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CONSIDERAÇÕES ACERCA DO IMAGINÁRIO, DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE O MAL E DE SUA EVOLUÇÃO DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA ROMANA À ANTIGUIDADE TARDIA

Considerations about imaginary, representations of the Evil and its evolution from the Roman Classical Antiquity to Late Antiquity

RESUMO

Através de uma análise evolutiva das representações o Mal, do ponto de vista cristão, da Antiguidade Clássica Romana até a Antiguidade Tardia, este artigo procura estabelecer, dentro do escopo compreendido, um diálogo entre as principais fontes desde a Igreja Primitiva até a Patrística, apresentando um panorama de como os autores cristãos pensaram e externaram na literatura teológica e hagiográfica as representações imaginárias a respeito do Mal. Ao indicar as proposições dos autores cristãos do período acima citado, vemos uma lenta e gradual modificação no pensamento a respeito das representações do Mal, nas diferentes conjunturas, presentes no processo de análise de tais fontes na longa duração.

Palavras-chave:
Mal; Cristianismo; Antiguidade Tardia; Teologia; Hagiografias

ABSTRACT

Through an evolutionary analysis of representations of Evil, in Christian point of view, from Classical Roman Antiquity to Late Antiquity, this article aims to present, inserted in this scope, a dialogue between the main sources from the Early Church to the Patristic, presenting an overview of how the Christian writers thought and voiced, in the theological and hagiographic literature, the imaginary representations about the Evil. By indicating the propositions of Christian writers of the mentioned period it could be seen a slow and gradual change in thinking about the representations of Evil, in different situations present in the analysis process of such sources in the long term.

Keywords:
Evil; Christianity; Late Antiquity; Theology; Hagiographies

O estudo que aqui se apresenta acerca da percepção do Mal na teologia e nas hagiografias do período entre a Antiguidade Clássica Romana e a Antiguidade Tardia visa a tratar o tema a partir de uma abordagem multidisciplinar, uma vez que busca englobar o pensamento coletivo e as representações discursivas dos teólogos e hagiógrafos do período, realidades interiores, permeadas por uma visão de mundo compartilhada pela sociedade. Dessa forma, propomos aqui uma análise dos principais autores cristãos, desde a Igreja Primitiva até a Patrística, que se dedicaram a debater o tema do Mal em seus escritos teológicos e de como se deu a evolução das representações maléficas dentro de um paradigma que se estende, na longa duração, do século I ao século VI. A análise se estende também à escrita hagiográfica, que, como podemos observar, elenca quase em sua totalidade representações ligadas ao Mal e seus agentes contra a ação dos santos, das mais variadas formas, nos diferentes contextos e conjunturas.

Em muitos contextos sociais, as práticas e as superstições populares estão misturadas com os dogmas oficiais das igrejas/religiões instituídas. De acordo com os meios e as circunstâncias, tanto as crenças como os ritos, preconizados pelas instituições religiosas oficiais, são praticados e sentidos de maneira diferente. Portanto, é pertinente realçar ainda que o patrimônio simbólico-religioso oficial, que o sociólogo italiano Enzo Pace (1987PACE, Enzo. New paradigms of popular religion. Archives de Sciences Sociales des Religions, 64/1, p. 7-14, 1987., p. 7-14) considera como sistema, com seus dogmas, ortodoxia, organização formal, não é facilmente compreensível pelo povo. Dessa forma, a religiosidade, como subsistema, é uma interpretação própria que o grupo social faz dos ensinamentos da religião ou igreja dominante; é a forma como a população vive e expressa sua "religião" no dia a dia (RODRIGUES, 2007RODRIGUES, Donizete. Sociologia da Religião: uma introdução. Porto: Edições Afrontamento, 2007., p. 80-81).

Sendo assim, ao olhar para a sociedade atual e todos os problemas ligados à vivência e aos sentimentos humanos que enfrentamos - toda violência, guerras, caos, das menores e infames brincadeiras que têm um fundo de maldade até o genocídio orquestrado por ditadores no século passado e no início deste -, fazemos uma simples pergunta, que não apresenta uma resposta tão direta: de onde vêm o Mal e suas representações? Como afirma Ronaldo Amaral,

Em épocas de instabilidades, de dificuldades materiais e pressões negativas à sua vida interior, ou dependendo das vicissitudes do espírito, a realidade que engendrará ou será aquela que agrave e prolongue essa situação, ou será aquela que inverta para seu benefício e bem estar, seja no âmbito do sagrado seja no profano (AMARAL, 2011AMARAL, Ronaldo. Da renúncia ao mundo à abolição da história: o paraíso no imaginário dos Pais do Deserto. Campo Grande: Editora UFMS, 2011., p. 15).

As ansiedades, as angústias, os medos, as esperanças, os sonhos, as utopias, temas relegados por muito tempo a segundo plano por pesquisadores - pois o que interessava eram os acontecimentos, as estruturas humanas e sociais mais externas, personagens, fatos, e mesmo pensamentos, que fossem precisamente datáveis e documentados em sua forma mais positiva - passam a ser, em grande medida, uma inquietação para o historiador contemporâneo.

Conforme nos mostra Hilário Franco Júnior, isso deslocou o enfoque da história religiosa tradicional, centrada nas instituições e personalidades eclesiásticas, passando-se a considerar mais o sentimento religioso que a religião. Os sentimentos religiosos fortemente enraizados não podem ser alcançados a não ser através de suas expressões culturais, não somente aquelas de uma cultura elitizada, mas também, sobretudo, de uma cultura dos campos, das praças, das tavernas, da cultura oral, anônima, na qual todos são os elaboradores, escritores, receptores e transmissores (FRANCO JR., 2010FRANCO JR., Hilário. Meu, teu nosso: reflexões sobre o conceito de Cultura Intermediária. In: A Eva Barbada: ensaio de mitologia medieval. São Paulo: Edusp, 2010. p. 27-40., p. 29). Partindo para uma comparação mais direta, as personificações do Mal nas culturas ocidentais e orientais nos dão uma perspectiva de como este, enquanto conceito e como algo vivido e sentido, chegou aos ocidentais. Como salienta Burton Russel (1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 45), "[...] as formulações paralelas do Diabo em culturas diversas e muito distantes no espaço podem nascer de estruturas universais do pensamento humano, ou podem ser produto de um processo, ainda desconhecido, de difusão cultural".

Um olhar mais apurado mostra-nos que, nas religiões ocidentais, Deus e o Diabo figuram em oposição quase absoluta, não obstante os mitos de muitas sociedades os coloquem em íntima conjunção, sendo que a existência do Bem pressupõe diretamente a existência do Mal. Ainda segundo Russel (1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 48), "[...] o Deus e o Diabo existem e trabalham juntos desde toda a eternidade; ou são irmãos; ou o Deus cria o Diabo; ou, numa relação ainda mais próxima, o Deus o gera ou o produz de sua própria essência".

Nas religiões da Antiguidade e em outras religiões ocidentais, o mundo subterrâneo está frequentemente, mas não totalmente, associado ao princípio do Mal. De um lado, esse mundo simboliza a fertilidade, em parte devido a sua associação com o ventre materno e com as plantas e colheitas que do solo nascem, além de ser também fonte de minerais preciosos como o ouro, a prata e gemas de valor. Mas, de outro lado, está associado à morte, ao túmulo ou sepultura. Assim, além do princípio do Mal, do Diabo como sua representação mais poderosa (no que tange ao Cristianismo), podemos encontrar na maioria das sociedades uma legião de espíritos menores que personificam males específicos, e não o Mal em si. Estes são espíritos que carregam características de um tipo de mal em particular, do calor e do frio extremos, da infertilidade, da doença, das tempestades ou da praga. Poucas vezes são distinguidos uns dos outros e têm a estranha e imprecisa qualidade de provocar o terror.

Como demonstra Russel (1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 60), eles entram no corpo, causando as doenças; ou na mente, causando a loucura. Assemelham-se a íncubos (machos) ou a súcubos (fêmeas), seduzindo os que dormem; são geralmente feios e muitas vezes deformados, o que constitui um sinal externo e visível da deformidade de suas ações. Quase sempre atacam a pessoa de forma direta e cruel. Assim, a crença na existência do demoníaco remonta ao mundo antigo, entre persas, judeus, gregos, romanos e cristãos, da mesma forma que as crenças modernas sobre o Diabo. As ideias cristãs sobre o demônio remontam, em grande medida, às crenças do Cristianismo primitivo, que, por sua vez, são baseadas na demonologia dos apócrifos e dos apocalipses judeus. Segundo José Maria Blazquez (1998BLAZQUEZ, Jose Maria. Intelectuales, ascetas y demônios al final de La Antiguedad. Madrid: Cátedra, 1998., p. 528), as ideias da literatura apocalíptica e apócrifa judaica sobre os demônios foram aceitas por Jesus e passaram ao Cristianismo primitivo.

As representações do Mal na Teologia e Hagiografias cristãs da Antiguidade Clássica Romana à Antiguidade Tardia

A concepção de Mal (personificado no demônio) e Bem (personificado no santo) e a ética decorrente disso são alguns dos elementos dessa religiosidade tardoantiga e medieval os quais, não obstante extensos estudos realizados até aqui, exigem abordagens sobre novas perspectivas. Por isso, em linhas gerais, buscamos destacar os problemas decorrentes da ação do Mal e suas representações na Antiguidade Tardia.

