Acessibilidade / Reportar erro

RELAÇÕES DE PODER ENTRE BISPO E IMPERADOR: uma proposta interpretativa acerca da oficialização do cristianismo a partir de Gregório de Nissa e Teodósio I (século IV)

Power relationship between Bishop and the Emperor: an interpretative proposal about official recognition of Christianity by Gregory of Nyssa and Theodosius I (4th century AD)

RESUMO

Este artigo apresenta uma proposta interpretativa alternativa à visão consolidada na historiografia sobre a "oficialização do cristianismo" concedida ao imperador Teodósio I tendo como princípio o favorecimento imperial ao grupo de cristãos nicenos. Durante décadas, a historiografia sobre a Antiguidade Tardia discutiu a relação entre o poder imperial e o cristianismo a partir de interpretações que analisavam os imperadores sob a ótica de uma "cristianização" do Império. Entretanto, desde a primeira década de nosso século, o debate pode ser revisitado a partir de novas problemáticas que consideram diferentes grupos cristãos no século IV, assim como a linha tênue entre os vários cristianismos e suas relações com o poder imperial. A partir da relação de poder entre bispo e imperador, protagonizadas por Gregório de Nissa e Teodósio I, este artigo objetiva analisar um estudo de caso que reflete uma dentre as várias facetas que compunham a proposta de governança político-cultural de Teodósio em relação aos vários cristianismos que compunham o Império Romano daquele espaço e contexto.

Palavras-chave:
Antiguidade Tardia; Relações de Poder; Cristianismos; Gregório de Nissa e Teodósio I

ABSTRACT

This paper presents an alternative interpretation of the well-established historiography concept of "official christianity" granted Theodosius I, which takes as a starting point the imperial benefit to nicene-christians. For decades, Late Antiquity historiography has debated the relationship between the imperial power and christianity based on interpretations who reflect Roman Emperors under the perspective of the christianization of the Empire. Nonetheless, since the 2000s, this debate has been thoroughly revisited through a more complex perspective, which considers the presence of different christian groups during the 4th century AD as well as the tenuous line between the various christianities and their relationship with the imperial power. From the power relationship between Bishop and Emperor, personified by Gregory of Nyssa and Theodosius I, this paper aims to analyze a case study that reflects one of several facets behind the political and cultural governance proposal of Theodosius I to the different christian groups present in the Roman Empire at that time.

Keywords:
Late Antiquity; Power relationship; Christianities; Gregory of Nyssa and Theodosius I

Considerações iniciais

A associação entre o poder imperial e o cristianismo é uma temática recorrente no estudo do período do Império Romano denominado Antiguidade Tardia, cuja datação esta pesquisa adota entre o final do século III e meados do século VII. Este artigo pretende enfatizar a relação entre o poder central e dois grupos específicos de cristãos, dentre a pluralidade de correntes que existiram naquele contexto: os cristãos nicenos e os cristãos arianos. O primeiro grupo obteve seu nome legado do Concílio de Niceia, em 325, do qual a sua interpretação sobre o dogma trinitário saíra vencedora: para os nicenos, a trindade era composta de três pessoas (hypostasis) e uma substância (ousia), divina, indivisível e consubstancial aos três estados. Já para os cristãos arianos, a hierarquia das pessoas deveria ser transpassada à substância que, mesmo divina, deveria obedecer a um estado primeiro ao Pai, menor ao Filho e, consequentemente, ainda menor ao Espírito Santo.

O objetivo deste artigo é problematizar certas práticas do imperador Teodósio I (379-395) favoráveis a um tipo de cristianismo presente no Império Romano no final do século IV: o cristianismo niceno. Ao tentar se afastar da generalização de um suposto favorecimento imperial de Teodósio aos cristãos, a historiografia pouco discutiu e pouco discute sobre o espaço existente na relação entre bispos de várias correntes teológicas e o imperador. Poucos anos antes da oficialização do cristianismo niceno promulgada por Teodósio, ocorrida em 380 segundo a historiografia, os grupos cristãos arianos e nicenos, dentre outros, disputaram o apoio do imperador. Sendo assim, pelo espaço encontrado por parte do grupo ariano e pela necessidade do grupo niceno de se dirigir ao imperador na tentativa de angariar apoio à sua causa, percebemos que a disputa entre os cristianismos esteve presente e influenciou a proposta de governança político-cultural de Teodósio. Por esse viés, pretendemos apresentar uma proposta interpretativa acerca da visão consolidada na historiografia sobre a "oficialização do cristianismo" concedida ao imperador Teodósio I a partir de um favorecimento imperial ao grupo de cristãos nicenos.

O enfrentamento dessa temática requer muita cautela, pois o imperador Teodósio, apesar de ter oficializado um tipo de cristianismo, o niceno, não pode ter sua imagem subordinada aos preceitos dessa doutrina e de seus representantes, os bispos. Desse modo, as práticas político-religiosas desse imperador não devem ser generalizadas: ora o governante apoiava determinados grupos de cristãos, ora favorecia outros. Sendo assim, este estudo propõe como recorte temático a análise da relação bispo-imperador a partir do favorecimento imperial ao cristianismo niceno assim configurado aos olhos dos partidários do bispo niceno Gregório de Nissa (335/340-394 d.C.) por meio da atuação desse eclesiástico junto ao imperador Teodósio na tentativa de se opor ao cristianismo ariano anomoiano de Eunômio de Cízico.

Cristianização: problematização historiográfica de um conceito

O movimento historiográfico que analisou e analisa as relações de poder entre os bispos e imperadores pode ser dividido em três grandes módulos: partiu daquela visão binária que só interpretava a relação entre poder imperial e cristianismo a partir de seu suposto antagonismo, o paganismo; passou por uma corrente historiográfica que assentiu a existência de outros grupos não cristãos no período; enfim, ancorou em uma abordagem da História daquele contexto específico que levava em consideração que as relações entre a religião, ou melhor, as religiões, se estabeleciam de forma plural com o imperador e não atendiam, somente, a fatores religiosos, como se esses pudessem ser deslocados do entendimento de uma dimensão conjunta dos outros fatores que compunham a sociedade de então: políticos, sociais, culturais, administrativos, militares, dentre outros.

