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ABOLICIONISMO INGLÊS E TRÁFICO DE CRIANÇAS ESCRAVIZADAS PARA O BRASIL, 1810-1850

British abolitionism and trade in enslaved children to Brazil, 1810-1850

RESUMO

Sob constante estrangulamento por parte da Inglaterra desde 1810, o comércio negreiro para o Brasil se adaptou até o seu fim definitivo, em 1850, a um padrão de demanda das elites escravistas pautado em crescentes aquisições de crianças africanas. Semelhante movimento revela uma lógica demográfica flexível, fundada na utilização do próprio tráfico visando estender temporalmente a escravidão. A aferição de semelhante hipótese está calcada no manejo dos registros dos navios negreiros constantes do The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. No intuito de verificar a efetividade da ação das elites escravistas, foram igualmente analisados os inventários post-mortem de grandes proprietários rurais do Rio de Janeiro, coletados nos anos terminados em 1, 2, 3 e 5, 6, e 7 entre 1810 e 1831.

Palavras-chave:
Escravidão; Crianças; Tráfico de escravos; Brasil; Século XIX

ABSTRACT

Under constant pressure by England since 1810, the slave trade to Brazil has adapted itself to a standard demand of the slaveholding elites, ruled by the increase of purchase of African children, until its definitive end in 1850. A similar movement reveals a flexible demographic logic, based on the use of the slave trade to extend the slavery. Such hypothesis is grounded in the management and analysis of the lists and descriptions of slave ships on The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. In order to verify the effectiveness of the action of slaveholding elites, inventories of large landowners in Rio de Janeiro, collected in years ending in 1, 2, 3 and 5, 6, and 7 between 1810 and 1831, were also analysed.

Keywords:
Slavery; Children; Slave trade; Brazil, Nineteenth century

O problema

A cena se repetia monótona. À aquisição de dois ou três escravos - raras eram as partidas maiores -, vários dias se passavam sem que qualquer negócio fosse fechado. As compras se arrastavam pois as condições físicas, o sexo e, em especial, as idades dos africanos que chegavam do interior nem sempre correspondiam às exigências do capitão do navio negreiro. Quando se adequavam, duras disputas apartavam vendedores e compradores sobre os preços dos infelizes oferecidos, tal qual em um mercado persa. E assim o brigue Vulcano permaneceu fundeado na Ilha de Moçambique de julho a dezembro de 1826. Apenas no Natal a sua arqueação foi preenchida e o navio pôde zarpar rumo ao Rio de Janeiro com 185 homens, 66 mulheres, 169 meninos e 104 meninas a bordo.1 1 ARQUIVO NACIONAL.Real Junta do Comércio, caixa 449, pacote 1.

Não surpreende ao estudioso do tráfico atlântico a proporção de três homens por cada mulher entre os adultos embarcados. O que chama a atenção é a grande quantidade de crianças - mais da metade dos 524 cativos adquiridos na costa índica. Fugia-se ao padrão etário implícito à lógica demográfica da escravidão americana, pautada na aquisição de cativos imediatamente aptos a trabalhar, do que deveriam resultar quantidades apenas residuais de meninos e meninas compradas na África.

De fato, encontra razoável consenso historiográfico a ideia de que a aquisição de africanos a baixos custos bem remunerava o empresário-traficante e, em geral, mantinha reduzidos os valores dos cativos no mercado brasileiro. Escravos relativamente baratos ensejavam o exercício de uma lógica senhorial fundada no imediatismo econômico, com cativos submetidos a trabalho excessivo e amplo descuido para com a sua subsistência em meio a forte seletividade etária e sexual nas fazendas. A escassez de mulheres e a ínfima quantidade de crianças obviamente comprometiam os potenciais autorreprodutivos da empresa escravista (PRADO JR., 1977PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977.; FURTADO, 1967FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional , 1967.; GORENDER, 1978GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1978.).

Observe-se, no entanto, que contar com um terço ou mesmo um quarto de mulheres entre os adultos importados da África representava algum incentivo à reprodução natural. Por diminuto que fosse, o potencial reprodutivo das africanas em idade sexualmente fértil impedia que resultasse ainda mais pronunciado o déficit derivado de taxas de mortalidade quase sempre superiores às de natalidade, panorama agravado por eventuais altas frequências de alforrias. Pela compra de africanas - deixemos de lado por ora o mercado interno de escravos -, a lógica demográfica da plantation permitia lograr algum grau de reprodução natural.2 2 Para um exemplo exitoso de reprodução natural há o caso de Minas Gerais. Cf. BERGAD, 2004. A natureza deliberada dessa estratégia reprodutiva se ratifica ainda mais na medida em que o predomínio de homens nos negreiros derivava sobretudo da retenção de mulheres adultas por parte das sociedades africanas, em virtude de suas capacidades produtivas e reprodutivas.3 3 "As características demográficas dos recém-chegados escravos africanos, explicadas, principalmente, pela maior demanda do sexo feminino dentro da África e pelo desinteresse comercial pelo tráfico de crianças, justificam a estatística incomum, relativa ao [desequilíbrio de] sexo e idade dos africanos, tanto no primeiro censo de 1872, como nos censos regionais anteriores" (KLEIN, 1986, p. 53).

Contudo, em determinadas conjunturas, a plantation podia se ver ante a necessidade de buscar alongar geracionalmente seus efetivos de mão de obra para além do propiciado pela reprodução natural depositada nas africanas que importava. Os caminhos e a envergadura desse transbordamento dependiam, por exemplo, dos preços pagos pelos escravos e de sua combinação com as taxas de juros coloniais; dos graus de acesso ao mercado, em especial ao mercado externo, e dos valores das mercadorias negociadas; do temor de que a população escrava ultrapassasse a de livres nas Américas etc. E também - aspecto desconsiderado pela historiografia nacional - das expectativas em torno da continuidade do tráfico atlântico.