O Deus punitivo presente nas páginas da literatura apócrifa veterotestamentária, da mesma forma que na canônica, estaria também na literatura cristã, prolongando uma antiquíssima vertente hebraica na qual Yahweh, que, em um primeiro momento, é uma divindade que congrega o Bem e o Mal em uma única figura, transforma-se em um Deus bom, relegando aos seus "anjos caídos" o papel de perpetrar o Mal. Tal fórmula torna-se, de nosso ponto de vista, contraditória diante da análise da literatura cristã.

De acordo com Ronaldo Amaral (2007AMARAL, Ronaldo. Os padres do Deserto na Galiza: apropriações e usos da literatura monástica oriental na autobiografia de Valério do Bierzo. Implicações no Imagiário sobre o mal. Revista Medievalista on line, Instituto de Estudos Medievais FCSH-UNL, v. 3, n. 3, 2007., p. 9), os padres da Igreja e, principalmente, os padres do deserto, de espiritualidade mais aflorada e, portanto, mais sensíveis às apreensões das coisas do espírito, já há muito haviam discorrido sobre a posse dos demônios sobre o humano e, principalmente nesse caso, seu grau de direito e força de possuí-los e manipulá-los. Teóricos da espiritualidade monástica - e cristã de uma forma mais ampla - haviam sublinhado que os demônios, em grande medida, regiam o mundo e poderiam se apossar do homem, se não de sua alma mesma, de seu corpo e de sua mente, principalmente quando estivesse preso às emoções e pensamentos mundanos e viciosos (AMARAL, 2007, p. 9). O Diabo e seus satélites, embora agissem muitas vezes pelo consentimento de Deus (e, assim, o Mal deveria ter por última finalidade um bem maior), exerceriam grande influxo no humano e mesmo na natureza, e seu combate só seria possível e absolutamente eficaz se o homem se prendesse às coisas de Deus. Se as armas dos demônios seriam os pensamentos, os desejos, as excitações do homem ligado à realidade mundana, o escudo do cristão e sua arma poderosa seriam sua dedicação às coisas do espírito, à ascese, à contemplação das coisas divinas (AMARAL, 2007AMARAL, Ronaldo. Os padres do Deserto na Galiza: apropriações e usos da literatura monástica oriental na autobiografia de Valério do Bierzo. Implicações no Imagiário sobre o mal. Revista Medievalista on line, Instituto de Estudos Medievais FCSH-UNL, v. 3, n. 3, 2007., p. 9).

Para tratar das origens do Cristianismo e do Mal no âmbito literário cristão, temos que ter em mente que os primeiros cristãos eram judeus e que, como afirma Doods (1968DOODS, E. R. Paganos y cristianos em una epoca de angustia. Algunos aspectos de la experiencia religiosa desde Marco Aurélio a Constantino. Madrid: Ediciones Cristandad, 1968., p. 38), o Diabo penetrou no Ocidente através do judaísmo tardio, que transformou Satanás, de emissário de Deus, em seu adversário. Esses primeiros cristãos, que comungavam de um mesmo pensamento judaico, distinguiam-se pela crença de que, com Jesus de Nazaré, já havia chegado o Messias designado como o Cristo (o ungido). Isso não significava uma quebra do velho pacto com Abraão, simbolizado pela circuncisão, ou da Lei revelada a Moisés no monte Sinai (CHADWICK, 1969CHADWICK, Henry. A Igreja Primitiva. Lisboa: Ulisseia, 1969., p. 9). A nova palavra pregada pelo Galileu ao seu povo devia identificar-se com os mesmos ditos anteriormente enunciados pelos profetas, com um sentido de continuidade, fazendo com que diversos ideais e práticas concernentes ao judaísmo permanecessem vivos e vinculados - em alguns casos, de uma forma indissociável - à estrutura do pensamento e da vivência dos primitivos cristãos.

Ao refletir sobre o impacto inicial do Cristianismo sobre o povo judaico, vemos que este pode ter sido considerável, uma vez que a Igreja tinha atraído seus adeptos entre os diversos elementos que compunham a heterogênea sociedade judaica do primeiro século, excetuando-se algumas facções. Porém, ao propagar-se, o Cristianismo sofreu profundas alterações, conforme indica Louis Rougier:

A primeira comunidade de Jerusalém não passa de uma pequena seita judaica que aguarda em penitência a chegada da Parusia: as Igrejas paulistas dos Gentios substituem o Messias nacional que deve obter a "libertação de Israel" por um Deus Salvador da humanidade para quem todos os homens são iguais (ROUGIER, 1995ROUGIER, L. O conflito entre o cristianismo primitivo e a civilização antiga. Lisboa: Vega, 1995., p. 47).

Sobre esse período, os quatro evangelhos ditos canônicos, pois foram incorporados pela Igreja ao cânon das escrituras reveladas, e os evangelhos ditos apócrifos (os não incorporados) constituem, do ponto de vista teológico, as principais fontes. Assim, Paulo não foi provavelmente o primeiro apóstolo a conceber a missão cristã em relação ao mundo não judeu, mas sem dúvida foi um dos que mais se destacou, que acreditou ser chamado, de forma especial e única, como apóstolo dos gentios, exercendo autoridade nas igrejas nativas por meio de visitas e, especialmente, de epístolas (CHADWICK, 1995, p. 17). De certa forma, o sucesso de Paulo deu-se por sua versatilidade e pela capacidade de adaptar-se ao seu público: conseguiu traduzir o evangelho palestiniano em uma linguagem acessível ao mundo grego, tornando-se, dessa forma, o primeiro cristão apologista.

A relação entre o nascente Cristianismo e a religião romana também entrava em conflito. Foi um procurador romano quem condenou o líder dos cristãos à crucificação como um criminoso comum, culpado de crime contra o Estado romano, mesmo que tal ato tivesse uma justificativa plausível aos olhos da administração romana, que era aplacar a ira dos altos sacerdotes judeus, que viam na figura do Galileu um revolucionário e agitador religioso. Aliás, segundo Chadwick (1995, p. 24), o Cristianismo primitivo recusava-se a identificar-se com os fanáticos nacionalistas judeus.

Depreciados e inúmeras vezes caluniados pela opinião de muitos, os cristãos dos primeiros séculos encontravam-se em uma situação difícil. Como as primeiras perseguições foram limitadas, não atrasaram seriamente a expansão da cristandade: pelo contrário, contribuíram para conquistar, a favor da nascente Igreja, um grande número de adeptos. De início, a composição social das primeiras comunidades cristãs era bastante homogênea, sendo seus adeptos recrutados quase totalmente entre os escravos, os libertos, os artesãos e os elementos das camadas mais pobres residentes nas cidades e seus arredores (LENTSMAN, 1986LENTSMAN, Iakov. A origem do cristianismo. Lisboa: Caminho, 1986., p. 151).

Mas, dentro desse contexto, havia um fato de particular importância. Boa parte dos costumes romanos, em certas solenidades, tinha como intuito oferecer ao público espetáculos que exigiam um grande número de vítimas destinadas aos combates realizados nos circos. Conforme Jean Daniélou (1964DANIÉLOU, Jean. The theology of Jewish Christianity. Chicago: Henry Regnery, 1964., p. 129), se estudarmos as circunstâncias dos martírios de cristãos durante o período de Adriano (117-138) e Marco Aurélio (161-180), vemos que os principais mártires do período estão relacionados à realização de festas "pagãs" [sic].

Como assinala Tertuliano (apudJOHNSON, 2001JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. São Paulo: Imago, 2001., p. 63) a respeito das perseguições e dos martírios, "[...] o sangue dos mártires era a semente da Igreja", o que salienta o papel importante desses primeiros cristãos que davam sua vida à causa. Tal ato encontra sua justificativa na ideia de que muitos dos primeiros mártires deram um testemunho de heroicidade que revelava, ao mesmo tempo, as tentações peculiares a que tinham sido expostos. O assassínio judicial não era tarefa fácil de cumprir, e os mártires mostravam-se, na maioria das vezes, dispostos a comprazerem-se nisso, imaginando que seriam vingados no outro mundo e teriam a felicidade celestial de assistirem ao justo castigo aplicado aos responsáveis por tais atos de revoltante injustiça.

Somam-se a esses ideais a convicção de que o martírio garantia a entrada imediata no Paraíso e conferia a coroa da vitória. Assim, como demonstra Chadwick (1995, p. 33), a natureza esporádica das perseguições, que, na maioria das vezes, dependiam das reações locais, e o fato de, antes do século III, os cristãos não serem levados a sério pelo governo romano proporcionaram à nascente comunidade cristã uma trégua para que se expandisse e se ocupasse mais de problemas internos que externos, desenvolvendo, assim, um corpus literário estreitamente ligado à vida dos primeiros cristãos.

Como ilustra Hernán Garófalo (2009GARÓFALO, Hernán. Aves, niños e ilusiones. Las representaciones del demonio en los diálogos de Gregório Magno ( siglos VI-VII). In: GUIANCE, Ariel (org.). Entre el cielo y la terra. Escatologia y sociedad en el mundo medieval. Buenos Aires: Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas - Instituto Multidisciplinario de Historia y Ciências Humanas, 2009. p. 129-140., p. 129), a ideia do Mal e, mais concretamente, a presença do demônio constituem uma das elaborações mais complexas que podemos analisar dentro do contexto medieval, pois aquele que se interessa por seguir o caminho percorrido por essa construção não deixará de sentir-se impressionado por uma multiplicidade de postulados, conceitos e significações postos em jogo e confrontados no momento de definir o que se entedia ao falar do antigo inimigo e das potências infernais. Sendo assim, tal recorte nos leva a centrar a atenção em um aspecto fundamental: a construção da representação demoníaca, mais especificamente, o demônio e suas manifestações no mundo. Interessa-nos, dessa forma, indagar como se deu a relação do demônio com os homens, explicitada em representações concretas daqueles que foram testemunhas diretas ou indiretas de suas ações.

