Acessibilidade / Reportar erro

Os britânicos e seu Império: debates e novos campos da historiografia do período vitoriano

The British and their Empire: debates and new historiographic fields of the victorian age

RESUMO

O artigo apresenta os debates historiográficos referentes à expansão do Império Britânico no século XIX, tendo como eixo norteador as transformações sociais e acadêmicas decorrentes da derrocada daquele sistema planetário e as revisões quanto ao lugar da Grã-Bretanha nas relações internacionais. São expostas as mais destacadas linhas interpretativas originadas em meados do século XX, momento da desconstrução imperial, quando ainda predominavam análises originárias da própria metrópole. Essas leituras são contrapostas à ascensão de outras, provenientes das ex-colônias, marcadas pelo fortalecimento de novas interpretações sobre as limitações e contradições internas àquele sistema. O objetivo é demonstrar de que forma a própria crise imperial levou a novas análises, possibilitando olhares e interpretações que se distanciaram de clássicas afirmações sobre o poder imperial e suas estruturas.

Palavras-chave:
Império Britânico; imperialismo; historiografia.

ABSTRACT

The paper presents the recent historiographical debates on the expansion of the British Empire, focusing on social and academical changes after de fall of that planetary system and the revision of the force of Great Britain in the international relations. It presents the mainstream interpretative school, based on the metropolis, whose origins in middle 20th century is related to the deconstruction of the Empire. They are opposed to the rise of other interpretations, born in the former colonies, related to new scholars focused on the constraints and contradictions of that system. The aim of the article is to show in which way the imperial crisis itself give force to this new analysis, opening new fields and interpretations so distant of that classic discourses on imperial power and structures.

Keywords:
British Empire; imperialism; historiography.

O Império Britânico foi a mais forte potência planetária, tendo ampliado seu poder, entre 1815 e 1939, através da expansão de sua indústria, comércio, finanças e de sua capacidade bélica. Sua ruína, logo após a Segunda Guerra Mundial, levou a uma série de pesquisas e questionamentos sobre suas estruturas e força, constituindo algumas das análises hoje tidas como clássicas sobre aquele período. No entanto, o final da Guerra Fria possibilitou a ascensão de novas interpretações, distantes das dicotomias marcantes daquele período e centradas em pesquisas oriundas não apenas da metrópole, mas também das antigas colônias. Essas novas leituras contribuíram para a ampliação da compreensão sobre o sistema planetário construído pelos britânicos, suas limitações, desafios e contradições internas.

Como estratégia expositiva, são apresentadas as principais questões formuladas por essa nova historiografia e seus debates internos, em contraposição aos estudos consolidados após a Segunda Guerra Mundial. O artigo se estrutura sobre os temas centrais colocados pelas novas pesquisas no tocante à construção e consolidação da hegemonia britânica durante a primeira metade do século XIX.

Tomando como referência as análises sobre as transformações econômicas decorrentes da Revolução Industrial, são apresentadas as leituras sobre as transformações na política doméstica e nas relações internacionais, destacando-se os estudos sobre a ascensão das classes médias urbanas a partir da renovação do campo da história política. Uma sucessão de pesquisas revela a construção de novos parâmetros e objetivos para a expansão imperial, caracterizando como o governo metropolitano tentou, sem muito sucesso, compor com diferentes grupos e interesses, constituindo uma expansão não muito organizada, tampouco coerente. Por fim, são apontados os debates sobre as transformações na metrópole decorrentes da dominação planetária, demonstrando-se como o fortalecimento das pesquisas nas antigas colônias revelou um conjunto de novas questões sobre as relações entre os britânicos e seu Império e as próprias estruturas construídas naquele período.

Economia e política internacional: bases para a nova expansão imperial

A historiografia das relações internacionais associa o século XIX à supremacia britânica, muitas vezes denominando o período entre a derrota de Napoleão e a Primeira Guerra Mundial como Pax Britannica. Este termo, quando empregado, vincula-se a um olhar excessivamente europeu sobre aqueles cem anos, entendendo-os como de predomínio da paz no continente, mas ignorando as profundas violências exercidas em todo o planeta.

Apesar de uma alegada longa paz e de sua defesa pela Grã-Bretanha, a grande potência não deixou de recorrer ao uso da força onde e quando considerou válido - em especial na defesa e expansão de seu império.

Ao analisar o período, em A evolução da sociedade internacional, Adam Watson define:

Grã-Bretanha era agora a potência dominante nas extensões ultramarinas da Europa; e a fim de explorar essa dominância necessitava de equilíbrio e paz na própria Europa. Esses objetivos também convinham à Rússia, que estava igualmente interessada na expansão (WATSON, 2004, p. 334).

Nesta análise, o esforço conjunto britânico e russo, aliado às preocupações das demais potências com seus assuntos internos, proporcionou um momento novo para a história europeia, dando força para aquela que seria a mais rápida e eficiente expansão imperial. Não deixa de chamar a atenção a forma como o historiador internacionalista analisa este período como de convivência e concorrência entre duas potências que contaram com uma Europa continental enfraquecida para dividirem o mundo. O paralelo com a época recém-finalizada da Guerra Fria é evidente, em especial quando Watson analisa o final deste sistema, com a crise interna russa, a ascensão da Prússia e a unificação alemã:

Durante alguns anos, o controle considerável de Bismarck e seu hábil malabarismo diplomático mantiveram a ordem europeia. Lembrando o destino de Napoleão, ele estava determinado a evitar uma querela com a Rússia ou com a Inglaterra [...]. Mas o novo Estado no centro tornou-se mais potencialmente hegemônico. A integração econômica e depois política da maior parte da Alemanha e as reformas sociais que a acompanharam liberaram novas fontes de energia semelhantes àquelas liberadas na França pela Revolução. Aquilo significava um precedente pressago para a paz e a estabilidade na Europa (WATSON, 2004, p. 348-349).

Watson não atribui à ascensão prussiano-alemã a decadência da potência ocidental - que conviveu com a nova por mais de quatro décadas -, mas sim à Rússia, assim como ocorrera com o final da Guerra Fria. A queda da URSS foi paralela à estruturação da União Europeia, e um de seus marcos foi justamente a reunificação alemã.

Esta análise centrada no estudo das grandes potências também colocou na própria aliança russo-britânica as origens da futura disputa entre estas potências pela Ásia, o chamado "grande jogo". Ambas as potências teriam suas zonas de influência e procuravam ampliá-las, eventualmente entrando em atrito em regiões em que os interesses colidiam.

Para além dos paralelismos estruturantes com a Guerra Fria, Watson associa o sucesso britânico ao executar as conquistas territoriais da Era Vitoriana com o uso das armas e a negociação diplomática com as demais potências europeias. A potência em expansão teria investido para compor uma nova situação na qual seus concorrentes continentais se mantinham em paz, possibilitando, talvez sem perceber, tempo e recursos para os britânicos construírem seu enorme império: a pax britannica teria sido, portanto, uma inteligente estratégia para conquistar o planeta.

Em sua análise, Adam Watson defende o sucesso desse investimento britânico na paz continental. Esta foi rompida apenas por uma guerra, justamente contra os russos, na Crimeia (1853-1856), e pelas guerras de unificação italiana e alemã. Com o olhar focado nas esferas formais da negociação política internacional, ele ofereceu pouca atenção às consequências dessa expansão planetária às populações do restante do mundo - crítica desenvolvida por muitos de seus colegas contemporâneos.

Em The Empire Project, de John Darwin, publicado duas décadas depois daquele de Adam Watson, não se reduz a rápida, bem-sucedida e relativamente tranquila expansão imperial apenas como decorrência da política internacional europeia. Sua análise expõe um olhar preocupado com os aspectos globais da vitória britânica e nas relações entre este fenômeno e características internas dos principais povos conquistados. Seu foco não recai sobre os esforços conquistadores dos britânicos, mas no que ele entende como uma incrível conjunção de fatores externos facilitadores da expansão imperial:

Apesar de ter sido difícil de observar à época, o sucesso e a sobrevivência das conexões britânicas dependeram de algo maior do que as táticas e estratagemas de seus agentes e interesses [...]. Se o sistema era global, o era em função de uma economia globalizada e por conta de alterações na política mundial que os britânicos até se esforçaram para influenciar, mas certamente não conseguiam controlar (DARWIN, 2009, p. 2).