A presente pesquisa sugere que o perfil etário não apenas dos escravos do Vulcano, mas de muitos outros negreiros que cruzavam o oceano nessa época, derivava de uma conjuntura específica da história do tráfico transatlântico para o Brasil.4 4 Veja-se, por exemplo, o caso doProgresso(1843), negreiro que saiu de Paranaguá para Moçambique, onde foi capturado quando do retorno para o Brasil depois de haver embarcado escravos. Em seu interior contavam-se 189 homens - "poucos, no entanto, passando dos vinte anos" -, 45 mulheres e 213 meninos. Cf. HILL, 2006, p. 62-63. Sob constante estrangulamento por parte da Inglaterra desde 1810, o trato de gente parece haver se adaptado até seu derradeiro fim, em 1850, a um padrão de demanda pautado em crescentes aquisições de crianças africanas. Semelhante movimento revela uma lógica demográfica senhorial flexível, fundada por vezes na utilização do próprio tráfico internacional para tentar estender a escravidão no tempo.

A aferição de tal hipótese está calcada no manejo dos registros dos navios negreiros constantes do The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages (TASTD, de agora em diante), o maior banco de dados sobre o tráfico de africanos para as Américas, o qual consolida informações sobre 35 mil viagens entre 1514 e 1866.5 5 The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/voyage/>. Acessado em: maio 2016. No intuito de verificar a efetividade da ação das elites escravistas, foram igualmente analisados os inventários post-mortem de grandes proprietários rurais do Rio de Janeiro, coletados nos anos terminados em 1, 2, 3 e 5, 6 e 7 entre 1790 e 1831.6 6 ARQUIVO NACIONAL.Inventáriospost-mortemdo Rio de Janeiro, 1790-1831. Em função da natureza clandestina do tráfico após 13 de março de 1830, os inventários posteriores a essa data tendem a distorcer as idades dos africanos, tal como, aliás, muitas cartas de alforrias e anúncios de vendas de escravos em jornais da época.

Sobre o método

O manejo que fizemos dos registros de viagens negreiras do TASTD exige explicitar ao leitor os procedimentos metodológicos adotados. Embora o cerco inglês ao tráfico tenha se iniciado com a assinatura do tratado de 1810, recuamos aos registros referentes aos quinquênios 1791-95, 1796-1800 e 1801-05 e, por sorte, verificamos que eles forneciam médias históricas semelhantes à participação de crianças africanas nos negreiros que atracavam no Brasil desde fins do século XVI. Tais quinquênios tornaram-se, pois, adequados ao estabelecimento de comparações com o período 1810-1850. Ademais, trata-se de periodização congruente com a proposta da pesquisa, na medida em que a série de inventários post-mortem fluminenses a ser cruzada com as viagens do TASTD se inicia em 1790.

O Gráfico 1 desenha as flutuações dos desembarques de pouco mais de 1.815.000 escravos africanos no Brasil entre 1791 e 1850. Por seu intermédio, observa-se a existência de um trend ascendente entre a última década do século XVIII e o fim do tráfico legal (1830), com acentuado crescimento da demanda após a abertura dos portos coloniais ao comércio internacional em 1810. A expansão da economia açucareira e, depois, do café, o explica. A pequena inflexão observada na primeira metade da década de 1820 denota as incertezas da classe senhorial brasileira e das fontes africanas de escravos quanto aos rumos do tráfico atlântico diante dos turbulentos acontecimentos que levaram à proclamação da Independência em 1822.7 7 No Tratado de Paz e Aliança firmado em 1825 entre Brasil e Portugal, o artigo III estabelece que "Sua Majestade Imperial promete não aceitar as proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil". Cf. RODRIGUES, 1982, p. 174. A acentuada queda dos desembarques na primeira metade da década de 1830 confirma o enorme impacto inicial da proibição do trato de gente. A recuperação detectada a partir de 1836 revelou-se vã, e a tendência à contração se manteve até o seu definitivo fim. Logo, a legislação que proibia o tráfico oceânico esteve longe de constituir-se em mera "lei para inglês ver".

Gráfico 1
Flutuações das entradas de escravos africanos no Brasil, 1791-1850

Embora forneça a quantidade de africanos desembarcados no Brasil para todo o período 1791-1850, apenas até o primeiro decênio do século XIX o TASTD registra de modo sistemático as porcentagens de infantes entre eles.8 8 Por crianças, o TASTD define os africanos menores de 12 anos de idade ou de altura inferior a 1.30m. Daí em diante esse tipo de informação praticamente desaparece da documentação luso-brasileira, remanescendo apenas nos poucos registros de naus apreendidas pelos ingleses quando se dirigiam especificamente à província do Rio de Janeiro. Não encontramos motivo para semelhante omissão, ao menos até 1830, dado que o comércio de africanos era legal no interior do império português entre 1810 e 1815, e ao sul do Equador de 1815 a 1830, quando passou à clandestinidade.

Buscamos, por isso, estabelecer um procedimento que permitisse preencher as lacunas relativas à participação de crianças entre os africanos desembarcados no Brasil entre 1810 e 1850. Para tanto, recorremos, no TASTD, ao conjunto de navios negreiros que, destinados ao Brasil, foram capturados pelas forças navais inglesas e remetidos para a Comissão Mista de Serra Leoa, os quais oferecem as quantidades de homens, mulheres, meninos e meninas compradas na África durante os últimos 40 anos do tráfico. Os registros de Serra Leoa contemplam 117 viagens e correspondem a 33.836 cativos embarcados na África, dos quais 29.543 chegaram vivos em Freetown. Tratava-se de 77 naus que deveriam aportar na Bahia, 28 no Rio de Janeiro, onze em Pernambuco, uma no Pará e outra em Santos.

Procuramos então aferir se os escravos remetidos para a Comissão Mista de Serra Leoa poderiam configurar uma amostragem para interpolar as faixas etárias dos cativos na série de viagens negreiras para o Brasil durante os quarenta anos em questão. Para tanto, detectamos que as variáveis relativas às regiões de proveniência dos escravos, à sazonalidade das viagens e às durações das mesmas não permitiam estabelecer o cálculo. No caso dos portos africanos de embarque, observamos que as naus remetidas para Serra Leoa partiam majoritariamente do norte do Equador, enquanto a maior parte dos navios que abasteciam o Brasil nessa época zarpava da região congo-angolana. No que tange à sazonalidade, os dados constantes do TASTD informam, para o período 1810-1850, os anos de desembarque no Brasil e não as datas precisas, o que inviabiliza qualquer cálculo, inclusive sobre a duração de cada viagem.