Assim, é preciso dizer que houve um esforço cristão em constituir uma representação do Inferno (em geral) e do demônio (em particular) através de distintas etapas, sendo que todas elas partem de um longo processo de fixação dos princípios que logo constituiriam a ortodoxia (GARÓFALO, 2009GARÓFALO, Hernán. Aves, niños e ilusiones. Las representaciones del demonio en los diálogos de Gregório Magno ( siglos VI-VII). In: GUIANCE, Ariel (org.). Entre el cielo y la terra. Escatologia y sociedad en el mundo medieval. Buenos Aires: Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas - Instituto Multidisciplinario de Historia y Ciências Humanas, 2009. p. 129-140., p. 129). Dessa monta, abordaremos a partir de agora, com foco na literatura cristã do período, os principais autores e obras que compreendem a criação e a percepção da representação do Diabo/demônio nos escritos desde a Igreja Primitiva até a Patrística.

Em se tratando diretamente do texto neotestamentário, uma primeira pergunta faz-se pertinente: qual a independência do Diabo em relação a Deus? A resposta mais apropriada para o momento está, a princípio, na visão dos padres apostólicos, os quais acreditavam que o Diabo era um anjo caído. Mas, nesse sentido, sendo um anjo caído, ele estava ou não a serviço de Deus? E em qual medida as ações por ele praticadas na terra têm o aval ou a permissão de Deus? Muitas dessas questões suscitaram uma pluralidade de perguntas que os cristãos, de sua gênese até os escritores da Patrística, tentaram responder. O Cristianismo, como uma religião monoteísta de percepção dualista, procurou, em sua formação, substituir a luta entre Deus e Satanás, presente no Velho Testamento, por uma luta entre Jesus Cristo e Satanás, no Novo Testamento. O Diabo, desse ponto de vista, é dotado de grande poder e age em oposição às obras de Cristo.

Conforme destaca Jeffrey Burton Russel (1987RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan: The early Christian tradition. London: Cornell University Press, 1987., p. 33), no início do século II, momento no qual os primeiros escritos foram desenvolvidos pelos apóstolos de Cristo e de seus seguidores, existe uma linha tênue entre o novo pensamento cristão e as heranças judaicas ainda presentes. Porém, vemos uma separação clara entre a ideia do Deus vingativo veterotestamentário e a do Deus misericordioso neotestamentário.

Seguindo alguns autores cristãos do período, podemos perceber a lenta evolução da representação maléfica, na qual esta se desdobra, na longa duração, em uma série de formulações que serão adotadas, reelaboradas, debatidas e, às vezes, senão em sua maioria, copiadas nos escritos de membros ligados ao Cristianismo nos períodos posteriores. Da Igreja Primitiva, nas epístolas de Santo Inácio (35-107), bispo de Antioquia martirizado em 107, influenciado por Paulo e cujos escritos possuem certa similaridade com os de João, observamos que o Diabo era "o príncipe deste mundo" (Cartas aos efésios, 17,1). O autor diz ainda que as eras presente e futura serão dominadas pelo demônio e que essa ameaça se faz presente desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso (Carta aos Magnésios 1, 2; Carta aos Romanos 7, 1). Hostes de anjos existem, advertiu Inácio, porém alguns deles são maus e seguem o Diabo (Carta aos Esmirnenses 6, 1; Carta aos Efésios 13, 1). Esse ponto de vista proposto por Santo Inácio compreende o mundo como uma arena de batalha onde Cristo, o líder dos bons anjos e dos bons homens, trava uma guerra contra as hostes diabólicas comandadas por Satanás. Pelo seu posto como bispo e consequentemente sucessor direto dos apóstolos, advertiu ainda que aqueles que não agissem segundo os conselhos dados pelo bispo eram adoradores do Diabo (Carta aos Esmimenses 9, 1).

Em se tratando do período das primeiras perseguições e na eminência de seu martírio, os escritos de Inácio encontram uma justificativa um tanto plausível. A ideia de que o demônio, o líder das forças da escuridão, era o responsável por empurrar os heréticos contra os cristãos também encontrou respaldo através do tempo. Assim, se o mundo constitui-se como uma arena de batalha cósmica entre a luz e a escuridão, sendo a Igreja a defensora da luz e de seus seguidores, seria lógico que esta não desse nenhuma trégua ou chance para que o Mal predominasse no mundo. Porém, pelo contrário, os padres apostólicos não compactuavam com tal violência, respondendo a ela de forma pacífica, afastando-se das armas materiais e entregando-se de corpo e alma ao martírio (RUSSEL, 1987RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan: The early Christian tradition. London: Cornell University Press, 1987., p. 37).

Outro padre da Igreja, São Policarpo (69-155), bispo de Esmirna que foi martirizado por volta do ano 155, assim como Inácio, enfatiza a importância do martírio e da luta contra as heresias, tratando das diversas formas de tramas urdidas pelo demônio contra os mártires e de suas práticas de tortura para induzi-los a negar sua fé (Martírio de Policarpo 2, 4; 3, 1).

No entanto, diferentemente de Inácio, Policarpo acredita que o Diabo não tem poder sobre a alma humana. Ele pode oferecer uma tentação intelectual e moral para a heresia, ou assustadoras agonias como tentação para a covardia, mas não tem o poder de compelir o indivíduo a se afastar dos desígnios de Deus. E se o Diabo habita em seus corações, também o faz o Espírito Santo, tornando-se, assim, direta a luta entre o Espírito Santo e Satanás no nível do microcosmo (Martírio de Policarpo 17, 1).

São Papias (70-155), bispo de Hierápolis, na Ásia Menor, em 130, confundia a antiga história dos Anjos Vigilantes com outra tradição apocalíptica judaica, a de que Deus nomeou anjos para governar a terra e suas nações. Segundo Russel (1987RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan: The early Christian tradition. London: Cornell University Press, 1987., p. 45), na antiga tradição judaica e na nova tradição cristã, a ideia de que cada pessoa e cada nação tivessem o seu próprio anjo era comum. Partindo desse ponto de vista, Papias acreditava que esses anjos, enviados à Terra por Deus, abusaram de sua autoridade, o que lhes ocasionou um fim trágico, já que esse abuso de poder os relegou à categoria de anjos caídos. Como aponta Jean Daniélou (1964DANIÉLOU, Jean. The theology of Jewish Christianity. Chicago: Henry Regnery, 1964., p. 188-191), esse pensamento é similar nos textos, posteriores, de Justino Mártir (110-165), Irineu e Athenágoras (133-190).

Os que mais mostraram oposição ao consenso que nascia dentro do emergente credo cristão eram os gnósticos, um dos mais importantes movimentos, segundo Russel (1987RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan: The early Christian tradition. London: Cornell University Press, 1987., p. 52), na história da religião ocidental. Esse fato é explicado porque o gnosticismo era considerado uma heresia cristã que nasceu da radical helenização do próprio Cristianismo. Por esse motivo e por grandes divergências teológicas com os apologéticos que começavam a determinar a ortodoxia a ser seguida, os gnósticos falharam em conseguir domínio ou mesmo respeito dentro da comunidade cristã. O apelo do Gnosticismo reside no seu radical dualismo em relação à teodiceia: Deus não é responsável pelo Mal, porque este nasce independente, nasce de um princípio malévolo (RUSSEL, 1987RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan: The early Christian tradition. London: Cornell University Press, 1987., p. 53).

Dessa forma, a importância do Gnosticismo na história do conceito do Mal está, primeiramente, nas reações que seus preceitos provocaram. Assim, trazendo a questão da teodiceia para o centro da discussão, os gnósticos forçaram os padres a criar uma demonologia coerente, que estava em falta nos textos do Novo Testamento e no pensamento apologético. O Cristianismo e o Gnosticismo são em parte dualistas, porém o primeiro encontra um enorme contrapeso na onipotência de Deus e na bondade de suas criações; em contrapartida, o Gnosticismo leva o dualismo ao extremo, acreditando que todo o mundo criado é mau.

O pensamento de um dos mais influentes gnósticos do segundo século pode explicitar certos pontos a respeito dessa doutrina. Marcião, o Sírio (?-160), chegou a Roma aproximadamente nos anos 139-140 e de lá foi expulso pela comunidade cristã, como herético, em 144. Marcião parece ter-se chocado ao tentar encontrar uma resposta para o contraste que percebeu entre o Deus severo do Antigo Testamento e o Deus de amor do Novo Testamento. Para ele, o Deus do Antigo Testamento, o Demiurgo, criador do mundo material, é também o criador de todos os males, portanto, do seu ponto de vista, o próprio Deus e o mundo que criou são maus. O bom Deus, da piedade e do amor, o verdadeiro Deus, é o pai de Jesus Cristo, que o enviou para revelar a verdade sobre o Cosmos em oposição às mentiras espalhadas pelo Deus mau. Em sua concepção, é no Novo Testamento que encontramos o vislumbre do verdadeiro Deus (CROSS; LIVINGSTONE, 1990CROSS, F. L.; LIVINGSTONE, X. (ed.). The Oxford Dictionary Of The Christian Church. Oxford: Oxford University Press , 1990., p. 870; CHRISTIE-MURRAY, 1990CHRISTIE-MURRAY, David. A History of Heresy. Oxford: Oxford University Press, 1990., p. 27).