Ao revisitar objetos de investigação que tocam a relação entre o poder imperial e o cristianismo no século IV, e a consequente vinculação entre suas personagens, a saber, bispos e imperadores, conjuntamente com sua esfera administrativa, faz-se necessário, ainda, debater certos aspectos que ficaram cristalizados na historiografia e literatura patrística. Dentre esses, destaca-se neste estudo a questão da "cristianização" do Império.

O termo cristianização, quando remeteu etimologicamente a uma faceta quantitativa de conversão de pessoas à nova crença, desconsiderou outros grupos existentes no período. Por outro lado, quando levou em conta esse fator, apoiou-se em aspectos quantitativos das documentações cujos testemunhos devem ser sempre criticados.

Nesse sentido, a interpretação da relação do poder imperial com o cristianismo, condicionada a essa ideia de cristianização, refletiu na historiografia que retratou a imagem dos imperadores, ora cristianizando-os, como algo positivo, ora paganizando-os, como algo negativo. As duas grandes imagens de imperadores cristãos encontradas na historiografia são as de Constantino, responsável pela legalização do cristianismo no início do século IV, e Teodósio I, responsável pela oficialização dessa crença no final do mesmo século.

A título de exemplificação, mencionamos uma historiografia que revisita esse tema: Érica Morais da Silva (2012SILVA, Érica C. Morais da. Conflito político-cultural na Antiguidade Tardia: o 'Levante das Estátuas' em Antioquia de Orontes (387 d.C.). 2012. 274 f. Tese (Doutorado em História) - FHDSS/ UNESP, Campus Franca, 2012.) argumenta que a imagem de Teodósio I foi referenciada pela historiografia como "pró-cristã". Entretanto, ao analisar um autor cristão e outro não cristão da época, Silva conclui que Teodósio angariou discursos positivos de ambas as correntes. Em suas palavras, "Teodósio foi um imperador romano governando sob condições e contexto específicos para manter seu Império. E nisso, parece ter sido laudado tanto por João Crisóstomo como por Libânio, por cristãos e não cristãos" (SILVA, 2012SILVA, Érica C. Morais da. Conflito político-cultural na Antiguidade Tardia: o 'Levante das Estátuas' em Antioquia de Orontes (387 d.C.). 2012. 274 f. Tese (Doutorado em História) - FHDSS/ UNESP, Campus Franca, 2012., p. 153).

Outro aspecto cristalizado na historiografia que adotou a ideia de cristianização é alvo de nossa investigação histórica: uma suposta homogeneização presente no grupo de cristãos que conferiria unidade e propósitos comuns a todos os cristãos do Império.

Na primeira década do século IV, após vários períodos de interdição ao cristianismo no Império Romano, os cristãos, assim como outros grupos, tiveram a sua crença colocada na legalidade sob o ponto de vista da legislação do Império. Todavia, ao invés de um período de "paz na igreja", como proclamou a historiografia durante muito tempo, houve, no século IV, a multiplicação de controvérsias e cismas teológicos, enfim, de vários cristianismos.

Assim, após 313, conforme María Victoria Escribano Paño (2003, p. 178-179), "a interdição de ser cristão deu lugar à redefinição das noções de ortodoxia e a transformação dos métodos de debate entre os cristãos".

Ao adotar ideias ligadas à cristianização ou não levar em consideração os vários cristianismos existentes no século IV, a historiografia contribuiu, em nossa opinião, para que as análises do discurso cristão e do processo de afirmação dos seus dogmas fossem vistas como conteúdos estanques e acabados, ao passo que compreendemos os cristianismos enquanto discursos inseridos em processos históricos e em um Império Romano plural. Ao introduzirmos tais dogmas no processo histórico, compreendemos que o século IV não foi um período de "paz na igreja", uma vez que há uma pluralidade de questionamentos acerca das interpretações das Escrituras e da própria estrutura eclesiástica nesse período.

A religião fez parte da estratégia política do poder imperial em vários momentos no decorrer do Império Romano. De forma mais perceptível, o cristianismo era partícipe das relações de poder entre os imperadores tetrarcas. Enquanto assunto político-religioso, nesse período, o cristianismo lutou por sua preservação e legalidade (BASLEZ, 2007BASLEZ, Marie-Françoise. Les persécutions dans l'Antiquité: victimes, héros, martyrs. Paris: Fayard, 2007., p. 352), sazonando seu discurso e seu papel nesse Império ao ponto de influenciar e ser influenciado pela redefinição que esse novo poder imperial passou a exercer com o sagrado. No Dominato, o culto imperial personificado na pessoa de um monarca passou a ser justificado pela unidade que somente o monoteísmo proporcionaria naquele momento. E por que não pensar essa unidade imperial-monoteísta a partir de uma unidade na substância divina que uniria as três pessoas no dogma trinitário?

Durante o seu processo de afirmação, amadurecimento e hierarquização a partir das estruturas administrativas do Império Romano, o cristianismo esteve envolto de pluralismos. A variedade teológica que vários grupos cristãos defenderam também nos permite compreender esse período a partir de várias correntes cristãs que disputavam o título de ortodoxia, levando-nos a pensar em cristianismos. Em nossa opinião, nessa disputa é que as discussões teológicas podem ser vistas como conflitos político-religiosos. A partir desse ponto, tentamos nos desvencilhar de abordagens históricas homogeneizadoras como aquelas que explicaram a confluência entre gregos e romanos, a partir de termos relacionados à romanização e, nesse período específico, aquelas que tentam explicar o processo de consolidação do cristianismo nos termos de uma cristianização cada vez mais crescente quantitativamente.

