonomias estas implícitas, isoladas ou somadas, à noção então corrente de “libertinagem” e refratárias a qualquer regramento que não passasse pelo crivo da razão.7 7 Sobre a libertinagem no mundo luso-brasileiro, ver: Villalta (2015, 2016) e Nunes (2017). Em segundo lugar, o autor detecta problemas relativos ao funcionamento da justiça, atributo central dos governos sob o Antigo Regime: “venalidade” e “abandono”. Em terceiro, mas de modo decisivo, houve “motivos os mais fortes”, “da corrupção, novidade e imitação” (DH, 1955, v. CVII, p. 231), do que se depreende que a ocorrência da Revolução requereria a existência de uma ordem corrompida ou corrupta e, ainda, a circulação de uma “novidade”, passível de ser “imitada”.

Ao que parece, procurando dar sustentação empírica aos “motivos os mais fortes” e também aos problemas relativos à justiça, “venalidade” e “abandono”, o autor classifica como sofríveis os governos das capitanias do Rio de Janeiro e da Bahia, enquanto atribui má conta de Pernambuco aos seus “filhos” (DH, 1955, v. CVII, p. 231). Todavia, os “vícios” dos pernambucanos nasciam dos maus exemplos dados por governadores e ouvidores, sendo exceções, respectivamente, d. Tomás (d. Tomás José de Melo, capitão general que antecedeu a Caetano Pinto Montenegro) e Nabuco (José Joaquim Nabuco de Araújo). Sobre os demais governadores e ouvidores, anteriores ou posteriores, crava o autor: foram ou “indolentes”, ou “venais”, ou “coniventes”. Sobre o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro e o ouvidor Clemente Ferreira França, à semelhança do que falavam dele os advogados defensores dos revolucionários e estes próprios, diz que foram os responsáveis pela “desordem” (DH, 1955, v. CVII, p. 231).

Quanto a Montenegro, ele assim o define: “[...] fleumático, inepto e quase sempre indeciso em todas as suas deliberações” (DH, 1955, v. CVII, p. 231). Sobre o ouvidor, diz ser “um homem tão ambicioso de riqueza, que nunca subministrou justiça senão a quem lhe apresentou maior soma de dinheiro, dando lugar com este procedimento a mil roubos, mil desordens, que sempre ficaram impunes (DH, 1955, v. CVII, p. 231).

Seu sucessor, Francisco Afonso Ferreira, tinha temperamento igual ao de Montenegro, além de ser de pouca instrução como magistrado e, o que parece mais grave, nascido e com parentes em Pernambuco, deixava seus familiares fazerem o que quisessem. O governador enviava os delinquentes ao ouvidor, este nada fazia ou protegia os agressores e, assim, o povo ficava “insensível à infração da lei” (DH, 1955, v. CVII, p. 231-232). O Doutor Bernardo Luís Ferreira Portugal despachava pelo ouvidor os casos de maior gravidade, ficando com os subornos. Alinhavando as ideias anteriormente expostas, o autor arremata:

Meia dúzia de homens, pois, libertinos entusiasmados de bastante saber e invejosos da feliz carreira impune dos rebeldes ingleses e espanhóis americanos, assentaram que era incoerência obedecer a um só homem, quer este se consumisse pela felicidade de seus povos, quer ele esgotasse suas forças em maltratar e arruinar seus vassalos. Julgaram-se fortes em si mesmos, e não consta que procurassem auxílio algum estrangeiro senão depois da ruptura (DH, 1955, v. CVII, p. 232).

Ou seja, a revolução surgiu da conjugação da presença de uns poucos libertinos, que se entusiasmaram com os exemplos históricos das Américas Inglesa e Espanhola, e passaram a refutar a obediência a um monarca, não importando como fosse seu governo; julgando-se fortes, deram início ao movimento, sem buscar antes apoios externos. No máximo, teriam existido cartas que os enlaçavam ao Rio, Minas, Bahia e “mais interior” (DH, 1955, v. CVII, p. 233). Ele menciona a chegada de Domingos José Martins, em 1813, sua viagem à Inglaterra e os elogios que então recebeu de “folhetos” (ao que parece, o autor se referia ao Correio Braziliense), a articulação estabelecida entre ele, o padre José Ribeiro, “Cabugá (mulato rico)” e “Vicente Peixoto (cirurgião)”, todos eles “brasileiros e maçons”, para abrir quatro lojas maçônicas, tendo em vista a “maior congregação dos povos” (DH, 1955, v. CVII, p. 233). Tais lojas seriam abertas aos “patrícios e compatrícios” que fossem avaliados com potencial para aderir aos planos dos quatro (DH, 1955, v. CVII, p. 233-234), e “começaram os catequizadores, por efeito de jantares avinhados, a persuadir a maior parte do clero e oficialidade da tropa”, preponderantemente “brasileiros”, uma vez que julgaram os “europeus” como “incapazes” (DH, 1955, v. CVII, p. 234). Conseguiram, ademais, a adesão de todos os vigários, das cidades, vilas e povoações do interior.

Depois, ele apresenta argumentos sobre a existência de articulações com Minas, Maranhão, Rio e Bahia: contrários à sua existência (não se acharam cartas) e a favor delas (os contatos eram orais ou feitos por cartas, enviadas pelo correio e a particulares, que não estavam prevenidos para tanto; nomeações para determinados postos foram articuladas no Rio; a identificação, por Domingos Teotônio Jorge, em viagens ao Rio e Bahia, de possíveis adesões e forças e a entrega de cartas pelo Padre Roma na Bahia, negócio em que ele não se meteria se não houvesse correspondências anteriores e se soubesse que haveria indisposição às suas ideias). Fatos e conjecturas, no seu entendimento, provariam que houve muitas correspondências e vários emissários, tendo-se atingido até a Corte (DH, 1955, v. CVII, p. 235). Nesse quadro, achava que eram necessárias providências do soberano, cuja clemência poderia estimular os parentes, amigos e patrícios dos “agressores”, isto é, dos revolucionários, a ensaiarem outra revolução, atacando desta vez o próprio trono. Explicando-se melhor, o autor descreve um quadro de ânimos predispostos a “planos revolucionários”, nutridos no Brasil por rivalidades calcadas em “gerações e pátrias” e, ainda, que poderiam partir dos “nativos”- entre os quais os “brancos”, que almejariam ter “qualquer príncipe seu patrício”, ou os abundantes “crioulos colorados” -, planos estes traçados em “gabinete” - feitos à semelhança do que sucedia com ele próprio, ao escrever aquelas “memórias históricas”, sem que ninguém o soubesse - e, talvez, “mais decisivos, pela instrução do levante passado” de 1817:

Assim como eu escrevo estas memórias históricas, no meu gabinete, sem que alguém o pense, quem nos dirá que outros não tracem planos revolucionários, talvez mais decisivos pela instrução do levante passado? O Brasil, esta terra onde os homens rivalizam gerações e pátria; onde eles questionam sobre o direito de propriedade e que, entre a maior parte de seus naturais, é já uma disputa decidida, que o Brasil é, sim, de seus nativos, e não de homens de fortuna que se deitaram aos mares para o conquistar etc., não oferece ele um quadro premeditador duma revolta inopinada, quando não seja dos brancos pelo nascimento de qualquer príncipe seu patrício, ao menos dos crioulos colorados, espécie de gente em que tanto abunda? (DH, 1955, v. CVII, p. 236).

