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CRISTIANISMO, PODER E ESPAÇO NA ANTIGUIDADE TARDIA: o episkopeion como expressão do poder do bispo

Christianity, power and space in Late Antiquity: the episkopeion as an expression of the episcopal power

RESUMO

Na historiografia tradicional, a elite eclesiástica tardo-antiga exercia ampla autoridade e gozava de prestígio sendo capaz de influenciar imperadores em determinados acontecimentos. Um dos exemplos mais evocados, que evidenciaria o poder dos bispos, é o narrado por João Crisóstomo sobre a influência do bispo Flaviano junto Teodósio no conflito do Levante das Estátuas (387 d.C.). No presente artigo, argumentamos que os bispos ainda não exerciam tal influência no contexto do século IV. Para tanto, recorremos ao debate sobre o episkopeion a partir das evidências arqueológicas.No século IV, não há indícios da existência de residências episcopais definidas, separadas do espaço da Igreja - estas somente se desenvolveram entre os séculos V e VI. Isso significaria pensar que aquele desenvolvimento estivesse relacionado à ampliação gradual do prestígio e da atuação sociopolítica do bispo (CEYLAN, 2005, p. 170; MARANO, 2005, p. 97). Logo, refletiremos sobre o caso do bispo Flaviano e sua interferência no Levante das Estátuas de modo a definir os parâmetros do poder episcopal antioqueno no século IV.

Palavras-chave:
Antiguidade Tardia; Antioquia de Orontes; Residência episcopal

ABSTRACT

A traditional historiography suggests that an ecclesiastical elite had an authority and prestige that were able to influence emperors in certain events. One of the most mentioned examples, which would demonstrate the power of the bishops, is narrated by John Chrysostom. According with Chrysostom Flavian, Bishop of Antioch, was able to influence Theodosius in the affair of The Riot of Statues (387 A.D). In this paper, we argue that bishops have not exercised such influence in Fourth Century AD. For that, we benefit from the debate on episkopeion that was emerged from archaeological data. In the fourth century, there is no evidence of the existence of well-defined Bishop's residence separated from the space of the Church - these only have developed between the fifth and sixth centuries - therefore we are able to link this development to the expansion of prestige and social and political power of the bishop (CEYLAN, 2005, p 170; MARANO, 2005, p. 97). Thus, our aim is to understand the interference of bishop Flavian in The Riot of the Statues in order to define the parameters of power and prestige of the late roman antiochian bishop.

Keywords:
Late Antiquity; Antioch-on-he-Orontes; Bishop's palace

Introdução

Na última década, os historiadores que se dedicam ao estudo das sociedades antigas têm produzido uma ampliação da ideia de "mundo antigo". Essa ampliação não significa apenas a inclusão de sociedades antes pouco consideradas sob o âmbito dos estudos de História Antiga, mas também a adoção de novas perspectivas e abordagens e, para além disso, uma diversificação de objetos de pesquisa. Assim, se, por um lado, o repertório de sociedades antigas a ser estudado sob nossa concepção contemporânea da área de conhecimento de História Antiga aumentou, por outro, a reaproximação entre a História Antiga e a Arqueologia com seus métodos também contribuiu muito, sobretudo, para o alargamento dos tipos de fontes documentais. Não obstante, os estudos sobre as sociedades gregas e romanas, em suas histórias clássicas e tardo-antigas, não ficariam à margem desses avanços da pesquisa acadêmica.

A historiografia recente sobre a cidade antiga apresenta tendências interessantes de pesquisa que têm produzido muitos resultados profícuos para nossa compreensão acerca das sociedades grega e romana, bem como ainda destacam lacunas que precisam ser exploradas. A topografia urbana constitui uma importante abordagem para a compreensão da cidade antiga. Como nós a compreendemos, a abordagem da topografia urbana deixa de ser apenas o estudo do "mapeamento topográfico, arquitetural e síntese de sítios" para se configurar em um estudo da "descrição e localização dos vestígios físicos mediante a reflexão da espacialidade humana" (LAVAN, 2003LAVAN, L. Late Antique Urban Topography: from architecture to human space. In: LAVAN, L.; BOWDEN, W. Theory and Practice in Late Antique Archaeology. Leiden: Brill , 2003. p. 171-191., p. 171). Nas palavras de Luke Lavan (LAVAN, 2003LAVAN, L. Late Antique Urban Topography: from architecture to human space. In: LAVAN, L.; BOWDEN, W. Theory and Practice in Late Antique Archaeology. Leiden: Brill , 2003. p. 171-191., p. 171): "Uma abordagem topográfica alternativa fundamentada no estudo de 'espaços de atividades' (atividades humanas consideradas conjuntamente com o seu ambiente material total)". A cidade antiga deixa, portanto, de ser considerada separadamente um sítio urbano com sua forma arquitetônica e espacial, por um lado, e por seu conjunto de habitantes, por outro, para ser concebida em sua totalidade, na unidade do ambiente material com as atividades humanas que lhe integram. E o estudo do espaço tem muito a nos oferecer.

O Levante das Estátuas é um exemplo de que podemos inferir a unidade desse conjunto, associando a interferência de Flaviano, bispo de Antioquia à época da sedição, conforme descrita por João Crisóstomo, e os debates acerca do desenvolvimento do espaço residencial do bispo como indício da ampliação do poder e prestígio episcopal. Inicialmente, discorreremos sobre o poder dos bispos no contexto tardoantigo, conforme a historiografia, para, em seguida, apresentarmos a descrição de João Crisóstomo sobre a interferência de Flaviano no levante. Depois, buscaremos compreender a residência episcopal como expressão do poder do bispo a fim de que possamos refletir sobre os parâmetros da posição política do bispo antioqueno a partir do exemplo de Flaviano.

O poder do bispo na Antiguidade Tardia segundo a historiografia

A forma como João Crisóstomo descreve a participação de Flaviano no levante relaciona-se com a posição que este último ocupa. Flaviano era bispo de Antioquia. Como tal, uma série de funções era-lhe reservada e uma reação determinada era de se esperar dele devido à sua posição episcopal. Assim, a descrição da interferência de Flaviano realizada por João Crisóstomo relaciona-se com a definição da natureza da autoridade do bispo, com as especificidades do ofício episcopal e com a determinação de suas atribuições. Logo, para discorrermos sobre a interferência de Flaviano no levante, precisamos antes refletir sobre o ofício episcopal no século IV e o faremos conforme se observa na historiografia disponível sobre o tema. Uma ideia específica de liderança cristã e episcopado desenvolve-se e estabelece-se durante a Antiguidade Tardia. Ao analisar a natureza da liderança cristã, Rapp (2005RAPP, C. Holy Bishops in Late Antiquity: the nature of Christian leadership in an age of transition. California: University of California Press, 2005., p. 16) argumenta que o poder episcopal constitui-se de três tipos de autoridades que se relacionam intimamente: uma autoridade espiritual, uma autoridade ascética e uma autoridade pragmática. Essas categorias, introduzidas por Rapp, auxiliam na definição da especificidade do poder episcopal bem como na descrição do papel desempenhado pelos bispos no âmbito das cidades para todo o conjunto do período da Antiguidade Tardia.