O cristianismo como política administrativa do Império Romano

A intersecção entre as esferas administrativa, política, econômica, social, religiosa e militar durante a Antiguidade Tardia proporcionou, cada vez mais, o encontro do religioso com o político. Na ótica da legalidade, o período tornou-se favorável às discussões teológicas e, na tentativa de terem suas interpretações vitoriosas, esses grupos cristãos tentavam se aproximar do poder imperial por meio dos bispos e da esfera administrativa. Assim, o próprio contexto político e econômico, conjuntamente com o poder legal, que também estava se aprimorando nesse período, proporcionaram essa intersecção, conforme nos corrobora Jill Harries (2004HARRIES, Jill D. Law and Empire in Late Antiquity. UK: Cambridge University Press , 2004., p. 38). De acordo com John Curran (2008CURRAN, Jhon. From Jovian to Theodosius. In: CAMERON, A.; GARNSEY, P. (eds). The Cambridge Ancient History. Volume XIII - The Late Empire, A.D. 337-425. UK: Cambridge University Press, 2008. p.78-110., p. 101), após a morte do imperador Valente, em 378, e durante batalhas de contingenciamento do limes, o imperador Graciano convocou o militar Teodósio para ser governante do Império Romano, fato ocorrido em inícios de 379 na cidade de Sírmio. Antes de adentrar a capital do Império pela primeira vez como imperador (o que só ocorreria no final de 380), os imperadores Graciano e Teodósio partiram com suas tropas para a cidade de Tessalônica em uma campanha militar contra os visigodos (WILLIAMS; FRIELL, 1994WILLIAMS, Stephen; FRIELL, Gerard. Theodosius. The Empire at Bay. London: Routledge, 1994., p. 18). Foi dessa cidade que os dois imperadores, Graciano e Teodósio, enviaram um edito para a capital imperial, datado de 380, em nome dos três imperadores: os dois citados e Valentiniano II.

Esse edito está compilado na forma da constitutio 2, do primeiro capítulo do livro 16 do Código Teodosiano (COD. THEOD. XVICODE THEODOSIEN - LIVRE XVI. Les lois religieuses des empereurs romains de Constantin à Théodose II (312-438) - V. I. Texte latin: Theodor Mommsen - Traduction: Jean Rougé - Introduction et notes par Roland Delmaire (Université de Lille 3) avec la collaboration de François Richard (Université de Nancy 2) et d'une équipe du GDR 2135. Introduction, notes e index par Élisabeth Mangnou-Nortier. Paris: Les Éditions du Cerf, 2002. , 1, 2), cujo conteúdo declara o cristianismo niceno como Fide Catolica, como pode ser conferido abaixo:

(28 de fevereiro de 380) Edito dos Imperadores Graciano, Valentiniano [II] e Teodósio [I], Augustos, ao povo da cidade de Constantinopla. Queremos que todos os povos governados pela administração de nossa clemência sejam conduzidos à religião que a tradição proclama ter sido transmitida aos Romanos pelo divino apóstolo Pedro e pregada desde ele até nossos dias. Religião aderida pelo Bispo Damaso e pelo Bispo Pedro de Alexandria, homem de santidade apostólica; ou seja, de acordo com os ensinamentos dos apóstolos e da doutrina evangélica, cremos em uma divindade única do Pai, do Filho e do Espírito em igual majestade e uma santa trindade. Ordenamos que aqueles que seguem essa lei sejam lembrados sob o nome de Cristãos Católicos. Quanto aos outros, insensatos e desviados, julgamos que eles devem suportar a infâmia ligada ao dogma herético. Os seus locais de reunião não poderão receber o nome de igrejas e eles deverão ser punidos, em primeiro lugar, pela vingança divina, seguida por aquela de nossa vontade que nós recebemos da vontade celestial. Dado pelo terceiro dia das kalendas de março, em Tessalônica, no quinto consulado de Graciano e no primeiro de Teodósio, Augustos (COD. THEOD. XVICODE THEODOSIEN - LIVRE XVI. Les lois religieuses des empereurs romains de Constantin à Théodose II (312-438) - V. I. Texte latin: Theodor Mommsen - Traduction: Jean Rougé - Introduction et notes par Roland Delmaire (Université de Lille 3) avec la collaboration de François Richard (Université de Nancy 2) et d'une équipe du GDR 2135. Introduction, notes e index par Élisabeth Mangnou-Nortier. Paris: Les Éditions du Cerf, 2002. , 1, 2).1 1 Todos os excertos documentais apresentados neste artigo são de nossa tradução e os destaques são de nossa autoria.

É notório saber que a promulgação da lei não determinou o fim de outras crenças. Temos consciência de que outros grupos religiosos, cristãos ou não, continuaram a existir após o decreto da constitutio supracitada. Porém, nosso olhar se volta para a significação do acontecimento: a necessidade do poder imperial em declarar uma fé como única e correta, colocando-a no mesmo patamar de outras obrigações e direitos cívicos. Como declarado na lei, os que se desviassem dessa fé deveriam suportar a infamia, impossibilitando, assim, o seu acesso às magistraturas e sendo impedidos de exercer certos direitos enquanto cidadãos romanos (MANGNOU-NORTIER, 2002MANGNOU-NORTIER, Élisabeth. Introdution, notes e index. In: CODE THEODOSIEN - LIVRE XVI... Paris: Les Éditions du Cerf , 2002., p. 96, nota 7).

Ressaltamos, então, que a aplicabilidade dessa lei, assim como tantas outras que compõem a legislação do Império Romano, ocorria de forma fluida. A lei não foi exercida de maneira semelhante em todos os locais do Império e dependia, muitas vezes, do alcance e do interesse do poder imperial, por meio de seus funcionários, em aplicar tal obrigatoriedade nas cidades e províncias, uma vez que podemos detectar a continuidade dessas querelas religiosas após a constitutio.

No decorrer do processo histórico, o conteúdo dessa lei ficou conhecida pela e na historiografia como a oficialização do cristianismo. Compreendendo os eventos que marcaram a nomeação e coroação do imperador Teodósio I, percebe-se que tal edito ocorreu na cidade de Tessalônica, em plena campanha contra os povos visigodos. Sendo assim, observa-se a importância que a promulgação da lei tinha face à governança político-militar daquele contexto.

Nesse sentido, ao falarmos em favorecimento aos cristãos nicenos estamos levando em consideração que tal apoio não estava envolto somente de aspectos religiosos aos olhos do poder central, mas a defesa dessa posição historiográfica não pode deixar de levar em consideração que a lei favoreceu um determinado grupo cujas interpretações teológicas eram defendidas pelos cristãos nicenos. O edito declara que a "divindade única do Pai, do Filho e do Espírito" estava "em igual majestade e uma santa trindade" sendo, em nossa opinião, uma clara tentativa de direcionar essa querela político-religiosa para que se enquadrasse nos propósitos de Império daquele contexto.