O “espírito” dos “brasileiros”, de modo geral, estaria exaltado, mais do que fazia dois anos. Eles tudo criticavam e censuravam no governo, ao mesmo tempo que abocanhavam “a interpretação e administração das leis, outra hora o zelo das nomeações dos encarregados do bem da sociedade” (DH, 1955, v. CVII, p. 236) - ou seja, a justiça, campo de atuação essencial das monarquias sob o Antigo Regime, estaria sob o controle dos “brasileiros”. Há certa noção de história subjacente em todo o documento: história como um processo, construído pelos homens, em razão de e sob certas circunstâncias, cujo desenrolar dependeria das ações dos sujeitos em confronto, podendo certos desfechos ser preparados, concretizados ou, pelo contrário, evitados, conforme as leituras feitas das experiências do passado imediato e do presente. Por isso mesmo, o autor elencava uma série de medidas a serem tomadas pelo soberano para deter o desfecho revolucionário temido: cercar-se de homens de “conhecidíssima fidelidade, perspicazes, nada lisonjeiros”; examinar as condutas, palavras e conversas de autoridades civis, religiosas e militares despachadas para diferentes partes do Brasil; “punir exemplarmente os revolucionários”; fiscalizar as despesas do Estado, da “Corte” e “nacionais”, punindo aquele que, na administração, fosse “delatado e comprovado de ter lesado coroa”;8 8 A corrupção e sua delação por rivais eram rotineiras sob aquele tipo de dominação patrimonialista característico do Antigo Regime luso-brasileiro. Ver: Villalta (2016). reformar-se o clero, não admitir mais nenhum frade e fiscalizar os vigários;9 9 A preocupação com o número de clérigos e de casas de regulares, bem como com as propriedades destes e, de resto, da Igreja, era algo muito corrente entre os europeus (NUNES, 2017, p. 52-53). As críticas e oposições ao clero regular foram frequentes entre os ilustrados, tais como Montesquieu, Voltaire e Argens (VILLALTA, 2006a; VILLALTA, 2006b; VILLALTA, 2016). Portugal não foi uma exceção, uma vez que as Luzes lusitanas tiveram na oposição ao clero regular uma marca (SILVA, 2013, p. 179). A coroa portuguesa, sob o reformismo ilustrado, tomou medidas que exprimiam essa compreensão crítica e que visavam ao fortalecimento da jurisdição régia (NUNES, 2017, p. 42-56). punir e demitir os “ministros, escrivães, letrados e mais ocupados na repartição da Justiça” que fossem venais, parciais ou morosos em suas atividades; inserir todo “cidadão” maior de 15 anos nas tropas, de linha ou milícias, com os camponeses atuando nas vilas e cidades vizinhas, os pais com mais de um filho arregimentando um deles na principal cidade da capitania, o que seria facilitado pelo fato do trabalho Brasil ser “operado por escravos”; todos deveriam ser ouvidos em audiência, punindo-se os delinquentes, sem exceção, com as penas aplicadas aos “malvados, inimigos do trono, da nação e da tranquilidade pública” (DH, 1955, v. CVII, p. 237). Além disso, os “folhetos impressos em Inglaterra devem ser queimados e, de ora em diante, rigorosamente proibidos, por [serem] mais incendiários e infamatórios que instrutivos”; os que os possuíssem, sendo denunciados, deveriam ser punidos, com penas que seriam maiores conforme a insistência no delito. Penas deveriam ser aplicadas aos estrangeiros, em acordo com os ministros plenipotenciários de seus países (DH, 1955, v. CVII, p. 237-238). A escravatura não escapa de sua atenção, tendo ele recomendado que houvesse a menor quantidade de escravos possível nas cidades, “e que não convém que estes mesmos poucos aprendam ciências, nem artes, e se possível for, nem mesmo ler, nem escrever” (DH, 1955, v. CVII, p. 238). Ele ensaia propor algo para se aumentar a população, mas se esquiva de fazê-lo por ser seu propósito escrever uma memória histórica.

Todas essas providências, elencadas pelo “economista” autor, trazem claras convergências com as propostas dos reformistas ilustrados portugueses, guindados ou não a postos de governo desde o reinado de d. João V (1706-1750), mas, sobretudo, a partir da ascensão de d. José I, em 1750. Não por acaso, ainda que se mostrando adversário visceral da Revolução e dos excessos do anseio de liberdade, o “economista” analisa os efeitos deste último em passagem lapidar. Lapidar, porque condena-os; lapidar, igualmente, porque se funda na apropriação explícita da obra Do Espírito das Leis (1748), de Montesquieu. Diz o “economista”:

Se a ideia da liberdade agrada mesmo a um irracional aferrolhado, a que fanatismo não é ela capaz de arrastar um homem rústico e, por consequência, ignorante do verdadeiro discernimento desta palavra, tantas vezes profanada, quantas revoluções se têm formado? A verdadeira liberdade é a que nos ensina o célebre e ilustre Montesquieu, no seu Espírito das leis, livro 11, cap. 3º: “A liberdade, diz ele, é o direito de fazer aquilo que as leis permitem. Se um cidadão pudesse fazer o que as leis defendem, então não haveria mais liberdade, porque os outros se julgariam igualmente revestidos do mesmo poder” (DH, 1955, v. CVII, p. 238).

O economista, em nota à margem do documento, traz a citação de Montesquieu em francês: “La liberté est le droit de faire tout ce que les lois permettent, et si un citoyen pouvait faire ce qu'elles défendent, il n'aurait plus de liberté, parce que les autres auraient tout de même ce pouvoir”.10 10 A citação corresponde à edição francesa de 1758 (a primeira, data de 1748), veja-se: Montesquieu (1758/1995, p. 111). O confronto entre a tradução e o original mostra que o “economista” seguiu Montesquieu, sustentando que não haveria mais liberdade se o cidadão pudesse fazer o que as leis proíbem (défendent),11 11 Em português do século XVIII, a palavra “defender”, como em francês, poderia significar proibir. Veja: Silva (1789, v. 1, p. 519) (Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/defender>). postulando, portanto, que a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem. Nesse mesmo trecho, o autor defende que a relação entre soberanos, leis e vassalos se regule por certos princípios - que são consoantes com as teorias corporativas de poder, convergentes com o que se denomina “economia do dom”12 12 A “economia do dom” envolvia a concessão pela monarquia de benefícios, bases das relações políticas, aos súditos. Baseava-se, ainda, em redes clientelares, que ligavam os atores sociais de forma diversa e assimétrica, conforme sua posição nos diferentes planos. Tais redes, reunindo benfeitores e beneficiários, traziam mais vantagens para quem estava no polo de credor e compreendiam uma tríade de obrigações (e favores): dar, receber e restituir (XAVIER; HESPANHA, 1997, p. 340-341). e, ainda, com os valores do reformismo ilustrado português -, ou seja, que o monarca respeite às leis, premie os súditos merecedores e proteja a indústria e a ciência. Nos seus próprios termos: “A verdadeira liberdade, pois, é a que constitui um soberano amante do seu povo, exato e circunspecto, observador das leis, que rege e domina sabiamente, premiando os distintos, engrandecendo a nação, propagando e protegendo a indústria e ciência” (DH, 1955, v. CVII, p. 239).