Nesta interpretação, o Império Britânico, apesar de seu sucesso, não contou com um plano prévio, tendo se aproveitado de uma série de situações transformadas em vantajosas: a expansão imperial foi uma sucessão de oportunidades aproveitadas, não um plano de ocupação e dominação. John Darwin evidencia a simultânea decadência dos impérios muçulmanos - Otomano, Mughal e Safávida -, a ruína da dinastia Qing na China e o inesperado sucesso comercial dos EUA: todas estas oportunidades conjugadas ofereceram vantagens, matérias-primas e mercados, compondo a base de sustentação da expansão imperial.

Sua análise destaca a permanência da tradição naval britânica. Com um pensamento geoestratégico, realça o papel da Marinha Real e como esta aproveitou as Guerras Napoleônicas para realizar importantes conquistas - não necessariamente contra os franceses -, constituindo uma rede de apoio à expansão militar e econômica do Império no imediato pós-guerra. Com este olhar, Darwin localiza uma ampla e coerente rede de portos militares: o Cabo da Boa Esperança, no sul da África; o Ceilão (Sri Lanka) e as Ilhas Maurício, no Oceano Índico; as Ilhas Jônicas (até 1864) e Malta, no Mediterrâneo; Halifax, no Atlântico Norte; na sequência, as Ilhas Falkland, no Atlântico Sul (conquistadas em 1833).

A anexação destes locais, com pouca população e nenhum interesse econômico imediato, esteve pautada por objetivos geoestratégicos. Neles, a Marinha Real manteve fundeados navios de guerra controladores dos mares. A marinha mercante encontrava portos seguros para reabastecimento e reaparelhamento. Esta teria sido, segundo John Darwin, a expansão planejada do Império - idealizada nos gabinetes de Londres e executada pela Marinha Real. Este sucesso possibilitou a execução das outras e importantes expansões, aquelas oportunistas, sobre a China, a Índia, o Pacífico e a África.

Apesar de Adam Watson focar sua análise nos aspectos europeus, e de John Darwin entender a expansão imperial como confusa e oportunista, ambos reconhecem a extensão e violência da ocupação britânica do planeta. Esta não é a interpretação de outro analista da imperial history, Niall Ferguson. Defensor do que entende como o legado da missão britânica no planeta, argumenta que o Império Britânico foi uma potência hegemônica não agressiva, responsável por um belo legado à humanidade:

Viajando pelos vestígios daquele Império [...] eu ficava frequentemente impressionado com sua ubíqua criatividade. Imaginar o mundo sem o Império seria riscar do mapa os elegantes bulevares de Williamsburg e da velha Filadélfia, lançar ao mar as ameias atarracadas de Port Royal, na Jamaica; fazer voltar a arbustos a gloriosa silhueta de Sidney [...] (FERGUSON, 2010, p. 20).

Pautado por uma leitura nostálgica e ufanista do antigo Império, Ferguson dedicou 427 páginas de seu livro Império para defendê-lo e, como afirma o subtítulo do livro, explicar como os britânicos fizeram o mundo moderno. Ou melhor dizendo, como os britânicos fizeram bem o mundo moderno. Sua análise procura entender o dito fenômeno da globalização do século XXI como um produto direto e positivo do Império Britânico, ressaltando como as críticas recebidas do liberalismo econômico eram equivocadas, pois foi a estruturação construída pelos britânicos no século XIX o que possibilitou as maravilhas agora vividas. Em sua leitura, o grande diferencial era o altruísmo e o liberalismo político - este não entendido dentro de um modelo e de uma forma de ver o mundo, mas como uma verdade e como o caminho correto da civilização:

Continua sendo a característica mais peculiar do Império, aquilo que o separa dos seus rivais da Europa continental [...]. Uma vez que uma sociedade colonizada tivesse adotado suficientemente as outras instituições que os britânicos traziam consigo, ficava muito difícil para os britânicos proibir aquela liberdade política a que eles mesmos davam tanta importância (FERGUSON, 2010, p. 21).

A leitura de Niall Ferguson do Império está, portanto, baseada na premissa da escala de civilização, do contínuo progresso, entendendo os britânicos como o ápice do avanço, disseminadores desinteressados da civilização. Ele parece ter sido convencido pelo próprio discurso vitoriano e defende este mesmo tipo de prática no presente. Muitos historiadores refutam esta análise que desconsidera o viés militar da expansão britânica sobre o planeta.

Em clássico ensaio publicado em 1985, Godfrey Uzoigwe já alertava para as consequências desta linha interpretativa do "legado positivo" do imperialismo, pautada pelos princípios do "fardo do homem branco", estruturada apenas sobre noções geopolíticas. Em seu entendimento,

As teorias sobre a partilha expostas até agora tratam da África no quadro ampliado da história europeia. É claro que este é um grave erro [...]. É, portanto, necessário, fundamental mesmo, examinar a partilha da África da perspectiva histórica africana (UZOIGWE, 2010, p. 29-30).

Esta proposta de olhar, muito relacionada com uma perspectiva de construção das histórias dos Estados recém-independentes da África, influenciou pesquisadores como o já citado John Darwin. Estes questionamentos também marcaram a forma como os historiadores passaram a olhar o imperialismo dentro da metrópole, as consequências cotidianas, sociais, demográficas e as conexões entre questões internas e a expansão externa.

Alçada ao posto de grande vitoriosa, senhora dos mares, defensora da paz europeia e dos livres mercados, a Grã-Bretanha passou a vivenciar, no início do século XIX, a experiência única de se tornar a principal potência política, além de modelo e referência econômica e social. Diante desta nova conjuntura, acirraram-se as discussões a respeito do futuro do Império. Seria ele um pesado fardo do passado ou o trampolim para o futuro?

A historiografia britânica do século XXI se apresenta bastante interessada neste debate, destacando as diferentes e contraditórias estratégias utilizadas por diversos grupos para garantir seus interesses e que levaram à retomada da expansão imperial.

Os britânicos da Revolução Industrial entre o liberalismo e o Império

O Império não foi uma novidade elaborada pelos britânicos no início do século XIX, tampouco era um projeto único: estava sujeito a diversas pressões. Houve nas décadas de 1810 e 1820 uma intensa disputa acerca de seu destino, objetivos e propósitos. A argumentação, para os críticos ao antigo império georgeano mercantilista do século XVIII, esteve pautada em uma série de eventos desconexos que ocorreram no ano de 1776.

Em março daquele ano, foi publicado o livro que sistematizou uma longa linha de raciocínio - A riqueza das nações, de Adam Smith. Quatro meses depois, fundamentados nos princípios do liberalismo político e econômico e em uma profunda crítica ao sistema imperial, parte das colônias inglesas na América do Norte declarou a independência e se tornou os Estados Unidos da América. Oito dias após este evento, zarpou de Londres a terceira expedição do HMS Resolution, comandada por James Cook, com o objetivo de complementar os mapas do Oceano Pacífico, abrindo uma nova frente de expansão imperial. Naquele mesmo ano, James Watt iniciou a venda e instalação de sua patenteada máquina a vapor, revolucionando as indústrias ao proporcionar uma nova escala de produção e ampliar os mercados consumidores de minério de ferro e carvão, fartos na Grã-Bretanha.

Liberalismo, colonialismo, ciência e tecnologia são centrais para a compreensão da revisão pela qual passou o Império Britânico no início do século XIX. As cinco décadas após o inusitado ano de 1776 foram marcadas pela lenta e progressiva adesão dos governos britânicos à revisão de seu Império. O choque da independência de suas colônias norte-americanas foi duro e proporcionou uma intensa discussão sobre a função do império.