Quando deslocamos a interpretação desses eventos daquela ótica generalizadora de que o grupo de cristãos era homogêneo, podemos compreender o espaço que ainda existia para que outros tipos de cristianismos dirigissem os seus discursos na tentativa de convencer o imperador e angariar o patrocínio imperial (RAPP, 2000RAPP, Claudia. The Elite Status of Bishops in Late Antiquity in Ecclesiastical, Spiritual, and Social Contexts. Arethusa, The Johns Hopkins University Press, v. 33, p. 379-399, 2000., p. 379). Nessa perspectiva, os discursos dos bispos deixam de ser disputas que primam unicamente para convencer seus pares e aumentar a comunidade de fiéis, coadunando a intenção de ser ouvido e/ou lido pela corte imperial.

Os discursos cristãos acoplaram à retórica clássica estratégias múltiplas (CAMERON, 1994CAMERON, Averil. Christianity and the Rhetoric of Empire. The development of Christian Discourse. Berkeley: Los Angeles; London: University of California Press, 1994., p. 169-170, 226) que respondiam ao contexto em que estavam inseridos. Somente levando em consideração essas estratégias é que os discursos podem ser analisados além de seus aspectos puramente religiosos. É importante deixar claro que não estamos isentando esses discursos de seu sentido teológico, entretanto, no momento historiográfico atual, estamos respondendo às cristalizações da historiografia que hoje nos incomodam, ou seja, aquelas interpretações que elencaram o fator religioso como explicação primeira para esses conflitos.

Esse movimento historiográfico de tentativa de respostas a problemáticas pensadas a partir do momento presente do historiador é o que Keith Jenkins (2014JENKINS, Keith. A história refigurada. São Paulo: Contexto, 2014., p. 12) definiu como "fechamento e abertura de interpretações históricas". Jenkins propõe uma oposição implacável a cada tipo de fechamento interpretativo, pois em sua opinião, com a qual concordamos, não é possível que um texto histórico traga um fechamento histórico. Dessa forma, o autor advoga em prol de uma refiguração histórica ad infinitum pelo fato de os indivíduos históricos, quando inseridos em uma formação social e cultural, não se socializarem plenamente,

[...] de modo que a identidade ocasional que os indivíduos habitam é sempre temporária e, portanto, está sempre tornando outra, além da que é. O que constituiu o sujeito humano em qualquer momento no espaço e no tempo não é, portanto, a expressão de algum núcleo interior ou "essência" humana e, sim o resultado desse processo dinâmico de repetição nunca exatamente igual, que garante que ninguém jamais esteja estável ou fixo (JENKINS, 2014JENKINS, Keith. A história refigurada. São Paulo: Contexto, 2014., p. 12-13).

As estratégias dos discursos cristãos que envolveram a discussão a respeito do dogma trinitário, mais especificamente dos cristãos nicenos e dos cristãos arianos, durante a segunda metade do século IV, convertiam para a tentativa de patrocínio imperial com o objetivo de alcançarem a legitimidade de seu grupo junto ao poder central. O patrocínio imperial, em oposição a uma ideia de intervenção, foi reclamado pelos próprios bispos, uma vez que não existia, antes do Concílio de Constantinopla de 381, a supremacia de bispados e/ou sedes episcopais, nem mesmo daqueles localizados na velha ou na nova capital do Império. Os bispos procuravam na esfera imperial a legitimidade não outorgada pela vacância em uma autoridade eclesiástica desconhecida, que só se faria presente após 381 e a longo prazo, autoridade cedida ao bispo de Roma. Assim sendo, não havia nesse período uma hierarquia legítima de determinados bispos, muito menos uma autoridade eclesiástica capaz de corroborar as decisões de determinado bispado em nome de sua cidade.

Partindo desse raciocínio, esses bispos escritores estavam preocupados com o alcance de seus discursos e, nesse momento de embate discursivo, esperavam que a consolidação de sua ambitio perante sua comunidade local lhes proporcionasse projeção junto à corte imperial (CHADWICK, 1980CHADWICK, Henry. The Role of the Christian Bishop in Ancient Society . Protocol of the 35th Colloquy, The Center of Hermeneutical Studies in Hellenistic and Modern Culture. Ed. by E. C. Hobbs and W. Wuellner. Berkeley/CA: Center for Hermeneutical Studies , 1980., p. 10). Essa busca de prestígio e poder, interferindo e agindo diretamente nos assuntos administrativos e na estrutura hierárquica entre os próprios religiosos, ambitio, somou-se às novas relações de poder que envolveram os relacionamentos de solidariedade a partir da rede de sociabilidade entre o bispos e a sua comunidade na busca de inserção na corte imperial (BROWN, 1980BROWN, Peter. Response to Henry Chadwick. In: The Role of the Christian Bishop in Ancient Society Protocol of the 35th Colloquy, The Center of Hermeneutical Studies in Hellenistic and Modern Culture. Ed. by E. C. Hobbs and W. Wuellner. Berkeley/CA: Center for Hermeneutical Studies, 1980. p.15-22., p. 19). Entendemos por rede de sociabilidade o alcance que determinada personagem obteve a partir de suas relações sociais, nas quais, para nós, estão inseridas as possíveis relações existentes no período (religiosa, política, militar, econômica, administrativa, dentre outras). No interior dessas relações podemos observar a disputa pelo poder. Sendo assim, utilizamos a expressão relações de poder.

Relação bispo-imperador: a busca de Gregório de Nissa pelo apoio do imperador Teodósio I

O estudo de caso que elenca o bispo niceno Gregório de Nissa e sua tentativa de projeção e busca do apoio de Teodósio I revela a estratégia de discurso desses bispos escritores de se autoprojetarem a fim de promoverem o seu cristianismo. Tal estratégia pode ser conferida por meio da circulação dos livros 1 a 3 do discurso Contra Eunômio, de Gregório de Nissa, datado de 380. Essa circulação pode ser detectada por intermédio de testemunhos contidos em suas cartas 15, 26 e 27: "Eu vos envio a minuciosa obra [...] e que ela seja para vós, que estais no vigor da juventude, um encorajamento para engajá-los na luta contra os adversários" (GREGÓRIO DE NISSA, Carta 15, 3 datada entre 382-383 d.C.).