As especificidades do poder episcopal derivam da origem e natureza de seu poder, da formação educacional e da proveniência social dos indivíduos que ocupam a função de bispo e das atribuições que lhes eram reservadas. Na Homilia VI, seção 1, João Crisóstomo afirma que os magistrados, os sacerdotes, são instituídos por Deus, do qual tudo é proveniente. Para João Crisóstomo, e de acordo com a passagem das Escrituras citada por ele, "Não existe poder, senão de Deus, os poderes que existem são estabelecidos por Deus (Rm. 13, 1)". Particularmente, os bispos eram, diferentemente dos magistrados e dos poderes civis, aqueles indivíduos que possuíam relação direta com os Apóstolos e, por meio destes, estavam ligados a Deus. Essa associação e vínculo entre o bispo, os Apóstolos e Deus, a sucessão apostólica, garantia ao bispo os dons do Espírito e, por conseguinte, a autoridade espiritual. Segundo Rapp (2005RAPP, C. Holy Bishops in Late Antiquity: the nature of Christian leadership in an age of transition. California: University of California Press, 2005., p. 100), a autoridade espiritual evidencia-se a partir de três formas: por meio "do sofrimento físico dos mártires", mediante "o martírio diário do ascetismo" e por intermédio da "imposição das mãos na ordenação dos bispos". Assim, os bispos compartilhavam com os mártires e monges de uma mesma autoridade. No caso da posição específica e diferenciada alcançada pelos bispos dentro da Igreja, essa se relaciona ainda com a formação educacional dos bispos e com a atuação deles no âmbito das cidades.

No século IV, os bispos já apresentavam uma formação educacional particularizada bem como eram provenientes de um segmento social específico. Uma educação "erudita" era compartilhada pelos bispos e, apesar de essa não ser uma condição sine qua non ao exercício episcopal, a sua contribuição ao exercício do ofício era significativa (DANIÈLOU; MARROU, 1984DANIÈLOU, J.; MARROU, H. I. História da Igreja: dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 308-309; RAPP, 2005RAPP, C. Holy Bishops in Late Antiquity: the nature of Christian leadership in an age of transition. California: University of California Press, 2005., p. 178-183). Em um mundo unificado e moldado pela cultura e língua grega, a educação do bispo constituía-se, em grande medida, de uma educação helenística, mesmo que apenas alguns elementos específicos fossem apropriados. De fato, a maioria dos bispos, conhecidos como os Padres da Igreja, recebeu uma educação nos moldes gregos e frequentou escolas nos grandes centros (DANIÈLOU; MARROU, 1984DANIÈLOU, J.; MARROU, H. I. História da Igreja: dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis: Vozes, 1984., p. 308309). A oratória cristã, por exemplo, foi influenciada significativamente pela retórica grega (CAMERON, 1994CAMERON, A. Christianity and the rhetoric of Empire. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 120-154). A filosofia também exerceu grande influência. Gregório de Nazianzo (330-390), por exemplo, segundo Spinelli (2002SPINELLI, M. Helenização e recriação de sentidos: a filosofia na época da expansão do cristianismo - séculos II, III e IV. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002., p. 177-178),

[...] tematiza filosoficamente a doutrina cristã, mistura temas filosóficos (de inspiração platônica) com interesses religiosos. A linguagem da qual se serve é francamente platônica [...] Mas, entre as suas palavras e as de Platão, há uma reversão de pontos de vista e significados.

A filosofia cristã constitui-se, no entanto, na "verdadeira filosofia". Esta poderia ser adquirida mediante a vida ascética ou por meio da formação episcopal, uma vez que João Crisóstomo afirma que tanto os monges quanto o bispo Flaviano são possuidores da filosofia. E João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOM, Hom. XIX, 3; Hom. XVII, 5JOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514.) sempre coloca em oposição a filosofia cristã e a filosofia pagã, diferenciando os filósofos cristãos dos pagãos. A formação educacional requeria do estudante significativos recursos financeiros, o que explica, em parte, a procedência dos bispos. Estes são, em sua maioria, provenientes de segmentos sociais abastados e elevados da hierarquia romana. Há evidências da existência de bispos provenientes de camadas inferiores da sociedade, mas, no início do século IV, observa-se um fluxo maior de bispos provenientes da ordem dos bouleutas e, em seguida, de bispos que tinham origem senatorial (RAPP, 2005RAPP, C. Holy Bishops in Late Antiquity: the nature of Christian leadership in an age of transition. California: University of California Press, 2005., p. 172-195). Gilliard (1984GILLIARD, F.D. Senatorial bishops in the Fourth century. Harvard Theological Review, v. 77, n. 2, p. 153-175, 1984., p. 154) explica que a isenção das obrigações determinada pelas leis de Constantino para aqueles bouleutas da ordem clerical estimulou significativamente o ingresso na carreira eclesiástica. De acordo com esse autor, não foi somente o desejo de escapar das obrigações civis, mas também o respeito sem precedentes conferido aos bispos pelo imperador que tornou o ofício atrativo aos bouleutas. Essa origem dos bispos e a formação educacional contribuem para a definição e as especificidades do ofício episcopal. Assim, as atribuições e a maneira como os bispos atuaram no âmbito das cidades estão em estreita relação com esses aspectos. Por exemplo, os bispos originados de famílias abastadas forneceram elementos importantes para o desempenho de seu papel como líderes em suas comunidades. Estes já possuíam familiaridade e influência com os membros dos grupos sociais superiores, o que, de certo modo, facilitava o desempenho das funções episcopais.

