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MIKHAIL BULGÁKOV E YESHUA HA-NOTZRI: Evidências da primeira busca do "Jesus histórico" na literatura soviética

Mikhail Bulgakov and Yeshua Ha-Notzri - evidence of the first quest for "historical Jesus" in soviet literature

RESUMO

O romance O Mestre e Margarida de Mikhail Bulgákov põe em evidência o conflito das diferentes abordagens do problema do "Jesus histórico". A referida obra do escritor e dramaturgo soviético, que se insere em um contexto político e social do stalinismo, é analisada do ponto de vista da apresentação da figura de Cristo como personagem histórica e é contemporizada com publicações sobre a religião, sob ângulos da evolução histórica da sociedade russa e soviética, na época da escrita do romance. Os núcleos separados da análise do conteúdo dos Evangelhos, segundo a narrativa de Bulgákov, ressaltando o crime, o castigo e a vingança, enfatizam a natureza humana de Cristo, seu discurso e seus sentimentos e levam a conclusões sobre uma busca do "Jesus histórico" por meio da literatura soviética.

Palavras-chave:
Mikhail Bulgákov; O Mestre e Margarida; Jesus Histórico

ABSTRACT

Mikhail Bulgakov`s novel The Master and Margarita highlights the conflict of different approaches to the problem of "historical Jesus". The novel of the Soviet writer and playwright, written as a part of the political and social context of Stalinism, is analyzed from the standpoint of the Christ figure approach as a historical character and is contemporized with publications on religious topics, through the prism of the historical evolution of Russian and Soviet society at the time of the novel`s writing. The separate segments of the analysis of Bulgakov's narrative of the Gospels, which dwell upon the crime, the punishment and the vengeance, emphasize the human nature of Christ, his discourse and his feelings and lead to some conclusions of a quest for "historical Jesus" in Soviet literature.

Keywords:
Mikhail Bulgakov; Master and Margarita; Historical Jesus

Introdução

Em 2016 completam-se 125 anos do nascimento de Mikhail Bulgákov (1891-1940), escritor e dramaturgo, dos mais brilhantes da literatura russa da época soviética. Mikhail Bulgákov escreveu, entre os anos de 1928 e 1940, o romance que seria considerado a sua obra-prima: O Mestre e Margarida (MILNE, 1990MILNE, L. Mikhail Bulgakov: A Critical Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.). No entanto, em razão dos problemas enfrentados junto à censura stalinista (MILNE, 1990), o autor não conheceu a publicação desse seu romance durante a vida (ANDRADE, 2002ANDRADE, H. F. O Diabo solto em Moscou. São Paulo: EDUSP, 2002.). De fato, a versão integral,1 1 O Mestre e Margarida foi publicado pela viúva de Bulgákov, Elena Sergeevna Bulgakova (Shilovskaya, de sobrenome de solteira), em novembro de 1966 (parte 1) e janeiro 1967 (parte 2) na revista Moskva. Todas as 150.000 cópias do número de novembro se esgotaram em poucas horas e ambas as revistas rapidamente se tornaram uma raridade bibliográfica ( WEEKS 1996 , p. 6; ANDRADE, 2002 , p. 264). Esta edição foi censurada em mais de cem páginas, principalmente para atender os censores soviéticos: as partes cortadas foram àquelas relacionadas ao capítulo "O Sonho de Nikanor Ivânovich" (capítulo 15) que trata com o tema delicado de interrogatórios e de moeda estrangeira; a narrativa do Mestre (capítulo 24) de que seu vizinho, Aloísy Mogarych, foi o responsável por delatá-lo às autoridades a fim de ficar com o acolhedor flat do Mestre situado no subsolo da Travessa Arbat ( WEEKS, 1996 , p. 243-244); e as referências à nudez e à linguagem chula de Margarida. O texto completo foi publicado em Paris no ano de 1967 (YMCA Press); uma edição completa restaurada foi publicada na Alemanha (Frankfurt am Main) pela Possev Verlag em 1969, com as partes censuradas em itálico. Uma versão do romance, desta vez sem censura, foi publicada em Moscou em 1973, quando a primeira edição completa do romance saiu em forma de livro. Esta versão foi preparada por Anna Saakyants. Finalmente, em 1989, uma nova edição do romance foi preparada para publicação em Kiev por Lidia Ianovskaia, que checou o texto junto a todos os materiais disponíveis. sem qualquer tipo de corte, só apareceu trinta e três anos após a sua morte, em 1973. Desde então O Mestre e Margarida se tornou um clássico da literatura mundial, com traduções para inúmeros idiomas.

A abordagem de um tema religioso, num romance de ficção, que veio à luz somente na época do "degelo" pós-stalinista, surpreendeu e cativou leitores, cerceados quanto ao acesso à literatura com referências religiosas na União Soviética. Contra qualquer expectativa, o romance transformou-se numa narrativa literária do Novo Testamento, para as gerações pós-Guerra dos leitores soviéticos que, educados no espírito ateísta, sem nunca frequentar a igreja, começaram, repentinamente, a discutir livremente a figura de Cristo e as questões da fé.

Neste artigo a linha da narrativa religiosa do romance será explorada pelos autores pelo prisma da repercussão da personalidade religiosa sobre a História, sob o ângulo da interpretação da figura de Jesus, como uma personagem histórica, sem perder de vista a irradiação de religiosidade espontânea que Mikhail Bulgákov associa à figura de Ha-Notzri.

Por apresentar uma visão radicalmente diferente dos quatro Evangelhos, chancelados pelas igrejas cristãs, os conjuntos de dados, apresentados pelo autor, nos quatro capítulos do romance (por que não dizer, em "O Evangelho segundo Mikhail"?), serão analisados à luz do que estava sendo dito, antes da redação final do seu romance, pelos especialistas das denominadas Vidas de Jesus.2 2 Para um aprofundamento, ver POWELL, 1998 ; REIMARUS, 1970 (1774-1778); STRAUSS, 1972 (1835). Do ponto de vista historiográfico, essas biografias fazem parte do que hoje se convenciona chamar Primeira Busca do Jesus Histórico. Para efeito deste artigo, foram selecionadas algumas das mais representativas obras historiográficas temáticas, pelo forte impacto que elas causaram ao ambiente europeu, no geral, e à Rússia, no particular.

Buscar-se-á comparar as informações dadas por Bulgákov, acerca das suas personagens inseridas na Jerusalém do séc. I, com aquelas advindas das Vidas de Jesus e com algumas historiografias recentes, a fim de se estabelecer dados e análises comparativos. Será, para este fim, aproveitada a metodologia histórica comparada, com base na qual as informações e os dados extraídos da análise do discurso literário de Bulgákov serão correlacionados com a discussão historiográfica contemporânea da época da escrita do romance. Como forma de manter, no corpo do texto, as informações produzidas pelo referido literato russo, com o intuito da análise discursiva, todos os dados extraídos das bibliografias das Vidas de Jesus serão situados nas notas de rodapé, mantendo, deste modo, uma separação entre o discurso do autor e a discussão historiográfica referente aos fatos respectivos.

O romance e sua ligação com a biografia do autor

A ideia de Mikhail Bulgákov de escrever uma obra sobre a vida de Jesus, em um romance de prosa, passa por uma gênese ligada à trajetória de sua vida, conforme observou Viktor Lóssiev, que, ao lado de Marietta Chudakova e Lídia Ianovskaya, é um dos renomados estudiosos da obra do referido escritor russo:

Quase toda a obra de Mikhail Bulgákov é, de certo modo, autobiográfica. Em todo caso, a este gênero podem ser atribuídos todos os seus romances, uma grande parte das peças, algumas novelas e contos. No entanto não há obras estritamente autobiográficas, a partir das quais se poderia compor uma descrição da vida do escritor, porque sua imaginação literária e fantasia deslumbrante estão invariavelmente presentes em suas obras (LÓSSIEV, 1998LÓSSIEV, V. I. Khudôjestvennaia Avtobiográfia Mikhaíla Bulgákova. (Autobiografia literária de Mikhail Bulgákov). Moskva: OOO "Izdátielstvo AST-Ltd", Viêtche, 1998. Disponível em: <Disponível em: http://lib.rin.ru/doc/i/23774p1.html acesso 03/03/2014 > Acesso em 01 mar. 2014.
http://lib.rin.ru/doc/i/23774p1.html ace...
, p. 74. Tradução livre).