Ao escrever o discurso Contra Eunômio, Gregório se posicionou teologicamente e esbarrou na esfera política ao disputar espaços de atuação de poder nessa esfera ao ponto de ter sido exilado. Mesmo quando foi preso por seus pares, a presença de um funcionário imperial (comes rei militaris) foi requerida (GREGÓRIO DE NISSA, Carta 19,15-16 datada no início de 380). O conteúdo desse discurso estava inserido em uma sequência discursiva que obedeceu a uma circulação própria que envolveu outros discursos de Eunômio de Cízico e de Basílio de Cesareia, que temos analisado em nossas pesquisas.

Dentre os propósitos de Gregório de Nissa com a produção e circulação do Contra Eunômio, observa-se um ataque à figura de Eunômio coadunando a imagem deste com um prospecto negativo do governo do imperador Valente, por quem foi exilado.

Entretanto, seu escrito é produzido sob o governo de Teodósio, imbuído de características de seu contexto específico. Sendo assim, Gregório unifica as imagens que produziu a respeito de Eunômio e Valente durante todo o discurso para findar em uma representação depreciativa de um representante do arianismo e de um mau governante para, enfim, contrastar com uma imagem laudatória que Teodósio deveria angariar ao se associar e apoiar sua causa.

Ao realizar tal empreendimento retórico, Gregório busca a empatia do imperador concomitante a uma tentativa de autoafirmação quando aproxima a própria imagem àquela adquirida e reconhecida, tanto no Oriente quanto no Ocidente, pelo seu irmão Basílio de Cesareia, almejando a projeção de seu discurso em um momento anterior à promulgação da De Fide Catolica.

No trecho abaixo podemos perceber a busca de autoafirmação, necessária em um período posterior ao exílio, por parte de Gregório, a partir da equiparação com a figura adquirida pelo irmão Basílio de Cesareia, então morto, em 378, cuja imagem e tradição eram indiscutíveis nos discursos da época:

Como poderia um homem ser nomeado de grande Basílio se fosse "perverso, homem de mau caráter, mentiroso" e, ainda mais, "arrogante, inculto, padre intruso, ignorante das coisas divinas". Ele ainda adiciona a essa lista de injúrias "demente, louco" e mil outras coisas que inclui em seu escrito. Como ele poderia pensar que seu azedume seria suficiente para contrabalancear o testemunho de todos os homens que veneram o nome do "grande" como os antigos santos? (GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunômio I, 74).

Na consonância com os recursos retóricos, o uso de máximas, como mostra o excerto acima, e de mínimas, passagem abaixo, se faz presente. Em quantidade considerável, é perceptível a tentativa de produzir uma imagem negativa sobre Eunômio de Cízico denegrindo seu conhecimento retórico e sua crença.

[...] o que se percebe no tratado de Eunômio é a perda de seu longo tempo ao redigir seu escrito, pois falta-lhe bom gosto no que se refere às figuras retóricas e na disposição das palavras, ainda que tente mostrar o caráter excessivo e vão de um zelo arrogante implantado para realizar tal empreendimento. Enfim, após ter coletado um conjunto confuso de expressões retiradas de certos livros, e, em seguida, apresentado dados improvisados e amontoados de forma dolorosa em uma quantidade imensa de palavras em torno de ideias incomuns, ele realizou uma obra, "fruto de um longo trabalho", que, talvez, seus discípulos cometam o erro de admirar, já que são privados da capacidade de discernir o que é bom, do que não é (GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunômio I, 13-14).

De tudo em que ele [Eunômio] se empenhou, o ponto principal do livro [...] a que eu estou me submetendo para fazer um exame crítico é a blasfêmia contra a doutrina de nossa devoção destinada a perverter as concepções de um Deus monogênio (GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunômio I, 149).

Na passagem abaixo, ao depreciar o imperador Valente, seu governo e sua aliança com a crença de Eunômio - o cristianismo ariano -, Gregório espera produzir uma imagem negativa de ambos a partir da unificação de suas memórias. As reticências finais são do próprio autor e representam, de acordo com Raymond Winling (2008WINLING, Raymond. Introduction , traduction et notes. In: GRÉGOIRE DE NYSSE . Contre Eunome I. 1-146 Paris: Les Éditions du Cerf , 2008., p. 204, nota 2), uma ruptura de construção: Gregório se utiliza de um efeito em que cria uma tensão ao descrever a multiplicidade de perigos (ameaças, penas, punições) para, ao final, fazer uma comparação metafórica com a morte, ao lado de Deus, em sua casa.

De fato, Valente não estava dentre os melhores e não tinha adquirido forças para superar as falácias enganadoras [...], ele alimentou os prejulgamentos contra nossa doutrina, caluniando-a. Para os ataques, ele obteve como aliados os personagens de altos postos que estavam a seu serviço [...], eles fizeram a vontade do imperador, mostrando seus zelos através da dureza praticada àqueles que restaram fiéis à nossa fé. Quando os banimentos, os confiscos de bens, o exílio, as ameaças, as penas arbitrárias, os perigos de prisão, as punições corporais e todas as súplicas, as mais cruéis infringidas àqueles que não se reuniram aos desejos do imperador; quando era mais perigoso para aqueles que se mantinham fiéis à verdadeira religião do que estar na casa de Deus... (GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunômio I, 122-123).

Enfim, por meio do exemplo do que considera um mau governo e mau governante, em tom de ameaça, Gregório manda sua mensagem ao imperador Teodósio, caso ele não venha a apoiar a sua causa:

Nosso mestre [Basílio de Cesareia] declarou que a adesão do imperador vigente à nossa igreja estaria entre as coisas mais importantes para nós e para ele. Salvar a sua alma seria uma grande coisa, não porque ela pertence a um imperador, mas por pertencer a um homem que pode evitar que o império seja como uma torrente, distanciando a si mesmo e o seu império do mal e das poderosas e abundantes ondas de calamidades que podem se impor [...] (GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunômio I, 137-138).

Pela interpretação apresentada sobre esse discurso, aqui exemplificada pelos excertos e pela sequência cronológica de alguns eventos por nós selecionados, foi-nos possível relacionar este estudo de caso envolvendo Gregório de Nissa ao favorecimento de um tipo de cristianismo cujo sucesso de autopromoção de si e de seu discurso coadunou com as práticas político-culturais do imperador Teodósio.

Como já mencionado, a constitutio De Fide Catolica foi enviada à capital do Império no início de 380 por Teodósio e Graciano em meio à campanha militar. O imperador Teodósio estava coroado desde o início de 379 e não temos notícias de que ele estivera em Constantinopla, capital do Império, desde então.

