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A Justiça no quotidiano: os corregedores do reino

Resumos

Na célebre carta de Bruges, o infante D. Pedro recomenda ao futuro rei D. Duarte um sistema de reformulação e de apertado escrutínio sobre os corregedores do reino. No primeiro quartel do século XIV já não era novidade o sistema que ordenava a sua distribuição pelo território, nem a forma de actuação requerida. Mas, para que estes oficiais de justiça não se tornassem "danadores" das comarcas, era urgente toda uma remodelação do respectivo regimento e, sobretudo, vigilância. Sem isto, a Justiça não iria para além das boas intenções. Servindo-nos deste tempo como eixo de análise, propomos-vos um breve levantamento do que foram até então e do que serão até aos finais da Idade Média esses oficiais, face visível da Justiça régia aos olhos dos povos.

Carta de Bruges; Ordenações Afonsinas; Justiça; Corregedores


In his famous Letter of Bruges Prince Pedro recommends that the future King Edward adopt a system to reform and tighten scrutiny over the magistrates of the kingdom. In the first quarter of the fourteenth century there was nothing new in a system which ordered its distribution by territory or in the form of required action. However, in order for these officials not to become "damagers" of districts, an entire renovation of the respective regulations and, in particular, surveillance was urgent. Without this, Justice would be nothing more than wishful thinking. As a line of analysis from this era we propose a short account of what these officials represented up until then and what they would come to represent by the end of the Middle Ages: the visible face of Royal Justice in the eyes of the people.

Letter of Bruges; Afonsine Ordinances; Justice; Magistrates


O tema proposto no presente dossiê fala-nos de "escritos e imagens", palavras logo apreendidas por nós - com deformação de historiadora - como um repto para conseguir a correlação entre a palavra escrita com a sua projecção imagética e a "espantosa realidade das cousas"1 ou, se quisermos, com os factos. Deixamos para traz o debate sobre este conceito, e usemo-lo ingenuamente, ao modo quase positivista, como aquilo que se nos apresenta na sua existência no tempo e no espaço, por vezes quantificável, mas sempre testemunho de comportamentos políticos, sociais, económicos ou de mentalidade. Lembremos ainda que tal correlação assume muito diversas gradações, e essas mesmas são calibradas de forma muito desigual pela historiografia contemporânea.

Um bom laboratório para o estudo dessa correlação pode ser encontrado na muito conhecida carta de Bruges.2 Trata-se, como é sabido, de uma epístola que o infante D. Pedro escreve, em 1426, a seu irmão, o futuro rei D. Duarte (DOM DUARTE, 1982, p. 27-39DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.). Este "escrito d aujsamento" (DOM DUARTE, 1982, p. 27DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.) que responde a um pedido do próprio infante herdeiro, contém um repositório de temas de governança sempre na intersecção dos planos da doutrina política e da análise da situação do reino, completados pelo apontar de soluções adequadas.

Entre muitos outros temas possíveis, fixemo-nos no da Justiça. Aqui, entre o enunciado do que deveria ser e a constatação do que é, o infante, longe do reino e com "pequena teençom de tornar" (DOM DUARTE, 1998, Cap. 44, p. 173DOM DUARTE. Leal Conselheiro. Edição crítica. Introdução e notas de Maria Helena Lopes de Castro. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1998.), produz um escrito que vai das exigências doutrinárias da Justiça à descrição da fragilidade dos seus agentes e ao remédio necessário para a conseguir plenamente. É pois um texto de poder, na sequência desse diálogo de governança que os filhos de D. João I, em especial D. Duarte e D. Pedro, mantinham entre si.

Não é aqui ocasião para expor o conteúdo que os medievais atribuíam à Justiça (DUARTE, 2005, p. 65 e ss.DUARTE, L. M. D. Duarte. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2005.). Bastará lembrar, como enquadramento às nossas reflexões, o que escreveu o bispo do Porto, D. Antão Martins de Chaves, a D. Duarte, a 5 de Dezembro de 1433, poucos meses após a subida deste ao trono: "que a vida e regimento do rey deuem ser muyto virtuosos, .s. em Justiça e em uerdade e em mansydão e piedade, em justiça que seJa vista nas obras" (DOM DUARTE, 1982, p. 82-83DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.).