Nascido em 1891, na cidade de Kiev, Mikhail Afanássievitch Bulgákov absorveu a cultura religiosa de seu pai, professor de teologia na Academia Eclesiástica de Kíev, a religiosidade de sua família (ambos os pais nasceram em famílias de sacerdotes ortodoxos) e a própria sociedade russa, antes que o destino o mergulhasse no ambiente da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Guerra Civil na Rússia (1918-1922). Após se formar como médico, na Universidade de Kiev, em 1916, ele exerceu a profissão, durante a Primeira Guerra Mundial, assistindo ao turbilhão dos conflitos armados e da mudança de regimes na Rússia, participando do movimento "branco" antibolchevique no rio Don e no Cáucaso. "O meu destino foi confuso e temível", escreveu Mikhail ao seu irmão Nikolai em 21 de fevereiro de 1930 (BULGÁKOV, 2003BULGÁKOV, M. A. Zapíski na Manjétakh. Zapíski Pokóinika: Teatralnyi Roman. (Anotações sobre Punhos de Camisa. Anotações do Defunto: o Romance Teatral). São Petersburgo: Azbuka-clássica, 2003., p. 7).

Desde que adentrou ao círculo literário da Rússia soviética, ele recebeu das autoridades o tratamento que foi aplicado a outros nomes dissidentes da plêiade de escritores, tais como: Mikhail Zóshchenko, Andrei Platónov, Daniil Kharms, Evguênii Zamiátin. Todos eles, incluindo o próprio Bulgákov, durante a época stalinista, iam sendo, gradualmente, deslocados da luz da cena literária para a sombra do esquecimento.

O seu romance O Mestre e Margarida surge dentro de um contexto político e social de stalinismo, que se fortalece, depois do exílio de Trotsky, em 1928 e chega ao seu ápice em 1937-1938, na época das maiores repressões.

Bulgákov é testemunha, desde o início, da campanha de ateísmo militante e do confisco da propriedade da Igreja Russa pelo regime soviético, acompanhados pelas represálias contra o clero ortodoxo. A Igreja Ortodoxa no Exterior, formada em 1920, durante a Guerra Civil, pelos representantes da emigração russa, separa-se do Patriarcado de Moscou em 1927, em protesto à decisão de o Metropolita Serguei Starogoródskii ter concordado que a igreja coopere com o regime soviético.

A literatura e a dramaturgia soviéticas dos anos 1920 refletem a luta antirreligiosa na União Soviética neste período, que põe em evidência o conflito das abordagens diferentes em relação à solução do "problema do Cristo". Como escreve Nadejda Dojdikova:

A necessidade de optar por uma metodologia científica colocava os teóricos nacionais perante duas tradições conhecidas, que se formaram na crítica racionalista do cristianismo no início do século XX. Na literatura ateísta soviética daqueles anos elas ganharam denominações de "escola histórica" e de "escola mitológica". Cada uma delas propunha o seu próprio modelo de solução científica do "problema do Cristo", que, de maneira abreviada, pode ser designado pelas categorias de "Jesus histórico" e "Jesus mítico" (DOJDIKOVA, 2009DOJDIKOVA, N. Tchiêm byl nedovólien Berlioz? O Romanie M. A. Bulgákova "Máster e Margarita" e o "Probliêmie Khristá. ("Com que não estava contente Berlioz? Sobre o Romance "O Mestre e Margarida" o sobre o "Problema de Cristo"). Neva, 2009, n. 7. Disponível em Disponível em <http://magazines.russ.ru/neva/2009/7/do28.html > Acesso em: 28 fev. 2014
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, p. 29. Tradução livre).

O autor e o ideólogo mais valorizado da "escola histórica" foi Karl Kautsky, cuja obra "A Origem do Cristianismo" (1908) foi usada por V. I. Lênin e por seus correligionários Bontch-Bruiévitch e Lunatcharski, até que o "renegado Kautsky" deixasse de ser útil para o governo bolchevique. A explicação do fenômeno do Cristo por meio de sua personificação como revolucionário e primeiro socialista na história, nas fases iniciais da luta contra a religião, satisfazia a propaganda ateísta do governo sovíetico, porque se encaixava nos cânones do materialismo histórico. Porém, essa linha encontrou uma resistência feroz do ateísmo militante, que, ao usar o conceito de "Jesus mítico", advindo da "escola mitológica" (DREWS, 1910DREWS, A. The Christ Myth. London: T. Fisher Unwin, 1910., p. 235), não somente empreendeu esforços monstruosos para intimidar os representates da escola histórica e debilitar as suas posições, mas jogou todo o peso da propaganda, acompanhada pelos espurgos, dirigidas contra a igreja, para desconstruir a ideia do "Jesus histórico" perante a sociedade. Na liderança do ateísmo militante, reuniram-se Skvortsov-Stepanov (SKVORTSOV-STEPANOV, 1959SKVORTSOV-STEPANOV, I. Mysli o Relíguii. (Reflexoes sobre a religião) . Gospolitizdat, 1959.), um dos três tradutores de "O Capital" (1910) em russo e o primeiro comissário de finanças do governo bolchevique; o poeta revolucionário Demian Biêdnyi (BIÊDNYI, 1925BIÊDNYI, D. Novyi Zaviêt bez iz'iana ot Ievanguelista Demiana. (O mandamento sem defeito do evangelista Demian). Pravda: Bolchevique, 1925.); e o ideólogo ateísta Emeliân Iaroslavskyi (IAROSLÁVSKYI, 1937). Somaram-se a eles dezenas de sociedades, jornais3 3 Jornal "Biezbójnik" (1922-1941); Jornal "Ateíst" (1923-1930); Jornal "Antireliguióznik" (1926-1941); Jornal "Voínstvuiustchii ateísm" (1931). e revistas4 4 Revista "Biezbójnik u stanká" (1923-1932). ateístas, além de hordas de acólitos propagandísticos que começaram a denigrir e a descontruir o Cristianismo e a figura do Cristo, usando a obra e a metodologia de Arthur Drews.

Segundo Dojdikova (2009DOJDIKOVA, N. Tchiêm byl nedovólien Berlioz? O Romanie M. A. Bulgákova "Máster e Margarita" e o "Probliêmie Khristá. ("Com que não estava contente Berlioz? Sobre o Romance "O Mestre e Margarida" o sobre o "Problema de Cristo"). Neva, 2009, n. 7. Disponível em Disponível em <http://magazines.russ.ru/neva/2009/7/do28.html > Acesso em: 28 fev. 2014
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), Bulgákov adquiriu o acervo completo das edições da revista "O ateísta operando a máquina", do ano 1924, quando ele visitou a redação no início de janeiro de 1925. A anotação no seu diário, datada de 5 de janeiro de 1925, revela a sensação que ele teve: "Jesus Cristo é retratado como patife e pilantra, imagina, ele. Este crime não tem valor" (BULGÁKOV, 1990BULGÁKOV, Mikhail. Pod piatói. Moi dnevnik. (Sob a prensa. Meu diário.) Moskva: Izdatelstvo "Pravda", 1990. (Biblioteka "Ogoniók").).

É importante frisar que, apesar de nascer em uma família, de onde saíram padres ortodoxos, Mikhail Bulgákov cresceu e foi educado num ambiente de alta intelectualidade, liberdade de ideias, frivolidade de pensamento, fantasias criativas, não necessariamente pias ou rigorosamente sacras. O fato de ele ter escrito a comédia, que ridiculariza o clero "O Jugo do Clero" ("Kabalá sviatóch" ou "Molière", 1930), encaixa-se, pelo que se pode constatar, muito mais no intuito de se conformar com a crítica literária antirreligiosa da época e, talvez, de se indignar com o clero que se submeteu ao poder mundano dos sovietes a refletir sobre o embate real entre a fé e o ateísmo na Rússia soviética.

No seu romance épico "A Guarda Branca" (1924-1925), Bulgákov refere-se, algumas vezes, à questão da fé. Entre os mais memoráveis, podem ser destacados dois episódios. No primeiro, a oração de Elena Turbin, pela vida de seu irmão ferido Alexei, é dirigida à Santa Virgem com uma emoção singela e uma devoção infinita, de modo que ela, indiretamente, sacrifica o casamento com seu marido fugitivo, em troca da recuperação de Alexei, este último à beira da morte. E recebe a benção divina: Alexei retorna à vida (BULGÁKOV, 2004BULGÁKOV, M. A. Biêlaia Gvárdiya. (A Guarda Branca). Moskva: NF "Púchkinskaia Biblioteka"; OOO "Izdátielstvo AST", 2004., p. 321-324). No segundo episódio, Bulgákov descreve o sono de Providência de Alexei, que sonha estar no Paraíso e se encontra com o coronel Nai-Turs, ainda vivo, e com o Wachtmeister5 5 Patente de suboficial na cavalaria do exército e na polícia montada da Rússia até 1918. Jílin, este último já morto em 1916, logo após a cirurgia feita por Alexei num hospital militar. A descrição do Paraíso e o relato de Jílin sobre a sua conversa com Deus (sic!) demonstram uma fantasia inacreditável, misturada com humor, ao aproximar a vida celestial com a vida real e as relações humanas, que Bulgákov infere, indiretamente, ao outro mundo (BULGÁKOV, 2004BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 80-86). É um exemplo de humanização da problemática religiosa por Bulgákov, no tratamento dos horrores da guerra, que ele próprio vivenciou.