Partindo para o final do segundo século e início do terceiro, dois teólogos interessados em determinados aspectos da vida cristã, como moralidade, pecado e redenção, trouxeram importantes contribuições para a discussão a respeito dos anjos maléficos e do Mal. O primeiro deles, Irineu, nasceu por volta de 140 na Ásia Menor, tornou-se bispo de Lyon e morreu por volta de 202, possivelmente como mártir. Seus escritos dirigem-se à defesa da unidade da Igreja contra seus dissidentes, ideia externada em sua obra Contra as Heresias, na qual ataca principalmente os gnósticos, fato que incitou os cristãos a relegá-los, bem como seus escritos, à categoria de hereges. Irineu rejeita totalmente a tese gnóstica de que o mundo é a criação de um Deus maléfico. Segundo seus escritos, o mundo é uma criação de um Deus bom, e, consequentemente, os anjos são parte do Cosmos que Deus criou. O Diabo, sendo um anjo como os outros no início da criação, foi, a princípio, uma criatura boa, sem vícios ou pecados (IRINEU, 1995IRINEU. Adversus haereses. São Paulo: Paulus , 1995., livro 1, 5; livro 3, 8; livro 4, 41; livro 5, 24).

Então, desse ponto de vista, o Diabo é apenas uma criatura, para sempre inferior e subordinado a Deus, ideia que se estabeleceu no Cristianismo e o moveu radicalmente para fora do dualismo cosmológico. Os termos usados para caracterizar o Diabo são similares a outros escritos do período, que tratam o príncipe das trevas como "mentiroso" (Contra as Heresias, 5, 22-24), "o adversário" (Contra as Heresias 3, 18), "a serpente" (Contra as Heresias 4, 40), "o assassino" (Contra as Heresias 3, 8, 18; 5, 22), "o apóstata" (Contra as Heresias 5, 25) e "o ladrão" (Contra as Heresias 5, 25). Para Irineu, o Diabo perdeu a graça divina pela sua inveja de Deus, pois queria ser adorado como seu criador, e mais ainda pela sua inveja da humanidade, pois não podia conceber que Deus tivesse criado o homem à sua imagem e semelhança, colocando o universo sob a autoridade de Adão. Na concepção de Irineu, o Diabo era um anjo que foi expulso do Paraíso com outros anjos maus em razão de seus pecados (Contra as Heresias 4, 40).

Os estudos e textos relacionados ao Diabo ganham maior dimensão e influência com Tertuliano. Nascido por volta de 170 em Cartago, norte da África, viveu praticamente toda sua vida no ambiente citadino. Convertendo-se ao Cristianismo entre 196 e 197, juntou-se à seita montanista e morreu por volta de 220. Rejeitou firmemente o dualismo cosmológico dos gnósticos, enquanto adotava a antiga via do dualismo ético judeu, presente fortemente em seus escritos.

Como escritor, pregava a aplicação da teologia na prática cotidiana, insistindo que uma estrita disciplina para a vida moral era parte de uma campanha contra o Mal, já que a imoralidade levava o ser humano à vida mundana e, consequentemente, às garras do Diabo. Em sua obra Dos Espetáculos, na qual condena os espetáculos e o teatro, Tertuliano deixa bem claro, em uma das passagens, o perigo que os espetáculos representam, dando exemplos de mulheres que foram possuídas ou tentadas pelo demônio após participarem de apresentações teatrais, e adverte que "nenhum homem pode servir a dois mestres" (Dos Espetáculos, 26). Essa passagem encontra sua inspiração no evangelho de Mateus (6: 24) e na segunda carta aos Coríntios (6: 14). Sua inclinação moral levou-o a elaborar uma demonologia que é menos uma descrição sobre o paganismo [sic] do que um ataque frontal ao mesmo. Os pagãos [sic], em sua concepção, eram cidadãos do velho tempo, da era do Mal, soldados que compunham a armada de Satanás (RUSSEL, 1987RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan: The early Christian tradition. London: Cornell University Press, 1987., p. 89).

Afirmando que o Deus da criação é bom, Tertuliano aumenta ainda mais seu distanciamento em relação aos gnósticos. Diante desse pensamento, o que justificaria toda a dor e todo o Mal que existe no mundo? A resposta é enfática: o pecado! Tal ênfase é a chave para a diabologia de Tertuliano, que, juntamente com Irineu, forma as bases da futura teologia moral cristã (RUSSEL, 1987RUSSEL, Jeffrey Burton. Satan: The early Christian tradition. London: Cornell University Press, 1987., p. 90). "O mundo veio de Deus, mas a vida mundana veio do Diabo" (Dos espetáculos, 15) - assim, o saeculum, o Cosmos, é bom, e os assuntos mundanos, saecularia, são maus. O Diabo era bom em sua natureza; Deus criou um anjo, e esse anjo tornou-se, por sua própria vontade e por seus próprios atos corruptos, o Diabo (Contra marcião, 2, 10).

Uma obra atribuída em alguns casos a Tertuliano, do ponto de vista deste trabalho, merece destaque: o Martírio de Santa Perpétua e Santa Felicidade (DELEHAYE, 1921DELEHAYE, H. Les Passions des Martyrs et les genres littéraires. Bruxelles: Bureaux de la Société des Bollandistes, 1921., p. 63-72; MONCEAUX, 1901MONCEAUX, P. Histoire littéraire de l'Afrique chrétienne depuis les origines jusqu'à l'invasion arabe. Paris: Ernest Leroux, 1901., p. 70-96; MASON, 1905MASON, A. J. The historic martyrs of the primitive church. London: Longmans, 1905., p. 77-106). Existem, nessa obra, três passagens em que o Diabo age contra as santas e contra a população que vivia em Cartago. O testemunho mais notável, segundo Jean Daniélou (DANIÉLOU; MARROU, 1982DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri-Irénée. Nueva historia de la Iglesia. I. Desde los orígenes a San Gregorio Magno. Madrid: Cristiandad, 1982., p. 163), é o martírio de Perpétua, que em uma de suas visões é conduzida a um anfiteatro e enfrenta um egípcio de terrível aparência e seus ajudantes. Perpétua, após vencer a luta e acordar de sua visão, descobre que estava lutando contra o Diabo (Martírio de Perpétua e Felícia 3: 2).

Alexandria, importante cidade do Egito, foi um polo cultural da cristandade, palco de discussões acerca da filosofia e da teologia cristã, configurando-se também como centro do helenismo cristão. Se na África romana contavam-se muitas sedes episcopais no fim do século I, no Egito há referências importantes sobre a Igreja de Alexandria, que teria sido fundada por São Marcos. O fato inegável é que Alexandria foi um polo refletor importante de cultura cristã, tanto que tais referências se encontram em mais de 100 dioceses episcopais da região, no decorrer do século III, segundo o sínodo de Alexandria de 318 (BIHLMEYER; TUECHLE, 1964BIHLMEYER, Karl; TUECHLE, Herman. História da Igreja. Vol. I - Antiguidade Cristã. São Paulo: Edições Paulinas, 1964., p. 74).

Assim, como referência para o nosso estudo, trataremos inicialmente dos escritos de Clemente de Alexandria. Em sua concepção, Deus criou o mundo do nada, do vazio, e o motivo de tal feito foi o intento de compartilhar sua generosidade: para se sentir completo, Deus desejou compartilhar sua bondade, estendendo-a a outros seres (1 De Pedagogus 9). Mas, como somente Deus é perfeito, o mundo criado por ele é necessariamente, desse ponto de vista, imperfeito, o que transforma o Cosmos em uma fraca e deficiente cópia da verdadeira realidade. Essa deficiência não denota que todas as criaturas são imperfeitas, mas que existe uma hierarquia entre os seres, sendo que Deus encontra-se no topo, seguido por anjos, humanos, animais, plantas, pedras até o princípio, a matéria não formada, carente de realidade, bondade e espiritualidade, a mais privada dos seres, vazia, e, potencialmente, mais má.

Em uma passagem da obra Fragmentos, vemos a posição de Clemente em relação ao Diabo. Em seu comentário à primeira epístola de Pedro, vemos que foi criado bom, pois é impossível que Deus, sendo o princípio de tudo, tenha criado o Mal. É o "Deus de toda a graça" (1 Pd 5: 10), "de toda a graça ele disse [Pedro], porque ele é bom e também aquele que fez todas as coisas boas" (Fragmentos 1). Assim, o Diabo foi um príncipe entre os anjos e tornou-se mau pela sua própria vontade, o primeiro a cair, tornando-se o líder dos demônios (5 Stromata 14).

Outra questão de grande importância no pensamento de Clemente é o livre-arbítrio. Adão e Eva foram banidos do Paraíso não por serem bons ou maus, mas por terem feito mal uso de seu livre-arbítrio, cometendo, portanto, o chamado pecado original (3 Stromata 12; 16-17). Ao cometer o pecado, o "homem se aproximou das bestas" (1 De Pedagogus 13), um ser considerado irracional, como os animais. Clemente ainda acrescenta que, com a segunda vinda de Cristo, a bondade será legada a todos, sem restrição (4 Stromata 8; 14), ideia ainda confusa, que seria posteriormente resolvida por Orígenes, para quem a Apocatástase, o último retorno, torna-se concreta.