Logo, as variáveis que permitiam a aferição eram apenas as médias de escravos embarcados por navio e os respectivos desvios padrões. Sua análise sugeriu que os escravos dos negreiros apreendidos e mandados para Serra Leoa podiam ser estatisticamente representativos do conjunto de viagens para o Brasil. Após havermos estabelecido a congruência estatística entre a amostragem de Serra Leoa e o total de viagens, calculamos as porcentagens de homens, mulheres, meninos e meninas entre 1810 e 1850, de acordo com as regiões de desembarque. Tal cálculo foi executado especificamente para as importações realizadas pelas províncias da Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, regiões para as quais mais se destinavam as naus apreendidas, as quais concentravam 72% de todos os desembarques brasileiros entre 1791 e 1850.

De 1791 a 1810, a participação de crianças de ambos os sexos entre os africanos arribados na Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro variou de 0.2% a 4.5%, índices residuais em meio à predominância de adultos em especial do sexo masculino.9 9 The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/voyage/>. Acessado em: maio 2016. O Gráfico 2 sintetiza nossas projeções para o período 1811-1850, desenhando um extraordinário aumento de infantes de ambos os sexos a bordo dos negreiros, em detrimento da participação de homens adultos para 1811-15 (c.27%), 1816-25 (c.37%), 1826-35 (c.48%), 1836-45 (c.59%) e 1846-50 (c.35%). Observe-se sobretudo o crescimento da participação de meninos africanos. Atente-se ademais para a relativa estabilidade da presença de mulheres entre os escravos, signo claro da dificuldade em se obter cativas na África.

Gráfico 2
Inferência das porcentagens de homens, mulheres, meninos e meninas entre os escravos africanos desembarcados no Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco entre 1811 e 1850

As cartas de ordens enviadas pelos traficantes e armadores a seus capitães e representantes na África confirmam a exigência por cativos jovens de ambos os sexos.10 10 A correspondência mencionada adiante se encontra em: ARQUIVO NACIONAL. Real Junta do Comércio, caixa 398, pacote 1. Ela foi produzida entre 1818 e 1823. Em uma delas, José Francisco da Silva exigia a troca de duzentas peças de ouro, avaliadas em um conto e quinhentos mil réis, por "escravos novos, que sejam bons". A mesma expressão aparece nas instruções que o traficante Manoel Gonçalves de Carvalho deu a seu interlocutor. Os trinta fardos de fazendas e os vinte barris de molhados por ele remetidos deveriam ser "empregados em escravos novos que sejam bons, ainda que custe alguma meia dobra". Por "escravos bons" entendia-se cativos em perfeito estado físico - de compleição robusta e ausentes de doenças ou deformidades. E os "escravos novos", em que faixas etárias se encaixariam?

A carta de Pedro Antônio Vieira, um pequeno traficante do Rio de Janeiro, oferece algumas pistas. Nela, informava-se ao interlocutor em Luanda sobre a remessa de produtos avaliados em quase quatrocentos mil réis, pelos quais exigia "escravos de 12 até 18 anos pouco mais ou menos". Bem podiam ter sido estes - entre 12 e 18 anos de idade - os limites que continham os "escravos novos" de ambos os sexos a que aludiam as instruções dos traficantes. Outro pedido esclarece melhor a questão. Na mesma correspondência, Pedro Antônio dava plenos poderes ao interlocutor para recapturar Domingos Congo, um escravo seu que conseguira fugir no Brasil e regressar à África, possivelmente como marinheiro do navio Mariana. Pedro Antônio pedia a captura e reenvio de Domingos para o Rio de Janeiro, mas oferecia como opção a sua alforria em troca de "três ou cinco moleques". É plausível que o termo "moleques" - assim mesmo, no plural - designasse crianças de qualquer sexo com menos de 12 anos de idade. Falamos "crianças" em geral, independentemente do sexo, pois a migração da palavra "moleque" do quimbundo para o português se fez mediante o alargamento de seu significado original. Manteve-se a acepção de "menino" - m'leke em quimbundo, que significa garoto ou filho pequeno; mas a ela se acrescentou um sentido mais amplo, que em português engloba ambos os sexos quando utilizado no plural.

Semelhantes conclusões são reiteradas pela recusa em adquirir determinados escravos, explicitada em carta de quatro de dezembro de 1823. Nela, o traficante luandense Joaquim Ribeiro de Brito instruía seu agente estacionado no Rio Zaire a trocar os onze contos de réis em fazendas embarcados na escuna Flor do Bungo por "escravos bons", "molecões, moleconas e moleques de 6 palmos passantes", além de "algumas negras que sejam vistosas, moças, pois é a gente que eu quero". E arrematava: "nada de barbados" nem de "molequinhos", talvez em função da alta mortalidade destes últimos na África, no mar ou nos primeiros tempos de Brasil.11 11 Esta carta encontra-se em: ARQUIVO NACIONAL. Real Junta do Comércio, caixa 433, pacote 2.

É óbvio que os "moleques" pertenciam a uma faixa etária superior à dos "molequinhos". Estes, pelos motivos acima expostos, eram crianças de ambos os sexos com, talvez, menos de cinco anos de idade - as tão famosas "crias de peito" e "crias de pé" registradas em documentos das alfândegas dos portos coloniais, expressões que alguns acreditam englobar os escravos menores de dez anos de idade (KLEIN, 1978KLEIN, Herbert S. The portuguese slave trade from Angola in the 18th century. In: KLEIN, Herbert S. The middle passage (comparative studies in the Atlantic slave trade). Princeton: Princeton University Press, 1978. p. 23-50., p. 54-56).

"Molecões" e "moleconas" parecem designar escravos de ambos os sexos, de 12 a no máximo 18 anos de idade, isto é, os tais "escravos novos". "Moleques de 6 palmos passantes" remete a limites etários entre os molequinhos que se recusa e os molecões e moleconas que se requer - possivelmente a escravos de cinco a doze anos. O termo "moça" pode encarnar o contraponto de "rapaz", referindo-se a escrava de pouco mais de 18 anos de idade. "Barbados" certamente designava cativos de faixas etárias mais elevadas, quando não velhos.