Na continuidade de suas “Memórias”, o economista faz uma breve narrativa sobre a Revolução, logo interrompida pela descrição de uma disputa travada entre dois senhores de escravos - a saber, uma senhora e o negociante Alexandre Fermin - em torno da posse de uma cativa. A escrava escolheu deixar sua senhora e pedir ao comerciante para que a comprasse. O negociante tentou fazê-lo, sem sucesso. Iniciou-se, então, a disputa na justiça. A senhora teve por advogado Bernardo Luís Ferreira Portugal13 13 Sacerdote secular e bacharel pela Universidade de Coimbra, Bernardo era Vigário geral e deão de Olinda, promotor do juízo eclesiástico de Pernambuco, comissário do Santo Ofício e advogado nos auditórios do Recife. Aos 8 de março de 1817 assinou Proclamação incentivando o povo a obedecer ao Governo Constituído após a Revolução (DH, 1955, v. CI, p. 12-13). Contra ele, havia um Sumário da Inquisição de Lisboa, 1796-1803, por “proposições heréticas e escandalosas”; o promotor do tribunal referido julgou mais prudente esperar por melhor prova (INSTITUTO DOS ARQUIVOS NACIONAIS DA TORRE DO TOMBO, 1796-1803). e requereu que a escrava fosse colocada em seu poder. O ouvidor, compungido com a situação da escrava ou desejoso de agradar a Fermin, “despachou o requerimento a favor da negra escrava” (DH, 1955, v. CVII, p. 241). O advogado Cabral, então, foi à réplica, na qual claramente valeu-se de animosidade antilusitana e anticolonial. Assim, aludiu à ideia de que os europeus tomavam a América como “escrava” e, não contente com isso, fez uma apropriação da história pregressa da França e de Portugal, rememorando, respectivamente, os atentados contra Henrique IV e d. José I, no que mostrou certa ousadia. Afirmou haver

[...] certa classe de europeus [que] julgam que a América é sua escrava, e que tem direito ao vexame dos americanos pela simples voz da compaixão e de uma filantropia desavergonhada, que levou ao fogo muitos caciques e cuja ministrou [sic] o punhal para ser atacado Henrique IV e carregou os bacamartes que ameaçaram a preciosa vida do Senhor Dom José 1 (DH, 1955, v. CVII, p. 241).

Não parando aí em sua descrição da conduta dos europeus e na sua oposição à filantropia, à compaixão - no seu entendimento diferente do “direito” e de “lei” -, o “economista” chegou à História Antiga:

Um tal europeu que entra na América não se julga menos que um simulacro Área, o mesmo Deus, quando uma escrava o procura para ser valida. Roma, para poder tirar um escravo do poder de seu senhor que o flagelava, julgava necessário que o escravo entrasse no templo, se lançasse aos pés de Deus, se abraçasse com as vestes sagradas, estátua do Rei, ou com a Área; e então é que o magistrado, tomando conhecimento da conduta do senhor, fazia executar as cruéis sevícias, isto é, um castigo superior ao delito, e era posto em almoeda, pela constituição do Imperador Antônio (DH, 1955, v. CVII, p. 242).

Completa o quadro fazendo insinuações sobre os propósitos de Fermin, fosse o de arrebatar a propriedade alheia, fosse o de fruir de prazeres sensuais ou do trabalho daquela por quem se compadecia (DH, 1955, v. CVII, p. 242). Tal réplica, segundo o “economista”, teve “mil cópias”, e “o Ministro, em lugar de o suprimir e castigar seu autor, deixou o caso à revelia”. Azevedo, um caixeiro de um negociante, interveio na polêmica. O caso levou à agitação, tendo a população de origem brasileira tomado o partido do Dr. Bernardo. Com isso, sua defesa veio assumir “um patriotismo mal entendido”: “Assim foi grassando o mal no coração da canalha, que os rebeldes contavam para o golpe decisivo da sua empresa, e os oradores da sua parte também não poupavam panegíricos figurados, pelos quais lhe representassem cara a ideia da liberdade e a de um patriotismo mal entendido” (DH, 1955, v. CVII, p. 243).

As “Memórias”, enfim, demonstram a presença da questão escrava e, ainda, de conflitos entre brasileiros e marinheiros, até passando em torno da referida questão e ganhando a esfera pública, inundando-a de cópias de um manuscrito e fomentando debates. Mostram ainda como as apropriações da história eram feitas pelos lados em confronto, nesse caso segundo uma grade ilustrada comum. Indicam, igualmente, que a defesa dos direitos senhoriais foi usada, no caso, na luta contra os marinheiros. Por fim, o “economista” descrevia a ação do Padre Miguelinho, que, “na primeira Dominga da Quaresma de 1817 [isto é, 23 de fevereiro, data anterior à eclosão da Revolução], subiu ao púlpito na igreja do Corpo Santo, Matriz do Recife, e o texto do seu sermão foi: ‘Nunca tempus accetabile die salutis’” 14 14 Provavelmente, uma mistura de latim com italiano, cuja tradução pode ser: “É agora o tempo aceitável, é agora o dia da Salvação”, uma referência direta da II Epístola de Paulo aos Coríntios 6,2. Agradeço a André Pereira Miatello pela tradução e pela identificação da referência bíblica. (DH, 1955, v. CVII, p. 243), cujo fim era disseminar a desobediência aos soberanos da terra, “uma vez que não se comportassem em conformidade com a Igreja e Justiça dos vassalos” (DH, 1955, v. CVIII, p. 244). O mesmo Padre Miguelinho, ademais, colocava em confronto o rei David com os monarcas do seu tempo, apropriando-se da História Antiga em prejuízo dos últimos: “Dizia que David, por um só pecado, fizera penitência toda sua vida, e que os soberanos da época presente aplicavam o tempo devido a jejum e silícios a passatempos e renitência de agravo e culpas inexpiáveis para com o céu, tais como o abandono do povo e da religião” (DH, 1955, v. CVIII, p. 244).

Encerrando suas “Memórias”, o “economista” defenestrava o clero, regular e secular, cujas más condutas eram vistas pelo governo como “fragilidades humanas”, não sendo jamais repreendidas, faltas cujo registro coloca o autor das “Memórias” em convergência tanto com os reformistas ilustrados lusitanos que conquistaram cargos no governo, quanto com os ditos libertinos,15 15 Sobre os libertinos no mundo lusobrasileiro, ver: Abreu (2008), Villalta (2015, p. 217), Nunes (2017, p. 113, 125, 191 e 201). com maior proximidade em relação aos primeiros, pela defesa comum da ordem que fazia:

O clero, enfim, nunca foi mais danoso à religião, nem suas práticas mais nocivas ao Estado. Viram-se padres e frades saírem publicamente passar as noites em casas de deboches e prostituição, e outros, de mais depravada categoria, e irem diretamente ao Templo envilecer o altar e o mesmo sacrifício da missa (DH, 1955, v. CVIII, p. 244).

Depreende-se que, aos olhos do “economista”, isso tudo dessacralizava o clero diante das “consciências” dos fiéis e, o pior, acabava por reverberar nos juízos que estes faziam sobre “o militar” e o “cível”, com o que se viu “preparar-se o esboço da revolução” (DH, 1955, v. CVIII, p. 244).16 16 Em um conjunto de poemas satíricos em circulação em Portugal no final do século XVIII, “os desvios comportamentais dos eclesiásticos, seculares e regulares, foram recuperados por quase todos”; Pina Manique, o Intendente Geral de Polícia, preocupava-se com esses desvios dos clérigos, que manchavam a reputação dos religiosos e de suas ordens, causando escândalo entre os seculares (NUNES, 2017, p. 219-220 e 228-229); naquela conjuntura revolucionária, clérigos de comportamento indecoroso, nos trajes e hábitos (como o de frequentar tavernas), “serviam ‘de objeto para escarnecerem os Povos’, ameaçavam as bases do trono, que requeria ‘benquistar os ditos eclesiásticos com os povos e unir quanto for possível o sacerdócio com o Império’” (VILLALTA, 2016, p. 15). Alguns clérigos angustiavam-se com a situação, como Antônio Seromenho de Olivaes, abade de São João da Cova, em Portugal. Em 1794, ele denunciou Antônio José de Mesquita Pimentel, abade na igreja e freguesia de S. Gens de Salamonde, belicoso, perseguidor de desafetos, manipulador da justiça eclesiástica, intimidador de testemunhas, clérigo que desonrara uma moça honesta, era concubinário e desrespeitara o sacramento da penitência. Informou que tais comportamentos eram de conhecimento público e que desejava “que os fregueses viv[essem] em paz e com sossego”, “dar remédio aos gemidos dos pobres lavradores rústicos, que vivem oprimidos e sufocados sem ter a quem recorrer na terra no presente século” (IANTT, Inquisição de Coimbra, Caderno do Promotor No. 228, p. 160v). Portanto, as censuras e os temores do “economista” de Pernambuco, em 1817, não eram fatos isolados.