Para os liberais, territórios em ultramar controlados de forma direta significavam gastos com militares e administradores, corrupção material e moral, e ineficiência econômica. Apesar desta interpretação e da atuação intensa na defesa das independências latino-americanas, não se cogitou, seriamente, no governo britânico, conceder a independência às suas restantes colônias.

Anthony Howe, em Free trade and global order: the rise and fall of a Victorian vision, procura associar a dificuldade de aceitação do governo britânico da teoria do liberalismo à política internacional do período. Em seu entendimento, não havia contradição entre a força da nova teoria econômica e sua não execução pelo Estado, visto que este enfrentava outros problemas:

Adam Smith não subestimou os obstáculos para sua proposta de emancipação, e vinte e dois anos de guerras com a França (1793-1815) adiaram sua execução. No entanto, quando o ímpeto pela liberalização foi retomado, após 1815, suas ideias estavam sendo contestadas pelas teorias de Malthus sobre o crescimento da população e o desabastecimento (HOWE, 2007, p. 28).

As interpretações da historiografia britânica sobre o liberalismo neste início do século XIX são interessantes, visto que são bastante marcadas pelas experiências dos governos de Margaret Thatcher (1979-1990). Há uma intensa disputa sobre a força e a disseminação do liberalismo na era vitoriana, destacando-se aquelas interpretações, como a de Anthony Howe, sobre as dificuldades para a execução desta política econômica, e outras críticas de suas consequências para o mundo.

Ainda na década de 1950, constituíram-se as bases de outra análise historiográfica, bastante crítica da aplicação do liberalismo como prática de política externa. No artigo The imperialism of free-trade, John Gallagher e Ronald Robinson defenderam a ideia de que o Império Britânico havia exercido um "imperialismo do livre-comércio", estabelecendo a divisão do mundo em diferentes áreas, com distintas estratégias de atuação (GALLAGHER; ROBINSON, 1953). Outros autores, quatro décadas depois, como Peter Cain e Antony Hopkins, aprofundaram e refinaram esta análise, aproximando as noções de inovação e expansão (CAIN; HOPKINS, 1993).

Para essa escola historiográfica, os estrategistas no governo, os comentadores na imprensa e os planejadores nas companhias passaram a denominar algumas regiões como um império informal. Estas eram regiões como a América Latina e o Império Otomano, mas também partes da China e enclaves na África, onde teria sido executado um império do livre-comércio, com a predominância britânica se dando pela via econômica. O convencimento intelectual a respeito das benesses do livre-comércio era o primeiro investimento, passando-se a associar o pertencimento à civilização ocidental e à defesa do liberalismo, em que muitas elites latino-americanas foram especialmente confiantes.

Como defendido por Martin Lynn, quando as ideias não bastavam, uma eficiente demonstração de força da Marinha Real costumava funcionar - e esta teria sido a estratégia essencial colocada em prática a partir da metade do século:

O objetivo central da política britânica além-mar era facilitar o comércio e desenvolver mercados, abrindo regiões para o contato com o exterior. Todos reconheciam que isto acabaria beneficiando a Grã-Bretanha, ao facilitar seu comércio e investimentos, possibilitando o acesso a novas fontes de matéria-prima para a economia metropolitana [...]. Na prática, isto requeria ligações positivas entre as classes comerciais britânicas e da sociedade receptora (LYNN, 1999, p. 107).

Esta análise está marcada por uma compreensão de mundo muito forte nos anos subsequentes ao final da Guerra Fria, quando o consenso neoliberal marcou as políticas econômicas e foi executado não através do uso das armas, mas a partir do convencimento e da aliança com as elites políticas e econômicas locais.

Assim como Martin Lynn, Antony Knight também procurou compreender as estruturas e estratégias econômicas da expansão britânica. Em seu entendimento, entre as muitas "ligações positivas" estabelecidas entre a Grã-Bretanha e as classes comerciais dos outros países, em especial aqueles recém-independentes e os impérios extraeuropeus em crise, estava a chamada City: o mercado financeiro.

Na bolsa de valores, companhias foram abertas e facilidades oferecidas à crescente classe média, interessada em diversificar investimentos e auferir rendas de atividades que não fossem associadas aos trabalhos manuais. Os anos imediatamente subsequentes à vitória sobre Napoleão e à formalização das independências latino-americanas foram marcados por um boom econômico, pela criação de dezenas de companhias de mineração, transporte e infraestrutura e pela emissão de títulos de dívida por estes novos Estados (DAWSON, 1998). Quando a bolha especulativa estourou, governos recém-independentes que haviam contraído uma série de empréstimos e companhias que não conseguiam alcançar o lucro foram à bancarrota e marcaram o fim de um ciclo:

Enquanto a América Latina, em especial o Brasil, tornou-se um mercado significativo, em especial para os têxteis, não é possível afirmar que era uma bonança. Os mercadores britânicos, frustrados pela topografia, instabilidade política e oposições locais, provaram-se incapazes de reduzir a América Latina à 'dependência'. Não há um paradoxo, no entanto, ao se notar que este período inicial de relativa inércia, entre as décadas de 1820 e 1850, foi o precursor do imperialismo britânico, definido em termos de pressões oficiais e intervenções (KNIGHT, 1999, p. 128).

Para além do debate do autor com os teóricos da dependência, é mais interessante para os objetivos aqui propostos identificar de que forma ele explica uma característica da América Latina tão marcada no imaginário britânico, e não apenas neste - o da instabilidade política que leva ao insucesso econômico. Segundo os dados por ele apresentados, explicita-se, de outro lado, a força do mercado de capitais britânico e suas estratégias de pressão que levaram os britânicos não apenas às terras recém-independentes, mas também a outras ainda não conquistadas por potências europeias, na Oceania, na África e na Ásia. Este é um ponto central das mais recentes pesquisas sobre o Império.

Classes médias urbanas, a renovação da história política e o humanitarianism

Os debates em torno da atuação britânica para o fim do tráfico de escravos são ricos na historiografia brasileira e este não é o foco do presente artigo. No entanto, este movimento foi bastante amplo e, atualmente, é analisado de forma bastante crítica pelos britânicos atentos aos interesses econômicos e políticos envolvidos. Eles também veem que este movimento abriu uma oportunidade para que o Império se expandisse pela Oceania e pela África.

Duas principais interpretações marcaram o debate sobre a atuação internacional britânica pautada em princípios humanitários. Para uma delas, era impossível dissociar os interesses econômicos desta ação, distinguindo-se também a importância do capitalismo escravocrata para a acumulação primitiva na Grã-Bretanha (WILLIAMS, 2012). Outra leitura se centra sobre os aspectos religiosos e morais da atuação imperial britânica, dando relevo à profunda transformação social e à força da imprensa para esse movimento (DRESCHER, 2010).

A discussão a respeito da chamada virada humanitarian do Império Britânico é central nas recentes pesquisas e tem se chegado a resultados que apontam para um ponto intermediário entre as posições acima destacadas. Partindo das premissas elaboradas por Williams (2012), objetiva-se compreender o ressurgimento, na década de 1830, da ideia da necessária expansão territorial do Império. No entanto, lidando com o liberalismo crescente, teriam sido elaboradas novas e intrincadas justificativas, conectadas diretamente à Revolução Industrial.

Além das profundas transformações econômicas já conhecidas, a expansão da industrialização também significou mudanças profundas nas estruturas sociais, na vida cotidiana, na compreensão do tempo, do espaço e da política (THOMPSON, 1998). Na Grã-Bretanha, o surgimento de uma nova e crescente classe média urbana foi um dos mais notáveis símbolos deste momento, e as estratégias adotadas e vitórias alcançadas por este grupo explicitam sua força.

Conforme argumenta Andrew Porter (2004), não é possível desconsiderar o aspecto teológico desta mudança de postura britânica. Segundo sua argumentação, no final do século XVIII, teólogos críticos às estruturas e práticas da Igreja Anglicana, tida como excessivamente hierarquizada e aristocrática, organizaram-se e propuseram uma revisão teológica, barrada pelas mais altas autoridades eclesiásticas. Alguns participantes mais radicais deste grupo romperam com o Anglicanismo e formaram o que veio a se chamar de Igreja Metodista, logo próxima da Igreja Batista, fundada no século XVII. A inovação desta análise está no momento em que associa este novo fervor religioso nas igrejas "não conformistas" (em não conformidade com a Igreja Anglicana) com a ascensão das classes médias urbanas pós-industriais, em busca por voz e representação para seus ideais de ampliação de poderes políticos.