Outro grande estímulo à criação de uma obra sobre Jesus Cristo proveio do próprio talento literário de Bulgákov. Ele contemplou escrever um romance fantasmagórico e humorado que permitisse envolver leitores, contaminados pelo ateísmo e afastados da religião pela intimidação e pelo medo do regime, numa trama divertida e empolgante sobre a vida, em Moscou dos anos 30, bem bulgakoviana, tendo como pano de fundo a história realista da crucificação de Jesus Cristo.

O lado de diversão surge desde a introdução da figura de Woland6 6 É plenamente possível ler esse homem misterioso, que no romance recebe o nome de Woland, como Satanás. Weeks (1996 , p. 43) parece mesmo estar correta quando o associa mais à figura de Satã da Bíblia Judaica do que a Satanás, que desempenha o papel de "adversário" de Deus, na Bíblia Cristã. Uma leitura de Pagels (1996) seria de grande valia para o leitor aprofundar esta distinção. e de sua corte, cuja mágica é usada para proteger e defender os protagonistas do romance da arbitrariedade do poder reinante na época.

O suposto maniqueísmo no romance, em termos da luta entre o bem e o mal, é, provavelmente, introduzido por Bulgákov, para sublinhar a fraqueza do Céu, no que diz respeito à proteção divina contra a vulnerabilidade dos cidadãos soviéticos aos males da ditadura stalinista, que não se comparam de longe com as artimanhas e as malícias, na sua grande maioria, irrisórias, infligidas por Woland e seus acompanhantes.

De certo modo, o que impressionou e estimulou o autor a escrever o romance foi a publicação do conto Venediktov ou Acontecimentos Memoráveis da Minha Vida de Tchaiánov (1922TCHAIÁNOV, A. V. Venedíktov, íli Dostopámiatnyie Sobýtia Moiêi Jízni. (Venediktov ou Acontecimentos Memoráveis da Minha Vida). Míktov: Izdánie ávtora, 1922.), no qual ele descreve o aparecimento de Satã e, surpreendentemente, o protagonista tem o sobrenome Bulgákov. Esse livro fazia parte do acervo de Mikhail Bulgákov e várias partes do conto relatam cenas e inserem personagens que lembram os da obra O Mestre e Margarida: o jogo diabólico de cartas (possui elementos do baile de Woland em Moscou); os assassinatos à distância (os atos de serial killer Azazello); a descrição de Satã (contendo semelhanças com Woland); e o erotismo das cenas (o Baile de Satã). A narrativa de locomoções frenéticas e de transformações diabólicas é abordada por Bulgákov em A Diaboliada (1924) (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.), em que a descrição de instituições soviéticas muito se assemelha com a de O Mestre e Margarida.

Porém há uma grande diferença entre as duas primeiras obras e o romance: enquanto Venedíktov e a Diaboliada tratam de fenômenos sobrenaturais e são criações imaginárias, O Mestre e Margarida reabilita, no auge da campanha antirreligiosa soviética, a história evangélica de Jesus, tendo sido escrita na época, quando opiniões em defesa da religião ou mesmo referências religiosas neutras na literatura ou na imprensa poderiam resultar não somente na perda das regalias e do renome literário de autores, como também na condenação ao desterro, à prisão ou à morte.

Assim, por exemplo, a conversa entre Berlioz e o poeta Ivan Bezdómnyi prenuncia a batalha entre as duas tendências, contidas no ateísmo do regime soviético - o Jesus Histórico (a versão de Ivan Bezdómnyi) versus o Jesus mítico (a versão de Berlioz) - que toma a forma de humanização em detrimento da mitificação da personagem Yeshua Ha-Notzri. Porém Bulgákov não nega a natureza divina de Jesus, que se encontra, no fim do romance, com o Procurador Pôncio Pilatos, libertado de seu "cativeiro babilônico", a pedido de Margarida e pela vontade de Woland, no Reino da Luz.

O romance O Mestre e Margarida nasce, assim, a partir de um protesto intelectual do autor ao ateísmo militante do governo bolchevique da Rússia, nos anos 1920 e se transforma, ao longo da escrita, em uma obra dissidente e crítica do regime stalinista para o final dos anos 1930. Indignado com a propaganda ateísta difamatória da imagem de Cristo, visto como "doente mental" ou "alcoólatra" (DOJDIKOVA, 2009DOJDIKOVA, N. Tchiêm byl nedovólien Berlioz? O Romanie M. A. Bulgákova "Máster e Margarita" e o "Probliêmie Khristá. ("Com que não estava contente Berlioz? Sobre o Romance "O Mestre e Margarida" o sobre o "Problema de Cristo"). Neva, 2009, n. 7. Disponível em Disponível em <http://magazines.russ.ru/neva/2009/7/do28.html > Acesso em: 28 fev. 2014
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), Bulgákov vê o antídoto ao ateísmo militante, na humanização da figura de Jesus, na tentativa de deixá-lo mais próximo do consciente social, mitigando a percepção de sua natureza dual e acentuando a sua natureza humana. Na sua tentativa de personificá-lo, Bulgákov adota a abordagem do "Jesus Histórico", como será demonstrado mais abaixo.

Escrito para "gaveta", no período stalinista, O Mestre e Margarida colocou o Jesus histórico em grande circulação na sociedade do "degelo" dos 1960 e, mais tarde, na época da "liberdade" e da ingênua e idealista "perestroika" dos 1980.

Jesus: a pessoa e o crime

Em linhas gerais, o romance descreve a visita que um homem misterioso e sua corte fazem à cidade de Moscou dos anos 30 do século XX e todas as peripécias daí derivadas, num contexto histórico subentendido. O interesse aqui, porém, reside em quatro capítulos específicos do romance, em que Bulgákov faz referências explícitas a Yeshua Ha-Notzri,7 7 O nome Yeshua Ha-Notzri é usado por Bulgákov após ser provavelmente emprestado da peça do russo Serguei Tchevkin "Yeshua Ha-Notzri. A descoberta imparcial da verdade" (1922) e do livro "The Christ Myth" de Arthur Drews, traduzido na Rússia em 1906 e fazendo parte da biblioteca do autor, conforme apontamentos encontrados nos arquivos de Bulgákov (ver: Enciclopédia de Bulgákov. Disponível em: <http://dic.academic.ru/dic.nsf/enc_bulgakov/60/%D0%98%D0%95%D0%A8%D0%A3%D0%90> Acesso em 04 de julho de 2016). bem como a outras personagens históricas que gravitaram em torno dele. Salta aos olhos o tratamento romanceado e cheio de detalhes descritivos realistas que o escritor russo dá à cidade de Jerusalém da primeira metade do século I, bem como a sua interpretação nada ortodoxa aos textos canônicos sobre a "Paixão de Cristo" (WEEKS, 1996WEEKS, L. D. The Master and Margarita: A Critical Companion. Illinois: Nothwestern University Press / AATSEEL Critical Companions to Russian Literature, 1996.).

As informações provêm do diálogo travado entre Pôncio Pilatos e Yeshua Ha-Notzri. Esse magistrado romano precisa verificar a existência do crime e confirmar ou não a sentença de morte do Sinédrio contra este prisioneiro (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

O Procurador, mostrando-se bastante entediado com toda a rotina administrativa, em especial, com aquela que o obriga a ter que conviver, eternamente, com os inúmeros problemas trazidos pelos judeus, tem informações vagas sobre o acusado: tratava-se de um homem de uns vinte e sete anos de idade, acusado de incitar o povo a destruir o Templo de Yershalaim. Ao ser informado dessa acusação, o prisioneiro nega-a por completo, deixando claro que o que ele falava ao povo era que o templo da velha crença ruiria e que em seu lugar se ergueria o novo templo da verdade (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Nota-se, nesta fala final de Ha-Notzri, uma percepção antijudaica, em especial, na associação entre o judaísmo como a velha crença e o cristianismo como o novo templo da verdade. O resultado final é que o último sistema religioso viria a substituir o primeiro que, obviamente, ruiria (ECO, 2011ECO, U. O Cemitério de Praga. Rio de Janeiro: Record, 2011.).