3 Apropriações da Restauração Pernambucana do século XVII e das grandes revoluções

Os contrarrevolucionários, semelhantemente aos partidários da Revolução de 1817, apropriaram-se da Restauração Pernambucana do século XVII. As apropriações recorriam aos mesmos fatos e heróis consagrados pelos revolucionários, invertendo, porém, os sinais. Nas suas apropriações da Restauração, os contrarrevolucionários encontravam-se em sintonia com os discursos dos jornais então editados no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro e Idade d’Ouro no Brasil, que faziam remissões àqueles feitos heroicos e de fidelidade do passado dos pernambucanos.17 17 Vejam-se, por exemplo, as edições da Gazeta do Rio de Janeiro, de 14/05/1817 e da Idade d’Ouro do Brazil, de 27/05/1817. Sobre o último jornal, veja: Silva (2015).

Na primeira “Proclamação aos Habitantes de Pernambuco”, feita aos 21 de março de 1817, o conde dos Arcos, governador da Bahia, recorreu à Restauração e a mesclou à História Antiga, procedimentos que foram adotados pelo Governo Provisório da Paraíba.18 18 Veja-se, sobre isso: DH (1953, v. CI, p. 49). O Conde afirmava “constar que o Teatro onde brilhava a fidelidade de Fernandes Vieira Camizão [sic], Henrique Dias e outros, cujos nomes têm escrito na mesma linha dos heróis, está mudado em covil de monstros, infiéis e revoltosos”; considerou que, ao contrário disso, “a divisa dos baianos é - fidelidade - ao mais querido dos reis - e que cada soldado da Bahia será um Cipião” ao lado dos pernambucanos, “assim que tiver ordem para vingar a afronta perpetrada contra o soberano” (DH, 1954, v. CI, p. 40). A revolução, sendo uma traição, na perspectiva do conde dos Arcos, negaria as ações heroicas do passado, iria conspurcá-lo com a infidelidade, sendo seu reverso o soldado baiano, fiel à monarquia. A fidelidade era a liga passado-presente, enquanto sua negação era a “traição” dos Revolucionários de 1817; Cipião, além disso, era o exemplo que os soldados da Bahia imitavam, tal como se deveria ser (DH, 1954, v. CI, p. 40). Essa oposição entre “lealdade” e “governo contratual”, que marcou o embate entre as forças do Antigo Regime português e os revolucionários pernambucanos de 1817 estava em congruência com o confronto mais geral, que se verificaria entre a Coroa e os constitucionalistas, na virada do século XVIII para o século XIX, identificado por Kirsten Schultz (2006SCHULTZ, K. A era das revoluções e a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro (1790-1821). In: MALERBA, J. (Org.). A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 125-151. , p. 140).

O desembargador João Osório de Castro Souza Falcão, partidário da contrarrevolução, em uma de suas 24 cartas para d. Tomás Vilanova Portugal (DH, 1953, v. CIII, p. 71-131), explicou a apropriação da Restauração Pernambucana pelos revolucionários. Na carta, ele repete informações encontradas em outros documentos, acrescentando, aqui e ali, alguns dados, ou colorindo outros. Menciona o “acaso” da eclosão do movimento e sua característica “intempestiva”; as relações entre o que ficou conhecido como Inconfidência dos Suassuna e a Revolução, com ideias sendo transmitidas por José Francisco de Paula - governador de Moçambique nos idos de 1817 e, naquela ocasião, em Lisboa - a seus irmãos Francisco de Paula Cavalcanti e Luiz Francisco de Paula; as “ideias comunicadas pelos dois Arrudas, médicos, em Goiana, pelos vigários de Santo Antônio e Recife, [as quais] cresceram e propagaram[-se] pelo estabelecimento de Lojas Maçônicas [desde 1814], nas quais [se] excluíram das suas sessões particulares os maçons europeus”; o impacto da chegada de Domingos José Martins; a bebedeira de alguns; os jantares; a indolência do governador Montenegro, talvez enganado por alguns homens próximos etc. A isso, o desembargador acrescenta o peso decisivo do uso do passado do século XVII, que teria operado como legitimador dos pleitos dos revolucionários, somando-se às “ideias de igualdade”, à sedução de “pardos e pretos” e ao apoio embrionário de maçons de outras partes do Brasil:

O ódio geral, antigo e entranhável dos filhos do Brasil contra os europeus, que chamam ‘marinheiros’, que cuidaram em aumentar invertendo os fatos da história da restauração passada sobre os holandeses, deduzindo daí direitos de propriedade, doação a Sua Majestade com exclusão de qualquer [sic] impostos, foram as persuasões que serviram de mola para dar movimento ao detestável projeto e de que se serviram, com especialidade no dito dia seis; ideias de igualdade, embutidas aos pardos e pretos, lhes afiançavam o bom êxito pelo aumento considerável do seu partido e contavam sem dúvida com os mais maçons brasileiros nas outras capitanias, nesta parte, porém, ainda não estava maduro o projeto (DH, 1953, v. CI, p. 109-111).

O recurso à Restauração por parte dos revolucionários, na verdade, teria ajudado no convencimento dos “seus patrícios” a aderirem à causa da Revolução:

A ideia que os rebeldes fizeram ter aos seus chamados patrícios, ignorantes da história, de que esta terra, sendo conquistada pelos seus passados aos holandeses, ficou sendo propriedade sua e que a doaram a El-Rei Nosso Senhor, debaixo de condições que ele não tem cumprido, pela imposição de novos tributos e que os europeus que têm vindo aqui estabelecer-se têm enriquecido à custa deles, patrícios, e se têm feito senhores do país, e eles, escravos, por uma parte, e, por outro, o enlaçamento de famílias com os que se acham já presos e que ainda o hão de ser no espírito vingativo próprio da gente do Brasil, é motivo suficiente para dever estar-se sempre em cautela e manter-se um corpo de tropa que, pela economia do general, não aumentará as despesas do Estado, sendo em todo caso necessário que haja ao menos um terço de europeus e que os oficiais da tropa da terra sejam pela maior parte europeus (DH, 1953, v. CI, p. 109-111).

Portanto, ao mencionar a Restauração Pernambucana como elemento estratégico utilizado pelos revolucionários para encontrar partidários e difundir sua compreensão sobre a relação particular dos pernambucanos com a Coroa e, ao mesmo tempo, o não cumprimento por parte desta última dos compromissos firmados, o desembargador João Osório de Castro Souza Falcão mostrava que aquele passado era usado para atestar uma dada compreensão de soberania, que residia nos vassalos e implicava compromissos por parte da realeza.19 19 Em requerimento dos idos de 1801 dirigido ao Visconde de Anadia, os irmãos Francisco de Paula e Luiz Francisco Cavalcanti, os Suassuna, recorreram ao século XVII para comprovar sua lealdade à Coroa, afirmando que “‘têm a felicidade de descender dos portugueses mais ilustres daquela capitania [de Pernambuco], cujo terreno banharam tantas vezes com o seu sangue em defesa da Pátria na memorável época da expulsão dos holandeses’” (apud CADENA, 2013, p. 58, grifos meus). Portanto, Restauração era empregada conforme as conveniências políticas. Ao mesmo tempo, o magistrado visava alertar o ministro de d. João VI sobre o estado de ânimo reinante entre os súditos pernambucanos e, por conseguinte, sobre a necessidade de se reorganizar as tropas.