Resumindo. O ramerrão diário do tráfico de escravos africanos provenientes da costa congo-angolana durante a década de 1820 acusa claramente os anseios da demanda brasileira por jovens de ambos os sexos. Requeria-se especialmente moleques, além de molecas, molecões e moleconas, categorias classificatórias que possivelmente englobavam escravos e escravas entre cinco e dezoito anos de idade. A preferência recaía sobre o que hoje chamamos meninos e meninas, e ao que também modernamente caracterizamos por pré-adolescentes e adolescentes. Não eram excluídos rapazes e moças, mas havia reticência quanto à aquisição de cativos maduros, digamos, de trinta anos em diante. A juventude dos contingentes a serem comprados e logo exportados era, pois, a tônica dos traficantes que atuavam na África, o que no limite significava investir, na época, no alongamento da capacidade vital dos africanos escravizados e na capacidade reprodutiva presente e futura das escravas adquiridas.

No Rio de Janeiro

O letão Ernst Ebel tinha trinta anos quando visitou a cidade do Rio de Janeiro e os seus arredores em 1824. Até então, provavelmente jamais vira um escravo na vida. De todo modo, suas cartas a um amigo alemão constituem um importante testemunho pois, ao percorrer o mercado de escravos do Valongo, pôde detectar in loco a enorme quantidade de infantes recém-desembarcados diretamente da África. Chegou inclusive a informar sobre a chegada de um negreiro com 250 escravos, "na maioria crianças de dez a quatorze anos", logo acocoradas nos barracões do Valongo em filas de três pelo chão à vista dos potenciais compradores. Eram tantas as crianças africanas oferecidas que Ebel naturalizou o que viu e teorizou junto a seu amigo sobre a origem da predominância de semelhante padrão etário. Segundo ele, os navios negreiros "trazem rapazes e raparigas novos para que se criem aqui, já que nem sempre os adultos se habituam às novas condições" (EBEL, 1972EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1972., p. 42-44).

Embora fosse um homem curioso e estivesse ciente das pressões britânicas contra o tráfico internacional, o viajante letão não conseguiu atinar que semelhante padrão correspondia a uma conjuntura singular da escravidão brasileira. Se visitasse a cidade antes de 1810, quase não veria infantes nascidos na África. Este constituíam apenas 0.1% dos africanos que atracaram no Rio de Janeiro entre 1791 e 1795, cifra que girou ao redor de 2% de 1796 a 1810.12 12 The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/voyage/>. Acessado em: maio 2016.

Os inventários post-mortem de grandes senhores de escravos permitem acompanhar o crescimento da participação das crianças africanas nos plantéis brasileiros, ratificando a relativa redefinição de padrões etário-sexuais da esfera da demanda escravista sob pressão inglesa. Não se trata de fonte ideal, pois embora seja certo que alguns proprietários tenham falecido no auge de sua participação no mercado de escravos, muitos - talvez a maioria - morreram ausentes da vida empresarial, ou seja, com plantéis um tanto envelhecidos. Logo, as cifras oferecidas pelo manejo de inventários expressam tendências e como tal devem ser encaradas.

Tomamos como amostragem os inventários post-mortem dos proprietários de mais de vinte escravos da província do Rio de Janeiro abertos entre 1790 e 1831. Conforme referido, não alongamos a coleta pois percebemos que do início da década de 1830 em diante a documentação tendia a distorcer as naturalidades ou as idades dos escravos eventualmente adquiridos. Tais fontes facultam obter um panorama geral da participação de menores de 15 anos entre os escravos nascidos na África (Gráfico 3). Assim, ralo na última década do século XVIII, o peso demográfico dessas crianças permaneceu ínfimo nos dez anos seguintes - nesses vinte anos elas chegaram a representar no máximo 4% dos africanos, e em alguns anos a amostragem de plantations não registra a presença de uma única criança africana.

Gráfico 3
Participação (%) de crianças de ambos os sexos entre os escravos africanos das fazendas de 20 ou mais escravos, Rio de Janeiro, 1790-1831

Em 21 de janeiro de 1815, em Viena, os britânicos extraíram aos portugueses uma Convenção pela qual, mediante compensação financeira, deixariam de acatar demandas referentes à detenção de naus lusitanas realizadas antes de junho de 1814. No dia seguinte, um tratado extinguia o comércio negreiro português ao norte do Equador. De resto, mantinham-se as prescrições do tratado firmado entre Londres e Lisboa em 1810: Portugal comercializaria escravos apenas no âmbito de seu império, reiterava a promessa de colaborar para a gradual extinção do comércio negreiro e confirmava a abolição do tráfico nos estabelecimentos de Bissau e Cacheu. A novidade - dramática para os escravocratas brasileiros - era que Portugal comprometia-se a negociar com a Inglaterra um tratado no qual se fixaria a data em que o tráfico terminaria. Em 1817, nova Convenção, assinada em Londres por Palmela e Castlereagh, complementava os acordos de 1815: conferia-se - na prática apenas à Inglaterra - o direito de busca e apreensão de negreiros que atuassem ao norte do Equador (GOULART, 1975GOULART, Maurício. A escravidão africana no Brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1975., p. 221-224). Em resposta a todos esses acordos, a participação de crianças africanas nas fazendas fluminenses cresceu continuamente depois de 1810, atingindo o primeiro pico nos anos 1815-17 - elas alcançaram 6% do total de africanos, e as meninas eram 20% dos africanos menores de 15 anos de idade.

A insegurança dos proprietários brasileiros cresceu, e muito, na década de 1820. Ao lento estrangulamento do tráfico externo juntaram-se os acontecimentos que culminaram na Independência, tornando incerto sobretudo o destino das fontes abastecedoras de escravos na África. Na letra da lei, nada impedia à nova nação traficar ao norte ou ao sul do Equador. Contudo, a necessidade de obter o reconhecimento internacional tornava insustentável a posição dos traficantes sediados no Brasil, sobretudo porque Londres instruíra os seus representantes a não reconhecerem novos governos que estivessem envolvidos com o comércio negreiro. A monarquia brasileira descartava a imediata supressão do tráfico, pois isto arruinaria o país e significaria o seu suicídio político. Eis o pano de fundo de temores logo traduzidos no incremento das crianças nos grandes plantéis fluminenses. Em 1820-22 elas representavam 12% do total de escravos nascidos na África, cifra duas vezes superior à detectada em 1815-17. As meninas alcançavam então 40% de todos os infantes africanos.