Ainda segundo Porter, estas igrejas compuseram o centro da revisão e do novo vigor religioso da virada do século XVIII para o XIX. Estritamente baseados na leitura da Bíblia, defendiam a igualdade dos homens diante de Deus e passavam a encabeçar uma série de movimentos pelo trato "humano" com outros povos - no que se convencionou chamar de humanitarianism. Para eles, sendo todos imagem e semelhança de Deus, era inconcebível, terrível e abominável que houvesse relações entre humanos pautadas pela violência, como a escravidão. Assim, iniciaram uma campanha pela salvação das "almas atormentadas" e dos selvagens, para torná-los cristãos (PORTER, 1999). Em diálogo com esta perspectiva, Catherine Hall defende em Civilising subjects: Metropole and colony in the English imagination, 1830-1867:

a classe média inglesa enriquecida apoiou o movimento antiescravista, pois participar do movimento pela defesa dos fracos e dependentes - mulheres, crianças, escravos, animais - significava participar da 'independência' da classe média (HALL, 2002, p. 27).

Para esta historiadora, este novo alinhamento significava se opor ao poder e à propriedade hereditária, ao controle e à tutela aristocrática, às relações clientelistas. Segundo esta historiografia do Império, a questão central para a classe média, naqueles anos, era a ampliação da participação política, então centrada na aristocracia e na burguesia mercantil. Estes grupos possuíam como base econômica a produção agrícola na metrópole e/ou nas colônias e o comércio marítimo. Para desestruturar a política e conseguir espaço próprio, ideólogos das classes médias assumiram o discurso liberal e o humanitarianism, objetivando acabar com os monopólios comerciais, abrir os mercados internos à produção internacional e abalar a economia das colônias tropicais inglesas - controladas por seus adversários políticos (PORTER, 1999, p. 202).

O humanitarianism se tornou a bandeira política das classes médias urbanas, de industriais em ascensão, financistas e religiosos. Para difundir a crítica à escravidão, utilizaram-se da imprensa escrita - com amplos mercados nas cidades, e com produtos mais baratos, em decorrência de inovações tecnológicas e da escala de produção - e da difusão de imagens que salientavam o tormento dos escravos, associando sua vida de sofrimentos à do britânico nas cidades da Revolução Industrial. De acordo com Andrew Porter, intensas disputas políticas envolveram a inclusão do abolicionismo no Parlamento, apesar das duras resistências de produtores do Caribe e dos traficantes de escravos:

Na década de 1780, a argumentação intelectual contra a escravidão já havia vencido o debate [...]. No entanto, apesar de amplamente criticada, a escravidão coexistia com consideráveis interesses a seu favor. Em particular, o envolvimento britânico no tráfico atlântico e seu comércio de commodities tropicais das Índias Ocidentais (PORTER, 1999, p. 202).

É interessante notar como esta nova interpretação das campanhas pela abolição do tráfico e da escravidão contempla um novo olhar sobre a política, não mais circunscrita aos debates nos gabinetes e no poder Legislativo, mas também sobre os grupos de influência e em seus interesses sociais e econômicos. Esta visão crítica sobre a atuação governamental entende a esfera da política não mais como monolítica e subordinada a únicos e exclusivos interesses da classe dirigente ou da elite econômica, mas está vinculada a uma série de questionamentos - não apenas britânicos - à organização da sociedade e da política e à chamada nova história política.

Este viés atento à negociação política, menos centrado em pares opositores fixos e determinados, explica a longa jornada da vitória do abolicionismo e do humanitarianism. Ainda na análise de Andrew Porter, a argumentação daqueles contrários à abolição se centrava também no direito de propriedade, com os escravocratas alegando que o governo não poderia confiscar seus bens sem ressarcimento. Diante do impasse, o humanitarianism alterou sua estratégia de atuação e passou a concordar com o fim gradual da escravidão, começando-se pela abolição do tráfico negreiro. A Casa dos Comuns aprovou com mais facilidade, e a Casa dos Lordes hesitou, mas não conseguiu fazer frente às pressões das ruas. Em 1807, o tráfico foi abolido - a escravidão, somente em 1834:

O rápido progresso parlamentar entre 1787 e 1792 deu lugar a uma prolongada frustração, assim que a guerra com a França passou a impedir seriamente qualquer ação. A defesa da suspensão do processo abolicionista, até o retorno da paz, foi acatada por todos os partidos [...]. Agitações populares sobre esta questão e outras causas reformistas foram fortemente reprimidas, pelo temor de uma revolução radical (PORTER, 1999, p. 203).

Esta parcela da historiografia britânica analisa o processo abolicionista a partir de uma leitura da política sob amplo espectro, associando esse movimento aos interesses políticos, sociais e religiosos do humanitarianism. Os referenciais teórico-metodológicos destas pesquisas se ampliaram, incluindo atores não institucionais, a imprensa, as massas urbanas e estratégias de pressão desconsideradas pela leitura tradicional da política. Em uma Grã-Bretanha do pós-Guerra Fria, que se via cada vez mais multiétnica, livre da bipolaridade e convivendo com diferentes grupos étnicos vindos das ex-colônias, além de bilionários do Leste, não fazia mais sentido olhar para a política como um simples e tradicional jogo político entre whigs e tories.

Ao focar também nas estratégias de pressão e em grupos ainda fora das esferas formais da política, esta historiografia se atentou às classes médias urbanas, para quem não haveria um interesse econômico direto. Os cálculos político e econômico foram feitos e se aprovou a abolição, pois a Grã-Bretanha precisava construir sua imagem de potência moderna e não dependia mais economicamente do tráfico - como ocorreu durante todo o século XVIII. A decadente produção caribenha não fazia frente aos mercados da Índia e da China, e tampouco os miseráveis ex-escravos se tornariam um mercado consumidor importante imediatamente.

Nesta análise, o abolicionismo esteve relacionado com a ascensão econômica das classes médias urbanas, sem espaço proporcional na política institucional. Suas vitórias devem ser entendidas dentro de uma luta por poder e representação contra grupos sociais com forte representação política e uma base econômica pautada em atividades associadas à imoralidade religiosa. O humanitarianism, o fim do tráfico e da escravidão não foram, portanto, parte essencial de uma estratégia pela ampliação de mercados decorrente da Revolução Industrial, mas sim fruto das transformações sociais dela consequentes e das lutas por poder e prestígio.

Em Missions and Empire, Norman Etheringhton analisa o humanitarianism não apenas como combativo, mas também propositivo. Em seu entendimento, havia um projeto bem-delineado para a atuação britânica planetária, com a retomada e a ampliação da dominação imperial, agora sob novos preceitos. Ao que ele chamou de imperial humanitarianism, associavam-se os princípios do tratamento justo com os nativos e em sua defesa, contra outros ocidentais "deturpadores" - escravocratas, enganadores, trapaceiros, marinheiros, caçadores, foragidos, os fora da lei - e contra si mesmos e suas culturas "selvagens". Este movimento supunha o estabelecimento de "pequenas Inglaterras", em que nativos cristianizados por missionários aprenderiam as noções sobre propriedade privada, técnicas agrícolas e comerciais e passariam a integrar a "comunidade britânica", participando e competindo em sua economia (ETHERINGHTON, 2008).

Para a tarefa de catequese, foi criado um conjunto de societies. Na esteira da pioneira Abolition Society (1787), vieram a Baptist Missionary Society (1792) e a London Missionary Society (1795). O Anglicanismo seguiu este modelo e criou sua Anglican Church Missionary Society, ou apenas Church Missionary Society (CMS), de 1799. Os metodistas atuaram em muitas missões, mas não estabeleceram sua própria society (PORTER, 2004, p. 40).