Pela produção e circulação dos discursos cristãos, observa-se que a efervescência político-religiosa era muito grande em todo o Império. Sínodos e concílios empossavam e destituíam bispos arianos e nicenos de bispados e sedes episcopais: em 375, Gregório foi deposto e exilado de seu bispado da cidade de Nissa até 378 (GREGÓRIO DE NISSA, Contra Eunômio I, 125; Vida de Santa Macrina, 15, 21; Cartas 5, 6, 18, 19, 22; Cartas 225, 231, 232, 239 de Basílio de Cesareia e Cartas 72, 73, 74, 76 de Gregório de Nazianzo). O próprio ariano Eunômio foi empossado no bispado de Cízico em um concílio, o de Constantinopla, em 360.

A esse cenário conflituoso adicionam-se as denúncias e os julgamentos devido a eleições episcopais fraudulentas: em 380, Gregório de Nissa foi preso por escolta militar na cidade de Sebástia acusado de fraudar eleições episcopais (GREGÓRIO DE NISSA, Vida de Santa Macrina, 15; Cartas de Gregório de Nissa, 5, 19, 22 e 28).

Discursos cristãos que professavam cristianismos diferentes circulavam na capital do Império. Como exemplos, podemos citar os discursos de Eunômio de Cízico - Apologia, de conteúdo ariano, datado de 360, e Apologia da Apologia, datado de 378-379, cujo conteúdo só foi legado de forma fragmentária. Há também Contra Eunômio, de Basílio de Cesareia, datado de 363-365, e o discurso homônimo Contra Eunômio, de Gregório de Nissa, de 380-383, ambos com conteúdo teológico niceno.

De acordo com a interpretação de Curran (2008CURRAN, Jhon. From Jovian to Theodosius. In: CAMERON, A.; GARNSEY, P. (eds). The Cambridge Ancient History. Volume XIII - The Late Empire, A.D. 337-425. UK: Cambridge University Press, 2008. p.78-110., p. 78), Teodósio I, enquanto imperador, adentrou a capital pela primeira vez no final de 380, após uma vitoriosa campanha militar contra os godos. No mesmo ano, o imperador Graciano teria se dirigido ao norte da Península Itálica, em Milão, residência imperial onde normalmente permanecia. Nesse momento, os bispos nicenos Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo já se encontravam na capital para os preparativos do Concílio de Constantinopla, que ocorreria no início do ano seguinte, 381.

Após a chegada de Teodósio I à capital, mesmo após a promulgação da De Fide Catolica, o bispo ariano eunomiano Demófilo estava à frente da sede episcopal da capital, ao que parece, com apoio de parte da população e do clero da cidade. Por meio de uma intervenção do imperador, uma escolta armada retirou o ariano anomoiano Demófilo de sua posição e confirmou o novo bispo da Sede Episcopal de Constantinopla: Gregório de Nazianzo, que estava na capital desde 379 após o Sínodo de Antioquia daquele ano. Durante o Concílio de Constantinopla, convocado pelo imperador Teodósio, Gregório de Nazianzo foi declarado bispo da Sede Episcopal de Constantinopla. Entretanto, por motivos que ainda requerem a nossa investigação, ele não angariou suporte político-religioso para permanecer em tal cargo e renunciou ainda em 381.

Os testemunhos dos padres capadócios então vivos, Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo, nos legaram informações do cenário conflitante vivenciado por eles naquela cidade. Ambos os testemunhos demonstram preocupações e receios com o avanço crescente do prestígio dos arianos (GREGÓRIO DE NISSA, Cartas, Vida de Santa Macrina e Contra Eunômio 1; GREGÓRIO DE NAZIANZO, Poemas pessoais, Autobiografia, Carta 81).

Após essas práticas de Teodósio I - desde o envio do edito de Tessalônica, como também ficou conhecido, passando pelo favorecimento ao niceno Gregório de Nazianzo em detrimento do bispo eleito, o ariano Demófilo, e a convocação do Concílio de Constantinopla de 381, que reafirmou o acordado no Concílio de Niceia de 325 -, Teodósio, em nossa opinião, exerce outra importante ação para tentar minimizar essas querelas que adquiriam contornos e projeções em toda a porção oriental do Império. A tentativa do concílio de 381 de fixar supremacias e hierarquizar as sedes episcopais não contentou a todos, e as contendas ganhavam proporções cada vez maiores.

Em nossa proposta de interpretação desses acontecimentos, a fixação pelo poder imperial da constitutio XVI, 1, 3, em meados de 381, nos auxilia a compreender, além daquelas explicações religiosas, o favorecimento imperial ao grupo de cristãos nicenos, ao invés de negá-lo. Defendemos esse favorecimento enquanto uma consequência do projeto de Império daquele governante e não como, necessariamente, um apoio de uma personagem que se converteu ao cristianismo niceno, ou seja, uma explicação que segue o viés religioso.

Em meados de 381 é promulgada a constitutio 3, do primeiro capítulo do livro 16 do Código Teodosiano (COD. THEOD. XVI, 1, 3), datada em 30 de julho de 381, na qual podemos conferir nomes de bispos nicenos como referencial daquilo considerado como ortodoxia e dever cívico pelo poder central. Ressalta-se que o bispo Gregório de Nissa, dentre outros, é citado nominalmente como referencial da ortodoxia, como pode ser observado pelo excerto abaixo:

Dos Imperadores Graciano, Valentiniano [II] e Teodósio [I], Augustos, a Auxônio, procônsul da Ásia.