Antônio de Morais Silva - célebre dicionarista luso-brasileiro nascido no Rio de Janeiro em 1750, estudante da Universidade de Coimbra nos idos de 1779, quando então se dizia o “Pai dos Libertinos” e foi perseguido pela Inquisição, retornando a Portugal e reconciliando-se com o Santo Ofício em 1785 - ao longo de sua trajetória, manteve-se firme na defesa de suas ideias religiosas deístas, ainda que ao final da vida a tenha dissimulado um pouco mais. Quanto à política, sua coerência também é eloquente: jamais contestou a monarquia bragantina, nem a unidade luso-brasileira.20 20 Contra esta certeza, pesa a informação de que houve sessões dos “tais malvados [, que] se fazem na sala do Governo e à noite: ali se ajuntam como Conselheiros Antônio Carlos, o Capitão-mor do Recife Antônio de Morais Silva, filho do Rio de Janeiro, que foi ali Juiz de Fora, e Gervásio Pires Ferreira e que por voto deste se pronunciou confisco em todos os bens dos que se ausentassem e estivessem fora” (DH, 1953, v. CI, p. 127). Convidado pelos Revolucionários de 1817 para integrar o Conselho de Estado, tergiversou e negou-se. Em carta datada dirigida ao padre Antônio Rodrigues de Miranda, datada de 11 de julho de 1817, quando os revolucionários já tinham sido derrotados, Morais Silva pronunciou-se sobre a Revolução, em relação à qual expressou verdadeira repulsa, tomando-a como traição e infidelidade ao melhor dos soberanos. Ele mostrou ser atento observador dos fatos do seu tempo e firmou uma posição pró-monarquia e contrarrevolucionária indiscutível. Em relação a 1817, fato relativo à ordem política, portanto, comportou-se como um típico letrado das Luzes lusas moderadas. Chama a atenção o modo como ele defende a lealdade à casa de Bragança e à monarquia lusitana, encaixando-a num esquema que tem como adversários a “canalha” e a irrupção das paixões. A monarquia, assim, afigura-se como expressão da razão e, ao mesmo tempo, como a ordem que permite aos detentores de conhecimentos certa primazia. A defesa da ordem, portanto, faz-se com uma roupagem ilustrada de cunho político moderado.

Na sua carta, Morais Silva apresentou informações e juízos positivos sobre d. Tomás Vila Nova Portugal, o general Luís Barreto do Rego, governador de Pernambuco após a vitória da contrarrevolução, e o Conde dos Arcos, governador da Bahia. Seus juízos, pelo contrário, foram negativos a respeito da “canalha” que apoiou a Revolução e, ainda, sobre Domingos José Martins e sobre os maçons. Registrou também dados sobre livros, bibliotecas, leituras e imprensa. Valeu-se dos termos nação (ao que tudo indica, tomada como coletividade compreendida pelos súditos de um mesmo rei) e pátria (a pequena pátria; no caso de Morais, o Rio de Janeiro, autodenominando-se explicitamente “carioca” e manifestando sua saudade e sua afeição por sua terra de origem). Apresentou igualmente avaliações sobre os reis, seus infortúnios de verem-se cercados de maus ministros. Mencionou catecismos que teriam sido achados na casa de Domingos José Martins. Em vários momentos, defendeu uma ideia a respeito de justiça (implicitamente, premiar e punir). Percebe-se, contudo, que se a justiça é tarefa essencial dos governos, já então a economia política vinha ganhando lugar central, sendo seu conhecimento algo importante para aqueles que alcançassem postos de governo, do que seria exemplo d. Tomás Vilanova Portugal. Tomando a Revolução de 1817 como conspiração, ele identifica os atores que dela participaram: os conspiradores, a tropa de linha, a “canalha” e os milicianos de cor. Morais, num trecho, classifica o movimento contra a Revolução como “contrarrevolução” e noutro, como “restauração”. Percebe-se que, à altura da elaboração da carta, havia uma guerra de pronunciamentos e escritos. Naquela conjuntura por ele tomada claramente como revolucionária e de ambições imensas das gentes, de soberba (e, portanto, depreende-se de autonomia do homem), ele apresentou um ideal de bom governo. Tal ideal combinava a temperança, a vigilância e o controle das paixões, as quais estariam na origem das ruínas e desgraças dos países. Disso seriam exemplos o que se dera na conduta do Presidente dos EUA, que levara seus estados à guerra contra a Inglaterra, embora ele fosse um espelho de saber, bem como os acontecimentos que tiveram o último país como cenário. Ele aventou a possibilidade de que maçons da Bahia e do Rio de Janeiro tivessem ligações com a Revolução de 1817, mas manifestou dúvidas a este respeito, vendo um quê de calúnia nesta suposição; aliás, sua avaliação sobre a atuação da maçonaria é um tanto ambígua.

Em suas apropriações da história ou leituras da história passada, Morais Silva defendeu que a Revolução era má conselheira; por isso mesmo, estabeleceu uma interessante analogia entre o charlatão, que tenta endireitar um corcunda, e os que propagavam a insubordinação contra os reis: o resultado, em ambas as situações, era a morte. Qualificou a Revolução Francesa como infame; avaliou também a Revolução Americana, ou melhor, o apoio do Presidente da América Inglesa à Inglaterra na luta contra Napoleão Bonaparte. Segundo ele,

[…] o demônio se tem empenhado em insuflar a soberba da mais vil canalha aspirante e ilusória de insanos, que não quer acabar de entender que os petulantes que se querem subrogar aos soberanos legítimos não são senão homens mal educados, atrevidos, imorais, reloucados, como têm mostrado nas suas obras, na infâmia dos seus cometimentos. E todos os que vimos desde 1789, na desgraçada França e outras partes, se me parece com um charlatão, que se ofereceu para endireitar corcovados, os quais saem com efeito eretos e direitos das suas falas, e imprensa, mas mortos. O Presidente da América Inglesa, esse espelho de saber em que não querem ver panos, nem névoas, ia há pouco dando com os burros n’água, implicando os seus Estados impunes ainda na guerra com Inglaterra, que afinal subjugou o furioso Bonaparte. Inglaterra, ela mesma, esteve para ver, no começo deste ano, a mais horrível e ensanguentada tragédia: nenhuma liberdade contenta a esta pobre raça humana, quando as paixões a irritam, e os velhacos ambiciosos a sabem açular, se a sabedoria e atividade bem temperada dos governos não se desvelam constantemente a sofrear a uns e outros (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1817, I-33, 27,00, p. 1, v-2).

Após descrever a situação da América Inglesa e da Inglaterra, onde catecismos revolucionários eram tolerados, trazendo más consequências, Morais Silva evoca a figura de d. Pedro I, o Justiceiro, de Portugal, como exemplo de soberano que aplicou corretivos, cuja eficácia, contudo, ele não tomava como inquestionável, diante das

[...] repugnâncias, desleixos, relutâncias das paixões e da condição da massa humana: que é necessário mais dizer das suas cegueiras, preguiças e más vontades, ainda que os soberanos não durmam, nem descansem e tenham sempre armadas esporas de fogo e, no cinto, o azorrague do Sr. d. Pedro, que uns chamaram o Cru e que as lágrimas do seu povo justificaram plenamente de Justiceiro (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1817, p. 2).