A seguir, Pilatos passa a interrogá-lo, querendo obter dados mais precisos a seu respeito. No primeiro momento, o prisioneiro o chama de "homem bom", provavelmente, para aliviar a tensão e dispor a si o interrogador. Mas a informalidade irrita Pilatos, que sofre de enxaqueca e pede que o prisioneiro seja castigado pelo tratamento frívolo que lhe foi dispensado como Procurador. O acusado, então, apresenta-se: Yeshua Ha-Notzri, natural da cidade de Gamala, de cujos pais ele não se lembra, apesar de lhe terem dito que o seu genitor seria sírio (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).8 8 RENAN, 1895 (1863), p. 23) fala que a população da Galiléia seria marcadamente miscigenada, esperando, com isso, tranquilizar seus leitores de que Jesus não poderia ser judeu. Quanto à referência ao pai de Jesus ser sírio, existe aqui um bom indício de que Bulgákov conhecia a informação advinda de Celso, em particular aquela que dizia que o pai de Ha-Notzri seria um soldado romano, cuja legião estava estacionada na Síria, de nome Ben Panthera ( KEIM, 1876 a, p. 32). Ele não possui endereço fixo, nem parente, muito menos mulher, caracterizando-se mais como um andarilho e celibatário, que anda de cidade em cidade. Apesar de viver sozinho no mundo, ele é o que se pode dizer diferenciado, pois sabe ler e escrever, além de falar aramaico, grego e latim (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Ao tomar ciência dessas informações, a opinião de Pilatos sobre Yeshua varia de um bandido, um criminoso até um vadio, um louco, um curandeiro ou até mesmo um filósofo pacifista. Yeshua, porém, não se mostra nem um pouco preocupado, abalado ou mesmo chateado com a visão que o Procurador tem sobre si (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Pilatos apresenta-lhe mais uma acusação: a de que ele teria entrado em Yershalaim pelos portões de Susa montado num burro e acompanhado por uma multidão ralé que o saudava aos gritos, como se fosse um profeta. Yeshua nega essa nova acusação, deixando claro não possuir nenhum burro, nem ser conhecido de ninguém em Jerusalém,9 9 Pode-se assumir, de forma inequívoca, que Bulgákov baseou-se aqui na narrativa de Graetz (949 (1893), p. 161), onde o referido historiador questiona a veracidade da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, deixando claro tratar-se de "um halo de lendas que contém muito pouco de verdade histórica" ou, em outras palavras, como simples invenção. ao mesmo tempo em que, também, diz-lhe não conhecer alguns indivíduos mencionados pelo Procurador: Dismas, Getas e Bar-Rabban (Barrabás). Os dois primeiros, junto com seus comparsas, haviam matado quatro soldados romanos (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Ao término do interrogatório, Pilatos não encontrou constituição de crime algum em Yeshua. No entanto seu secretário lhe diz que, ainda, pesa sobre o prisioneiro mais uma acusação - possivelmente aquela mais grave. Ao tomar conhecimento, Pilatos pergunta a Yeshua se ele conhece Judas, da cidade de Kerioth. Ha-Notzri diz que o conhece e que, inclusive, teria sido convidado pelo próprio Judas a ir à sua casa para conversarem. Lá chegando, ele foi instado pelo seu anfitrião a externar a sua opinião sobre o poder do Estado. Yeshua observa a Pilatos o quanto Judas estava interessado neste ponto.10 10 É certo que aqui a narrativa de Graetz (1949, p. 163) foi definitiva para que Bulgákov visse onde residiria a verdadeira traição de Judas: em fazer Jesus falar sobre política diante de duas testemunhas, as quais permaneceriam escondidas, mas que ao mesmo tempo poderiam ouvir o teor da conversa para poder posteriormente reportá-la. Por esse motivo Há-Notzri foi preso e levado até o Procurador. Pilatos quer saber se Judas "acendeu as luminárias",11 11 Referência de Pilatos à iluminação do local de prisão de Jesus, assim descobrindo a traição de Judas. ao que Yeshua lhe responde que sim (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.). Tão logo fez esse esclarecimento, Ha-Notzri diz ao Procurador que, diante da insistência de Judas, ele acabou falando, entre outras coisas,

[...] que qualquer poder é uma violência contra as pessoas e que chegará o tempo em que não haverá mais poder nem dos Césares, nem qualquer outro poder. Isto é, o homem passará para o reino da verdade e da justiça, onde não haverá necessidade de poder algum. [...] Depois uns homens entraram correndo e começaram a me amarrar e me levaram para a prisão (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 36).

Após ouvi-lo, Pilatos o chama de "criminoso louco", olha com "ódio" para o secretário do interrogatório e para os guardas e pede que eles se retirem, deixando-o a sós com Yeshua, porque se trata da "razão de Estado". Pilatos se mostra bastante apreensivo e observa que Judas é um traidor (KEIM, 1876KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. 2 ed. London: Williams and Norgate, 1876a. v. 1.a; 1876KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. London: Williams and Norgate , 1876b. v. 2.b; 1877KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. London: Williams and Norgate , 1877. v. 3.; 1879KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. London: Williams and Norgate , 1879. v. 4.; 1881KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. London: Williams and Norgate , 1881. v. 5.; 1883KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. London: Williams and Norgate , 1883. v. 6.).12 12 BULGÁKOV, 2009 , p. 37. Cf. RENAN, 1895 (1863), p. 160, 393, 396, 405; KEIM, 1876 a, p. 286. Para uma discussão mais aprofundada do que significou historicamente a leitura de Judas como traidor, ver: CHEVITARESE, 2008 . A condenação de Yeshua é um ato de necessidade para Pilatos, a que ele recorre contra a sua vontade, movido pelo instinto de sobrevivência e pela praxe de burocracia romana. Neste momento, Yeshua parece se assustar e faz um pedido a Pilatos: que ele o solte, pois ele percebe que há pessoas (não nomeadas) querendo matá-lo. O Procurador lhe diz que jamais o soltaria, principalmente, depois de saber o que ele disse (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Pilatos não vê alternativa a não ser confirmar a sentença de morte do Sinédrio contra Yeshua (MILNE, 1990MILNE, L. Mikhail Bulgakov: A Critical Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.).13 13 MILNE (1990 , p. 233) constata que Bulgákov dramatiza aqui um crime arquetípico de expediente político, especialmente quando Pilatos confirma a sentença de morte a um homem que ele sabe ser inocente. O arquétipo estaria também na base, durante as décadas de trinta e quarenta, das ações de Stalin na Rússia e de Hitler na Alemanha, na medida em que o crime de Pilatos teria sido replicado por meio da maquinaria estatal em ambos os países. Ato contínuo, ele pede que Ha-Notzri seja entregue ao chefe do serviço secreto e mantido separado dos outros condenados (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.). Ao mesmo tempo, o Procurador pede que chamem imediatamente, José Caifás, o sumo sacerdote da Judeia, pois ele tem questões importantes para tratar com o sumo sacerdote.

Tão logo esse líder religioso judeu chega, é prontamente recebido por Pilatos. O Procurador lhe explica que, apesar de serem quatro prisioneiros sob a sua custódia, somente dois deles (Bar-Raban e Yeshua Ha-Notzri) serão levados a julgamento, pois eles haviam sido capturados pelo poder local e foram julgados pelo Sinédrio. Está claro o motivo de toda essa ênfase por parte de Pilatos: é que, de acordo com a lei e tradição romanas, um desses dois criminosos deveria ser posto em liberdade em homenagem à festa da Páscoa que se aproximava (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Caifás pede, então, a imediata libertação de Bar-Raban, ao que Pilatos contra argumenta pedindo-lhe que mude de opinião e que, de comum acordo, ambos soltem Yeshua. O sumo sacerdote não aceita esse pedido e reforça a sua posição pela soltura de Bar-Raban. O seu argumento é que Yeshua seria um sedutor do povo e ele não teria vindo trazer paz, mas, ao contrário, perturbar o povo, para que achincalhasse a fé e se levantasse contra as espadas romanas. E isso, ele, como sumo sacerdote, não iria permitir. Ao ouvir os seus argumentos, Pilatos, assim, responsabiliza-o por deixar escapar os "notórios rebeldes de Yerushalaim" em vez de soltar "um filósofo com sua pregação pacífica" (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 43).