Nas cidades, os bispos era benfeitores públicos e exerciam funções equivalentes às de autoridades civis. Bajo (1981BAJO, F. El patronato de los obispos sobre ciudades durante los siglos IV-V en Hispania. Memorias de Historia Antigüa, Oviedo, Universidad de Oviedo, n. 5, p. 203-212, 1981., p. 204) argumenta que, durante os séculos IV e V, os bispos exerceram no domínio das cidades funções equivalentes às funções dos patronos, a saber: faziam construção ou restauração de edifícios públicos; exerciam proteção jurídica, que consistia menos em fazer cumprir a lei do que em suavizar os rigores desta e impedir uma aplicação dura; exerciam uma proteção de tipo fiscal; representavam os interesses da civitas frente ao poder político e, por fim, faziam doações. Ainda eram responsáveis pela organização do assistencialismo aos pobres. Os beneficiados pelo auxílio assistencialista eram os mais diversos: viúvas, doentes, órfãos, escravos, presos (SALAMITO, 1995SALAMITO, J.M. La christianisation et les nouvelles règles de la vie sociale. In: MAYEUR, J.-M., PIETRI, C., PIETRI, L. et al. Histoire du Christianisme. Tomo 2. Paris: Desclée, 1995. p. 675-717., p. 689; BLÁZQUEZ, 1995BLÁZQUEZ, J.M. Aspectos sociales del cristianismo de los primeiros siglos. In: ALVAR, J. et al. Cristianismo primitivo y religiones mistéricas. Madrid: Cátedra, 1995. p. 347-363., p. 359-360). Tendo em vista esse aspecto, deve-se ressaltar que as funções desempenhadas pelos bispos, sejam aquelas relacionadas ao que hoje se insere no termo "secular", sejam aquelas consideradas religiosas, todas dizem respeito ao campo do sagrado, inserindo-se, portanto, no campo de atuação dos bispos. Os bispos vieram a possuir também capacidades judiciais. Como mediadores, podiam interferir em favor de acusados e presos. E, realmente, a partir da legislação de Constantino, os bispos foram investidos com o poder de intercessio, que lhes garantia uma influência legal frente aos processos penais. Logo, podiam acolher, pelo direito de asilo, livres, cristãos ou não, perseguidos pela justiça (BAJO, 1981BAJO, F. El patronato de los obispos sobre ciudades durante los siglos IV-V en Hispania. Memorias de Historia Antigüa, Oviedo, Universidad de Oviedo, n. 5, p. 203-212, 1981., p. 206). No campo político-jurídico, outras funções que, a princípio, pertenciam ao campo de atuação dos defensores civitatis, podem ter sido desempenhadas pelos bispos. Para compreendermos em que medida eles executaram as funções de defensores civitatis, vejamos quem eram e em que consistia ser um defensor civitatis.

Hanga (1998HANGA, V. Les ombudsmen romains: defensores. Actes de la Cinquentième Session de la Société Internationale Fernand de Visscher pour l'Histoire des Droits de l'Antiquité: Le monde antique et les droits de l'homme, p. 209-213, 1998., p. 210) define o defensor mencionado no processo civil romano como "aquele que sem mandato e como gerente de negócios, tomava pelas mãos os interesses do acusado", ou, em outras palavras, "um representante sem mandato". Mas, ainda segundo esse autor, o "termo recebe um novo conteúdo (defensor plebis, civitatis)" no contexto da Antiguidade Tardia. A expressão defensor civitatis é a designação de uma magistratura tardoimperial. De acordo com Frakes (1994FRAKES, R.M. Late Roman social justice and the origin of the defensor civitatis. The Classical Journal, v. 89, n. 4, p. 333-348, 1994., p. 338), uma primeira forma desse ofício remonta ao início do século IV e precede até mesmo a lei de Valentiniano, que é considerada, tradicionalmente, como um marco inovador na criação desse ofício. O ofício de defensor civitatis data, provavelmente, de 319, sob o governo de Constantino (FRAKES, 1994FRAKES, R.M. Late Roman social justice and the origin of the defensor civitatis. The Classical Journal, v. 89, n. 4, p. 333-348, 1994., p. 347). Nessa primeira forma, durante o período de 364 a 380, os defensores eram investidos tanto de um poder policial quanto de poderes judiciais, mas possuíam, sobretudo, um caráter protetor (FRAKES, 2001FRAKES, R.M. Contra potentium iniurias: the defensor civitatis and Late Roman justice. München: C.H. Beck, 2001., p. 88-127; FRAKES, 1994FRAKES, R.M. Late Roman social justice and the origin of the defensor civitatis. The Classical Journal, v. 89, n. 4, p. 333-348, 1994., p. 347). Segundo Frakes (2001FRAKES, R.M. Contra potentium iniurias: the defensor civitatis and Late Roman justice. München: C.H. Beck, 2001., p. 87, 108), na lei de Valentiniano e de seu irmão Valente, os defensores são descritos da maneira como serão vistos posteriormente, "como sua forma clássica de protetor do povo comum contra a influência da poderosa elite local".

Eram "juízes imparciais com a experiência devida em proteger os cidadãos pobres no nível local". Mas essas atribuições são, significativamente, diferentes de uma forma posterior. Conforme Frakes (2001FRAKES, R.M. Contra potentium iniurias: the defensor civitatis and Late Roman justice. München: C.H. Beck, 2001., p. 126-164), a partir de 383, um conjunto de leis modifica as características dessa instituição e o defensor civitatis deixa de ser caracterizado pela sua natureza protetora e passa a ser um "instrumento de coleta de impostos e de opressão nos últimos anos do século IV". Nessa segunda fase, os defensores agregaram muitas outras funções, o que diminuiu sua capacidade e característica inicial de proteção. Nesse contexto, apontado por Frakes, é que a função episcopal passa a assumir as capacidades judiciais dos defensores. Frakes (2001FRAKES, R.M. Contra potentium iniurias: the defensor civitatis and Late Roman justice. München: C.H. Beck, 2001., p. 224-228) argumenta que, na ausência do defensor, na sua modalidade clássica, e não na última forma do ofício, os bispos assumiam a mediação de disputas, o que significava, do ponto de vista do bispo, uma sobrecarga de tarefas. Mas, mesmo que essa agregação de funções seja, do ponto de vista do bispo, considerada uma sobrecarga nas funções episcopais, o fato é que, gradualmente, o bispo era visto pela população como um indivíduo cuja influência e poder auxiliariam na resolução de disputas. Nesse sentido, em épocas de crises e calamidades, não somente os bispos sentiam-se no dever de socorrer os que precisavam de auxílio e defesa, como ocorre no caso específico que analisamos, mas também eram reconhecidos por desempenhar funções de mediação e interferência tanto junto às autoridades locais quanto imperiais, inclusive, se necessário, junto ao próprio imperador. Assim, a descrição de João Crisóstomo da participação de Flaviano no Levante das Estátuas parece corroborar esse desenvolvimento das funções episcopais, embora, efetivamente, como sugerimos, a autoridade e o poder do bispo nestes termos ainda não se concretizassem na praxis, conforme veremos no caso particular de Antioquia nesse contexto da sedição.

A interferência de Flaviano no Levante das Estátuas segundo João Crisóstomo

No Levante das Estátuas, Libânio (LIBANIUS, Or. XIX, 28LIBANIUS. The Riots of the Statues. In: NORMAN, A. F. Libanius: Selected Works. Harvard University Press, 1978. v. 2. p. 235-407.) informa que, durante os protestos que levaram à destruição das estátuas, a população procurou o bispo Flaviano, mas ele não foi encontrado. Flaviano, contudo, tomaria conhecimento do ocorrido e partiria em direção a Constantinopla. João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 6) afirmaria que:

Deixemos esta ser a prece que nós oferecemos a Deus para o nosso Professor, suplicante em favor de uma cidade tão grandiosa, e em combinação com uma tão grandiosa Igreja, para que seja capaz de persuadir este o mais tenro e misericordioso Imperador. Pois, se ele recebeu autoridade para livrar pecados cometidos contra Deus, muito mais será ele capaz de afastar e apagar aqueles [pecados] que têm sido cometidos contra o homem. Ele também é ele mesmo um soberano e um soberano com mais dignidade que outro. Pois as leis sagradas estão sob suas mãos [...].