Morais Silva reproduz os mesmos lugares comuns aqui já vistos entre os realistas. Aborda a Restauração Pernambucana do século XVII, lendo-a na chave da fidelidade e à luz dos acontecimentos do seu tempo, em que identificava deslealdade e, portanto, uma negação daquele passado glorioso. Vendo a Restauração como manifestação de lealdade dos súditos ao soberano, Morais Silva condenava a Revolução de 1817. Discorre também sobre a transferência da Corte e seus impactos para os “brasileiros”, bem como suas consequências para os portugueses. Descreve a Aclamação de d. João VI - que foge aos propósitos deste artigo examinar em detalhes -, enfatizando a pompa, o luxo, o regozijo e as manifestações de fidelidade observados nos festejos ocorridos em Recife e coordenados pelo governador Rego Barreto, secundado por sua esposa. Ao tratar da Restauração, menciona a presença do padre Antônio Vieira, a proposta de transferência da família real lusa para Pernambuco (para o que Vieira teria tomado providências), a ideia de uma história regida pela Providência e, ainda, a identidade, anacronicamente projetada no século XVII, de “brasileiros”:

A imparcialidade da História deixa perpetuadas as gloriosas façanhas de fidelidade com que os Pernambucanos, abandonados pelos usurpadores de Portugal [(isto é, os Felipes, de Espanha)] a uma fácil conquista dos Holandeses, logo que a Justiça Eterna chamou ao trono de Portugal a Real Dinastia de Bragança, tomaram a voz de Seu legítimo e natural Soberano, o Senhor d. João 4º, e se restituíram a Seu Império e Senhorio. Seria longo e inoportuno referir os extremos e finezas da lealdade que os Pernambucanos, Europeus e naturais, em felicíssima concórdia, obraram na causa da Restauração: basta que as memórias mais fiéis daquela idade nos asseguram que ela foi a maior obra do reinado do Senhor d. João 4º e mereceu ao 2º Restaurador dos Portugueses o testemunho mais honroso de sua gratidão, recomendando à magnânima e prudentíssima Rainha, a Senhora d. Luiza, sua Consorte, que, quando os maus sucessos da guerra pusessem em perigo a sua Real Família, tomasse a Pernambuco por asilo e retiro. Uma série de desgraças nas campanhas da Europa esteve para realizar este sucesso, quando Francisco de Brito Freire foi mandado a governar esta Capitania, e o grande talento e fidelidade do Padre Antônio Vieira veio aqui dispor as coisas para tão magnífico recebimento. A Providência ordenou que fosse desnecessária esta emigração de uma Família sua abençoada, que já então era o sagrado vínculo de união entre o seu fiel Reino e os seus leais Brasileiros; não privou, porém, a esta Capitania de ser o meio de se assegurarem de novas usurpações dos Holandeses à Bahia e muitas outras colônias Portuguesas, que foram recobradas e resgatadas das tiranias daqueles astutos e então poderosíssimos usurpadores. Os primores da fé Pernambucana ficaram e serão exempilados [sic] ao Mundo, enquanto nele houver almas nobres, que saibam dar preço e valor aos mais religiosos deveres, que os homens hão de observar com os Deuses tutelares da paz, segurança e proteção dos mais sagrados direitos de seus vassalos (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1817, p. 1, 1v).

Em outro documento, Morais Silva execra a Revolução Pernambucana. Deixa, aqui e ali, pistas sobre quem foram seus atores e sua extensão, sublinhando a compra da plebe, a extensão do movimento às capitanias vizinhas e seu caráter de verdadeira guerra civil na Capitania, do que se depreende que ele não conseguiu negar, nem a si mesmo, a força do movimento. Ele louva a ação de d. João VI, particularmente associando-o a Deus, uma divindade limpa de todo traço mais forte de catolicismo, embebida em deísmo, exceto num aspecto: o perdão (que talvez possa também ser lido como algo tributário do deísmo, uma vez que este se negava a conceber uma divindade que pune e castiga). D. João VI seria um imitador de Deus. Morais Silva recorre a um vocabulário novo, em que se veem expressões como “direitos dos homens” e “filosofia”. Mas vê nas Revoluções uma manifestação da soberba demoníaca, que não leva senão à negação dos direitos dos homens e à destruição.

Recordações de tanta honra, de tanta glória, para esta Capitania, faziam chorar amargamente aos seus habitadores os crimes execrandos, perpetrados no sempre infausto dia 6 de Março de 1817, por alguns alunos seus e outros vindiços, que os corrompiam por iniciações ímpias e sacrílegas, e, comprando a pobreza e miséria da plebe esfaimada, os embriagaram a fazerem-se réus do mais sacrílego e abominável crime contra o Melhor dos Soberanos, réus de infidelidade, réus da ingratidão mais execrável e, se a mínima cor de provocação de um Rei, Pai de seu povo, que por não sacrificar as vidas e fazendas de seus vassalos compatriotas a uma defesa desigual e provavelmente mal aventurada, os quis preservar ilesos e veio lançar-se nos braços de seus vassalos Brasileiros para os livrar das calamidades, que se lhes acumulariam, se uma resistência mal sucedida ou uma detença mal prudente no Reino levasse à Real Família à insultuosa presença do Tirano d’Europa (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1818, I-33, 27, 002, p. 1, v-2).

Por fim, Morais Silva conclamava os portugueses a olharem, de um lado, os horrores que o “demônio da deslealdade” provocava na “Europa culta”, tomada pelo “orgulho filosófico” e iludido, conduzindo a “misérias”, “desgraças” e “crimes”, tentando “reformas imprudentes e insanas”, ferindo os “direitos dos homens” e, de outro lado, a bondade, a sapiência e o caráter divino de d. João VI e, ao mesmo tempo, a obediência que marcava a nação portuguesa:

Portugueses, alongai os olhos por toda a Europa culta, onde o demônio da deslealdade enfatuou os conselhos do orgulho filosófico e iludido, em misérias, desgraças e crimes, os insultos com que ele tentou por modos ilegítimos reformas insanas e imprudentes, pisando ele mesmo a escarnecida majestade do povo e os Direitos dos Homens, e dizei se, nos mares das mais tormentosas e horríveis calamidades, nenhuma nação teve um piloto tão Sábio como o nosso e se alguma teve, ou tem, um Rei tão Bom e tão Divino como o nosso, e tão abençoado do Céu com a primitiva e cordial obediência e fé em que sempre se aprimorou ou extremou a nossa Nação (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1818, p. 3, v-4).