A Paixão de Cristo

Bulgákov enfatiza as terríveis condições físicas e mentais experimentadas pelos crucificados. Os três prisioneiros condenados à morte (Yeshua Ha-Notzri, Dismas e Gestas) foram levados, dentro de uma carroça, até o monte Gólgota, ou o Calvário (no romance Lýssaia Gorá),14 14 Tradução de Gólgota em russo, mas ao mesmo tempo, em folclore eslavo e russo, o local de sabbat de bruxas. sob o calor insuportável, onde seriam executados, por via de crucificação. Cada um deles trazia uma placa, pendurada no pescoço, em que estava escrito "ladrão e rebelde" em dois idiomas: aramaico e grego (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 197).

Somente Mateus, o Levita, um coletor de impostos, explicitamente nomeado como discípulo, ao longo de todo o romance (RENAN, 1895RENAN, E. Vie de Jésus. 25 ed. Paris: Calmann Lévy, 1895.), era a única testemunha não participante da execução de Yeshua, inspirando matá-lo para livrá-lo dos sofrimentos. A multidão não mostrou nenhum interesse nessa execução, salvo por alguns xingamentos que alguns lançaram em direção aos bandidos (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.). Portanto, com exceção de Mateus, o Levita, eram romanos todos os demais participantes da crucificação de Yeshua, Dismas e Getas.

Ao final da terceira hora de crucificação, os condenados começaram a demonstrar sinais claros da violência a que estavam submetidos: Gestas havia enlouquecido com as moscas e o sol e cantarolava baixinho algo sobre a uva. Dismas sofria mais do que os outros dois, pois a consciência não o deixava e ele balançava a cabeça, com frequência, fazendo sempre o mesmo movimento. O mais resignado de todos era Yeshua. Nas primeiras horas, ele teve vários desmaios, depois perdeu a consciência, ficando de cabeça pendurada. As moscas e as varejeiras cobriram todo o seu corpo (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Foi acordado pelo carrasco com a lança com que ele bateu nas mãos de Yeshua e passou-a pelo seu abdômen, que ofereceu-lhe água, colocando a bucha embebida na ponta de lança. Quando tragava a bebida, Dismas pediu a bebida, alegando uma injustiça em relação a ele e Yeshua pediu ao carrasco para dar-lhe de beber. A fim de abreviar o sofrimento de todos os três, o carrasco transpassou com uma lança o coração de cada um deles.

Aproveitando que todos os soldados romanos haviam ido embora, por causa da forte chuva que caiu sobre Jerusalém, Mateus, o Levita, tirou o corpo de Yeshua da cruz e o levou embora. Depois de roubar o corpo, Mateus, o Levita, escondeu-o na caverna do lado norte do monte Gólgota. Posteriormente, os soldados romanos acharam o corpo de Yeshua junto com este discípulo. Por isso, os soldados o prenderam e o levaram até Pilatos (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.).

Pilatos pede a Afrânio, o chefe do seu serviço secreto, que suma com os corpos dos três crucificados. Como observado, tão logo os soldados recuperam o corpo de Yeshua, essa missão foi realizada com sucesso. Não deixa de ser interessante observar, porém, que os soldados cederam à insistência de Mateus, o Levita, que exigia participar do sepultamento. Desta forma, eles permitiram que o discípulo de Yeshua Ha-Notzri os acompanhasse até o local onde foram enterrados os corpos dos crucificados.15 15 BULGÁKOV, 2009 , p. 368. Não deixa de ser interessante notar que praticamente no final do romance, Bulgákov (2009 , p. 408-409) faz um encontro (marcadamente situado no plano metafísico) entre Mateus, o Levita, e Woland. O referido discípulo lhe diz que Yeshua leu a obra do Mestre e pede a Woland que o leve consigo, devolvendo-lhe a tranquilidade. Fica claro que Yeshua está vivo, tendo ressuscitado do mundo dos mortos, apesar de o romance não tocar nessa questão. Ele se coloca como sendo o senhor do mundo da luz, em oposição ao de Woland, caracterizado pelas sombras.

A vingança

No Capítulo 25 do romance intitulado "Como o procurador tentou salvar Judas de Kerioth", descreve-se como o Procurador dissimulou a conspiração que ele próprio tramou, não para salvar Judas, mas para se vingar dele e para comprometer Caifás e o Sinédrio (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 336).

O Procurador pediu ao chefe do serviço secreto que lhe ajudasse a impedir o assassinato de Judas, o traidor, responsável direto pela prisão de Yeshua. Por ter cometido tal ato, Judas recebeu trinta moedas de prata do sumo sacerdote. Pilatos insinua a Afrânio que ele recebeu "a informação de que um dos amigos secretos de Ha-Notzri, estarrecido com a monstruosa traição desse cambista [referindo-se a Judas], combinou com seus cúmplices matá-lo hoje à noite" (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 368).

Bulgákov (2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 314) constrói o perfil de Judas, descrevendo-o como "um jovem de barba bem aparada", "um belo rapaz de nariz aquilino", "bem vestido para a festa da Páscoa, porém alguém que tem "atração por dinheiro" e trabalha "na casa de câmbio de um parente".

Pilatos faz de tudo para que a sua conspiração de matar Judas pareça uma tentativa de salvar o traidor da vingança dos seguidores de Jesus. Ele encobre, astutamente, no seu discurso, as intenções reais de vingança, mesmo na conversa com o próprio executor do assassinato de Judas, o chefe de serviço secreto, dissimilando-as por alegadas preocupações com a sobrevivência do traidor.

Dentro da lógica vingadora de Pilatos, Bulgákov faz de Afrânio um organizador do assassinato e de Niza, amante de Judas, uma isca para atrai-lo ao Jardim de Getsêmani. O primeiro informa à segunda onde ela poderia encontrar Judas, fazendo-o ir até o local em que ele seria morto por assassinos de aluguel, comandados por Afrânio. Na narrativa de Bulgákov, Judas foi esfaqueado até a morte e seu corpo ficou jogado no chão no Getsêmani.16 16 BULGÁKOV, 2009 , p. 358, 36; Cf. CHEVITARESE, 2008, p. 65-77.

Apesar de ter recebido a incumbência do Procurador de impedir o assassinato de Judas, Afrânio diz a Pôncio Pilatos que não conseguiu evitá-lo. Quanto ao saco contendo as trinta moedas de prata, ele informa ao Procurador que foi jogado na casa do sumo sacerdote. Os dois dialogam fingindo que o assassinato de Judas não é resultado da conspiração do Procurador e de Afrânio (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 363).

Com o intuito de encobrir ainda mais um possível vazamento de informações, acerca das circunstâncias da morte de Judas, Pilatos diz a Afrânio que vão espalhar o boato de que Judas não foi assassinado, mas que se matou (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 28).

O legado do discurso de Jesus, segundo Bulgákov

Ao se encontrar, depois da crucificação de Yeshua, com Mateus, o Levita, o Procurador detinha uma informação, previamente, passada pelo próprio Yeshua, qual seja: a de que esse discípulo vivia o seguindo e escrevendo sem parar em um pergaminho de pele de cabra (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 27-28).

No entanto, como observara Yeshua a Pilatos, o que esse seu discípulo estava escrevendo não correspondia ao que ele próprio falava ao povo.

Para Pilatos, o discurso de Cristo é dirigido contra o poder: "[...] qualquer poder é uma violência contra as pessoas e que chegará o tempo em que não haverá mais poder nem dos Césares, nem qualquer outro poder. Isto é, o homem passará para o reino da verdade e da justiça, onde não haverá necessidade de poder algum" (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 36). Porém isso não é confirmado pelo seguidor de Jesus, Mateus, o Levita, cujos apontamentos não fazem referência a essas palavras. Pilatos, ao ter a oportunidade de ver o que estava escrito nesse material, comentou: "[...] era uma cadeia de certas expressões, de datas, de anotações, de atividades e de trechos poéticos" (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 371).

Verificam-se os ensinamentos de Cristo, não por meio do "pergaminho" de Mateus, o Levita, mas pelas recordações do próprio Procurador. Pôncio Pilatos diz a Mateus, o Levita: "Você, sei disso, considera-se discípulo de Yeshua, mas direi que não aprendeu nada daquilo que ele ensinou. Saiba que ele disse antes de morrer que não acusava ninguém de sua morte ... Você é cruel, ele não era" (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 371).

Durante o interrogatório de Jesus, Pilatos, repetidas vezes, ouve Jesus referindo-se a ele e a outras pessoas, entre as quais Judas, como "bons homens".

- Não conheço essas boas pessoas - respondeu o prisioneiro. ... - Agora me diga, porque você usa as palavras "boas pessoas" o tempo todo? Por acaso você chama todo mundo assim? - Todo mundo - respondeu o prisioneiro. - Não existem pessoas maldosas no mundo (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 35).