Assim, de acordo com João Crisóstomo, Flaviano estava em pleno exercício de sua função. Como "suplicante" e "soberano" era preparado para, mediante uma embaixada, defender e interferir junto ao imperador em favor da população de sua cidade. A passagem não exclui, contudo, a função mais prioritária do que a interferência: "Pois, se ele recebeu autoridade para livrar pecados cometidos contra Deus, muito mais será ele capaz de afastar e apagar aqueles [pecados] que têm sido cometidos contra o homem" [grifo nosso]. Um outro destaque é que, excetuando Deus, Flaviano torna-se a personagem central, por meio da qual seria garantido o perdão à cidade na concepção de João Crisóstomo. De fato, a embaixada de Flaviano foi especialmente destacada por João Crisóstomo em homilia própria. Esse tema é desenvolvido, centralmente, nas Homilias III e XXI, que dizem respeito, respectivamente, à partida de Flaviano em direção a Constantinopla e ao seu retorno após a audiência que teve com o imperador. João Crisóstomo inicia a Homilia III lamentando a ausência de Flaviano, que teria partido em embaixada para se encontrar com o imperador. Não obstante, a ausência é considerada positivamente, pois, o presbítero argumenta e alegra-se por causa do motivo que gerou essa ausência:

Quando eu olho para aquele trono, deserto e privado da presença de nosso professor, eu me regozijo e lastimo ao mesmo tempo. Eu lastimo, porque não vejo nosso pai conosco! Mas eu me regozijo que ele tenha partido numa jornada em favor de nossa preservação; que ele tenha ido arrebatar a tão grande multidão da ira do Imperador!

Se, por um lado, o lamento da ausência da cidade é algo significativo de valor uma vez que o bispo esteja indissociável da vida na sua cidade, por outro, a ausência pela necessidade de interferência que precisa ser realizada é algo também que João Crisóstomo atribui à Flaviano, como parte do ofício episcopal. E essa interferência receberá uma áurea de sacralidade uma vez que o exemplo de Flaviano aproxima ao exemplo de Jesus pela ideia do sacrifício. Mais adiante, João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 1) destaca as dificuldades que tornavam a viagem e a embaixada de Flaviano uma expedição extraordinária, singular:

Por ter aprendido que "o bom pastor sacrifica sua vida em favor da ovelha" [João 10, 2], ele [Flaviano] aceitou sua partida; arriscando sua própria vida por todos nós, não obstante havia muitas coisas que impediam seu afastamento, e o forçavam a ficar. Em primeiro lugar, seu tempo de vida, idade avançada até seu limite máximo; depois, as enfermidades do corpo e, a estação do ano, bem como a necessidade de sua presença nas festividades sagradas; e, além dessas razões, sua única irmã, que está agora mesmo em seu leito de morte! Ele desconsiderou, no entanto, os laços de parentesco, a idade avançada, as enfermidades, a severidade da estação, e as dificuldades da jornada; e, preferindo-vos e vossa segurança acima de todas as coisas, ele desconsiderou completamente todas essas limitações.

O destaque dado às dificuldades enfrentadas por Flaviano contribui para a maneira como João Crisóstomo busca descrever a embaixada do bispo. O relato de João Crisóstomo acerca da interferência de Flaviano pressupõe um efeito laudatório e elogioso. Crisóstomo compõe uma imagem de Flaviano que é capaz de ultrapassar todas as adversidades comuns à idade e às circunstâncias nas quais estava inscrito e fazer o que parecia impossível para interceder em favor daqueles que estavam sob seus cuidados. Para isso, na perspectiva de João Crisóstomo, Flaviano possuía uma série de atributos que o tornavam, simultaneamente, um "santo" (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 2), um "bom pastor" (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 1), um "professor"129 (JOHN CHRYSOSTOM, Hom. III, 1), um "pai" (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 1; Hom. XXI, 5), um "sacerdote" (JOHN CHRYSOSTOM, Hom. III, 4). Sempre referido nesses termos, Flaviano incorpora os valores que estão associados ao que João Crisóstomo julga ser um "santo", um "bom pastor", um "professor", um "pai", um "sacerdote". Vejamos porque e em quais circunstâncias João Crisóstomo apresenta Flaviano como um santo. Para João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 2), Flaviano era "santo" porque,

[...] ele somente em ver nosso pio Imperador e ser visto por ele [...] será capaz imediatamente, por causa de seu semblante, de aplacar a ira dele [do imperador]. Pois não somente as palavras dos santos, mas seus semblantes, estão plenos de graça.

Flaviano é portador das "palavras dos santos" bem como "seus semblantes estão plenos de graça" e somente pelo fato de "ser visto pelo imperador", diz João Crisóstomo, ele "será capaz de aplacar" a ira imperial. A imagem de um "bom pastor" atribuída a Flaviano deve-se a ele ser, segundo João Crisóstomo, abnegado em favor do seu rebanho, uma vez que desconsiderou todos os obstáculos e as circunstâncias que o impeliam a permanecer em Antioquia e dirigiu-se a Constantinopla para uma audiência em favor da população e da cidade. João Crisóstomo aponta ainda outros atributos que se relacionam à imagem de professor, pai e sacerdote. Para dissuadir o imperador da sua decisão inicial de destruir e queimar a cidade, Flaviano ainda possui a habilidade da retórica, do bem dizer. Nas palavras de João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 2), Flaviano é "uma pessoa muito dotada de abundante sabedoria" e "habilitado nas leis divinas". Flaviano também tinha a seu favor inúmeros argumentos que João Crisóstomo afirma que iriam assegurar a esperança de um resultado favorável. Na Homilia III, seção 2, Crisóstomo apresenta os argumentos que Flaviano utilizará para persuadir Teodósio:

[...] ele [Flaviano] dirá a ele [o imperador] assim como Moisés disse a Deus: "Ainda agora, neste caso perdoarás o pecado deles - e se não o fizeres, mata-me juntamente com eles" [Êxodo, 32, 31,32]. Pois tamanhas são as entranhas dos santos, que eles pensam que a morte com seus filhos é mais doce que a vida sem eles. Ele [Flaviano] também fará da época especial seu advogado e se abrigará atrás das festividades sagradas da Páscoa; e lembrará o imperador do tempo em que Cristo absolveu os pecados de todo o mundo. Ele [Flaviano] o [o imperador] exortará a imitar seu Senhor. Ele [Flaviano] também o [o imperador] lembrará daquela parábola dos dez mil talentos [...]. Eu conheço a coragem do nosso pai, que não hesitará em alertá-lo [o imperador] da parábola, e dizer: "Toma cuidado para que tu também não escutes isso dito naquele dia, 'oh, tu, mau servo, Eu te perdoei toda aquela dívida, porque tu cobiçaste a mim, tu deves também perdoar teus co-servos!' [Mateus, 18, 32,33]. Tu trarás a ti mesmo mais do que para eles um maior benefício, desde que pelo perdão dessas poucas ofensas tu mereceste um perdão maior".