Os locais de atuação deste novo tipo de missão evangelizadora foram, prioritariamente, regiões com pouca ou nenhuma presença de ocidentais, em que, no entendimento dos britânicos, os nativos se encontravam ainda não corrompidos, mas em vias de o serem: a Oceania e a África. Para lá foram enviados muitos missionários e, junto deles, como parte do projeto de "civilizar", exploradores para mapear os territórios, identificar potencialidades econômicas e estabelecer rotas comerciais. O ideal era a manutenção das chefaturas nativas, desde que cristianizadas, leais aos britânicos, e adeptas do livre-comércio.

O humanitarianism conseguiu se inserir nos centros de decisão do governo. De dentro do sistema, passaram a difundir a necessidade de o Império se expandir para defender os povos nativos, seguindo uma lógica diversa da mercantilista. Este discurso ecoou em muitas esferas e, no entendimento de Andrew Porter,

a convergência dos interesses dos missionários com os do governo e do grande público deu-se a partir da explícita associação entre cristianismo, comércio e o projeto civilizador [...]. A força, a estabilidade e a expansão britânicas indicavam a preferência divina pelo Reino Unido (PORTER, 1999, p. 231-232).

Este discurso que associava a riqueza e a hegemonia britânicas à sua missão religiosa e civilizadora era deveras sedutor para importantes grupos políticos e econômicos. Como demonstrado por esta nova historiografia, o humanitarianism fez ressurgir o fervor imperial. Baseados na justificativa religiosa para a anexação de terras, partiu-se para a ampliação dos domínios no Canadá, para a expansão e controle formal sobre toda a Austrália e, por fim, para a anexação da Nova Zelândia. Estes três locais se tornaram, posteriormente, centrais para a lógica imperial e para a própria segurança militar e econômica da Grã-Bretanha. No centro das discussões, eles deixaram de interessar apenas ao humanitarianism e entraram na pauta de outros grupos que também discutiam a expansão imperial, sob outros preceitos.

Os conservadores e o novo império: Colonial Reformers

Atenta às disputas em uma política que se ampliava e conturbava, a historiografia britânica - inclusive aquela produzida em algumas de suas ex-colônias - observou também a reação conservadora à situação social, política e econômica acima descrita, do início do século XIX. Não eram apenas liberais e humanitarians os grupos a disputar o poder; havia também outro setor, associado ao grande capital, mas distante dos princípios de Adam Smith e sucessores. Diante do enriquecimento britânico, de sua preponderância internacional e também da crescente tensão social interna, foi elaborado outro projeto por um grupo que se intitulava Colonial Reformers.

Segundo a teoria imperial por este grupo elaborada, a Grã-Bretanha concentrava uma demanda por terras muito grande, proveniente de seus excedentes populacionais, e uma oferta inesgotável de capitais para financiar este empreendimento. O objetivo central era estabelecer novas colônias sob o espelho do modelo social, político e econômico inglês, em territórios com baixa densidade demográfica nativa, clima temperado e terras férteis. Esta proposta aliava uma visão expansionista geopolítica britânica ao emprego dos excedentes de capitais em investimentos britânicos.

No ano de 1839, nos centros oficiais e nos não oficiais, de uma grande potência europeia, foi desenhado o plano para a aquisição da Nova Zelândia. Poderosos interesses privados fundaram uma "New Zealand Company" e procuraram por aliados no governo, apresentando o prospecto de uma rica colônia, com natureza abundante e clima temperado, ideal para o assentamento de europeus. Havia consideráveis interesses em incentivar a emigração a este novo "El Dorado", planejado para reduzir as desordens entre os mais pobres (BELICH, 1996, p. 179).

O historiador neozelandês James Belich analisa a força e o poder dos Colonial Reformers procurando identificar suas ligações na administração imperial, na Igreja Anglicana e entre os grupos capitalistas. A New Zealand Company e outras similares contemporâneas seriam uma resposta conservadora a um momento de profundas transformações sociais, uma estratégia para aliar a paz na metrópole à expansão imperial e do capitalismo industrial e financeiro.

A proposta era criar "pequenas Inglaterras", mas não com súditos nativos - como queria o humanitarianism - e sim com brancos. Esta colonização viria a formar laços de identidade e interdependência entre as colônias e a metrópole de forma a não se repetir a traumática experiência da perda das colônias que formaram os EUA.

Em Boundary markers, Giselle Byrnes apresenta as estratégias para colocar em prática essas "pequenas Inglaterras". O projeto estava baseado na abertura de companhias de capital privado: estas compravam as terras dos nativos, bem como as mapeavam, nomeavam segundo as práticas e costumes britânicos, loteavam e vendiam na Grã-Bretanha. Sua análise demonstra também não se tratar apenas de "interesses do grande capital", pois os próprios imigrantes incorporavam e defendiam a noção da superioridade britânica: material, militar, moral e civilizacional:

Os colonos do século XIX imaginavam que sua ocupação da Nova Zelândia resultaria no esforço civilizador do que eles consideravam como uma terra não domesticada. Esta parte do Novo Mundo haveria de se tornar a Britânia do Sul, um posto antípoda do império a replicar, reproduzir e aprimorar valores, atitudes e aspirações do Velho Mundo. Ademais eles também entendiam que aquelas ilhas estavam disponíveis - e sempre aguardaram - à ocupação e à governança: eles acreditavam que a colonização era inevitável (BYRNES, 2001, p. 15).

Este novo olhar sobre o Império Britânico, construído inclusive pela historiografia de suas ex-colônias, dissocia os clássicos pares opositores de liberais contra imperiais, demonstra a associação do capital ao Império e a disseminação de um ideário imperial assumido pelos homens e mulheres daquela expansão. Byrnes demonstra em seu livro como os recursos das vendas dos lotes de terras comprados a preços irrisórios dos nativos foram utilizados para construir a infraestrutura básica e escolas, hospitais e igrejas. Também eram oferecidas passagens gratuitas a trabalhadores braçais, desde que seguida uma série de preceitos - tais como o equilíbrio entre homens e mulheres, a preferência por famílias constituídas, o envio de cartas de recomendação do pastor local e o atestado de antecedentes criminais. Este projeto estava estruturado no investimento dos capitais excedentes britânicos em interesses britânicos, na compra - não na conquista - de terras nativas e no estabelecimento de sociedades idealizadas.

Companhias como a South Australia Association (1831), a Canada Association (1837) e New Zealand Company (1839) não foram necessariamente bem-sucedidas no campo financeiro, mas elas e o imperial humanitarianism reabriram a discussão sobre a expansão do Império Britânico, então combatida pelos liberais. A inovação dos reformers foi associar expansão territorial, tecnologia e capital, elaborando uma teoria para o Império, expressando o momento por ele vivenciado - com supremacia internacional e capitais acumulados com a Revolução Industrial.

As práticas dos colonial reformers precisavam dialogar com o humanitarianism, apesar das crescentes inimizades. Ao comprar as terras - a preços irrisórios -, procurava-se legalizar a operação e envolvê-la em uma aura positiva, superando-se o tradicional colonialismo de conquista dos séculos anteriores. Aos compradores britânicos de terras do outro lado do planeta era extremamente importante se certificar da legalidade das transações e satisfazer seus preceitos morais (POCOCK, 2005).

A nova historiografia britânica, produzida na Europa e nas ex-colônias, demonstra como, a partir da década de 1830, o Império voltou a se expandir pautado em premissas bastante distintas daquelas do modelo georgeano do século XVIII. Capital, povoamento, legislação, religião, identidade cultural e interdependência econômica foram a essência do que se passou a chamar de Neo-Britânias, ou de colônias brancas, as terras anexadas ao Império sob a pressão conjunta de humanitarians e reformers.

A retomada imperial e os usos dos discursos do humanitarianism

Durante a década de 1830, a retomada da expansão imperial esteve na pauta de uma série de grupos de pressão. Em uma nova lógica associativa decorrente das transformações sociais e econômicas decorrentes da Revolução Industrial e, também, das experiências francesa e americana, foram formados sociedades, grupos, clubes que discutiram, pressionaram, formaram alianças no Parlamento e conseguiram formalizar lentamente a anexação de territórios díspares e desconexos.