O tratado que pôs termo ao tráfico foi finalmente assinado em 23 de novembro de 1826. Seu primeiro artigo prescrevia que, ao fim de três anos, contados a partir da ratificação do documento pelo governo inglês - ocorrida em 13 de março de 1827 -, o trato de gente seria considerado ato de pirataria por Brasil e Grã-Bretanha. Londres cedera em um ponto apenas: a partir de 13 de março de 1830, as naus brasileiras que ainda estivessem no litoral africano teriam seis meses para regressar. Resultado: em 1830-31, as crianças nascidas na África chegaram a 10% dos africanos das grandes fazendas do Rio de Janeiro, 21% das quais meninas.

Em síntese, ainda que timidamente, os inventários dos grandes senhores sugerem a busca pelo enfrentamento do eventual término oficial do fluxo de africanos por meio do próprio tráfico atlântico (as cifras por eles desenhadas poderiam ter crescido até 20%, ou mais, na época da visita de Ernst Ebel, conforme sugerem os anúncios de compra e vendas de escravos em periódicos coevos). Foram acionadas, então, duas estratégias, por ordem de importância: a) a aquisição de meninos africanos, sugerindo a aposta empresarial na incorporação de trabalhadores a médio prazo; b) a compra de meninas africanas, com o que se buscava não apenas incorporar trabalhadoras a médio prazo, mas igualmente investir em seu potencial reprodutivo - isto é, na geração de trabalhadores a longo prazo. Havia mais, entretanto, como se verá.

Outras opções

Afirmamos não ser implausível que fontes mais adequadas revelassem um índice maior de crianças entre os africanos das fazendas fluminenses do que o desvelado pelo Gráfico 3. Seja como for, após vir num crescente em resposta às pressões antitráfico, chega a ser desconcertante observar a profunda queda da participação de infantes no intervalo 1825-1827 - de 12% para apenas 4% do total de nascidos na África. Não parece gratuito que semelhante despencar tenha sucedido exatamente quando o novo governo brasileiro e a Grã-Bretanha chegaram ao derradeiro acordo que punha um ponto final no tráfico internacional. Lembremos: após árduas negociações que se estenderam desde praticamente a Independência, o trato de gente deveria ter fim três anos após o dia 13 de março de 1827. A acentuada retração na participação de infantes africanos durante esta etapa final pode, enviezadamente, denotar o acirramento das aflições que tomaram conta das elites escravistas frente ao anunciado fim do tráfico. Foi quando à aquisição de meninos e meninas se agregou nova estratégia por parte da elite senhorial em busca de maximizar os potenciais reprodutivos em suas propriedades, conforme veremos a seguir.

Maximizar os potenciais reprodutivos na segunda metade da década de 1820 significava incorporar mulheres, o que fez com que os escravocratas fluminenses se defrontassem inicialmente com a histórica retenção de mulheres por parte do Congo-Angola - não esquecer que o Gráfico 2 mostra que, de 1811 a 1850, poucas vezes as mulheres alcançaram 20% dos africanos que faziam a travessia oceânica.13 13 A parcimônia com que a África Central Atlântica exportava escravas foi igualmente detectada por ELTIS, 1987, p. 69. Logo, na busca por aumentar seus índices de reprodução interna na segunda metade da década de 1820, aos senhores fluminenses não restou senão pautar-se pela desenfreada aquisição de escravas adultas no mercado interno.

Aprofundemos a questão retornando aos inventários post-mortem, organizados agora a partir de uma nova intervalação - 1790-1807, 1810-1825 e 1826-1830 -, adotada em função dos diferentes índices de crescimento anual do tráfico para o Rio de Janeiro nesses períodos (respectivamente, 0.35%, 2.4% e 4.5%) e também da intensificação das pressões antitráfico (FLORENTINO; GÓES, 1997FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997., parte 3). Por razões que logo serão aclaradas, fez-se igualmente necessário comparar o comportamento demográfico da escravaria da plantation frente ao dos plantéis de menos de dez escravos - deixemos de lado a flutuante camada de médios proprietários, detentores de 10 a 19 cativos. Esclareçamos também que os preços dos escravos aumentaram dramaticamente na praça carioca ao longo do período 1790-1830: tomando-se por base o valor de um homem entre 15 e 40 anos de idade, observa-se que seu preço médio flutuou entre 83 mil e 99 mil réis de 1790 a 1809, de 107 mil a 160 mil réis na década de 1810, alcançando 324 mil réis em 1830.14 14 ARQUIVO NACIONAL.Inventáriospost-mortemdo Rio de Janeiro, 1790-1831. Como são cifras derivadas de inventários, pode-se acrescer de 20% a 30%.

No que tange às variações do indicador que mais diretamente influenciava a reprodução natural - as taxas de masculinidade -, não houve surpresas. De acordo com a Tabela 1, entre 1790 e 1830 o desequilíbrio entre homens e mulheres foi uma constante no interior das pequenas e grandes propriedades. Ainda assim, de 1790 a 1825, na plantation ocorria uma variação diretamente proporcional entre o incremento do tráfico e a taxa geral de masculinidade nos dois primeiros intervalos: de 54,4%15 15 Intervalo de Confiança de 95% (de agora em diante IC95): (55,3; 59,9). para 67,5%.16 16 IC95: (64.3; 67.4). No que concerne aos estabelecimentos de menos de dez escravos, contudo, existe a possibilidade de haver ocorrido exatamente o inverso. Isto é, conforme se incrementava o tráfico de africanos, a taxa de masculinidade de seus plantéis tendia a diminuir - de 61,6%17 17 IC95: (56.9; 67.2). para 55,2%.18 18 IC95: (49.5; 60.4). A comparação dos intervalos de confiança deixa claro que os movimentos de incremento (IC95 das notas de rodapé 15 e 16) e queda (IC95 das notas de rodapé 17 e 18) devem ter ocorrido. Este movimento ocorreu paralelamente ao incremento dos preços dos cativos, que chegaram a dobrar, o que tornava mais restrita a participação de pequenos proprietários em um mercado essencialmente masculino.