João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOM, Hom. III, 3) ainda acrescenta que:

[...] ele [Flaviano] irá além do mais informá-lo [ao imperador] de que a ofensa não era comum para toda a cidade, mas obra de certos estrangeiros e aventureiros, homens cuja ação recai sobre nenhum plano deliberado, mas imbuído com toda sorte de audácia e desregramento; e que isso não poderia ser justo, por causa da conduta desordenada de uns poucos, extirpar uma cidade tão grandiosa, e punir aqueles que nada fizeram de errado; e mesmo que todos tivessem sido transgressores, eles já foram suficientemente punidos, sendo consumidos pelo medo por tantos dias, e esperando todos os dias para serem condenados à morte, e sendo exilados e fugitivos; assim vivendo mais deploravelmente que criminosos condenados, carregando suas vidas em suas mãos, e tendo nenhuma convicção na salvação! Deixa essa punição (eu diria) ser suficiente.

Além disso, João Crisóstomo também apresenta as marcas distintivas de cada um dos ofícios as quais também aparecem estampadas na vestimenta. João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. III, 6) compara as vestimentas episcopais à armadura imperial:

Ele [Flaviano] também é um príncipe e, na realidade, mais digno de honra do que aquele [Teodósio], porque as mesmas leis sagradas colocaram sob as mãos daquele até mesmo a cabeça real, e quando se pretende conseguir dos céus algo bom, é hábito o imperador recorrer ao bispo e não o bispo ao imperador. Além disso, ele está vestido com a armadura da justiça, e com o cinto da verdade, e está calçado com a mais ornamentada das sandálias, a do Evangelho da paz, e possui também uma espada, não de ferro, mas de espírito, e possui também uma coroa posta em sua cabeça. Essa panóplia é mais esplêndida, essas armas mais preciosas, a confiança é maior, também maior é a força. Assim, pois, pela magnitude do principado, pela própria grandeza, e mais que tudo, pela firme confiança em Deus, [Flaviano] falará com muita valentia e prudência com o imperador.

Assim, Flaviano saberia o que devia ser dito e de que forma deveria ser dito. No dia 25 de abril, no domingo da Páscoa (PAVERD, 1991PAVERD, F. van de. Saint John Chrysostom, The Homilies on the Statues: An Introduction. Roma: Pont. Institutum Studiorum Orientalium, 1991. (Orientalia Christiana Analecta 239), p. 364), João Crisóstomo pronuncia a vigésima primeira homilia, aquela na qual são celebrados o encerramento do levante e o bom resultado proveniente da interferência cristã. João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI) ainda discorre sobre o retorno de Flaviano a Antioquia e a reconciliação do imperador com a cidade, relatando a audiência que o primeiro teve com o último, e a soberania e as virtudes de Teodósio. João Crisóstomo inicia a homilia da seguinte maneira:

[...] "Bendito seja Deus", que nos assegurou este dia para celebrar esta Festividade sagrada com muita alegria e júbilo; e restaurou a cabeça ao corpo, o pastor às ovelhas, o mestre aos discípulos, o general aos soldados, o Sacerdote Supremo aos Sacerdotes!

E, continua (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 1):

Quem poderia, de fato, imaginar que em tão poucos dias, ele [Flaviano] conseguiria ir, e ter uma audiência com o imperador, e nos livrar da calamidade, e de novo voltar para nós tão rapidamente, que foi capaz de participar da Sagrada Páscoa, e celebrá-la junto conosco?

Flaviano retorna a Antioquia e João Crisóstomo relata o que se passou após a partida daquele. Mas nada sabemos sobre a embaixada e a audiência de Flaviano com o imperador, a não ser por intermédio da narrativa de João Crisóstomo, que fornece indicações de que tudo o que seria relatado foi obtido por meio de uma testemunha que estava no palácio, na hora em que ocorreu o encontro, e que se dispôs a descrever como tinha sido a reunião entre o bispo e o imperador. Segundo João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOM, Hom. XXI, 5), Flaviano nada teria dito por um significativo senso de "humildade" que esconde o próprio mérito:

Mas o que eu estou prestes a relatar a vós eu ouvi de um daqueles que estavam dentro do palácio; pois nosso Pai não nos disse muito nem pouco sobre o assunto; mas sempre imitando a grandeza de Paulo, ele esconde o próprio mérito, e aos que perguntam de todas as partes o que ele havia dito ao imperador; e como ele o havia persuadido, e como havia demovido inteiramente a ira daquele, ele repete estas palavras: "Em nada nós contribuímos para o êxito dessa empreitada, mas o imperador, ele mesmo (Deus tendo mitigado seu coração), mesmo antes de termos falado alguma coisa, pôs de lado sua ira e dissipou seu ressentimento; e falando sobre os eventos de outrora como se fosse uma outra pessoa que tivesse sido ofendida, ele então lembrava de todos os acontecimentos sem ira." Mas, pelas coisas que, por humildade, ele [Flaviano] ocultou, Deus trouxe a luz.

Seguindo o relato da testemunha, João Crisóstomo informa sobre a jornada de Flaviano e como ocorreu a audiência como o imperador. Em primeiro lugar, ele discorre sobre o encontro de Flaviano com Elébico e Cesário, os enviados do imperador, durante a viagem a Constantinopla (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 6):

[...] encontrando-se no meio de sua jornada com aqueles que foram enviados pelo imperador para fazer uma investigação sobre os eventos que aconteceram; e tomando conhecimento com eles, sobre quais termos foram enviados; e refletindo sobre os terríveis eventos que estavam reservados à cidade, os tumultos, a confusão, a revoada, o terror, a agonia, os perigos, ele derramou um rio de lágrimas, e suas entranhas estavam dilaceradas de compaixão; pois, como os pais, é comum sofrer muito mais, quando eles não são capazes de estar presentes com seus filhos sofredores; que era exatamente o que esse homem de coração mais tenro agora havia sofrido; não somente lamentando os infortúnios que estavam reservados a nós, mas por ele estar longe de nós, enquanto nós sofríamos os infortúnios.

Para João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 6), ao saber dos acontecimentos e os sofrimentos pelos quais a população estava passando, Flaviano seria capaz de, com um maior entusiasmo, suplicar mais fervorosamente. Desse modo, esse encontro e o conhecimento que dele foi extraído contribuiriam para a audiência que o bispo teria com o imperador, a qual é relatada com riqueza de detalhes na Homilia XXI, seção 6:

E assim que ele [Flaviano] chegou àquela grande cidade, e entrou no palácio real, ele parou diante do imperador, a certa distância, - sem palavras, chorando, com os olhos baixos - cobrindo sua face como se ele mesmo fosse o agente de toda a injúria; e isso ele fez, desejando primeiro convencê-lo [ao imperador] da misericórdia por meio dessa postura, e expressão da face, e lágrimas; e depois começar uma apologia em nosso favor; desde que haja, contudo, uma esperança de perdão para aqueles que ofenderam, o qual está em silêncio, e nada proferir em defesa do que foi feito.