Conforme já demonstrado, de acordo com a análise de John Darwin, não havia um plano organizado do governo e nem um consenso sobre como proceder diante da nova pressão imperial. Liberais e conservadores, intercalando-se no poder, não construíam um projeto definido de expansão, e o governo era colocado na obrigação de ajudar ou salvar empreendimentos privados ou religiosos, como os das companhias dos colonial reformers. Para este historiador, a expansão imperial foi marcada pela falta de coerência e objetividade, não significando, no entanto, ausência de interesses e violências:

a expansão britânica foi dirigida não por um projeto oficial, mas por um pluralismo caótico de interesses britânicos, metropolitanos e de agentes espalhados pelo planeta [...]. Os críticos, na Era Vitoriana, estavam preocupados com seus custos morais e materiais, convencidos por sua futilidade comercial e política [...]. No entanto, apesar da impossibilidade de se projetar um sistema sobre este caos, a partir do governo imperial em Londres, um sistema emergiu (DARWIN, 2009, p. 3).

Esta interpretação desconstrói duas imagens associadas ao Império Britânico e defendidas por diferentes grupos ao longo do século XX. Para uns, houve um projeto planetário e positivo de expansão britânica, marcada pelo bom uso do comércio, princípios civilizados e pelo progresso. Para outros, a atuação imperial britânica foi igualmente planejada, mas programada para a dominação e exploração mundial. O que a análise mais acurada do imperialismo britânico demonstrou foi a combinação de ambos os fatores: muitas vezes um discurso moralista foi associado a ações violentas, assim como houve regiões geoestrategicamente importantes e outras anexadas sem um objetivo claro, fosse político ou econômico.

A inovadora conclusão é a de que é muito mais complexo se compreender o imperialismo do que as grandes teorias pregaram. No entanto, não se deixa convencer pelo já criticado discurso das benesses imperiais. Em diálogo com esta análise, Robert Kubicek explicita e provoca:

Os dogmas do laissez-faire teoricamente eram os pilares da ação governamental, financeira e industrial britânica. Sucessivos governos, no entanto, foram persuadidos a atitudes intervencionistas na defesa de interesses britânicos (KUBICEK, 1999, p. 257).

Ao apresentar os interesses na expansão imperial desta forma, ele destaca outro ponto central: a ambiguidade e os dilemas governamentais entre a defesa do livre-comércio e os interesses imediatistas de diferentes grupos. Um conjunto de pesquisadores se debruçou sobre este ponto, procurando compreender as atuações do chamado imperial humanitarianism, associado ao imperialismo de livre-comércio.

A primeira importante transformação na atuação governamental diz respeito à falência das companhias dos reformers, assoladas por um problema estrutural: as terras eram compradas por especuladores, os imigrantes eram financiados, mas não havia trabalho suficiente, pois poucos eram os lotes efetivamente transformados em fazendas. Crise econômica, crise política, disputas com nativos: quando a violência eclodiu, o interesse pelas terras - e seus preços - recuou, as receitas minguaram e as companhias faliram, deixando para trás vilas, estradas, portos, fazendas e colonos. O governo foi chamado à ação.

Para administrar essas terras, sucessivos Gabinetes elaboraram uma nova estruturação para as colônias. Seguindo a lógica da expansão territorial, aliada a mercados livres, gastos mínimos e estabelecimento de longos e fortes vínculos entre a colônia e a metrópole, eles construíram e colocaram em prática o sistema de autogoverno para as colônias brancas.

Para Peter Burroughs (1999), a ideia central era minimizar os custos, efetivar o controle territorial, possibilitar o enriquecimento das "pequenas Inglaterras" e evitar situações similares às que levaram à independência dos EUA. Com estes objetivos, foram estabelecidas constituições coloniais, criadas câmaras de representantes eleitos e montadas estruturas administrativas geridas pelos colonos e financiadas por seu governo colonial. Cada colônia era responsável por criar suas fontes de financiamento e podia administrar os assuntos internos - como impostos, obras públicas, legislação e relações com os nativos -, deixando ao governo metropolitano o controle sobre a guerra e as relações exteriores.

É interessante notar o esforço considerável dessa historiografia para localizar as raízes históricas do discurso liberal na Grã-Bretanha e suas consequências na expansão imperial. Este enfoque condiz com as intensas disputas e debates decorrentes das reformas neoliberais colocadas em prática a partir dos anos 1980 e o discurso associado a elas, segundo o qual o liberalismo seria parte constitutiva da matriz social nacional britânica.

A primeira experiência com esta inovadora imperial legislação ocorreu na colônia há mais tempo formada, mais povoada e confiável - o Canadá, em 1841. A partir do sucesso de sua implementação, a prática foi seguindo as falências das companhias dos reformers e chegou à Austrália, em 1846, e à Nova Zelândia, em 1852, completando-se assim o grupo das colônias brancas que formaram o centro do Commonwealth e que mantém, até nossos dias, estreitos laços culturais, econômicos e políticos com o Reino Unido. É sobre a conformação dessa nova estrutura e a persistência de suas lealdades que uma série de pesquisadores se debruçou ao final da Guerra Fria.

Este sistema imperial se estruturou na expansão territorial das áreas já conquistadas e na formação de redes locais de comércio e ajuda mútua, com polos administrativos regionais, como demonstraram David Lambert e Ana Lester no provocador Colonial lives across the British Empire. Imperial careering in the long Nineteenth Century (LAMBERT; LESTER, 2006). A Grã-Bretanha aproveitou a oportunidade geopolítica que lhe foi aberta. Poderosa na Europa, acompanhou a decadência simultânea de duas potências internacionais - os Impérios Otomano e Chinês. No caso do primeiro, os britânicos lutaram - na Crimeia, literalmente - por sua manutenção e inserção em sua zona de influência. Os objetivos eram controlar áreas estratégicas no norte da África - especialmente após a abertura do Canal de Suez (1869) - e impedir os russos de alcançar o Mar Mediterrâneo.

A leitura tradicional britânica sobre sua expansão imperial enfatiza uma lógica da ocupação da África pautada pela defesa da rota para a Índia (UZOIGWE, 2010). Segundo esta análise, a rápida expansão britânica na metade do século XIX sobre esta imensa área denominada "Índia" - compreendida do atual Mianmar à costa africana do Índico e o Afeganistão ao norte - ocorreu no vácuo de competidores europeus e baseada no enfraquecimento político e militar dos indianos e dos chineses.

No entanto, no entendimento de John Darwin e da historiografia que entende o Império Britânico como uma rede, e não como a oposição centro-periferia, o que oferecia coerência a um imenso sistema disperso por todo o planeta, no qual conviviam antigas e quase falidas colônias caribenhas, áreas semi-independentes "brancas" e a dominação asiático-africana, eram os interesses e investimentos da já comentada City financeira de Londres. Ferrovias se tornaram o mais importante e executado investimento, mas as opções eram múltiplas, com as redes de telégrafo, a infraestrutura portuária, as construções urbanas, fazendas e minas, além de bancos, seguradoras e companhias de comércio.

Em seu processo de expansão e consolidação, a rede imperial britânica contou com distintos - e até opostos - projetos, forças e vetores, com debates e ressignificações. Um momento sintomático foi o período dos gabinetes de Lorde Palmerston (1855-1858 e 1859-1865), quando ações agressivas de ocupação de territórios eram justificadas a partir de uma releitura do humanitarianism. Na interpretação de Martin Lynn, este foi o momento em que o Império passou a associar a força militar à retórica civilizacional, com objetivos econômicos:

Aquilo que passou a ser chamado de "Palmerstonismo" representou, para o mundo, a política de expansão dos interesses britânicos pela força, onde fosse necessário, justificada por apelos morais na metrópole. A visão defendida por Palmerston estava baseada em uma noção universalista de progresso, baseada em normas culturais britânicas, aplicada a todas as sociedades do planeta, e mantida para garantir o avanço da marcha da civilização - definida pelo empreendedorismo, acumulação de capitais, propriedade privada - quando preciso garantida pelo uso da força (LYNN, 1999, p. 106).