José Maria Monteiro, um dos comandantes do bloqueio do porto de Recife, dirigiu aos “Habitantes de Pernambuco” uma “Proclamação”. Ela reúne várias representações e apropriações históricas aqui já abordadas, tendo sido publicada em Idade d’Ouro do Brazil, periódico baiano, em sua edição de 5 de agosto de 1817. Seu ponto de partida é aquele lugar comum empregado pelos realistas, segundo os quais “os sentimentos de honra e fidelidade” seriam elementos distintivos dos “bons portugueses”, ao mesmo tempo que teriam sido comprimidos “momentaneamente pela força”, por “um bando de facciosos e revolucionários”, que “apresentaram à Europa espantada o primeiro exemplo entre os Portugueses de deslealdade a seu natural e legítimo Soberano”. A “Proclamação” lembrava a Revolução Francesa, com a qual, por vinte e cinco anos, “monstros” haviam inundado grande parte do continente europeu com “as mais funestas calamidades, sendo talvez instrumentos com que a Justiça Divina, irritada pela imoralidade e irreligião destes últimos tempos, quis castigar a Europa” (IDADE D’OURO DO BRAZIL, 1817).21 21 A “Proclamação”, ao associar a irreligiosidade e imoralidade à Revolução Francesa, usa procedimento similar ao observado em panfletos que circularam em Portugal à época das invasões francesas. Sobre isso, ver: Lisboa (1991, p. 170-173). Se havia aqui um apelo a uma compreensão providencialista da história, segundo a qual Deus pune e castiga os maus fiéis, a “Proclamação”, ao mesmo tempo, sublinhava o papel dos homens em relação ao seu devir histórico, dirigindo-se aos habitantes de Pernambuco. Aliás, o texto distinguia aqueles a quem se dirigia, pois chamava-os de “Pernambucanos” e separava-os dos “Portugueses”, de quem seriam “Irmãos”; os “Portugueses” jamais creriam que os “Pernambucanos” se tornassem “sectários da mais fatal revolução” e do “feroz Tirano” por ela produzido - subentenda-se, Napoleão Bonaparte -, seduzidos por “frases especiosas” e “princípios” cuja “falsidade” era demonstrada pela “experiência”. Dizia aos “Pernambucanos” que havia, entre eles, naquele “século de corrupção e imoralidade imitadores do infame Traidor Calabar”, mas também existia, “nos descendentes dos Vieiras, dos Vidais, dos Camarões e dos Henrique Dias, os mesmos sentimentos de fidelidade e amor ao seu Soberano, que tanto os ilustraram” (IDADE D’OURO DO BRAZIL, 1817) - ou seja, Monteiro apropriava-se dos feitos da Restauração Pernambucana do século XVII, segundo a chave tipicamente realista.

O comandante Monteiro, ademais, comparava os holandeses, cuja diferença religiosa punha em perigo a “pureza” do catolicismo abraçado pelos pernambucanos, aos “revolucionários”, que ameaçavam “pelas bases todas as ideias religiosas e morais” e, ainda, que sendo vitoriosos, fariam como os holandeses ao conquistarem “este país”, isto é, despojariam os pernambucanos de suas riquezas. Eles não se moveriam senão pela “ambição de riqueza e poder”. A Revolução poria em perigo às “riquezas” do “Capitalista opulento”. A Revolução Francesa, cujos princípios eram proclamados pelos revolucionários de Pernambuco, se valera de instrumentos ilusórios para conquistar “as últimas classes da nação” e, ainda, tivera por desfecho o “tirânico despotismo e a insuportável miséria”, do que se conclui que os danos à propriedade vistos na França se repetiriam em terras pernambucanas. No Brasil, os “princípios revolucionários modernos”, de efeitos maléficos conhecidos na Europa, contudo, trariam “incalculáveis males”, haja vista o sucedido no Haiti, na Ilha de S. Domingos. Portanto, o comandante Monteiro não rememorava apenas a Revolução Francesa, mas também a Revolução do Haiti, juntando-as como ameaças:

Que segurança pode ter contra a força do poder colocado em tais mãos o Capitalista opulento, cujas riquezas estão desafiando todos os dias a sede ardente de ouro que os domina? [...] que incalculáveis males não ameaçam o Brasil no seu estado atual? O exemplo da Ilha de São Domingos é tão horroroso, e está ainda tão recente, que ele só será bastante para aterrar os Proprietários deste Continente (IDADE D’OURO DO BRAZIL, 1817).

A “Proclamação”, para evitar a destruição do país, conclamava os “Habitantes de Pernambuco” a deterem o “monstro” da Revolução, da “serpente” que “quer sepultar os pacíficos Povoadores do Brasil nos horrores”, sublinhando que “o chamado Governo Provisório detém a propriedade dos Portugueses, que provavelmente [quer] roubar, para com ela se pôr em salvo” (IDADE D’OURO DO BRAZIL, 1817).22 22 Sobre isso, veja: Mota (1972, p. 58-59). Portanto, a Proclamação somava o emprego de dois fantasmas para deter a Revolução de 1817: de um lado, a Providência e, de outro, os perigos representados pelos revolucionários à propriedade, lembrando duas Revoluções pretéritas, a Francesa e a Haitiana, bem como as ações dos holandeses no século XVII, louvando, assim, os que lá no passado e no seu presente engajavam-se na Restauração.

Considerações finais

Neste artigo, procurei demonstrar que, entre os contrarrevolucionários ou realistas que se opuseram à Revolução de 1817, as apropriações da história pregressa foram feitas com sentidos políticos e estratégicos claros. Não possuindo qualquer pretensão de cunho acadêmico ou científico, os contrarrevolucionários fizeram dos fatos dos passados argumentos para se pensar sobre o presente e justificar ações no seu interior, tendo em vista um futuro que se mirava como desejável e, ao mesmo tempo, um passado distante que se concebia como digno de imitação e/ou superação. As apropriações da história se articulavam a noções do que seria a história (história mestra da vida, isto é, narrativa de fatos exemplares, e/ou história como um curso de fatos, ou ainda história como um curso em que a mão divina interfere). Nessas três situações, não importa, o passado trazia à tona situações análogas, a serem imitadas ou negadas, e/ou em que se viam princípios a serem seguidos, ou ainda que poderiam alargar o entendimento acerca do presente vivido, na medida em que as similitudes configuram tipos, quase tipos ideais, ou permanências, ou ainda, rupturas. Percebida a identidade tipológica, seria possível descortinar as possibilidades, não propriamente fatalidades, contidas no presente. Esses usos combinam os tipos “moderno” e “antigo” de experiência histórica, de que fala Valdei Lopes de Araújo, indicando que as transformações nas noções de história, embora então detectáveis, não eliminaram ambiguidades e instabilidades conceituais.

Nas apropriações da História Antiga, veem-se modelos, exemplos, que, em Pernambuco, poderiam ser imitados - talvez, com perfeição maior -, ou, pelo contrário, situações a serem refutadas. As “revoluções”, por seu lado, podiam remeter a um fenômeno geral, ou, pelo contrário, a realidades específicas, como as diversas partes da América Espanhola, a América Inglesa e, sobretudo, a França e o Haiti. A Revolução Francesa foi uma referência marcante, sendo usada com frequência pelos contrarrevolucionários como espetáculo de horrores, palco de erros a serem evitados, fonte de princípios, cuja concretização em outras realidades teria sido maléfica e que, em Pernambuco, seria fonte de enganos, malogros e novos erros. O Haiti esteve na mesma categoria. Ora implícita, ora explicitamente, a Revolução do Haiti foi representada como um fantasma, um caso a ser temido e, portanto, que se deveria procurar evitar que se reproduzisse no Reino do Brasil.

As reflexões de Montesquieu, em Do Espírito das Leis, aparecem como uma referência explícita em um dos casos. As apropriações das lutas desenvolvidas em Pernambuco contra os holandeses no século XVII talvez tenham sido feitas em correlação com a antinomia entre honra e igualdade estabelecida por Montesquieu - a primeira, a mola principal das monarquias e a segunda, a das repúblicas. Para os realistas, a soberania estava no rei. O rei deveria ser objeto da fidelidade dos vassalos. A fidelidade era indicativa da honra dos vassalos. A infidelidade concretizada na Revolução, por conseguinte, afrontava a honra e a ideia de soberania que se tinha em mente. Os fatos do século XVII eram manifestações de fidelidade dos súditos pernambucanos. Na perspectiva dos contrarrevolucionários, portanto, em 1817, mostrando-se infiéis, os pernambucanos desonravam de uma só vez aos ancestrais do século XVII e ao melhor dos soberanos.