Em seguida, ainda segundo o relato da testemunha, João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 6) descreve a reação imperial frente ao bispo:

O imperador, por conseguinte, quando ele o viu vertendo lágrimas, e curvando-se em direção ao chão, ele próprio aproximou-se; e o que ele realmente sentiu ao ver as lágrimas do sacerdote, ele fez evidente por meio de palavras que ele [o imperador] dirigiu a ele [o padre]; pois elas [as palavras] não foram aquelas de uma pessoa ofendida e inflamada, mas aquelas de uma pessoa com pesar; não de uma pessoa enfurecida, mas antes de uma pessoa abatida, e coagida por uma dor extrema.

Em contrapartida, João Crisóstomo (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 7) relata o que o imperador teria dito a Flaviano, como ele teria reagido:

[...] vós entendereis quando vós ouvirdes quais foram as palavras dele. Pois ele não disse, "O que significa isto? Tu vieste liderando uma embaixada em defesa de homens ímpios e abomináveis, até mesmo aqueles que não deviam viver; em defesa de tiranos, de revoltosos e merecedores de extrema punição?" Mas, colocando de lado todas as palavras daquela sorte, ele compôs uma defesa de si mesmo cheia de respeito e dignidade; e ele enumerou os benefícios, os quais durante todo o tempo de seu reino ele conferiu à cidade e, junto a cada um desses, ele disse, Era desse modo que eu haveria de ser tratado em retorno por essas coisas? Que injúrias eu cometi para que eles tivessem tamanha vingança? Que reclamações eles tinham, grande ou pequena, para que eles não apenas me insultassem, mas também aos falecidos? Não foi suficiente descarregar seus ressentimentos contra os vivos? Ainda assim eles pensaram que não estavam fazendo nada grande, a não ser que eles insultassem agora suas sepulturas.

O imperador ainda diria (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 7):

Admitido aquilo eu os tenho prejudicado, como eles supõem; certamente seria apropriado terem poupado os mortos, que não fizeram nada de errado para eles; pois não teriam as mesmas reclamações contra eles. Por acaso eu algum dia não estimei essa cidade acima de todas as coisas, e não a considerei como a mais querida até mesmo acima da minha cidade? E não era o caso de minhas preces contínuas visitarem essa cidade; e eu não fiz isso, meu juramento, a todos os homens?

Flaviano não permaneceria em silêncio. A descrição de sua reação às palavras e à defesa de Teodósio é composta de elementos ainda mais intensos e dramáticos. Logo que Teodósio terminara de se pronunciar, por ter visto que "a defesa do imperador aumentava" o "crime a um nível mais elevado", "soluçando amargamente", "vertendo lágrimas ardorosas" e "pesando um profundo e amargo suspiro no fundo do seu coração", ele teria dito (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 8):

Nós devemos confessar, oh, imperador, este amor que tu mostraste para com a nossa cidade! Nós não podemos negar! Sobre esse assunto, especialmente, nós lamentamos que a cidade dessa maneira amada tenha sido enfeitiçada por demônios; e que nós parecêramos ingratos frente a seu benfeitor, e que provocáramos seu mais ardente amante. E, embora tu destruas; embora tu queimes; embora tu mates; ou faças qualquer outra coisa, tu nunca conseguirias descontar o desagravo de que somos merecedores. Nós mesmos temos, por antecipação, infligido em nós mesmos o que é pior que mil mortes! Pois o que pode ser mais amargo que quando nós soubemos ter provocado injustamente nosso benfeitor, e aquele que nos amou tanto, e todo o mundo sabe disso, e nos condenam pela mais monstruosa ingratidão! Se os bárbaros tivessem feito uma incursão em nossa cidade, e arrasado seus muros, e queimado suas casas, e tivessem nos tornado e levado como cativos, o mal tinha sido menor.

Flaviano ainda disse (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 8):

Mas agora, privados de teus favores, e extinguido teu amor, que era uma grande segurança para nós, maior que qualquer muro, a quem nós recorreremos? Onde mais nós podemos olhar, quando nós provocamos um senhor tão afável, um pai tão indulgente? Assim que, enquanto eles parecem ter cometido a mais intolerável das ofensas, eles sofreram, por outro lado, o mais terrível dos males; não suportando olhar nenhum homem na face; nem serem capazes de olhar sob o sol com olhos livres; a vergonha de todo lugar pesava sobre suas pálpebras, e os forçava a esconder suas cabeças! Privados de suas confianças, eles estão agora numa condição ainda mais miserável que alguns cativos, e passaram pela mais extrema desonra; e enquanto pensavam na magnitude de seus males, e no tamanho da insolência que eles foram impelidos a fazer, eles mal conseguem respirar; porque eles atraíram para suas próprias cabeças as reprovações severas feitas de todos os habitantes do mundo, mesmo daqueles que pareciam insultados.

Flaviano argumentaria também como Teodósio poderia posicionar-se diante dessas circunstâncias. Avaliando cada uma das palavras do imperador, Flaviano compõe os termos de sua defesa (JOHN CHRYSOSTOMJOHN CHRYSOSTOM. The Homilies on the Statues to People of Antioch. In: SCHARFF, P. A Select Library of the Nicene and Post-Nicene Fathers of the Christian Church. Michigan: T&T Clark / WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1996. v. IX. p. 315-514., Hom. XXI, 10):

Tu dizes agora que tu foste insultado e toleras agravos como nenhum imperador jamais tolerou. Mas, se tu desejares, oh, benevolentíssimo, sapientíssimo, e o mais religioso Soberano, essa ofensa te granjeará uma coroa, mais honrosa e esplêndida do que o diadema que tu usas! Pois esse diadema é uma exposição de sua virtude principesca, mas é também um símbolo da munificência dele que o concedeu; mas a coroa tecida dessa sua filantropia será inteiramente fruto de teu bom trabalho, e aquele de tua própria filosofia; e todos os homens o admirarão menos por causa destas pedras preciosas, então eles o aplaudirão pela tua superioridade frente a essa ira.

A narrativa dessa audiência, que foi obtida por meio de uma testemunha, constitui-se de argumentos semelhantes, senão iguais, aos que foram previstos por João Crisóstomo na Homilia III e, novamente, foram mencionados na Homilia VI. Assim, João Crisóstomo teria previsto os argumentos que Flaviano teria utilizado quando este encontrou-se com Teodósio como, de fato, apresenta o relato da testemunha. Mas Paverd (1991PAVERD, F. van de. Saint John Chrysostom, The Homilies on the Statues: An Introduction. Roma: Pont. Institutum Studiorum Orientalium, 1991. (Orientalia Christiana Analecta 239), p. 149-156) argumenta que certas partes da defesa de Flaviano e as palavras de Teodósio são inventadas por João Crisóstomo, a fim de que o perdão do imperador fosse, em última instância, obra do Deus cristão, do cristianismo, por meio não somente, mas, especialmente, da embaixada de Flaviano. Como há evidências de que partes do discurso foram inventadas,1 esse autor sugere que todas as palavras relatadas por João Crisóstomo, na Homilia XXI, no que se refere à defesa de Flaviano, à resposta de Teodósio e às palavras com as quais este último dirigiu-se ao bispo, para que este retornasse a Antioquia, são produtos da imaginação de João Crisóstomo.