Não deixa de ser interessante notar essa ênfase no fosso que se estabelece entre a ação "histórica" de Yeshua e o "evangelho" de Mateus, o Levita. Este descompasso entre História e a narrativa evangélica já havia sido apontado por Bulgákov, quando ele trouxe o diálogo envolvendo as personagens Woland e Berlioz. Este último, após ouvir a história contada acima pelo professor Woland, diz: "Sua história é extremamente interessante, professor, apesar de não coincidir em nada com o Evangelho". Ao que o referido professor lhe responde: "Perdão, mas ninguém mais do que o senhor deveria saber que absolutamente nada do que está escrito no Evangelho jamais aconteceu na realidade" (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 49).

Essa ideia17 17 Deve-se considerar aqui o conhecimento de Bulgákov acerca das ideias de Robertson (1856-1933) ( ROBERTSON, 1910 (1900) e de A. Drews (1865-1935). Ambos os autores, situados entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do XX, podem ser inseridos na denominada "escola mitológica", cuja ênfase residia em ver Jesus Cristo como um mito, uma simples invenção, sem qualquer referência com o judeu nazareno da História ( MILNE, 1990 , p. 232). Assim podem ser recordadas, em cada um dos referidos autores, falas que ajudam o leitor a entender o objetivo da denominada "escola mitológica". Em Drews (1910 , p. 235), por exemplo: "[...] não sabemos nada de Jesus, de uma personalidade histórica de que o nome a quem os eventos e discursos gravados nos Evangelhos referem". "Jesus foi do primeiro ao último uma figura emprestada do mito, a quem o desejo de redenção e fé ingênua dos povos asiáticos ocidentais tem transferido todas as suas concepções de bem-estar da alma". Também J. M. Robertson (1910 (1900), p. 125) segue pelo mesmo caminho: "Nenhum especialista acredita que todos os discursos ostensivamente reportados em Tito Lívio e Tucídides tenham sido realmente proferidos; mas, embora não seja recordado que quaisquer relatórios de ditos de Jesus existissem em qualquer forma na época de Paulo, nos pedem para acreditar que um grande número de discursos de Jesus, feitos por volta do ano trinta, foi fielmente reproduzido, sem acréscimo quarenta ou mais anos depois; e que tais documentos, ao longo de um século, ninguém nada acrescentou, numa época de falsificação corriqueira, são provas válidas. Claramente, isto é um simples fanatismo. Tudo o que pode racionalmente ser alegado é que um professor ou professores chamados Jesus, ou vários professores com nomes diferentes chamados de Messias, podem ter messianicamente proferido alguns desses ensinamentos em vários períodos, presumivelmente após a escrita das epístolas paulinas". já havia aparecido na narrativa de Bulgákov, no exato momento em que o próprio Berlioz explicava ao poeta Ivan Nikoláievitch: "[...] esse Jesus, como personalidade, jamais existira no mundo e que todas as histórias sobre ele eram simples invenções, o mito mais comum". Da mesma forma, o próprio Bulgákov, ao se referir à sua personagem Berlioz, constata:

É necessário observar que o editor era uma pessoa culta e, com muita desenvoltura, referia-se aos antigos historiadores em sua fala, por exemplo, ao famoso Fílon de Alexandria e ao brilhantemente educado Flávio Josefo, que nunca haviam dito sequer uma palavra sobre a existência de Jesus. Demonstrando uma erudição sólida, Mikhail Aleksándrovitch informou ao poeta, entre outras coisas, que aquele trecho, no quadragésimo quarto capítulo do décimo quinto livro dos famosos Anais de Tácito, no qual se relata a execução de Jesus, era nada mais, nada menos, que uma falsa e tardia inserção (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 11).

Não deve passar despercebido que O Mestre e Margarida é uma obra estritamente literária, um romance. Implica dizer, prioritariamente: o autor escreveu uma obra literária, não um tratado histórico. No entanto deve-se ressaltar que essa obra traz fortes críticas políticas ao seu tempo histórico, com Bulgákov deixando transparecer, claramente, as violentas tensões causadas pela falta de liberdade e das garantias individuais ao sujeito, produzidas na Rússia stalinista.

Como um marco temporal gravado no texto, está o processo de passagem de uma política de tolerância religiosa para um ateísmo estatal militante, a partir de 1928 (MILNE, 1990MILNE, L. Mikhail Bulgakov: A Critical Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.; BARBUSSE, 1927BARBUSSE, H. Jésus. New York: The Macauly Company, 1927.). Os diálogos travados entre Woland e Berlioz constituem aqui um testemunho incontestável desse processo. Trazendo esses diálogos à atenção de leitores, Bulgákov aponta para o descompasso entre História e a narrativa evangélica.

Bulgákov insere-se aqui como um crítico ferrenho do ateísmo, não porque ele seja um crente fervoroso, já que não há nada em sua biografia e em seus escritos que o revelem como sendo um homem pio. Além disto, fica claro, em O Mestre e Margarida, que ele não crê que Jesus foi um ser divino, nem que as narrativas evangélicas se constituem em fontes confiáveis para se chegar ao Jesus da História. Mas, nos capítulos relacionados à cidade de Jerusalém (MILNE, 1990MILNE, L. Mikhail Bulgakov: A Critical Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1990., p. 233), Bulgákov parece ver, por detrás das muitas falsificações acerca de Yeshua, a constituição de um raro momento histórico, em que é forjado um novo conceito de humanidade. Ha-Notzri acredita que todo ser humano é bom, sendo dotado de elementos capazes de transformar o mundo. Movido pela necessidade de se construir o caráter e a visão de mundo da personagem Yeshua Ha-Notzri, Bulgákov utiliza a pesquisa contida na Primeira Busca do Jesus Histórico.

Não há dúvida de que o legado do discurso que Jesus deixa para homens, pelo prisma da leitura bulgakoviana dos Evangelhos, é diferente dos mandamentos do Sermão da Montanha.18 18 Farrar, embora responsabilize os judeus pela morte de Jesus, fazendo com que Jerusalém deixasse inclusive de ser vista como a Cidade dos Justos para se tornar a Cidade dos Assassinos, não deixa o Procurador romano sem a sua parcela de culpa, principalmente quando ele diz: "Pilatos era culpado, e culpa é covardia, e covardia é fraqueza" ( FARRAR, 1886 , p. 443). Bulgákov traz à luz do dia a discussão sobre um tipo de pecado que, apesar de presente nos Evangelhos, não mereceu uma atenção maior por parte dos evangelistas: trata-se do pecado da covardia, da covardia de alguém "lavar as mãos", isentando-se da culpa (FARRAR, 1886FARRAR, F. W. The Life of Christ. London: Cassel & Co, 1886., p. 428).

Mesmo o pecado de covardia sendo o eixo condutor da narrativa de Yeshua, os Evangelhos o tratam de uma maneira muito secundária, especialmente, mas não exclusivamente, nas três negações de Jesus por Pedro. A palavra "covardia" se faz presente, na obra de Bulgákov, no "pergaminho" de Mateus, o Levita (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 371). Ela, também, é repetida inúmeras vezes por Pilatos, que se autoflagela pela sua inação, motivada pela covardia.

Para Bulgákov, a covardia não é apenas um pecado, é o mais terrível de todos os pecados. Muito embora Jesus tenha sido capaz de perdoar Pedro pela sua covardia, Bulgákov não é capaz de perdoar a si mesmo, nem aos seus contemporâneos por esse abominável pecado, que não os deixa ser completamente livres na Rússia soviética. Liberdade e coragem são possíveis, segundo Bulgákov, somente após a morte, no outro mundo, tal como acontece com O Mestre e Margarida, sob o signo de Woland. No mundo real, apenas os sonhos, em noites de luar, trazem as fantasias de liberdade e de coragem: somente neles a covardia é plenamente superada.

Toda essa percepção de Bulgákov, acerca da covardia, desdobra-se numa acusação direta contra o regime stalinista, destacando a coragem ingênua, autodestrutiva e irracional de Yeshua Ha-Notzri. A covardia, uma indispensável qualidade existencial na sociedade regida pela máquina totalitária stalinista, era a razão dos sofrimentos nunca vistos na história contemporânea da sociedade russa.

Certamente Bulgakov não incrimina Pôncio Pilatos pelo ato de vingança contra o traidor Judas, que não condiz com os cânones cristãos dos Evangelhos, mas é compatível com o sentimento humano de ódio contra a injustiça e com um repúdio moral da traição. Porém, conforme a tradição cristã, a que Bulgákov se atém, Pôncio Pilatos, "libertado" pelo Mestre e "perdoado" por Jesus, junta a ele a fim de continuar o diálogo, interrompido depois do interrogatório.