Orígenes, segundo Burton Russel (1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 123), é o mais inventivo demonólogo de toda a tradição cristã. Tal posição pode ser corroborada ao se analisar o debate sobre o Mal em sua obra Contra Celso e em outra, também de sua autoria, chamada De Principiis (Dos Princípios). De acordo com Ronaldo Amaral (2009AMARAL, Ronaldo. Orígenes: um asceta condescendente com a matéria. A ambigüidade espiritual-material na existência bem aventurada. Fênix. Revista de História e Estudos Culturais, v. VI, n. 3, p. 2-5, 2009., p. 2-5), essas obras constituem seus escritos mais importantes, uma vez que dizem respeito ao mundo divino, sua natureza e circunstâncias, oferecendo especial atenção a sua cosmogonia e sua discutida teoria da Apocatástase.

Como Clemente, Orígenes foca a sua compreensão do mundo na bondade divina e na liberdade. Assim, Deus criou o Cosmos cheio de bondade, dando o livre-arbítrio aos seres humanos e espirituais, sendo essa a causa do surgimento do Mal. Satanás foi criado como um anjo bom, mas esse anjo, por sua própria vontade, pelo livre-arbítrio, tornou-se o Diabo. Mas o mais impressionante aspecto da demonologia de Orígenes é a potencial salvação de Satanás. Influenciado por Clemente e pelo neoplatonismo, Orígenes acredita que Deus, em sua piedade, deseja a felicidade para toda a sua criação. Assim, nasce a Apocatástase, ideia de que todos os seres eventualmente retornarão ao Deus que os criou. Na plenitude do tempo, Deus será tudo em todos. Orígenes talvez quisesse dizer que, no plano divino, metafísico, o Diabo inevitavelmente será salvo ou que o Diabo possivelmente será salvo. Isso, do nosso ponto de vista, pode derivar da posição de Orígenes a respeito do livre-arbítrio.

O dualismo que permeou as ideias dos primeiros padres da Igreja tornou-se o centro do debate teológico nos séculos III e IV dentro do Império Romano, especialmente no norte da África e no Egito. A insegurança que aumentava no Império, somada ao medo, fez com que o dualismo ressurgisse no debate com uma nova heresia, o Maniqueísmo, penetrando também no monasticismo e encontrando grande expressão nos escritos do padre da Igreja Lactâncio (240-320). Este, convertido ao Cristianismo em 300, passou a defender a cristandade contra os pagãos, e seus trabalhos também versam sobre a influência do Mal e do Diabo no mundo. Lactâncio foi dualista em vários sentidos: um dualista ético, dando ênfase aos dois caminhos, o da justiça e o da injustiça; um dualista antropológico, observando a tensão nos seres humanos entre alma e corpo, espírito e matéria; um dualista cosmológico, salvando a bondade de Deus por designar o Mal como seu adversário.

A definição do Bem, distinguindo-o do Mal e vice-versa, possui uma lógica inevitável. Se Deus criasse o mundo sem o Mal, não daria a alternativa para se fazer conhecer o Bem, pois, para Lactâncio, aquele é uma força necessária para a compreensão deste. Deus quis essa distinção entre o Bem e o Mal para assim fazer com que todos compreendam a natureza de um em contraste com a natureza do outro (2 Instituições Divinas 8). Assim, excluir o Mal, do ponto de vista de Lactâncio, seria inevitavelmente eliminar a virtude e não a fazer presente e conhecida pelos seres da criação.

A visão dualista começa, assim, a impregnar o pensamento dos padres da Igreja, fazendo com que surjam novas heresias. Das heresias dualistas que emergem no final do terceiro século, a que nos chama a atenção por seu conteúdo em relação ao Mal é o Donatismo. Os cristãos donatistas do norte da África foram tratados diferentemente ao longo da história, de acordo com o intérprete: cismáticos, egoístas, hereges, vis, ou mesmo como vítimas das políticas romanas beligerantes. W. H. C. Frend (1952FREND, W. H. C. The Donatist Church: A Movement of Protest in Roman North Africa. Oxford: Clarendon Press, 1952., p. 336) não caracteriza o Donatismo apenas como um grupo sectário; para o autor, era realmente "parte de uma revolução".

Contudo, o que faz a heresia donatista única entre as chamadas revoluções é a maneira como seus elementos constitutivos fundiram-se em uma teologia política que permitiu a essa forma de Cristianismo africano canalizar os anseios sociopolíticos e influências culturais de sua população nativa em um paradigma teológico comportamental dinâmico e potente. Segundo Russel (1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 61), o cisma donatista cresceu de uma disputa sobre qual seria o verdadeiro cristão frente às perseguições perpetradas pelo Império Romano. Os donatistas argumentavam que o cristão que se rendeu ao medo das perseguições e ofereceu sacrifício aos deuses pagãos, traindo a Igreja, não poderia ser perdoado e novamente inserido na comunidade cristã, e qualquer sacramento ou ordenação praticada por um padre ou bispo pecador, especialmente aqueles que se renderam no tempo da perseguição, seriam inválidos.

Como os ortodoxos, que acusavam o Diabo de ser o mestre das heresias, os donatistas afirmavam que Satanás era responsável pelas perseguições e por oferecer conforto àqueles que se voltassem a ele. Assim, tornando-se cada vez mais isolados, os donatistas acreditavam que todo o mundo, com exceção dos membros de sua seita, estava nas mãos do Diabo. Os donatistas tomaram a posição de que Deus ofereceu sua graça aos humanos, e estes responderam com sua crença no Criador. O sinal externo da graça e da fé é o Batismo, sacramento no qual o cristão é recebido dentro da comunidade. Dessa forma, o cristão que peca mortalmente contra sua religião por medo da perseguição não é um verdadeiro membro da comunidade cristã. A posição católica é indubitavelmente mais piedosa nesse sentido, respondendo aos cristãos que viviam em um período de perseguições, que se encontravam no pecado, mas se arrependiam depois de tê-lo cometido, alcançando, assim, o perdão.

Outra heresia que ressurge nesse momento e que demonstra uma posição mais dualista que a dos donatistas é o Maniqueísmo. Por algum tempo, esteve no centro dos debates dos padres da Igreja pela dificuldade de sua definição: como heresia ou como uma religião separada do Cristianismo. Os pontos relevantes para o estudo do Diabo no Maniqueísmo encontram-se na sua proximidade em relação aos cristãos gnósticos, o que influenciaria outras heresias cristãs.

O combate entre corpo e alma foi um tema também debatido dentro do pensamento monástico cristão. O autêntico fenômeno do monacato surgiu no final do século III e início do IV no mundo mediterrânico oriental, com a aparição de eremitas e anacoretas que se retiraram para o ermo, o qual representava para eles uma espiritualidade especial, a espiritualidade do deserto: solidão, silêncio, austeridade, penitência e encontro com Deus (MONTENEGRO; MONTENEGRO, 1996MONTENEGRO, Maria C.; MONTENEGRO, Santiago C. Los monges y la cristianizacion de Europa. Madrid: Arco/Libros S.L, 1996., p. 11). Esse monasticismo, que propõe uma vida de solidão e reflexão na qual o indivíduo deve devotar todo o seu tempo à contemplação de Deus, imperturbável pelas distrações da vida em sociedade, tem uma significância marcante para o estudo da demonologia.

O primeiro monge conhecido, Santo Antão - ou Antônio - (251-356) deixou a vida citadina para viver no deserto como eremita. No mesmo caminho, São Pacômio (286-346) posteriormente fundou o monasticismo cenobita. Com a aparente paz trazida por Constantino após 313, as perseguições diminuíram, e a comunidade cristã passou a preocupar-se com os perigos de "dentro", especialmente com as tentações do mundo. O deserto substituiu a arena como lugar onde os cristãos eram severamente testados em sua fé. Por isso, ausentando-se do mundo ao praticar a fuga mundi, os monges comprometiam-se a lutar contra os prazeres do mundo e de seu príncipe, Satanás.

Quando um monge se dirige ao deserto, ele espera lutar tanto física como moralmente contra as legiões de demônios, usando como escudo sua vida ascética sob a proteção de Cristo. Assim, o deserto tem um significado duplo para o monge: é um lugar de refúgio contra as tentações da sociedade, do mundo, mas também é onde as tentações vêm diretamente do Diabo. No deserto, o monge pode se afastar das pequenas distrações mundanas, dos pequenos vícios e virtudes, para fazer parte diretamente de uma luta cósmica entre Cristo e Satanás. Tal luta pode ser encontrada nos relatos e nas experiências dos monges que habitavam o deserto, os quais acreditavam estar sob um ataque severo e incessante das forças do Mal. Suas experiências e o interesse que estas despertam na comunidade cristã, através dos relatos dos fatos ocorridos no deserto, fizeram com que o medo do Diabo crescesse exponencialmente entre os cristãos. Os feitos desses monges contra os demônios eram conhecidos até para aqueles que não congregavam a mesma fé dos cristãos. Os demônios atacavam mais os eremitas que os cenobitas, pois os primeiros eram conhecidos por sua vida espiritual mais elevada, sendo, por isso, o alvo predileto das forças do Mal. Dessa forma, os monges, que se tornariam posteriormente santos, substituíram os mártires das arenas, tornando-se os "heróis de Cristo".