Ordenamos transmitir para todas as igrejas que os bispos confessem que o Pai, o Filho e o Santo Espírito são somente uma majestade, uma única energia, uma glória. Que eles não estabeleçam nenhuma diferença por uma distinção ímpia, mas que reconheçam o decreto da Trindade pela existência das pessoas e pela unidade da divindade. Que esses bispos manifestem sua comunhão com Nectário, Bispo da igreja de Constantinopla [que assumiu após renúncia de Gregório de Nazianzo], assim como com aqueles que, no Egito, estão associados a Timóteo, bispo da cidade de Alexandria; àqueles bispos que [...] estão em comunhão com Pelágio, bispo de Laodiceia, Diodoro, bispo de Tarso; na Ásia Proconsular e na Diocese da Ásia, com Anfilóquio, bispo de Icônio, Ótimo, bispo de Ancira; na diocese do Ponto, com o bispo Heládio de Cesareia, Otreio de Melitene, Gregório de Nissa, Terênio, bispo de Sítia, Mármário, bispo de Marcianópolis. Eles devem obter o encargo das igrejas católicas, já que estão em comunhão e associação com esses bispos de vida recomendável. Todos aqueles que estão em desacordo com a comunhão de fé dos bispos citados serão expulsos das igrejas como heréticos notórios. Doravante, esses heréticos não poderão mais exercer a autoridade e obter os recursos das igrejas. Que os santos ministros mantenham a verdade na lei de Niceia e que depois desse mandamento ninguém faça, nem receba, uma manobra fraudulenta (COD. THEOD. XVICODE THEODOSIEN - LIVRE XVI. Les lois religieuses des empereurs romains de Constantin à Théodose II (312-438) - V. I. Texte latin: Theodor Mommsen - Traduction: Jean Rougé - Introduction et notes par Roland Delmaire (Université de Lille 3) avec la collaboration de François Richard (Université de Nancy 2) et d'une équipe du GDR 2135. Introduction, notes e index par Élisabeth Mangnou-Nortier. Paris: Les Éditions du Cerf, 2002. , 1, 3).

Os nomes dessas personagens não foram citados ao acaso. Esses bispos foram escolhidos para integrar o conteúdo dessa lei por terem desempenhado um papel que lhes proporcionasse tal patamar. Logo, não foram escolhas aleatórias e sim calculadas para que suas imagens atingissem o público-alvo naquele momento e naquele espaço de circulação: a porção oriental do Império Romano.

O interlocutor, fosse ele leitor ou ouvinte, deveria sentir um reconhecimento com os nomes citados para que a mensagem fizesse sentido e o problema, na visão imperial, fosse extirpado, tal qual um inimigo do Império.

A partir desse raciocínio, a questão que se impõe é: se o poder imperial pretendia que essa lei fosse seguida por todo o Império Romano, como supõe a historiografia, independente de seus acordos com os outros grupos religiosos, por que os imperadores só citariam nomes referenciais de bispos orientais? Se a estratégia fosse atingir também o ocidente, no sentido de obrigar todo o território sob a sua subjugação a professar e oficializar o cristianismo niceno, ficariam faltando alguns nomes, cujas imagens eram extremamente significativas naquele local, como o bispo Ambrósio de Milão.

Essas práticas legislativas, somadas a práticas de patrocínio a determinadas posições, demarcam um favorecimento imperial, em nossa opinião, que vislumbrava o apaziguamento de uma situação considerada problemática na ótica do centro administrativo de poder. Sendo assim, essa constitutio só transmitiria a mensagem para o interlocutor que encontrasse sentido nela: os bispos do Oriente, pois o arianismo, nesse momento, nesse contexto, era uma "problemática que assolava o oriente" (MORESCHINI; NORELLI, 2000MORESCHINI, Cláudio; NORELLI, Enrico (Orgs.). História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. São Paulo: Loyola, 2000., p. 51).

Nossa proposta interpretativa é amenizar o peso dado pela historiografia à oficialização do cristianismo proporcionada pelo imperador Teodósio I, pois essas ações que influem diretamente no religioso, ligadas ao imperador Teodósio, a cargo do Oriente, devem ser entendidas enquanto práticas político-culturais que faziam parte da proposta de governança desse imperador e que poderiam representar algum tipo de desvio na capital do Império (BASLEZ, 2007BASLEZ, Marie-Françoise. Les persécutions dans l'Antiquité: victimes, héros, martyrs. Paris: Fayard, 2007.).

Em nome desse favorecimento é que os bispos nicenos utilizavam a chancela do próprio imperador em suas disputas religiosas. Para além de uma retórica vista como um mero recurso estilístico e estrategista, enquanto algo pejorativo e manipulador, Teodósio não só determinou o que era correto, como também citou nomes de bispos que podiam falar em seu nome.

Dentre esses religiosos, o bispo Gregório de Nissa, juntamente com outros quatro bispos, tornaram-se responsáveis pela Diocese do Ponto (onde está localizada a Província da Capadócia e a cidade de Nissa) para regular os assuntos da fé nicena. A serviço desse cargo, Gregório viajou por várias cidades do Império Romano com o intuito de conter disputas teológicas entre nicenos e arianos, principalmente contra Eunômio e seus discípulos. Nas cartas 1 e 2 Gregório utiliza o cargo recebido pelo Imperador como legitimidade para suas viagens e ações que envolviam uma missão na Arábia, como citamos:

Então, como o tão devoto Imperador [Teodósio] nos possibilitou as facilidades para o trajeto graças ao transporte público [δƞμοσίοѵὀxήματος], sofremos somente o necessário comparado a outras formas de fazer o mesmo trajeto, pois o transporte foi para nós como uma igreja e um mosteiro, nos quais, durante todo o percurso oramos e jejuamos pelo Senhor (GREGÓRIO DE NISSA, Carta 2,13 datada após 381).

Eu recebi esse cargo durante o santo concílio [de Constantinopla, em 381], das mãos do devoto Imperador, para ir a essas regiões, a fim de restabelecer a ordem na igreja da Arábia. Como a Arábia faz fronteira com a região de Jerusalém, prometi aos chefes das santas igrejas de Jerusalém fazer uma correção da conturbada situação em que eles se encontravam, já que eles necessitavam de um mediador (GREGÓRIO DE NISSA, Carta 2,12 datada após 381).

Tais práticas imperiais levaram ao posterior favorecimento em prol de um grupo e forneceram a chancela imperial para que determinados indivíduos falassem em nome do imperador, reunindo cada vez mais legitimidade a sua ambitio e ao seu grupo.

Considerações finais

Compreendemos que a historiografia influenciada pela literatura patrística conferiu a supracitada constitutio XVI, 1, 2 do Código Teodosiano, à memória do discurso vencedor: a compreensão do dogma trinitário amplamente aceita pelo Ocidente católico foi aquela defendida e "oficializada pelo imperador cristão Teodósio I". Nesse sentido, este artigo propõe uma nova interpretação que se afasta de uma visão que ratifica o discurso vencedor. Assim, vinculamos a constitutio a um artifício político-administrativo de apaziguamento de tensões e conflitos político-religiosos que ocorriam naquele momento, no caso o arianismo, no oriente do Império Romano. Essa leitura se baseia na intertextualidade documental realizada por meio de outra constitutio do Código Teodosiano, também supracitada, a XVI, 1, 3, na qual apresenta a grande parte dos nomes citados provenientes de bispados do Oriente.