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Notas

  • 1
    Uma força, uma faculdade, entendida apenas em ação, pertencente a todos os homens pensantes, de todas as épocas e culturas, que deveria ser repartida com os semelhantes, que lhes permitiria descobrir e conquistar parcelas do saber, e que não reconhecia outra autoridade que não a si mesma (CASSIRER, 1993, p. 28-29; BLANCO MARTÍNEZ, 1999, p. 69-70).
  • 2
    Sobre este assunto, veja: Habermas (1984, p. 50-57) e Chartier (2008, p. 45).
  • 3
    Sobre circulação de livros de Condorcet no Brasil, veja: Andrade (2012, p. 248).
  • 4
    Quase um século antes, algo similar foi feito (e dito) por outro governador, o Conde de Assumar, que, premido pela necessidade de defender-se perante El-Rei, por medidas por ele tomadas em seu governo em Minas Gerais, decidiu buscar socorro nos livros (SOUZA, 1995, p. 40-41).
  • 5
    Essa data é a da provisão que lhe foi passada, atendendo ao seu pleito, não datado (BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, 1830).
  • 6
    Sobre isso, ver: Mendonça (2011).
  • 7
    Sobre a libertinagem no mundo luso-brasileiro, ver: Villalta (2015, 2016) e Nunes (2017).
  • 8
    A corrupção e sua delação por rivais eram rotineiras sob aquele tipo de dominação patrimonialista característico do Antigo Regime luso-brasileiro. Ver: Villalta (2016).
  • 9
    A preocupação com o número de clérigos e de casas de regulares, bem como com as propriedades destes e, de resto, da Igreja, era algo muito corrente entre os europeus (NUNES, 2017, p. 52-53). As críticas e oposições ao clero regular foram frequentes entre os ilustrados, tais como Montesquieu, Voltaire e Argens (VILLALTA, 2006a; VILLALTA, 2006b; VILLALTA, 2016). Portugal não foi uma exceção, uma vez que as Luzes lusitanas tiveram na oposição ao clero regular uma marca (SILVA, 2013, p. 179). A coroa portuguesa, sob o reformismo ilustrado, tomou medidas que exprimiam essa compreensão crítica e que visavam ao fortalecimento da jurisdição régia (NUNES, 2017, p. 42-56).
  • 10
    A citação corresponde à edição francesa de 1758 (a primeira, data de 1748), veja-se: Montesquieu (1758/1995, p. 111).
  • 11
    Em português do século XVIII, a palavra “defender”, como em francês, poderia significar proibir. Veja: Silva (1789, v. 1, p. 519) (Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/2/defender>).
  • 12
    A “economia do dom” envolvia a concessão pela monarquia de benefícios, bases das relações políticas, aos súditos. Baseava-se, ainda, em redes clientelares, que ligavam os atores sociais de forma diversa e assimétrica, conforme sua posição nos diferentes planos. Tais redes, reunindo benfeitores e beneficiários, traziam mais vantagens para quem estava no polo de credor e compreendiam uma tríade de obrigações (e favores): dar, receber e restituir (XAVIER; HESPANHA, 1997, p. 340-341).
  • 13
    Sacerdote secular e bacharel pela Universidade de Coimbra, Bernardo era Vigário geral e deão de Olinda, promotor do juízo eclesiástico de Pernambuco, comissário do Santo Ofício e advogado nos auditórios do Recife. Aos 8 de março de 1817 assinou Proclamação incentivando o povo a obedecer ao Governo Constituído após a Revolução (DH, 1955, v. CI, p. 12-13). Contra ele, havia um Sumário da Inquisição de Lisboa, 1796-1803, por “proposições heréticas e escandalosas”; o promotor do tribunal referido julgou mais prudente esperar por melhor prova (INSTITUTO DOS ARQUIVOS NACIONAIS DA TORRE DO TOMBO, 1796-1803).
  • 14
    Provavelmente, uma mistura de latim com italiano, cuja tradução pode ser: “É agora o tempo aceitável, é agora o dia da Salvação”, uma referência direta da II Epístola de Paulo aos Coríntios 6,2. Agradeço a André Pereira Miatello pela tradução e pela identificação da referência bíblica.
  • 15
    Sobre os libertinos no mundo lusobrasileiro, ver: Abreu (2008), Villalta (2015, p. 217), Nunes (2017, p. 113, 125, 191 e 201).
  • 16
    Em um conjunto de poemas satíricos em circulação em Portugal no final do século XVIII, “os desvios comportamentais dos eclesiásticos, seculares e regulares, foram recuperados por quase todos”; Pina Manique, o Intendente Geral de Polícia, preocupava-se com esses desvios dos clérigos, que manchavam a reputação dos religiosos e de suas ordens, causando escândalo entre os seculares (NUNES, 2017, p. 219-220 e 228-229); naquela conjuntura revolucionária, clérigos de comportamento indecoroso, nos trajes e hábitos (como o de frequentar tavernas), “serviam ‘de objeto para escarnecerem os Povos’, ameaçavam as bases do trono, que requeria ‘benquistar os ditos eclesiásticos com os povos e unir quanto for possível o sacerdócio com o Império’” (VILLALTA, 2016, p. 15). Alguns clérigos angustiavam-se com a situação, como Antônio Seromenho de Olivaes, abade de São João da Cova, em Portugal. Em 1794, ele denunciou Antônio José de Mesquita Pimentel, abade na igreja e freguesia de S. Gens de Salamonde, belicoso, perseguidor de desafetos, manipulador da justiça eclesiástica, intimidador de testemunhas, clérigo que desonrara uma moça honesta, era concubinário e desrespeitara o sacramento da penitência. Informou que tais comportamentos eram de conhecimento público e que desejava “que os fregueses viv[essem] em paz e com sossego”, “dar remédio aos gemidos dos pobres lavradores rústicos, que vivem oprimidos e sufocados sem ter a quem recorrer na terra no presente século” (IANTT, Inquisição de Coimbra, Caderno do Promotor No. 228, p. 160v). Portanto, as censuras e os temores do “economista” de Pernambuco, em 1817, não eram fatos isolados.
  • 17
    Vejam-se, por exemplo, as edições da Gazeta do Rio de Janeiro, de 14/05/1817 e da Idade d’Ouro do Brazil, de 27/05/1817. Sobre o último jornal, veja: Silva (2015).
  • 18
    Veja-se, sobre isso: DH (1953, v. CI, p. 49).
  • 19
    Em requerimento dos idos de 1801 dirigido ao Visconde de Anadia, os irmãos Francisco de Paula e Luiz Francisco Cavalcanti, os Suassuna, recorreram ao século XVII para comprovar sua lealdade à Coroa, afirmando que “‘têm a felicidade de descender dos portugueses mais ilustres daquela capitania [de Pernambuco], cujo terreno banharam tantas vezes com o seu sangue em defesa da Pátria na memorável época da expulsão dos holandeses’” (apud CADENA, 2013, p. 58, grifos meus). Portanto, Restauração era empregada conforme as conveniências políticas.
  • 20
    Contra esta certeza, pesa a informação de que houve sessões dos “tais malvados [, que] se fazem na sala do Governo e à noite: ali se ajuntam como Conselheiros Antônio Carlos, o Capitão-mor do Recife Antônio de Morais Silva, filho do Rio de Janeiro, que foi ali Juiz de Fora, e Gervásio Pires Ferreira e que por voto deste se pronunciou confisco em todos os bens dos que se ausentassem e estivessem fora” (DH, 1953, v. CI, p. 127).
  • 21
    A “Proclamação”, ao associar a irreligiosidade e imoralidade à Revolução Francesa, usa procedimento similar ao observado em panfletos que circularam em Portugal à época das invasões francesas. Sobre isso, ver: Lisboa (1991, p. 170-173).
  • 22
    Sobre isso, veja: Mota (1972, p. 58-59).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2017
  • Aceito
    18 Out 2017
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