Nas palavras de Paverd (1991PAVERD, F. van de. Saint John Chrysostom, The Homilies on the Statues: An Introduction. Roma: Pont. Institutum Studiorum Orientalium, 1991. (Orientalia Christiana Analecta 239), p. 156), na Homilia XXI, João Crisóstomo "aparece como um historiador e, como todos os historiadores antigos, ele se sentia livre para compor os discursos de seus protagonistas". Sobre a utilização de uma testemunha, Paverd (1991PAVERD, F. van de. Saint John Chrysostom, The Homilies on the Statues: An Introduction. Roma: Pont. Institutum Studiorum Orientalium, 1991. (Orientalia Christiana Analecta 239), p. 155-156) afirma que João Crisóstomo tinha a intenção "não tanto de sugerir que ele citaria literalmente as palavras de Flaviano e Teodósio, mas para prevenir que se tivesse a impressão de que Flaviano estava glorificando seus próprios feitos". Em nossa opinião, é possível que João Crisóstomo tenha inventado o cenário que retrata e os diálogos que descreve. Não obstante, isso não significa que Flaviano não tenha, realmente, agido da forma como propõe João Crisóstomo. Tanto João Crisóstomo quanto Flaviano são membros de uma classe de indivíduos que compartilha de uma formação, de uma paideia. Logo, a postura, os argumentos utilizados pelo segundo e descritos pelo primeiro significam a revelação de um mesmo topoi. Assim, nesse sentido, João Crisóstomo não inventou ou imaginou o cenário e os argumentos que descreveu, pelo contrário, compôs uma situação que se vincula à realidade dos fatos, revelando não as coincidências, como se fosse algo fortuito, mas os elementos de uma paideia compartilhada. Isso não significa pensar, contudo, que todo o encontro tenha acontecido. A embaixada pode ter sido uma criação para reforçar a posição episcopal de proximidade com o imperador e da autoridade de Flaviano em nome da cidade. Do ponto de vista de João Crisóstomo, Deus havia assegurado um resultado favorável, por intermédio, principalmente, da embaixada de Flaviano. Mas o resultado da resolução do conflito não dizia respeito somente à interferência do bispo, estava também relacionado a outros aspectos e circunstâncias. Libânio também argumenta em favor de uma embaixada própria e destaca a participação de autoridades imperiais e municipais. Isso, em nossa opinião, completaria muito mais o cenário integral dessa sedição do que a visão única de João Crisóstomo que descreve Flaviano com uma autoridade e prestígio além da realidade do século IV. Ademais, os dados arqueológicos e a associação com o debate sobre o espaço urbano podem ser bastante profícuos para a compreensão da efetiva autoridade episcopal nesse contexto.

A residência episcopal como evidência da expressão do poder do bispo no século IV

A emergência do poder episcopal na Antiguidade Tardia foi um processo histórico gradual, o que pode ser evidenciado por meio das disputas e definição dos espaços urbanos. A construção do episkopeion - um complexo residencial do bispo distinto do espaço da Igreja - é um exemplo de expressão de poder. Esse desenvolvimento dos complexos residenciais episcopais se dará, sobretudo, entre os séculos V e VI (CEYLAN, 2005CEYLAN, B. Episkopeia in Asia Minor. In: LAVAN, L.; ÖZGENEL, L.; SARANTIS, A. Housing in Late Antiquity. Leiden: Brill, 2005. p. 169-194., p. 170; MARANO, 2005MARANO, Y.A. Domus in quam anebat episcopus: episcopal residences in nothern Italy during Late Antiquity (4TH to 6TH centuries A.D.). In: LAVAN, L.; ÖZGENEL, L.; SARANTIS, A. Housing in Late Antiquity . Leiden: Brill , 2005. p. 97-129., p. 97). No século V, é possível termos informações sobre a estrutura desses complexos residenciais, compostos por cômodos para encontros, jantares, hospedagens de visitas, escritórios para despacho administrativos e oficiais e são anexos à Igreja mas distintos do espaço da eclésia (CEYLAN, 2005CEYLAN, B. Episkopeia in Asia Minor. In: LAVAN, L.; ÖZGENEL, L.; SARANTIS, A. Housing in Late Antiquity. Leiden: Brill, 2005. p. 169-194., p. 170-173). Arqueologicamente, dados provenientes das cidades de Sida, Mileto, Éfeso completam o cenário de um investimento particular na estrutura residencial do bispo (CEYLAN, 2005CEYLAN, B. Episkopeia in Asia Minor. In: LAVAN, L.; ÖZGENEL, L.; SARANTIS, A. Housing in Late Antiquity. Leiden: Brill, 2005. p. 169-194., p. 174-180). Além disso, o episkopeion estava localizado dentro dos limites das cidades, seja no coração do espaço urbano, como são os casos de Sarsina, Faenza, Trieste, Ivrea e Pávia perto do fórum, ou nas fronteiras próximas às muralhas limítrofes dos espaços urbanos da cidade, como é o caso de Roma (MILLER, 2000MILLER, M.C. The bishop's palace. Ithaca: Cornel University Press, 2000., p. 18).

No caso do Levante das Estátuas, em Antioquia, a historiografia pressupõe que os amotinados tenham ido em direção à residência do bispo (PETIT, 1955PETIT, P. Libanius et la vie municipale d'Antiocheau I Ve siècle après J.-C. Paris: P. Geuthner, 1955., p. 224; MAXWELL, 2006MAXWELL, J.L. Christianization and Communication in Late Antiquity: John Chrysostom and his Congregation in Antioch. Cambridge: Cambridge University Press, 2006., p. 55-56), mas isso não significa pensar que seja uma residência na forma de um episkopeion, mas, pelo contrário, uma habitação pertencente ao espaço da Igreja ou a própria Igreja. Libânio descreve com certo detalhe de dados o percurso dos amotinados e a sucessão dos eventos no dia da irrupção do levante. E na descrição da sucessão dos eventos, podemos visualizar, com o auxílio de um plano da cidade de Antioquia, alguns dos locais percorridos pelos amotinados e tentar compreender a localização das imagens imperiais. Libânio (LIBANIUSLIBANIUS. The Riots of the Statues. In: NORMAN, A. F. Libanius: Selected Works. Harvard University Press, 1978. v. 2. p. 235-407., Or. XIX, 25-37; XXI, 5-9; XXII, 5-11) pronuncia-se em três momentos sobre os eventos ocorridos durante o dia em que as imagens foram destruídas, em orações diferentes, sempre adicionando elementos novos à descrição. Na Oração XIX, seções 25-29, Libânio destaca:

25. Lá chegou o decreto sobre o ouro, algo há muito tempo temido. O que até então parecia inacreditável era somente muito crível; a terra não poderia aguentar o fardo, e então aqueles que ouviram a ordem se lançaram ao chão, a maioria revelando sua incapacidade absoluta: no entanto por mais que o assim desejasse, eles seriam incapazes de fazer o que eles não poderiam fazer, e as suas pessoas seriam as mais rigorosas e terríveis. Eles tiveram que recorrer, portanto, ao apoio de deus deles, invocando seu nome, para que ele pudesse persuadi-lo a suspender parte do fardo. 26. O Dicastério estava lotado de pessoas - ex-governadores, bouleutas, advogados, militares da reserva.