A mensagem incutida na lei do Código Teodosiano XVI, 1, 3 foi direcionada a um local específico: o Oriente, haja vista ser esta a parte do Império cujos bispos citados eram conhecidos e tinham as suas imagens reconhecidas perante seus pares e comunidades.

Ao percorrer essas questões talvez possamos englobar as ações de Teodósio em uma perspectiva de conduta de governabilidade imperial. Então, poderemos aceitar que houve um favorecimento imperial aos nicenos, mas que esse patrocínio tentava manter a dinâmica e o funcionamento do império, ao invés de estar apenas preocupado em fixar leis e determinar a crença para todo o território do Império Romano.

Referências

  • BASILE DE CESARÉE. Contre Eunome Introduction, traduction et notes de Bernard Sesboüé. Tome I, n. 299; Tome II, n. 305. Paris: Cerf, 1982-1983.
  • BASILE DE CESARÉE. Lettres Texte établi et traduit par Yves Courtonne. Paris: Les Belles Lettres, 1957-1966. 3v.
  • BASLEZ, Marie-Françoise. Les persécutions dans l'Antiquité: victimes, héros, martyrs. Paris: Fayard, 2007.
  • BROWN, Peter. Response to Henry Chadwick. In: The Role of the Christian Bishop in Ancient Society Protocol of the 35th Colloquy, The Center of Hermeneutical Studies in Hellenistic and Modern Culture. Ed. by E. C. Hobbs and W. Wuellner. Berkeley/CA: Center for Hermeneutical Studies, 1980. p.15-22.
  • CAMERON, Averil. Christianity and the Rhetoric of Empire The development of Christian Discourse. Berkeley: Los Angeles; London: University of California Press, 1994.
  • CHADWICK, Henry. The Role of the Christian Bishop in Ancient Society . Protocol of the 35th Colloquy, The Center of Hermeneutical Studies in Hellenistic and Modern Culture. Ed. by E. C. Hobbs and W. Wuellner. Berkeley/CA: Center for Hermeneutical Studies , 1980.
  • CODE THEODOSIEN - LIVRE XVI. Les lois religieuses des empereurs romains de Constantin à Théodose II (312-438) - V. I. Texte latin: Theodor Mommsen - Traduction: Jean Rougé - Introduction et notes par Roland Delmaire (Université de Lille 3) avec la collaboration de François Richard (Université de Nancy 2) et d'une équipe du GDR 2135. Introduction, notes e index par Élisabeth Mangnou-Nortier. Paris: Les Éditions du Cerf, 2002.
  • CURRAN, Jhon. From Jovian to Theodosius. In: CAMERON, A.; GARNSEY, P. (eds). The Cambridge Ancient History. Volume XIII - The Late Empire, A.D. 337-425. UK: Cambridge University Press, 2008. p.78-110.
  • ESCRIBANO PAÑO, María Victoria. Intolerancia Religiosa y Marginación Geográfica en el S. IV d.c.: Los Exílios de Eunomio de Cízico. Stud, hist, Hg antig, Salamanca, n. 21, p. 177-207, 2003.
  • EUNOME DE CYZIQUE. Apologie. Introduction, traduction et notes de Bernard Sesboüé. Tome II, n. 305. Paris: Cerf , 1983.
  • GRÉGOIRE DE NYSSE. Contre Eunome I. 1-146. Texte grec de W. Jaeger (GNO I, 1) - Introduction, traduction et notes par Raymond Winling. Paris: Les Éditions du Cerf , 2008.
  • GRÉGOIRE DE NYSSE. Contre Eunome I. 147-691. Texte grec de W. Jaeger (GNO I,1) -Introduction , traduction et notes par Raymond Winling. Paris: Les Éditions du Cerf , 2010.
  • GRÉGOIRE DE NYSSE. Lettres Introduction , texte critique, traduction, notes et index par Pierre Maraval. Paris: Les Éditions du Cerf , 1990.
  • GRÉGOIRE DE NYSSE . Vie de sainte Macrine Introduction , texte critique, traduction, notes et index par Pierre Maraval. Paris: Les Éditions du Cerf , 1971.
  • GREGORII NYSENII OPERA. Epistulas Continens. Voluminis VIII. Fasciculus II. Ed. Georgius Pasquali. Florença: Berolini, 1925.
  • GREGORY OF NYSSA. The Letters. Introduction , Translation and Commentary by Anna M. Silvas. Leiden, Boston: Brill, 2007.
  • HARRIES, Jill D. Law and Empire in Late Antiquity. UK: Cambridge University Press , 2004.
  • JENKINS, Keith. A história refigurada. São Paulo: Contexto, 2014.
  • MANGNOU-NORTIER, Élisabeth. Introdution, notes e index. In: CODE THEODOSIEN - LIVRE XVI.. Paris: Les Éditions du Cerf , 2002.
  • MORESCHINI, Cláudio; NORELLI, Enrico (Orgs.). História da Literatura Cristã Antiga Grega e Latina. São Paulo: Loyola, 2000.
  • RAPP, Claudia. The Elite Status of Bishops in Late Antiquity in Ecclesiastical, Spiritual, and Social Contexts. Arethusa, The Johns Hopkins University Press, v. 33, p. 379-399, 2000.
  • SILVA, Érica C. Morais da. Conflito político-cultural na Antiguidade Tardia: o 'Levante das Estátuas' em Antioquia de Orontes (387 d.C.). 2012. 274 f. Tese (Doutorado em História) - FHDSS/ UNESP, Campus Franca, 2012.
  • WILLIAMS, Stephen; FRIELL, Gerard. Theodosius The Empire at Bay. London: Routledge, 1994.
  • WINLING, Raymond. Introduction , traduction et notes. In: GRÉGOIRE DE NYSSE . Contre Eunome I. 1-146 Paris: Les Éditions du Cerf , 2008.
  • 1
    Todos os excertos documentais apresentados neste artigo são de nossa tradução e os destaques são de nossa autoria.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2016
  • Aceito
    05 Maio 2016
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br