- Deuses, deuses! - diz o homem de capa, voltando o rosto desdenhoso para o interlocutor. - Que execução vil! Por favor, diga-me - o rosto desdenhoso se transforma em suplicante - que ela não existiu! Suplico, diga-me, não existiu? - É claro que não existiu - responde o outro -, isso foi fruto de sua imaginação. - Você pode jurar? - pede em tom servil o homem de capa. - Juro! - respondeu o acompanhante e seus olhos sorriram (BULGÁKOV, 2009BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009., p. 448).

Por meio desse diálogo, em que Bulgákov questiona o fato da crucificação de Jesus Cristo, ele procura mostrar a compaixão com o sofrimento de Pilatos, cuja culpa pelo ato de covardia o atormenta infinitamente. Mas, ao mesmo tempo, ele põe em dúvida a existência do fato histórico da crucificação, introduzindo um elemento mitológico no debate entre o "Jesus histórico" e o "Jesus mítico", aberto nas páginas iniciais do romance.

Conclusão

A análise comparativa permite tirar conclusões sobre a desconstrução da narrativa mítica de Jesus, extraída da obra literária de Bulgákov, com base na comparação entre os fatos literários e as discussões historiográficas, provindas das Vidas de Jesus.

A busca pelo "Jesus histórico" fica evidente, inicialmente, no diálogo entre Pôncio Pilatos e Yeshua Ha-Notzri. Yeshua, natural da cidade de Gamala, de cujos pais ele não se lembra, mas que eram sírios (o que é diferente da narrativa evangélica, mas condiz com referências históricas), não possui endereço fixo, nem mulher, nem parentes. É um celibatário, que anda de cidade em cidade, onde é recebido como um profeta. Ele vive sozinho, sabe ler e escrever, falar aramaico, grego e latim. Apresenta-se, perante a autoridade romana, um homem de descendência semítica, não judaica, sem residência e ocupação fixas, culto e inteligente, dotado de dons de liderança, de convencimento, mas não de poderes sobrenaturais.

A concretude da acusação e do julgamento baseia-se nos fatos reais, detalhadamente relatados. A sentença incriminatória da autoria de Yeshua, na incitação da população de Jerusalém a uma rebelião contra o poder em vigor, descrita na denúncia de Judas, é chancelada pelo Procurador Romano e confirmada pelo Sinédrio. Chamando-o um "criminoso louco", o Procurador lhe diz que jamais o soltaria, principalmente, depois de Yeshua ter reconhecido que houve, realmente, fatos que provam a sua incitação ao derrubamento do poder. No entanto Pilatos procura negociar a sentença com o Sinédrio, partindo de considerações humanitárias, entendendo que as provas contra Yeshua não são cabais. Inconformado, Caifás insiste na sentença de morte, argumentando que Yeshua é um sedutor do povo e ele não teria vindo trazer paz, mas, ao contrário, perturbar o povo, de modo que se levante contra os romanos. Além disso, sendo apresentado como "outro", por não ter nascido na Judeia, torna-se mais fácil inculpar Yeshua de crimes contra autoridades de Jerusalém e, por extensão, contra autoridades romanas.

A narrativa de Bulgákov, que traça um perfil psicológico de Yeshua, é minuciosa na descrição dos sentimentos humanos que Yeshua manifesta e nos traços de sua personalidade, quando fala com Pilatos. No interrogatório, ele apresenta-se como alguém, que tenta agradar ao Procurador, chamando o de "homem bom" e como alguém muito solícito e até servil em respostas a Pilatos. Ele provoca compaixão em Pilatos, quando demonstra medo de ser tratado com violência. Ele propõe-se como um curandeiro, capaz de aliviar a enxaqueca do alto interrogador. Finalmente, ele demonstra uma capacidade intelectual desenvolvida, ao se defender com astúcia contra as acusações iniciais, negando seu envolvimento na incitação dos jerusalenses à rebelião. A sua defesa é tão convincente que ele conseguiria se livrar das acusações, se não fosse pela denúncia de Judas. No ato de crucificação, a descrição do comportamento e do estado de Yeshua é naturalista e não sobrenatural, assim como a narração da tempestade que caiu sobre o monte de Golgotá no momento das execuções.

Segundo Bulgákov, Pilatos, ao planejar o assassinato de Judas, transmite a Afrânio, usando a língua de Esopo, uma mensagem mascarada de seu desejo de morte para o traidor, com base na suposta informação de que amigos secretos de Ha-Notzri pretendem matar Judas. Segundo o Procurador, esse crime deve ser evitado, mas o Procurador tem um "pressentimento" de que Judas seria assassinado. Apesar de ter recebido a incumbência de "impedir" o seu assassinato, Afrânio não conseguiu evitá-lo. Quando os fatos foram comunicados ao Procurador, ele sugeriu a Afrânio que o assassinato fosse apresentado ao público como suicídio. Neste relato, testemunha-se o esquema de conspiração, típica para a política realista do Império Romano nas províncias romanas, mas distante da narrativa evangélica.

Julgando pela interpretação realista dos fatos, relatados nos Evangelhos, Bulgákov estabeleceu um fosso entre a ação "histórica" de Yeshua e o "evangelho" de Mateus, o Levita. Bulgákov, ao desconstruir o discurso mítico, recorreu à humanização da personagem de Yeshua, que no romance não é Cristo, mas alguém humano, passando pela experiência muito semelhante à de Cristo. A narrativa de Bulgákov descobriu uma nova imagem de Cristo, ao produzir um relato literário-histórico sobre a personalidade humana de Jesus, numa época da literatura soviética em que a busca pelo "Jesus histórico" apresentava um desafio intelectual e político sem igual.