Nas vidas dos santos escritas em meados do IV século, encontram-se inúmeros topoi. Para os olhos modernos, de acordo com Russel (1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 167), às vezes o hagiógrafo toma a história de outro santo/monge, usando-a para seu próprio propósito, o que indicaria tratar-se de um mal entendido ou de falsa(s) história(s). Mas, do nosso ponto de vista, esses relatos não foram concebidos para serem históricos, mas sim edificantes, portadores de princípios universais pregados dentro do Cristianismo. Assim, tais relatos podem ser compreendidos, de uma maneira mais clara, como a formação de arquétipos, indicando o que a Igreja esperava desses homens e mulheres que encontraram o caminho da santidade por meio de suas ações.

Tomando como base as ideias sobre os demônios dos autores do Cristianismo Primitivo, por sua vez, baseados no Novo e no Velho Testamentos, nos apócrifos e na apocalíptica judaica dos séculos anteriores ao nascimento de Cristo, um dos mais influentes trabalhos monásticos que tratam da demonologia foi escrito por Atanásio de Alexandria. Atanásio nasceu em 295, trabalhou como diácono e secretário do bispo Alexandre de Alexandria e tornou-se bispo em 328. Ademais, liderou a querela contra os arianos e foi uma das vozes mais influentes no primeiro concílio ecumênico de Niceia, em 325. Dentre seus escritos, compôs a Vita Antonii (Vida de Santo Antão ou Antônio), considerado o documento mais importante do Cristianismo Primitivo sobre o Diabo, por volta de 357 (BLAZQUEZ, 1998BLAZQUEZ, Jose Maria. Intelectuales, ascetas y demônios al final de La Antiguedad. Madrid: Cátedra, 1998., p. 536), com o intuito de apresentar um modelo de vida ascética para que os monges o imitassem.

Em um eloquente discurso, Atanásio dedica grande parte de sua obra à demonologia, abordando diretamente os seguintes temas: a necessidade de distinguir os espíritos, métodos de luta contra os demônios e experiências vividas por Antão. Este, desde o primeiro momento, foi tentado pelo Diabo quando se retirou para a vida ascética no deserto, encerrando-se em um sepulcro. Os demônios, segundo Atanásio, poderiam causar um grande mal físico ao eremita. As ideias se repetem na obra de Atanásio, reforçando a noção de que os demônios são impotentes, temerosos, que não podem causar mal nenhum, que produzem falsas imagens e que podem ser vencidos com o sinal da cruz. Apesar de os demônios terem o poder de produzir temor na alma, agitação, pensamentos desordenados, tristeza, ódio, sonolência, temor da morte e afastamento das virtudes, Deus é motivo de alegria, e não de tristeza, de confiança e de salvação, de pensamentos ordenados e de bondade (ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, 1988ATANÁSIO DE ALEXANDRIA. Vida de Antonio. Trad., introd. y notas A. Ballano. Zamora: Ediciones Monte Casino, 1988., 36).

O demônio aparece em outras vidas de santos que habitavam o deserto nos séculos IV e V. Dessa forma, vemos que a demonologia também ocupa um papel de destaque na Vida de São Martinho (Martinho de Tours), de Sulpício Severo (363-425). Em alguns aspectos, as aparições demoníacas na vida de Martinho coincidem com a de Antão, ainda que de formas diferentes. Como conta Severo, o demônio se apresentava a Martinho com a aparência de Júpiter, de Mercúrio, de Vênus e Minerva (SULPÍCIO SEVERO, 1987SULPÍCIO SEVERO. Vida de Martin (Vita Martinii). In: Obras Completas de Sulpício Severo. Estúdio preliminar, trad. y notas de Carmen Codoñer Merino. Madrid: Tecnos, 1987., 22). Possivelmente, por trás dessas aparições existe a crença cristã de que os deuses antigos eram na verdade demônios. Mas, como Antão, Martinho sempre permanecia sereno e tranquilo frente às aparições diabólicas, usando somente o sinal da cruz e a oração como armas contra o demônio (SULPÍCIO SEVERO, 1987SULPÍCIO SEVERO. Vida de Martin (Vita Martinii). In: Obras Completas de Sulpício Severo. Estúdio preliminar, trad. y notas de Carmen Codoñer Merino. Madrid: Tecnos, 1987.,17; 21; 24).

São Jerônimo (347-420) também dá sua contribuição à demonologia escrevendo a Vida de Hilarião. Introdutor do monacato na Palestina, segundo Blazquez (1998BLAZQUEZ, Jose Maria. Intelectuales, ascetas y demônios al final de La Antiguedad. Madrid: Cátedra, 1998., p. 547), Jerônimo exagera ao escrever sobre Hilarião pelo abuso que faz de ornamentos retóricos ao descrever as alucinações e aparições diabólicas, sendo que, nessa Vita, o demônio ocupa um lugar proeminente. Jerônimo narra diversos tipos de tentações e artimanhas usadas pelo demônio contra Hilarião:

Muitas e variadas foram as tentações e ciladas do demônio, tanto durante o dia quanto durante a noite. Se quisesse narrá-las todas, excederia os limites deste livro. Quantas vezes, enquanto deitado, se lhe apareceram mulheres desnudas; quantas vezes, enquanto com fome, viu suculentas refeições! Algumas vezes, enquanto orava, saltou sobre ele um lobo que uivava e um porco que grunhia; e enquanto salmodiava, se lhe apresentava um espetáculo de lutas de gladiadores e um deles, que parecia ferido mortalmente, se arrastava até seus pés e lhe suplicava para que o sepultasse (JERÔNIMO, 2001, 7).

Mas o que mais chama a atenção é o papel desempenhado pelos endemoniados. O exorcismo era um rito de purificação, e Jerônimo recorre à atuação de Hilarião como monge exorcista para fixar essa prática. Nesta passagem, escreve sobre a possessão de Orión, um importante homem da cidade de Aira, próxima ao Mar Vermelho:

Estava possuído por uma legião de demônios e foi conduzido a Hilarião. Suas mãos, joelhos, quadris e pés estavam acorrentados; seus olhos, torcidos e ameaçadores, expressavam a crueldade do seu furor. Enquanto o santo caminhava com os irmãos e lhes interpretava certa passagem da Escritura, aquele escapou das mãos que o sujeitavam e, tomando Hilarião pelas costas, o levantou às alturas. Um grande clamor brotou de todos, pois temeram que destroçasse seus membros debilitados pelo jejum. O santo, sorrindo, disse: "Fiquem tranqüilos; deixem-me na arena com o meu adversário". E, assim, passando a mão sobre os seus ombros, tocou a cabeça de Orión e, tomando-o pelos cabelos, o trouxe até seus pés, retendo-o à sua frente, com ambas as mãos, e pisando os pés daquele com os seus pés. E repetia: "Retorce-te!". E Orión gemeu e, ajoelhando-se, tocou o solo com sua cabeça. Hilarião disse: "Senhor Jesus: liberta este desgraçado, livra este cativo; assim como vences a um, podes vencer a muitos". E ocorreu algo inaudito: da boca do homem saíram diversas vozes, como o clamor confuso de um povo. Uma vez curado, também este, pouco tempo depois, foi ao monastério com sua mulher e seus filhos, dar graças e levar muitos presentes. O santo, então, lhe disse: "Não leste sobre como sofreram Giezei e Simão, um por haver recebido e o outro por haver oferecido dinheiro? Aquele queria vender a graça do Espírito Santo; este outro queria comprá-la". E como Orión, chorando, insistia: "Toma e dá aos pobres", Hilarião respondeu: "Tu podes distribuir teus bens melhor que eu, pois percorres as cidades e conheces os pobres. Eu, que abandonei o que era meu, por que vou desejar o alheio? Para muitos, o nome dos pobres é uma ocasião de avareza; a misericórdia, ao contrário, não conhece artifícios. Ninguém dá melhor que aquele que não reserva nada para si". Orión, entristecido, jazia em terra. Hilarião, então, lhe disse: "Filho, não te entristeças! O que faço por mim, faço também por ti. Se aceitasse esses presentes, ofenderia a Deus e a legião de demônios voltaria para ti" (JERÔNIMO, 2001, 18).

Atanásio, Sulpício e Jerônimo, assim como outros autores que descreveram a luta monástica contra os demônios no deserto, deram brilho, particularidades e um senso de realidade à figura do Diabo. Este está presente em todos os momentos, pronto e ansioso para atacar os cristãos com todas as armas possíveis. Por trás de suas manifestações, esconde-se um sentimento emergente de uma presença fria, pesada, monstruosa, inteligente, mas idiota, tentando levar o mundo em direção à escuridão (RUSSEL, 1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 185).

Agostinho de Hipona (354-430), um dos mais influentes cristãos, sintetizou a demonologia e acrescentou-lhe novas percepções, construindo uma relativa e coerente abordagem para o problema do Mal. A vida intelectual e espiritual de Agostinho floresceu após sua ida à Itália, em 383 - país onde se tornaria, em 384, professor de retórica, em Milão, recebendo uma grande influência de Ambrósio - e após sua conversão ao Cristianismo, que, em seu ponto de vista, era inferior tanto intelectual quanto culturalmente ao Neoplatonismo e ao Maniqueísmo. De fato, muitos dos trabalhos posteriores à sua conversão podem ser entendidos como respostas aos seus oponentes teológicos, maniqueus, donatistas, pelagianistas, entre outros.