Esta análise expõe o ponto de conexão entre as duas interpretações clássicas sobre o imperialismo britânico. Martin Lynn e outros historiadores vêm demonstrando de que forma os crescentes interesses econômicos do período industrial pressionaram o governo e como a retórica moral do humanitarianism passou a ser utilizada para garantir o controle territorial sem causar comoção na metrópole, mobilizando as massas a favor da intervenção, em nome da moral, da missão civilizadora.

Esta leitura se associa à chamada "nova ordem mundial" pós-Guerra Fria, marcada por intervenções armadas da OTAN, respaldada pelos princípios da segurança coletiva e da defesa humanitária, em áreas como o leste da África e os Bálcãs. A leitura crítica a estas intervenções e seus interesses econômicos, políticos e estratégicos sustentados por discurso moralista, pautou uma série de novos estudos sobre a própria atuação do Império Britânico no século XIX.

Um novo foco: a influência do Império sobre os britânicos

Talvez a mais notável contribuição da nova historiografia do Império Britânico seja seu foco não apenas nas relações de conquista, na dominação, mas nas estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais internas acionadas para legitimar e garantir a expansão imperial. Atentos à nova Grã-Bretanha multiétnica pós-imperial do final do século XX e início do XXI, em diálogo com colegas das antigas colônias, historiadores como Catherine Hall e Sonya Rose questionaram a era vitoriana a partir da análise da vida cotidiana na metrópole (HALL; ROSE, 2006).

Conforme estas pesquisas demonstram, na metade do século, a dominação planetária e a riqueza britânica eram evidentes e incontestes, alavancadas pela supremacia tecnológica - trem, telégrafo, navio a vapor, rifle - que dobrava eventuais e tenazes resistências. Financiada pelo mais amplo, rico e complexo sistema financeiro montado até então, o Império era alimentado constantemente por informações de todo o planeta, produzidas por militares, cientistas, administradores coloniais, jornalistas, investidores, exploradores, missionários, marinheiros e colonos.

Em Colonial lives across the British Empire (LAMBERT; LESTER, 2006), são apresentados inúmeros casos destes homens e mulheres responsáveis pela publicação de uma profusão de relatos de viagem com as descrições de locais e povos visitados. Esses livros eram muito distintos entre si, variando de edições simples a obras com acabamento de luxo e uma quantidade considerável de reedições e reimpressões. O livro de aventuras era um sucesso editorial e seu autor também encontrava a fama:

Neste paradigma de meados do período vitoriano, a própria "descoberta", mesmo dentro da ideologia da descoberta, não existe em si mesma. Ela apenas se "torna" real quando o viajante (ou outro sobrevivente) volta para casa e a evoca através de textos: um nome num mapa, um relatório para a Royal Geographic Society, para o Foreign Office, para a London Missionary Society, um diário, uma aula, um livro de viagem. Eis aqui a linguagem encarregada por si só de fazer o mundo, e com altos interesses em jogo. Como os exploradores vieram a notar, rios de dinheiro e prestígio dependiam do crédito que conseguissem fazer com que outros lhes atribuíssem (PRATT, 1999, p. 342-343).

Nesta análise da crítica literária canadense Mary Louise Pratt, o enfoque recai sobre os produtos culturais da expansão imperial e os interesses pessoais e de grupos envolvidos na conquista e na publicação desses feitos. Esta leitura se associa às anteriores no momento em que foca sobre a construção de apoios determinados - como aqueles conseguidos pelo humanitarianism ­- e também nos interesses pessoais daqueles envolvidos diretamente nessas ações e na construção de imagens sobre os outros povos.

Apesar das diferenças entre os muitos tipos de obras decorrentes das viagens, a autora salienta o enorme mercado encontrado por este tipo de publicação, decorrente do barateamento do papel e dos custos de impressão e distribuição, mas principalmente, da ampliação dos mercados consumidores a partir da entrada de milhões de indivíduos na classe média pós-industrial. Neste ponto, ela volta a se aproximar das análises focadas nas transformações sociais e políticas decorrentes da revolução econômica da indústria, utilizando-se do referencial da chamada crítica pós-colonial.

Como Pratt demonstra, este público leitor estava interessado por relatos de aventura, descrições de terras desconhecidas e povos exóticos, naquele momento ainda muito difíceis de serem acessados pelo britânico comum. Ao escrever para esse público específico, os viajantes passaram a focar seus relatos - e os editores a apoiar - em narrativas com alto retorno mercadológico, como as situações de perigo e as descrições etnológicas.

Essas pesquisas sobre relatos de viajantes dialogam com as proposições de Edward Said, para quem algumas temáticas foram recorrentes e contribuíram para a construção da noção de superioridade ocidental, europeia e britânica (SAID, 1995). Também se apoiam nas reflexões dos intelectuais indianos sobre as estratégias de conquista, inclusive as discursivas (SUBRAHMANYAM, 1999). Seguindo este entendimento, Duncan Bell identifica as formas como os britânicos dividiram sua atuação no mundo e como e quanto aceitaram dialogar e negociar com outros povos:

Esta concepção bifocal, no entanto fluida, de ordem global proporcionou as bases teóricas para justificar o Império: simultaneamente privou as comunidades "não civilizadas" dos direitos e da soberania garantidos nas relações estabelecidas com Estados ditos "civilizados", legitimando a conquista em nome da difusão da civilização (BELL, 2007, p. 10).

Próxima a esta análise, Mary Louise Pratt propõe uma leitura da literatura de viagem e de seus produtos como marcados pelo que denominou de "olhos do império". Em seu entendimento, aqueles muitos viajantes, com suas vidas coloniais pelo império britânico, eram ainda semelhantes, pois haviam crescido e compartilhavam dos mesmos referenciais, compondo certa narrativa imperial do planeta (PRATT, 1999).

Único, cada indivíduo norteou seu olhar e sua análise pelas ideias de sua época, mas não foi refém destas. Suas compreensões e seus relatos estiveram pautados por interesses imperiais, mas também de grupos sociais aos quais eles se vinculavam - como os imperial humanitarians, por exemplo - e pessoais. Era preciso justificar sua viagem, construir sua imagem enquanto alguém singular e diferenciado em um mercado editorial concorrido e desgastado (MACKAY, 1999).

Entre os agentes imperiais oficiais - os funcionários formais do Estado - havia uma tendência geral em explicitar a supremacia britânica, sua preponderância internacional e justificar a anexação territorial. Em seus relatos, percebe-se um esforço em legitimar as formas de atuação do Império, e suas próprias existências e viagens pessoais.

A neozelandesa Amiria Henare defende, nesta linha, que além dos relatos publicados, das palestras ministradas e das condecorações recebidas, os viajantes levaram à metrópole ideias, imagens e produtos das regiões visitadas. Reunidas, estas deram início aos centros de exposição da supremacia britânica - como o Museu Britânico - e estabeleceram uma estética imperial replicada nas colônias, em diálogo com um público local bastante interessado e curioso (HENARE, 2005).

Para Andrew Thompson, por outro lado, apesar de todo este investimento - e do evidente entusiasmo de uma parte considerável da população com as Exposições Universais e os museus, não se pode dizer que houve um constante interesse do público metropolitano sobre a expansão imperial e as relações internacionais britânicas. Os momentos de maior envolvimento popular com as questões externas teriam ocorrido quando houve ações diretas do Exército, ou após grandes rebeliões ou massacres (THOMPSON, 2005).

Esta nova historiografia britânica, marcada por uma vida cotidiana pós-imperial e pela leitura da crítica pós-colonial, viu as multidões multiétnicas da Londres do final do século XX e início do XXI, bem como esforçou-se para identificar as raízes deste novo - e combatido - cosmopolitismo britânico. Eles procuraram demonstrar como, a despeito do baixo e pontual envolvimento do grande público com os projetos para o Império, a vida cotidiana na metrópole se transformou com o expansionismo e a atuação planetária britânica. Novos alimentos, produtos, objetos, ideias e até vizinhos marcaram a vida cotidiana do britânico médio, que passou a ler uma nova literatura, brincar, ouvir música, utilizar apetrechos e se entender como parte de uma cultura cosmopolita e dominante. O império era muito mais vasto, complexo e dinâmico do que as interpretações anteriores apontavam.