Referências

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  • WEEKS, L. D. The Master and Margarita: A Critical Companion. Illinois: Nothwestern University Press / AATSEEL Critical Companions to Russian Literature, 1996.
  • 1
    O Mestre e Margarida foi publicado pela viúva de Bulgákov, Elena Sergeevna Bulgakova (Shilovskaya, de sobrenome de solteira), em novembro de 1966 (parte 1) e janeiro 1967 (parte 2) na revista Moskva. Todas as 150.000 cópias do número de novembro se esgotaram em poucas horas e ambas as revistas rapidamente se tornaram uma raridade bibliográfica ( WEEKS 1996 WEEKS, L. D. The Master and Margarita: A Critical Companion. Illinois: Nothwestern University Press / AATSEEL Critical Companions to Russian Literature, 1996. , p. 6; ANDRADE, 2002 ANDRADE, H. F. O Diabo solto em Moscou. São Paulo: EDUSP, 2002. , p. 264). Esta edição foi censurada em mais de cem páginas, principalmente para atender os censores soviéticos: as partes cortadas foram àquelas relacionadas ao capítulo "O Sonho de Nikanor Ivânovich" (capítulo 15) que trata com o tema delicado de interrogatórios e de moeda estrangeira; a narrativa do Mestre (capítulo 24) de que seu vizinho, Aloísy Mogarych, foi o responsável por delatá-lo às autoridades a fim de ficar com o acolhedor flat do Mestre situado no subsolo da Travessa Arbat ( WEEKS, 1996 WEEKS, L. D. The Master and Margarita: A Critical Companion. Illinois: Nothwestern University Press / AATSEEL Critical Companions to Russian Literature, 1996. , p. 243-244); e as referências à nudez e à linguagem chula de Margarida. O texto completo foi publicado em Paris no ano de 1967 (YMCA Press); uma edição completa restaurada foi publicada na Alemanha (Frankfurt am Main) pela Possev Verlag em 1969, com as partes censuradas em itálico. Uma versão do romance, desta vez sem censura, foi publicada em Moscou em 1973, quando a primeira edição completa do romance saiu em forma de livro. Esta versão foi preparada por Anna Saakyants. Finalmente, em 1989, uma nova edição do romance foi preparada para publicação em Kiev por Lidia Ianovskaia, que checou o texto junto a todos os materiais disponíveis.
  • 2
    Para um aprofundamento, ver POWELL, 1998 POWELL, M. A. Jesus as a Figure in History: How Modern Historians View the Man from Galilee. Louisville, Kentucky: Westminster John Knox Press, 1998. ; REIMARUS, 1970 REIMARUS, H. S. Fragments. Philadelphia: Fortress Press, 1970. (1774-1778); STRAUSS, 1972 STRAUSS, D. F. The Life of Jesus Critically Examined. Philadelphia: Fortress Press , 1972. (1835).
  • 3
    Jornal "Biezbójnik" (1922-1941); Jornal "Ateíst" (1923-1930); Jornal "Antireliguióznik" (1926-1941); Jornal "Voínstvuiustchii ateísm" (1931).
  • 4
    Revista "Biezbójnik u stanká" (1923-1932).
  • 5
    Patente de suboficial na cavalaria do exército e na polícia montada da Rússia até 1918.
  • 6
    É plenamente possível ler esse homem misterioso, que no romance recebe o nome de Woland, como Satanás. Weeks (1996 WEEKS, L. D. The Master and Margarita: A Critical Companion. Illinois: Nothwestern University Press / AATSEEL Critical Companions to Russian Literature, 1996. , p. 43) parece mesmo estar correta quando o associa mais à figura de Satã da Bíblia Judaica do que a Satanás, que desempenha o papel de "adversário" de Deus, na Bíblia Cristã. Uma leitura de Pagels (1996) seria de grande valia para o leitor aprofundar esta distinção.
  • 7
    O nome Yeshua Ha-Notzri é usado por Bulgákov após ser provavelmente emprestado da peça do russo Serguei Tchevkin "Yeshua Ha-Notzri. A descoberta imparcial da verdade" (1922) e do livro "The Christ Myth" de Arthur Drews, traduzido na Rússia em 1906 e fazendo parte da biblioteca do autor, conforme apontamentos encontrados nos arquivos de Bulgákov (ver: Enciclopédia de Bulgákov. Disponível em: <http://dic.academic.ru/dic.nsf/enc_bulgakov/60/%D0%98%D0%95%D0%A8%D0%A3%D0%90> Acesso em 04 de julho de 2016).
  • 8
    RENAN, 1895 RENAN, E. Vie de Jésus. 25 ed. Paris: Calmann Lévy, 1895. (1863), p. 23) fala que a população da Galiléia seria marcadamente miscigenada, esperando, com isso, tranquilizar seus leitores de que Jesus não poderia ser judeu. Quanto à referência ao pai de Jesus ser sírio, existe aqui um bom indício de que Bulgákov conhecia a informação advinda de Celso, em particular aquela que dizia que o pai de Ha-Notzri seria um soldado romano, cuja legião estava estacionada na Síria, de nome Ben Panthera ( KEIM, 1876 KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. 2 ed. London: Williams and Norgate, 1876a. v. 1. a, p. 32).
  • 9
    Pode-se assumir, de forma inequívoca, que Bulgákov baseou-se aqui na narrativa de Graetz (949 (1893), p. 161), onde o referido historiador questiona a veracidade da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, deixando claro tratar-se de "um halo de lendas que contém muito pouco de verdade histórica" ou, em outras palavras, como simples invenção.
  • 10
    É certo que aqui a narrativa de Graetz (1949, p. 163) foi definitiva para que Bulgákov visse onde residiria a verdadeira traição de Judas: em fazer Jesus falar sobre política diante de duas testemunhas, as quais permaneceriam escondidas, mas que ao mesmo tempo poderiam ouvir o teor da conversa para poder posteriormente reportá-la. Por esse motivo Há-Notzri foi preso e levado até o Procurador.
  • 11
    Referência de Pilatos à iluminação do local de prisão de Jesus, assim descobrindo a traição de Judas.
  • 12
    BULGÁKOV, 2009 BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. , p. 37. Cf. RENAN, 1895 RENAN, E. Vie de Jésus. 25 ed. Paris: Calmann Lévy, 1895. (1863), p. 160, 393, 396, 405; KEIM, 1876 KEIM, K. T. The History of Jesus of Nazara, Freely Investigated in its Connection with the National Life of Israel, and Related in Detail. 2 ed. London: Williams and Norgate, 1876a. v. 1. a, p. 286. Para uma discussão mais aprofundada do que significou historicamente a leitura de Judas como traidor, ver: CHEVITARESE, 2008 CHEVITARESE, A. L. Evangelho de Judas: uma Luz no Fim de uma Antiga História?. In: FUNARI, P. P. A.; SILVA, G. J.; MARTINS, A. L. (Orgs.). História Antiga: Contribuições Brasileiras. São Paulo: Annablume, 2008. p. 65-77. . A condenação de Yeshua é um ato de necessidade para Pilatos, a que ele recorre contra a sua vontade, movido pelo instinto de sobrevivência e pela praxe de burocracia romana.
  • 13
    MILNE (1990 MILNE, L. Mikhail Bulgakov: A Critical Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. , p. 233) constata que Bulgákov dramatiza aqui um crime arquetípico de expediente político, especialmente quando Pilatos confirma a sentença de morte a um homem que ele sabe ser inocente. O arquétipo estaria também na base, durante as décadas de trinta e quarenta, das ações de Stalin na Rússia e de Hitler na Alemanha, na medida em que o crime de Pilatos teria sido replicado por meio da maquinaria estatal em ambos os países.
  • 14
    Tradução de Gólgota em russo, mas ao mesmo tempo, em folclore eslavo e russo, o local de sabbat de bruxas.
  • 15
    BULGÁKOV, 2009 BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. , p. 368. Não deixa de ser interessante notar que praticamente no final do romance, Bulgákov (2009 BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. , p. 408-409) faz um encontro (marcadamente situado no plano metafísico) entre Mateus, o Levita, e Woland. O referido discípulo lhe diz que Yeshua leu a obra do Mestre e pede a Woland que o leve consigo, devolvendo-lhe a tranquilidade. Fica claro que Yeshua está vivo, tendo ressuscitado do mundo dos mortos, apesar de o romance não tocar nessa questão. Ele se coloca como sendo o senhor do mundo da luz, em oposição ao de Woland, caracterizado pelas sombras.
  • 16
    BULGÁKOV, 2009 BULGÁKOV, M. O Mestre e Margarida. Trad. Zoia Prestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. , p. 358, 36; Cf. CHEVITARESE, 2008, p. 65-77.
  • 17
    Deve-se considerar aqui o conhecimento de Bulgákov acerca das ideias de Robertson (1856-1933) ( ROBERTSON, 1910 ROBERTSON, J. M. Christianity and Mythology. 2 ed. London: Watts & Co, 1910. (1900) e de A. Drews (1865-1935). Ambos os autores, situados entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do XX, podem ser inseridos na denominada "escola mitológica", cuja ênfase residia em ver Jesus Cristo como um mito, uma simples invenção, sem qualquer referência com o judeu nazareno da História ( MILNE, 1990 MILNE, L. Mikhail Bulgakov: A Critical Biography. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. , p. 232). Assim podem ser recordadas, em cada um dos referidos autores, falas que ajudam o leitor a entender o objetivo da denominada "escola mitológica". Em Drews (1910 DREWS, A. The Christ Myth. London: T. Fisher Unwin, 1910. , p. 235), por exemplo: "[...] não sabemos nada de Jesus, de uma personalidade histórica de que o nome a quem os eventos e discursos gravados nos Evangelhos referem". "Jesus foi do primeiro ao último uma figura emprestada do mito, a quem o desejo de redenção e fé ingênua dos povos asiáticos ocidentais tem transferido todas as suas concepções de bem-estar da alma". Também J. M. Robertson (1910 ROBERTSON, J. M. Christianity and Mythology. 2 ed. London: Watts & Co, 1910. (1900), p. 125) segue pelo mesmo caminho: "Nenhum especialista acredita que todos os discursos ostensivamente reportados em Tito Lívio e Tucídides tenham sido realmente proferidos; mas, embora não seja recordado que quaisquer relatórios de ditos de Jesus existissem em qualquer forma na época de Paulo, nos pedem para acreditar que um grande número de discursos de Jesus, feitos por volta do ano trinta, foi fielmente reproduzido, sem acréscimo quarenta ou mais anos depois; e que tais documentos, ao longo de um século, ninguém nada acrescentou, numa época de falsificação corriqueira, são provas válidas. Claramente, isto é um simples fanatismo. Tudo o que pode racionalmente ser alegado é que um professor ou professores chamados Jesus, ou vários professores com nomes diferentes chamados de Messias, podem ter messianicamente proferido alguns desses ensinamentos em vários períodos, presumivelmente após a escrita das epístolas paulinas".
  • 18
    Farrar, embora responsabilize os judeus pela morte de Jesus, fazendo com que Jerusalém deixasse inclusive de ser vista como a Cidade dos Justos para se tornar a Cidade dos Assassinos, não deixa o Procurador romano sem a sua parcela de culpa, principalmente quando ele diz: "Pilatos era culpado, e culpa é covardia, e covardia é fraqueza" ( FARRAR, 1886 FARRAR, F. W. The Life of Christ. London: Cassel & Co, 1886. , p. 443).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2015
  • Aceito
    01 Ago 2016
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