Tabela 1
Variação das taxas (%) de crescimento médio anual do tráfico, da africanidade, da masculinidade, da participação dos grandes grupos etários, e da posse de cativos (por faixas de tamanho de plantéis de escravos), agro fluminense, 1790-1830

Ao longo da última etapa do tráfico legal (1826-1830), o momento de maior pico dos desembarques de africanos, o quadro se inverteu por completo. Tanto nos grandes como nos pequenos plantéis, a taxa global de masculinidade retornou praticamente aos mesmos níveis da época de relativa estabilidade do tráfico (1790-1807), embora seus intervalos de confiança se modificassem.19 19 1790-1805 IC95 Pequenos: (56.9; 67.2) Grandes: (51.3; 57.4); 1826-1830 IC95 Pequenos: (53.0; 70.1) Grandes: (56.2; 62.8). Por outro lado, incorporando à discussão o peso dos africanos, observa-se que as taxas de africanidade dos pequenos plantéis poderiam tender a acompanhar o tráfico, crescendo entre 1790 e 1830 - de 58,1%20 20 IC95: (52.8; 63.4). para 64,5%.21 21 IC95: (56.2;73.2). Os grandes, ao invés, viram a participação de africanos no período 1826-1830 retornarem aos níveis dos vinte anos anteriores à chegada da família real ao Brasil.

Estamos frente a um movimento aparentemente paradoxal. À aceleração do desembarque de cativos africanos, a elite proprietária rural cresceu e estabilizou no pico do tráfico (1826-1830), detendo 3/4 dos escravos do agro fluminense. Os índices de masculinidade e africanidade de sua escravaria, por sua vez, após atingirem o auge em 1810-1825, caíram em 1826-30, retornando aos padrões de uma época (1790-1807) em que a capacidade de acumulação dessa elite era menor (detinha metade dos cativos do meio rural). Teriam os pequenos produtores, frente ao fim iminente do fluxo exterior de braços, incrementado as suas compras, explicando-se, desse modo, que dois entre cada três de seus escravos fossem africanos? A falta de sustentação desta hipótese é flagrante. Os pequenos produtores viram cair a sua participação na estrutura de posse de escravos depois de 1810, permanecendo baixa (detinham 10% dos cativos) daí por diante - diminuiu portanto a sua capacidade relativa de acumulação. Por outro lado, a explosão dos preços dos escravos nessa última etapa do tráfico legal por certo afastou ainda mais os mais pobres produtores do acesso ao mercado, em especial ao mercado de africanos.

Raciocinemos de outro modo. Embora a busca por homens cativos fosse a tônica mesmo em conjunturas de menores desembarques de africanos, o resultado final era sempre um panorama sexual menos desequilibrado no interior das grandes propriedades do que nas pequenas, dado que naquelas se incrementava a frequência de crioulos através dos nascimentos, os quais tendiam a ter como padrão sexual 1/1. Daí se explicar, para o intervalo 1790-1807, as taxas de africanidade (42,3%)22 22 IC95: (39.1; 45.4). e de masculinidade (54,4%)23 23 IC95: (51.3; 57.4). dos grandes plantéis serem sempre menores do que nos pequenos -respectivamente, 58,1%24 24 IC95: (52.8; 63.4). e 61,6%.25 25 IC95: (56.9; 67.2). Como a abertura dos portos significou um crescimento geral dos preços dos cativos, a entrada na etapa ascendente do tráfico (1810-25) implicou em que, mais do que a pequena empresa, as grandes comprassem mais homens estrangeiros, além de mais meninos africanos, com o que se exacerbaram seus índices de masculinidades. Explica-se assim porque é alta a probabilidade de que as taxas de africanidade (65%)26 26 IC95: (62.5; 66.4). e de masculinidade (67,5%)27 27 IC95: (65.7; 69.2). dos grandes plantéis fossem então sempre maiores do que nos pequenos - respectivamente, 59,9%28 28 IC95: (54.9; 65.9). Os IC das taxas de africanidade para os dois períodos analisados (nas notas de rodapé 26 e nesta) se cruzam só no intervalo 65.9-66.4. e 55,2%.29 29 IC95: (49.5; 60.4). Os IC das taxas de masculinidade são completamente diferentes (nas notas de rodapé 27 e nesta).

No momento de crise da oferta de braços (1826-30) estes padrões continuaram vigentes: a alta dos preços dos escravos, a preferência por homens, a aquisição de crianças via tráfico atlântico e a tendência a uma maior frequência de nascimentos no interior dos grandes plantéis. Contudo, em particular diante de uma crise que se mostrava definitiva, a estes padrões se agregou a preocupação senhorial em aumentar os índices de reprodução natural da escravaria, o que, no caso brasileiro, já dissemos, se refletiu no incremento do mercado interno de cativas. Logo, se os índices de masculinidade eram levemente maiores nos pequenos plantéis entre 1826 e 1830 (61,6%30 30 IC95: (53.0; 70.1). contra 59,5%31 31 IC95: (56.2; 62.8). A porcentagem maior dos pequenos plantéis não se verifica completamente devido ao seu IC95 ser mais amplo (na nota de rodapé 30) que o IC95 dos grandes plantéis da presente nota. Pela mesma razão, tampouco se verifica que fosse menor. O mais provável é que sejam semelhantes com uma pequena tendência a ser maior para os pequenos. dos grandes plantéis), isto se devia não a uma maior compra por africanos homens, mas sim à perda de mulheres (africanas e crioulas) para as grandes unidades produtoras, que buscavam assim maximizar os potenciais internos de autorreprodução de sua escravaria. Eram bastante flexíveis as opções demográficas da plantation.

A argumentação até aqui desenvolvida possui dois eixos: os nascimentos de escravos tendiam a ser mais frequentes no interior dos grandes plantéis; na época de crise da oferta, incrementou-se o tráfico interno pautado fundamentalmente na compra de mulheres cativas para aumentá-los. Por certo, provar este conjunto de circunstâncias exigiria cruzar os inventários post-mortem com outros tipos de fontes, tais como registros de batismos e de compra e venda de cativos. Contudo, os próprios inventários oferecem outras indicações que ajudam a reforçar a nossa argumentação, bastando com que se trabalhe com as taxas de dependência das faixas de plantéis.32 32 Taxa dada pela fórmula (número de infantes + número de idosos)/(número de adultos).