Considerações finais

No início do século XX, os britânicos olhavam para o distante ano de 1776 e localizavam nele os pilares de sua superioridade, daquilo que chamaram de Era Vitoriana. A experiência traumática e renovadora da independência dos EUA e depois os profundos e lucrativos laços econômicos restabelecidos com a antiga colônia; a força legitimadora do discurso liberal; o capital acumulado com as máquinas da Revolução Industrial; o conhecimento complexo proporcionado pela ciência fizeram o sucesso da experiência britânica.

Na metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial e diante do colapso do Império, a historiografia britânica procurou rever esta estrutura e seu lugar no mundo. A partir das premissas de Gallagher e Robinson na história econômica, passou-se a questionar a narrativa laudatória da missão e do fardo britânicos. O final da Guerra Fria proporcionou novo vigor ao debate, deixando para trás as análises dicotômicas para trazer um conjunto de questionamentos, muitos deles provenientes de uma geração de historiadores nascidos nas antigas colônias e com olhares distintos sobre a importância da Grã-Bretanha e a dinâmica interna do Império, desconstruindo ideias sobre projetos monolíticos, sucesso e supremacia.

Estes estudos mais recentes, tanto os da história econômica, quanto aqueles com enfoque na política, na cultura e em suas conexões, demonstraram as construções discursivas e imagéticas, os interesses pessoais, de grupo e de classe, a falta de organização e lógica no Império, suas contradições, mas destacaram sua força e importância.

No entendimento desta nova historiografia, a expansão do Império não se deu de forma planejada, mas contraditória, ambígua, repleta de indecisões, e também decorreu de uma conjuntura internacional bastante favorável. A crise da dinastia Qing na China; a decadência otomana; a nova estrutura política da Europa pós-napoleônica; a abertura dos mercados asiáticos e americanos; novos padrões de produção e consumo; novas tecnologias de transporte, comunicação e combate possibilitaram uma supremacia inconteste, de acordo com a sistematização proposta por John Darwin.

A estratégia hegemônica britânica, chamada por alguns como pacífica, apesar de certamente agressiva para o mundo não europeu, marcou o planeta em que vivemos, no qual a principal potência mundial é uma ex-colônia britânica; o idioma mais importante é o inglês; o sistema político mais defendido é o democrático, e o econômico predominante é o liberal; em que regras e instituições sob o molde inglês regulam as relações internacionais. Desconhecer as estratégias de expansão e os projetos em disputa para o Império Britânico no século XIX é ignorar as raízes de alguns dos pontos-chave das relações internacionais contemporâneas.

Séculos de domínio planetário marcaram os britânicos não apenas com o sentimento de vitória e superioridade, mas também, como demonstraram Catherine Hall, Sonya Rose e tantos outros, com a assimilação de povos, culturas, dizeres e saberes distintos daqueles do discurso hegemônico. Foi apenas após as lutas de libertação nacional que um novo discurso pós-colonial pôde oferecer esta nova leitura, repleta de nuances e de novos personagens, antes sufocados pela narrativa da vitória e da supremacia.

Os britânicos continuam muito curiosos pelas histórias de seu Império - como todo povo outrora imperial -, e sua academia se renovou, com novos debates que abrem muitos caminhos para entendermos as relações internacionais e as relações deste Império com a América Latina e o Brasil em especial. Envoltos em uma "nova ordem mundial" cosmopolita, eles identificaram não mais centro e periferias, mas redes. Não mais dominação ou libertação, mas múltiplos interesses e personagens, com interesses, retóricas e contradições próprias.

Referências

  • BELICH, James. Replenishing the earth: the settler revolution and the rise of the Anglo-world, 1783-1939. Oxford: Oxford University Press, 2009.
  • BELICH, James. Making peoples: a history of the New Zealanders. Honolulu: University of Hawai'i Press, 1996.
  • BELL, Duncan (ed.). Victorian visions of global order: Empire and international relations in Nineteenth-Century political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • BURROUGHS, Peter. Imperial institutions and the government of Empire. In: PORTER, Andrew (ed.). . Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 170-197.
  • BYRNES, Giselle. Boundary Markers: land surveying and the colonization of New Zealand. Wellington: Bridget William Books, 2001.
  • CAIN, P. J.; HOPKINS, A. G. British imperialism: innovation and expansion 1688-1914. Harlow: Longman, 1993.
  • DARWIN, John. The Empire Project: the rise and fall of the British world system. 1830-1970. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
  • DAWSON, Frank Griffith. A primeira crise da dívida latino-americana A City de Londres e a bolha especulativa de 1822-25. São Paulo: Ed. 34, 1998.
  • DRESCHER, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. São Paulo: Edusp, 2010.
  • ETHERINGTON, Norman (ed.). Missions and Empire. Oxford: Oxford University Press, 2008.
  • FERGUSON, Niall. Império: como os britânicos fizeram o mundo moderno. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010.
  • GALLAGHER, J.; ROBINSON, R. The Imperialism of Free Trade. The Economic History Review, New Series, v. 6, n. 1, p. 1-15, 1953.
  • HALL, Catherine. Civilising subjects: Metropole and colony in the English imagination, 1830-1867. Chicago: The University of Chicago Press, 2002.
  • HALL, Catherine; ROSE, Sonya O. (ed.). At home with the Empire: Metropolitan culture and the Imperial World. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
  • HENARE, Amiria. Museums, Anthropology and Imperial exchange. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
  • HOWE, Anthony. Free trade and global order: the rise and fall of a Victorian vision. In: BELL, Duncan (ed.). Victorian visions of global order: Empire and international relations in Nineteenth-Century political thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 26-46.
  • KNIGHT, Alan. Britain and Latin America. In: PORTER, Andrew (ed.) The Nineteenth Century. Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 122-145.
  • KUBICEK, Robert. British expansion, Empire and technological change. In: PORTER, Andrew (ed.). The Nineteenth Century . Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 247-269.
  • LAMBERT, David; LESTER, Ana (ed.). Colonial lives across the British Empire: Imperial careering in the long Nineteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
  • LYNN, Martin. British policy, trade and informal empire in the mid-nineteenth century. In: PORTER, Andrew (ed.). The Nineteenth Century . Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 101-121.
  • MACKAY, David. Myth, science and experience in the British construction of the Pacific. In: CALDER, Alex; LAMB, Jonathan; ORR, Bridget. Voyages and Beaches: Pacific encounters, 1769-1840. Honolulu: University of Hawai'i Press, 1999. p. 100-113.
  • POCOCK, J. G. A. The discovery of islands. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
  • PORTER, Andrew. Religion versus empire? British Protestant missionaries and overseas expansion, 1700-1914. Manchester: Manchester University Press, 2004.
  • PORTER, Andrew. Trusteeship, anti-slavery and humanitarianism. In: ______(ed.). The Nineteenth Century Oxford: Oxford University Press, 1999. p. 198-221.
  • PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999.
  • SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
  • SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected histories: notes toward a reconfiguration of early modern Eurasia. In: LIEBERMAN, Victor (ed.). . Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1999. p. 289-316.
  • THOMPSON, Andrew. The Empire strikes back? The impact of imperialism on Britain from mid-Nineteenth Century. Harlow: Longman, 2005.
  • THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In: _______. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • UZOIGWE, Godfrey. Partilha europeia e conquista da África: apanhado geral. In: BOAHEN, A. A. História Geral da África. São Paulo: Ática/Unesco, 2010. vol. VII, p. 21-50.
  • WATSON, Adam. A evolução da sociedade internacional: uma análise histórica comparativa. Brasília: UnB, 2004.
  • WILLIAMS, Eric. Capitalismo & escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2015
  • Aceito
    21 Out 2015
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br