[...] mas agora, quando eles vieram para fora e chegaram às ultimas consequências, alguns dos seus companheiros começaram a causar uma desordem, e eles continuaram quietos. 28. Eles seguiram para o lugar onde provavelmente encontrariam Flaviano, mas eles não o encontraram, então eles retornaram ao lugar onde iniciaram a manifestação. Eles começaram a empregar linguagem vulgar, que logo se transformou em ações, algo que o mais respeitável não esperava...

29. Usando tais instrumentos, então, o espírito mal encenou atos que eu prefiro não mencionar, mas que minha preservação pelo código de minha formação me proíbe de omitir. Nós costumávamos contemplar com reverência as suas estátuas, não para aqueles patifes [...] meros garotos, logo se lançaram sobre elas, e rapidamente escalou nelas, pulando de uma para outra ...

Pelas evidências apresentadas por Libânio e João Crisóstomo, no caso do Levante das Estátuas, não parece haver indícios da existência de um episkopeion em Antioquia nesse período. Como podemos observar, no decorrer das manifestações, num dado momento, "Eles seguiram para o lugar onde provavelmente encontrariam Flaviano, mas eles não o encontraram". Libânio não especifica o lugar, nem define ou utiliza a palavra grega episkopeion para designar ou informar que seja a residência do bispo, o lugar para onde se dirigiram os amotinados em busca de Flaviano. João Crisóstomo é ainda mais elucidativo em suas homilias que nos permitem inferir sobre o espaço de atuação e o nível do prestígio do bispo. Na Homilia XVI, 1, João Crisóstomo destaca:

Eu elogio a consideração do prefeito que vendo os habitantes da cidade agitados e todos com a intenção de se evadir, resolveu vir aqui e oferecer-lhes consolação e garantir-lhes boas esperanças. Mas, por vocês, eu enrubesci e me envergonhei, que mesmo depois desses longos e frequentes discursos vocês ainda necessitem de consolo externo. Eu desejei que a terra se abrisse e que pudesse engolir-me quando eu o ouvi fornecer a vós um conforto alternativo, ou confirmar que tudo que nos causava medo estava para ter um fim. Pois não era apropriado que vocês fossem instruídos por ele, mas que vocês próprios fossem professores para os não cristãos. Paulo não permitia sequer que fôssemos a juízo perante os não cristãos, mas vós que depois de tantas admoestações provenientes de seus Sacerdotes, precisou de professores externos...

Pelo excerto acima, João Crisóstomo se diz consternado pela necessidade de seu rebanho se ver necessitado de uma garantia proveniente de uma palavra oficial e da autoridade local de que a população não deveria temer nada. A visita do prefeito ao espaço da eclésia ilumina dois aspectos importantes desse contexto: 1) que as autoridades locais e imperiais ainda eram imbuídas de um prestígio e autoridade significativos, o que contraria uma historiografia tradicional de que este é um tempo do enfraquecimento das instituições imperiais; 2) que a elite eclesiástica e a confirmação de que o bispo estava em constante atuação em favor da comunidade não era algo suficiente para a população. E esse ponto é, especificamente, importante. A interferência do bispo e as consolações, conforme o próprio João Crisóstomo descreve, parecem ainda não ser o conforto final de segurança para a comunidade que necessita da interferência dos magistrados. Podemos sugerir, com base nesse excerto, que a dimensão da interferência e influências episcopais junto ao imperador ainda não parecem ser um componente presente dos ofícios dos bispos. A interferência episcopal junto ao imperador e o seu possível resultado certo da influência política episcopal parecem ainda algo latente e incipiente, uma expectativa da atuação do bispo. A ausência de uma citação direta da existência de um episkopeion e a presença do magistrado no espaço da Igreja contribuem para essa inferência de que o bispo ainda não exercia a influência que João Crisóstomo alega que Flaviano possui. A autoridade episcopal e seu poder em amplas esferas da sociedade serão desenvolvimentos posteriores que, certamente, têm raízes nessa promoção das potencialidades do poder episcopal no século IV. E esse episódio do Levante das Estátuas é um dentre tantos outros exemplos.

Considerações finais

O caso do Levante das Estátuas é bastante significativo para a compreensão da autoridade e prestígio do bispo e sua atuação em contexto de conflitos. João Crisóstomo e Libânio oferecem importantes evidências disso. A interferência de Flaviano na sedição é um caso no qual o poder episcopal não parece ser efetivamente o proclamado pelas descrições de João Crisóstomo. Embora Flaviano apareça em contexto de embaixada junto ao imperador, possua armas e instrumentos de interferência, a participação desse bispo conforme o testemunho de Crisóstomo indica muito mais um esforço de promoção da autoridade episcopal em suas potencialidades do que do efetivo exercício da função episcopal nessa época. As palavras e o discurso são, contudo, performáticos, ou seja, contribuirão para as ações humanas na realidade social (SILVA, 2004SILVA, T.T. da. Identidade e diferença: uma perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes , 2004., p. 92-95). O bispo agregará funções que o identificará como aquele capaz de resolução de várias demandas. A construção dos limites e potencialidades de ação episcopal realizada por João Crisóstomo em suas homilias contribuiu e é parte do processo de desenvolvimento da ação efetiva dos bispos posteriormente. O estudo do espaço é, nesse sentido, um importante elemento de compreensão no conjunto dessa temática, a expressão espacial do poder episcopal, de sua distinção e singularidade. Embora muito ainda há que se investigar sobre o espaço e as atividades humanas que lhe são associadas, os dados de cultura material e a documentação escrita estão recheados de ricas evidências, assim como os historiadores estão atentos a esse profícuo campo de estudos, como é observável pelas recentes publicações historiográficas.

Referências

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  • CAMERON, A. Christianity and the rhetoric of Empire. Berkeley: University of California Press, 1994.
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  • 1
    PAVERD (1991) fornece os argumentos que sustentam essa posição. Cf., especialmente, p. 149-156.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2016
  • Aceito
    15 Maio 2016
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