O problema do Mal também ocupou a memória e os pensamentos de Agostinho. Sua sensibilidade ao pecado, analisando o período em que era criança, é clara na história em que ele e seus amigos roubam peras de uma árvore do pomar vizinho, um episódio que, para Agostinho, tinha os traços clássicos da ação má. Explica, assim, que quando ele e os amigos roubaram as peras, fizeram-no não porque queriam comê-las, mas por mero amor ao Mal. A causa de sua maldade não foi nada mais que sua própria maldade, e seu prazer não estava em comer as peras, que eram de má qualidade, mas na maldade do ato do furto, que era condimentum, que melhorava muito o sabor (AGOSTINHO, 1984AGOSTINHO. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulinas , 1984. , II, VI, 9 e 12).

Em sua fase maniqueísta, ele entregou-se a uma interpretação completamente dualista do Mal, e a questão continuou a absorvê-lo depois que se tornou cristão, em sua maturidade. Tratando diretamente do Mal, acreditava na natureza pecaminosa do ser humano e na redenção através do Cristo, mas o Diabo era parte constituinte de sua teologia: sem a sombra negra, o Cosmos agostiniano não poderia ser compreendido (RUSSEL, 1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 197).

Na obra O Livre-Arbítrio, Agostinho introduz de forma direta o problema do Mal. Em suas conversas, Evodius, seu companheiro de estudos, indaga: "Peço-te que me digas, será Deus o autor do mal?" (AGOSTINHO, 2001AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus , 2001. (Patrística, 8), I, 1). Como aponta Russel (1991RUSSEL, Jeffrey Burton. O diabo: as percepções do mal na Antiguidade e no cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991., p. 197), Agostinho sempre acreditou que o Diabo tinha grande poder e que Deus permitiu ao Mal o controle do mundo; assim, cada ser humano tem que lutar para se defender dos demônios com sua própria alma.

Então, apresenta-se a pergunta: de onde o Mal provém? Qual a sua origem? Por que a dor e o pecado existem no mundo? Na teoria agostiniana, o princípio do Mal, um ser absolutamente mau em si mesmo, o senhor do Mal, independente de Deus, não pode existir: o Mal é a falta ou privação do Bem (AGOSTINHO, 1999AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Parte 2 - livros 11-22. Petrópolis: Vozes, 1999. (Pensamento Humano, 6), 11: 22; 12: 3). Mas por que existe essa privação/falta? Agostinho faz uma distinção entre o mal natural e o mal moral. Dessa forma, o mal natural ou físico, como tornados e doenças, é doloroso, amedrontante, terrível, mas não é realmente mau, pois é parte do plano de Deus, que está escondido dos seres humanos. Assim, os males naturais somente parecem maus porque não entendemos de forma coerente o Cosmos (SAN AGUSTÍN, Da Ordem, 1.1).

No entanto, esse pensamento somente pode ser compreendido dentro de um plano maior: o sofrimento e a dor existem para dar ao ser humano sabedoria, alertá-lo sobre o perigo do pecado e para assegurar uma punição justa para o mesmo. O mal natural é parte do plano de Deus para um bem maior, e o pecado moral, para um bem final (SAN AGUSTÍN, Cartas, 210). E por que o mal moral existe? Vemos que o mal natural atinge aqueles que sofrem, mas esse sofrimento é feito para o Bem, pelo Deus do amor. O mal moral é diferente, machuca suas vítimas, mas, de uma forma muito pior, ele causa um dano grave para aquele que comete o pecado, pois corrói sua alma (AGOSTINHO, 1998AGOSTINHO. A Trindade. São Paulo: Paulus , 1998. (Patrística, 7), 13. 16; 2001, 3. 9).

Agostinho prolongou a velha confusão cristã do mal moral com a privação ontológica, colocando-a nos termos de Orígenes e usando uma escala similar. Deus, assim, permite a existência dos tormentos do Inferno, pois ele é estética e logicamente necessário para equilibrar a justiça.

A contribuição mais importante de Agostinho para a diabologia é sua discussão acerca do livre-arbítrio e da predestinação. O problema coloca-se da seguinte forma: a experiência mundana mostra que o ser humano é livre para fazer suas escolhas, e a Bíblia ensina que o ser humano é responsável pelos caminhos que decide traçar. Mas, se Deus é onipotente, como anjos e humanos são realmente livres para decidir suas escolhas? Agostinho resolve, pelo menos parcialmente, o problema, dizendo que anjos e humanos são livres, mas o poder de Deus é ilimitado diante de qualquer princípio, incluindo a liberdade. O livre-arbítrio torna-se, assim, necessário, pois sem ele nenhum ato de justiça poderia ser feito.

O argumento do livre-arbítrio excluiu de Deus a responsabilidade pelo Mal, colocando-o nas mãos de anjos e humanos (AGOSTINHO, 2001AGOSTINHO. O Livre-Arbítrio. São Paulo: Paulus , 2001. (Patrística, 8), 3.3). O Mal, então, é produto da livre escolha de um ser inteligente que o faz afastar-se do Bem eterno, rejeitando Deus em favor de prazeres passageiros. Deus concebe o livre-arbítrio para os seres inteligentes, dando-lhes uma energia especial. Agostinho a chama de Graça, que ajuda os seres a escolher o Bem.

Agostinho continua a tradição que diz que os demônios não são espécies separadas, diferentes, mas sim anjos; por sua vez, o Diabo e outros demônios são anjos caídos (AGOSTINHO, 1999AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Parte 2 - livros 11-22. Petrópolis: Vozes, 1999. (Pensamento Humano, 6), VIII.14-17). Os anjos maus foram criados bons e perderam sua bondade por sua própria vontade, com a permissão de Deus (AGOSTINHO, 1999AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Parte 2 - livros 11-22. Petrópolis: Vozes, 1999. (Pensamento Humano, 6), 12. 9; 1984, 7. 3-5). Quando os anjos caíram, tornaram-se demônios, e quando o anjo que era conhecido como Satanás caiu, tornou-se o Diabo (AGOSTINHO, Contra Maximinum 2: 12). Os anjos bons permaneceram com Deus, mas os anjos maus, obscurecidos pelo pecado, perderam sua luz, retendo somente os poderes concernentes às trevas (AGOSTINHO,1999AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Parte 2 - livros 11-22. Petrópolis: Vozes, 1999. (Pensamento Humano, 6), 2. 21).

Agostinho também fala sobre a atuação dos demônios no mundo. Mostra que magia é caso referente à prática que, para sua credibilidade, depende da hipótese de que os demônios podem agir sobre objetos no mundo material. Assim, a magia não pode existir sem a assistência de espíritos malignos (AGOSTINHO, 1999AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Parte 2 - livros 11-22. Petrópolis: Vozes, 1999. (Pensamento Humano, 6), VIII.19). Os sinais feitos por eles são vazios, imaginários, e não reais, e, por isso, desorientadores. Os augures observam somente os voos dos pássaros e escolhem sinais que negam a verdadeira função dos próprios, pois levam à adoração da criatura em vez do Criador (AGOSTINHO, 2002AGOSTINHO. A Doutrina Cristã São Paulo: Paulus, 2002. (Patrística, 17), II, 23.36).

Dessa forma, o Diabo usa diversos estratagemas para consolidar suas mentiras, tidas como verdades, para ludibriar os cristãos, mas existe uma grande ironia que espera os pecadores no final dos tempos. O propósito do Juízo Final é entregar os seguidores do Diabo à sorte que surpreendeu o próprio demônio quando teve sua queda (AGOSTINHO, 1999AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Parte 2 - livros 11-22. Petrópolis: Vozes, 1999. (Pensamento Humano, 6), XX. 7. 14). Também os corpos dos maus devem ressuscitar, pois um corpo morto sem sua alma é um mero cadáver, caro exanimis, carne vazia, e, a não ser que as almas dos iníquos sejam restituídas a seus corpos, não serão capazes de sentir os tormentos que os esperam (AGOSTINHO, 1999AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Contra os pagãos. Parte 2 - livros 11-22. Petrópolis: Vozes, 1999. (Pensamento Humano, 6), XX. 21; XXI. 7). Os maus terão que sentir seus tormentos no corpo, e, no esquema de Agostinho, não pode haver maior tormento do que sofrer para sempre uma visão obscurecida e obnubilada de Deus (EVANS, 1995EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus , 1995., p. 165).

As trevas finais, segundo Agostinho, não se encontram em um lugar geográfico, no Inferno, um lugar separado do reino de Deus. Aqui, o sentido é que o conhecimento de Deus, que os eleitos compartilharão com os anjos bons, será purificado de todo mal que com ele se mistura no tempo presente. O Mal será eliminado (EVANS, 1995EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. São Paulo: Paulus , 1995., p. 166). A purificação será essencialmente uma limpeza das faculdades do conhecimento, e seu resultado será o poder de conhecer a verdade, conferido aos eleitos (EVANS, 1995, p. 166). Se Satanás é, sobretudo, o pai da mentira, é também a fonte da ignorância e do erro.

Considerações finais

Pudemos ver que muitos cristãos, da Igreja Primitiva à Patrística, debruçaram-se a pensar o Mal e suas representações. Esses escritos, inseridos na longa duração, exerceram grande influência sobre o pensamento e sobre a vida daqueles que compartilhavam ou não do ideal cristão. Da posição de perseguidos e hostilizados dentro do Império, tais homens tornaram-se, lentamente, sua voz e, posteriormente, a verdadeira voz a ser seguida.