A Tabela 1 demonstra que a escravidão, ao se reproduzir fisicamente através do mercado de braços, tendia a produzir baixas taxas de dependência. Entretanto, mesmo baixas, essas taxas variavam no interior dos plantéis de acordo com os seus respectivos tamanhos e as fases dos desembarques de africanos. Para o período 1790-1807, embora as taxas de dependência fossem mais ou menos equivalentes para pequenas e grandes propriedades (0.96 e 0.93), elas se alimentavam de faixas etárias distintas: de idosos (21,8%) nas pequenas, e de infantes (30,8%) nas grandes, com a participação dos adultos permanecendo praticamente no mesmo patamar em ambas (ao redor de 51%). É possível, pois, ratificar serem os nascimentos nos grandes plantéis o que impedia uma brusca queda da taxa de dependência em fases de relativa estabilidade do tráfico de escravos. Além disso, eram estes mesmos nascimentos os responsáveis pelo fato de os africanos serem minoria (42,3%) entre os escravos das grandes fazendas.

Com a chegada da família real, o incremento da compra de homens estrangeiros adultos seria decisivo para a queda da taxa de dependência nas grandes propriedades, do que derivou a queda relativa da participação dos infantes (para 22%) nestes plantéis, ainda quando buscassem adquirir crianças africanas. Observe-se que, impossibilitados pelos altos preços de recorrerem em massa ao mercado, os pequenos estabelecimentos viram a sua escravaria envelhecer.

Entrada a etapa de crise da oferta de africanos, já o vimos, embora comprassem a maior parte dos escravos desembarcados, os grandes plantéis conheceram taxas de masculinidade e de africanidade menores do que as dos plantéis menos extensos. É que elas se nutriam de movimentos retroalimentadores: os nascimentos normalmente mais frequentes nos grandes estabelecimentos, a aquisição de crianças africanas, e a política deliberada dos grandes proprietários no sentido de adquirir mais mulheres crioulas e africanas aos pequenos estabelecimentos - por isso a participação dos infantes saltou, neles, para 30,2%, e a taxa de masculinidade entre os crioulos baixou para 51,9%. Este incremento dos potenciais de reprodução natural redundou em que a taxa de dependência tendesse a crescer nas grandes propriedades em relação à etapa anterior (de 0.73 para 0.80). Dada a dificuldade em adquirir mulheres adultas na África, é muito provável que as africanas adquiridas junto aos pequenos proprietários na segunda metade da década de 1820 tenham levado à queda relativa da participação de crianças nascidas na África detectada no Gráfico 3.

Ratificando nossa argumentação há os resultados do trabalho com as variações das taxas de masculinidade entre os escravos adultos nascidos na África e no Brasil. Os Gráficos 4 e 4.1, a seguir, mostram que diante da crise da oferta africana as taxas de masculinidade no interior dos pequenos e grandes plantéis obedecem a movimentos opostos. Sugere-se fortemente que a maior presença relativa de mulheres nos grandes estabelecimentos resultava sobretudo de compras de africanas e crioulas realizadas junto aos pequenos proprietários - um tráfico interclasses, enfim. Dada a reduzida participação relativa de africanas também entre os escravos do mercado interno, a compra sobretudo de crioulas adultas sugere a aposta senhorial na incorporação de potencial produtivo e reprodutivo imediato.

Gráfico 4
Variação (%) das taxas de masculinidade entre os escravos africanos adultos por grandes faixas de plantel, agro fluminense, 1790-1830

Gráfico 4.1
Variação (%) das taxas de masculinidade entre os escravos crioulos adultos por grandes faixas de plantel, agro fluminense, 1790-1830

Considerações finais: africano-crioulo?

Leopoldina Damasceno nasceu no Congo e desembarcou no Rio de Janeiro em 1811, aos cinco anos de idade. Marcelina de Jesus chegou em 1816, com dez. Ana desembarcou com nove, em 1815, e Benedito Mina o fez aos seis anos, em 1812. Todos eles ainda viviam em 1906, tendo sido elencados pelo censo daquele ano como "habitantes centenários" da cidade do Rio de Janeiro (INSTITUTO PEREIRA PASSOS, 2012INSTITUTO PEREIRA PASSOS. O censo de 1906 do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto Pereira Passos, 2012., p. 147-172). Fizeram parte, assim, das crescentes levas de infantes africanos de ambos os sexos, adquiridos pelos escravocratas brasileiros após 1810. Foram mais de meio milhão de crianças, desembarcadas de norte a sul do Brasil, cuja compra desvela as aflições dos proprietários às voltas com as cada vez mais fortes pressões inglesas pelo fim do trato pelo Atlântico.

Óbvio, na medida em que a compra de escravos visava sobretudo à incorporação de trabalhadores imediatamente aptos à labuta no campo e nas cidades americanas, a aquisição maciça de infantes africanos respondia a circunstâncias muito específicas. Buscava prevenir a pressão abolicionista por meio do alargamento geracional da vida dos trabalhadores adquiridos e, além disso, do próprio potencial genésico da escravaria através das meninas compradas. Estamos, pois, face a uma demanda flexível em seus objetivos.

Os temores das elites escravocratas se acentuavam na medida em que se aproximava o fim oficial do trato de gente, razão pela qual se incrementou, na segunda metade da década de 1820, a compra de escravas adultas, em especial de crioulas. Não sabemos se a compra de cativas adultas nascidas no Brasil se intensificou depois de 1830, embora o tráfico atlântico continuasse a fazer desembarcar milhares de infantes africanos até 1850. Seja como for, o fato de que o tráfico interno tenha se intensificado depois de 1850 revela os limites das estratégias implementadas durante a época de vigência do comércio negreiro internacional.