De uma comunidade ameaçada, herdeiros das tradições de Israel, emergem um insistente interesse na solidariedade de um grupo e um sentimento violentamente negativo da intimidade (BROWN, 1990BROWN, Peter. A Antiguidade Tardia. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada. 1. Do Império Romano ao ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 244- 300., p. 244), o que torna a Igreja, após os primeiros quatro séculos de vivência, uma nova comunidade pública, unida, como salienta Peter Brown (1990BROWN, Peter. A Antiguidade Tardia. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada. 1. Do Império Romano ao ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 244- 300., p. 266), pela extraordinária importância atribuída a três temas delimitados com uma acuidade até então inexistente no mundo antigo: o pecado, a pobreza e a morte, conceitos aparentemente abstratos e estreitamente interligados que habitam o horizonte cristão da Antiguidade Tardia.

O Cristianismo se apresentava como uma fé que merecia ser vivida e também pela qual valia a pena morrer, estando aberta a todos, mediante a aceitação de uma estrutura hierárquica, acolhida por aqueles que viviam em uma época em que a vida terrena teria cada vez menos valor. O sentimento de culpabilidade habitava a alma de muitos, e brilhava a promessa de uma melhor condição em outro mundo, o além, pois os benefícios, que acarretava o "ser cristão", não se encontravam presos somente ao mundo. Assim, nascia um sentimento de grupo, unido sob a égide da solidariedade com o próximo, o qual poderia tornar-se mais um em busca da Jerusalém Celeste. Dessa forma, se a vida pós-morte e a união com Deus no Paraíso são o foco de uma vida dedicada à castidade, ao desapego, ao respeito e à solidariedade para com o próximo, e esse mesmo Deus é bom em sua natureza, como explicar a existência do Mal?

Esse Mal, sentido, vivido e percebido pelos cristãos da época, será remetido a uma das criaturas do Deus bom, criado pelo Bem e para o Bem, mas que, devido a sua própria vontade, inclinou-se para o lado oposto ao da luz. A nova dinâmica cristã aceitaria o Mal como proveniente de Deus, mesmo que indiretamente, pois ele existe e é percebido no mundo: o mundo era imperfeito e tal imperfeição deveria ser justificada. A função do Diabo no horizonte cristão consiste em uma explicação plausível para as angústias de um mundo em transformação, onde a moral cristã vai agir e estabelecer uma conduta que afasta o homem do caminho da perdição, preparando-o para o último juízo, dando-lhe a esperança de uma vida plena, de paz e gozo após sua morte.

A teodiceia cristã formulou a questão do Mal e do Diabo com mais profundidade do que vemos na tradição anterior. A figura de Satanás no Novo Testamento assume outra roupagem, sendo entendida somente no contraponto com a figura de Cristo. Assim, os autores do Novo Testamento encaram a figura do Diabo como centro de uma batalha entre o reino de Deus e o reino das trevas; sua função é ser um princípio contrário ao de Cristo. A mensagem é clara: Cristo salva, e salva contra as tentações demoníacas. A antiga oposição entre Yahweh e Satanás torna-se agora a oposição entre Cristo e Satanás. Para os autores do Novo Testamento, essa oposição era ao mesmo tempo feroz e profunda.

O Novo Testamento também salienta a luta constante entre Deus e os demônios. Como vemos nos evangelhos de Mateus (8: 29) e no livro dos Macabeus (5: 1-7), os demônios sabem que sua destruição através da figura do Messias é inevitável e, assim, tentam procrastinar esse dia o máximo possível, colocando obstáculos à ação de Jesus, que anuncia a proximidade do reino de Deus. É o que ocorre quando passa pelas ruas e pelos ermos, e os maus espíritos gritam pela boca dos possuídos, ora implorando piedade (Mc, 5: 1-7) ora protestando contra a pressa com que ele parece querer realizar suas obras (Mt 8: 29).

Porém, a vitória final de Cristo sobre o Diabo só terá seu fim na Parusia, mediante o julgamento final, ideia que, de certa forma, conforta e traz alívio e benefícios para aqueles que são membros da cristandade. Quem está dentro da Igreja está fora do alcance diabólico (SKRZYPCZAK, 1957SKRZYPCZAK, Otto. A demonologia no Novo Testamento. In: KOSER, C. O demônio: aspectos teológicos. Colaboração de um grupo de teólogos do Brasil. Petrópolis: Vozes , 1957. p. 33-48., p. 46). Pensamento confuso, quando observamos os textos de João e Paulo (Jo 16: 33; 1 Jo 2: 13; 4: 4; 5: 4; Rm 8: 38), os quais afirmam que os cristãos já derrotaram os demônios. Parece-nos que a questão torna-se mais clara quando analisamos a Primeira Epístola aos Coríntios, na qual o cristão que pratica o pecado é separado da comunhão com a Igreja e cai novamente sob o poder tirânico de Satanás (1 Cr 5: 1-5). Mas o poder de Satanás, na visão neotestamentária, já foi quebrado, pois as portas da verdade e da conversão estão abertas para quem quiser entrar (SKRZYPCZAK, 1957SKRZYPCZAK, Otto. A demonologia no Novo Testamento. In: KOSER, C. O demônio: aspectos teológicos. Colaboração de um grupo de teólogos do Brasil. Petrópolis: Vozes , 1957. p. 33-48., p. 47).

Voltemos um instante à questão da evolução do conceito do Mal desde a Igreja Primitiva à Patrística. Os padres apostólicos, sob o signo da perseguição, caracterizavam o tempo em que viviam, devido a suas vicissitudes, como sob o domínio do Diabo, numa incessante luta dos filhos da luz contra os filhos da escuridão no macrocosmo, enfatizando o martírio como a semente da Igreja e a entrega total do coração, morada do espírito, o qual será o palco da batalha no microcosmo. Esse embate exigiria novas formulações, as quais foram feitas diante da pressão do paganismo e dos desvios teológicos, as heresias.

Diante desse quadro de profundas transformações pelas quais passa o mundo mediterrâneo, a Igreja de Alexandria direcionará o discurso acerca do Diabo para questões referentes ao livre-arbítrio e à luta contra as heresias, explicitando o papel do pecado e da perdição no plano providencial de Deus, afirmando que a natureza deste é totalmente boa, aceitando todos os seres, após o Juízo Final, em sua morada celestial. Da mesma forma, o dualismo, que permeia e se encontra vivo dentro do Cristianismo, uma religião que, como afirmamos anteriormente, é monoteísta, mas de percepção dualista, será combatido pelos padres da Igreja nos séculos III e IV, afirmando que Deus encontra-se atrás dos dois princípios.

O colorido e as representações mais vivas e sensíveis da luta entre as forças do Bem e do Mal, do combate entre as pulsões do corpo e da alma, têm seu lugar nos escritos dos padres do deserto. Aqueles que se entregavam à vida monástica e à solidão do deserto encontravam-se em contato direto com as tentações diabólicas. No século IV, os monges do Egito e da Síria ganharam grande prestígio por renunciar resolutamente ao mundo, de uma maneira visível a todos, e por alcançar a graça divina individualmente, libertos das tensões inerentes à sociedade estabelecida, em contraste direto com a vida mundana e citadina, sendo lenta e penosamente purificados das sugestões sussurradas pelos demônios e das inúmeras armadilhas deixadas pelo Diabo no caminho dos ascetas, cenobitas e anacoretas (BROWN, 1990BROWN, Peter. A Antiguidade Tardia. In: ARIÈS, Philippe; DUBY, Georges. História da vida privada. 1. Do Império Romano ao ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 244- 300., p. 275-277).

Nesse sentido, o que interessa a escritores e hagiógrafos como Atanásio, Sulpício e Jerônimo é mostrar a luta no plano pessoal, físico e mental, de homens que abandonam o mundo em busca da comunhão real com Deus, propondo um modelo de conduta que será aceito e praticado em períodos posteriores como uma forma ideal de purificação. Agostinho, vivendo entre a cidade e o deserto, deu mais que uma contribuição à demonologia, estabelecendo os devidos lugares de Deus e do Diabo, ao tratar do livre-arbítrio e da predestinação, excluindo de Deus a responsabilidade pela criação do Mal, que, do seu ponto de vista, fica relegado ao Diabo.

Para homens cada vez mais preocupados com o problema do Mal, a atitude cristã com o Diabo proporcionava uma resposta orientada a aliviar uma angústia sem nome, concentrava a ansiedade sobre os demônios e ao mesmo tempo oferecia um remédio para ela. Os cristãos estavam convencidos de que entravam em uma batalha que já estava vencida no plano celeste, pois Satanás já havia sido derrotado por Cristo e poderia ser controlado por agentes humanos a serviço do Salvador (BROWN, 2012BROWN, Peter. El mundo de la Antiguedad Tardia. 3 ed. Madrid: Gredos, 2012., p. 62).

Diante de Deus, do Diabo, dos hereges, dos pagãos e do homem santo, aos poucos, essa convergência de pensamentos externados em uma literatura baseada na ascensão de uma nova crença, nascida no Oriente, que saiu de uma posição marginal para o topo de uma hierarquia não somente religiosa, mas viva, exerceu grande influência sobre o pensamento e sobre a literatura ocidental, sobretudo religiosa, na Antiguidade Tardia e ao longo da Idade Média.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2016
  • Aceito
    27 Abr 2016
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