Ainda assim, a contínua compra de crianças africanas por quase meio século gerou uma nova categoria - a aparição da figura do africano-crioulo. Por tal categoria entendemos os que, nascidos na África, ao desembarcarem no Brasil em idades muito tenras, eventualmente conheceram maior facilidade em seu processo de incorporação e recriação cultural. Centenas de milhares de crianças podem ser incluídas em semelhante categoria, que abarcou mais de duas gerações de escravos, os quais muito provavelmente tiveram mais êxito para sobreviver do que outros africanos, lançando mão daqueles aspectos em que a aculturação era determinante, como a constituição de famílias, o acesso à terra e às alforrias.

Referências

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  • FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A paz das senzalas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
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  • GORENDER, Jacob. O escravismo colonial São Paulo: Ática, 1978.
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  • KLEIN, Herbert S. Tráfico de escravos. In: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas históricas do Brasil Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1986. p. 51-59.
  • PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1977.
  • READ, Ian. The Hierarchies of Slavery in Santos Brazil, 1822-1888. Stanford: Stanford University Press, 2012.
  • RODRIGUES, José Honório. Brasil e África: novos horizontes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
  • 1
    ARQUIVO NACIONAL.Real Junta do Comércio, caixa 449, pacote 1.
  • 2
    Para um exemplo exitoso de reprodução natural há o caso de Minas Gerais. Cf. BERGAD, 2004.
  • 3
    "As características demográficas dos recém-chegados escravos africanos, explicadas, principalmente, pela maior demanda do sexo feminino dentro da África e pelo desinteresse comercial pelo tráfico de crianças, justificam a estatística incomum, relativa ao [desequilíbrio de] sexo e idade dos africanos, tanto no primeiro censo de 1872, como nos censos regionais anteriores" (KLEIN, 1986, p. 53).
  • 4
    Veja-se, por exemplo, o caso doProgresso(1843), negreiro que saiu de Paranaguá para Moçambique, onde foi capturado quando do retorno para o Brasil depois de haver embarcado escravos. Em seu interior contavam-se 189 homens - "poucos, no entanto, passando dos vinte anos" -, 45 mulheres e 213 meninos. Cf. HILL, 2006, p. 62-63.
  • 5
    The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/voyage/>. Acessado em: maio 2016.
  • 6
    ARQUIVO NACIONAL.Inventáriospost-mortemdo Rio de Janeiro, 1790-1831.
  • 7
    No Tratado de Paz e Aliança firmado em 1825 entre Brasil e Portugal, o artigo III estabelece que "Sua Majestade Imperial promete não aceitar as proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil". Cf. RODRIGUES, 1982, p. 174.
  • 8
    Por crianças, o TASTD define os africanos menores de 12 anos de idade ou de altura inferior a 1.30m.
  • 9
    The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/voyage/>. Acessado em: maio 2016.
  • 10
    A correspondência mencionada adiante se encontra em: ARQUIVO NACIONAL. Real Junta do Comércio, caixa 398, pacote 1. Ela foi produzida entre 1818 e 1823.
  • 11
    Esta carta encontra-se em: ARQUIVO NACIONAL. Real Junta do Comércio, caixa 433, pacote 2.
  • 12
    The Transatlantic Slave Trade Database: Voyages. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/voyage/>. Acessado em: maio 2016.
  • 13
    A parcimônia com que a África Central Atlântica exportava escravas foi igualmente detectada por ELTIS, 1987, p. 69.
  • 14
    ARQUIVO NACIONAL.Inventáriospost-mortemdo Rio de Janeiro, 1790-1831. Como são cifras derivadas de inventários, pode-se acrescer de 20% a 30%.
  • 15
    Intervalo de Confiança de 95% (de agora em diante IC95): (55,3; 59,9).
  • 16
    IC95: (64.3; 67.4).
  • 17
    IC95: (56.9; 67.2).
  • 18
    IC95: (49.5; 60.4). A comparação dos intervalos de confiança deixa claro que os movimentos de incremento (IC95 das notas de rodapé 15 e 16) e queda (IC95 das notas de rodapé 17 e 18) devem ter ocorrido.
  • 19
    1790-1805 IC95 Pequenos: (56.9; 67.2) Grandes: (51.3; 57.4); 1826-1830 IC95 Pequenos: (53.0; 70.1) Grandes: (56.2; 62.8).
  • 20
    IC95: (52.8; 63.4).
  • 21
    IC95: (56.2;73.2).
  • 22
    IC95: (39.1; 45.4).
  • 23
    IC95: (51.3; 57.4).
  • 24
    IC95: (52.8; 63.4).
  • 25
    IC95: (56.9; 67.2).
  • 26
    IC95: (62.5; 66.4).
  • 27
    IC95: (65.7; 69.2).
  • 28
    IC95: (54.9; 65.9). Os IC das taxas de africanidade para os dois períodos analisados (nas notas de rodapé 26 e nesta) se cruzam só no intervalo 65.9-66.4.
  • 29
    IC95: (49.5; 60.4). Os IC das taxas de masculinidade são completamente diferentes (nas notas de rodapé 27 e nesta).
  • 30
    IC95: (53.0; 70.1).
  • 31
    IC95: (56.2; 62.8). A porcentagem maior dos pequenos plantéis não se verifica completamente devido ao seu IC95 ser mais amplo (na nota de rodapé 30) que o IC95 dos grandes plantéis da presente nota. Pela mesma razão, tampouco se verifica que fosse menor. O mais provável é que sejam semelhantes com uma pequena tendência a ser maior para os pequenos.
  • 32
    Taxa dada pela fórmula (número de infantes + número de idosos)/(número de adultos).

Anexo 1

São as seguintes as porcentagens representadas no Gráfico 2:

As estimativas referentes a 1846-1850 não incluem Pernambuco, que não registra idades. As porcentagens se referem ao quociente entre o número estimado de indivíduos desembarcados por sexo e idade sobre o total. As estimativas foram feitas, como já foi comentado no texto, a partir dos dados das apreensões de naus deslocadas para Serra Leoa.

Por número, são as seguintes as estimativas do Gráfico 2:

O número estimado de indivíduos (por sexo e idade) é o resultado da multiplicação do total de desembarcados em cada porto - dado conhecido no TASTD - pela porcentagem que representavam esses indivíduos nas apreensões para Serra Leoa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2016
  • Aceito
    20 Jul 2016
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