Trata-se, pois, de um texto na mesma área cronológica e produzido com a mesma finalidade da carta de Bruges: palavras de ensino e de exortação, na tradição dos "regimentos de príncipes".3 Depois de afirmar que a vida dos reis se deve pautar, entre outras virtudes, pela da Justiça, apela a que esta se manifeste nas obras, isto é - porque podemos ir mais longe4 - no quotidiano da governança régia.

O bispo prossegue com o louvor da "Santa Justiça", rainha de todas as virtudes e obrigação máxima dos reis, pois por ela os homens renunciaram à "liberdade que he bem celestial" e escolheram "reis, prinçipes e poderios, a fym que o regessem e gouernassem em direito e Justiça e asy comueo a liberdade sojugar se a Justiça e obedecer ao Juizo" (DOM DUARTE, 1982, p. 83DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.).

Está claro, pois, que o rei deverá procurar a coerência entre a norma ética e as exigências governativas, exigência muito acentuada na supra citada carta de Bruges.

Essa carta-conselho começa por referir os deveres que o infante tem relativamente à Igreja: deveres que implicam direitos bem amplos, numa concepção de ofício real que já tivemos ocasião de expor em vários trabalhos, nomeadamente em Encontros. Depois de referir os assuntos que se referem à Igreja e ao clero, o infante passa às "cousas temporaes". D. Pedro lembra que o "Regymento de toda a terra" assenta nas quatro virtudes cardeais, e considera que algumas delas não estão, em Portugal, "em boa perfeição".

É no contexto das virtudes cardeais - sempre consideradas na sua tradução do concreto socio-político - que o infante refere a Justiça: "A Justiça senhor he outra ujrtude me parece que não reyna nos corações daqueles que tem carrego de Julgarem a uosa terra" (DOM DUARTE, 1982, p. 34DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.). As únicas excepções parecerem ser somente os corações de D. João I e do infante D. Duarte. Mas o D. Pedro prossegue a acutilância: a justiça existe no coração do rei e do infante, mas não se manifesta como deveria. Isto é, não basta que tenham boa consciência e boa intenção, há que tornar a Justiça presente no reino ordenando e constrangendo os que têm encargo de a exercer para que efectivamente o façam, e com rapidez. Numa adequada versão do encadeamento de virtuosas benfeitorias tão marcante na escrita de D. Pedro, ele afirma que esses oficiais deverão temer mais o castigo de Deus do que o do rei, e deverão colocar o desejo de receberem mercês do rei acima de qualquer mercê que possam receber de qualquer outro senhor.

É devastadora a forma como o infante descreve a actuação da maior parte dos oficiais de justiça, situada entre a corrupção e a negligência. Era imperioso, portanto, premiar os bons servidores e punir os maus: "e quando estes serujsem como deujam Reçebessem conhecidos galardões e os que fizessem o contryro e uos delo foseis certo como agora sois e fostes d algũs outros naom escaparem d algũa pena" (DOM DUARTE, 1982, p. 35DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.). Impunha-se também obrigar os oficiais da justiça, a começar pelos principais - juízes, desembargadores, corregedores da corte - a produzirem efectivo trabalho; era urgente a revisão e sistematização da legislação:

[...] e eu veJo em uosa corte muytos offiçiães de Justiça e de todos eles sayr poucos desembargos [...] bem creio senhor que seis tyvesem untade de desembargar e fosem diligentes em seu offiçio que farião mais que çinqoenta que tal uontade non tem [...] e yso mesmo de as leys e ordenações do reyno serem proujdas e atituladas cada hũa daquelo a que pertence, e se antre elas fosem açhadas algũas que Já fosem revogadas que as tyrem [...] (DOM DUARTE, 1982, p. 35).

A Justiça de cariz teológico ou de teologia política, que configura o rei a Cristo enquanto justo juiz - presente, entre outros, nos referidos textos de D. Antão Martins de Chaves e do infante D. Pedro - tem a sua face visível na governança do reino, nomeadamente na forma como o poder real intervém junto dos súbditos. Defender e premiar os bons e castigar os maus - para usar fórmulas bíblicas repetidas ao longo da Idade Média - exige a presença e intervenção régia junto dos seus súbditos.

Sabemos que D. Duarte, assumindo-se como "Justo juiz", produziu amplo trabalho no plano da produção e da sistematização legislativa, assim como na reforma de instituições judiciais, como a Casa da Suplicação. Está estudado o seu perfil de legislador e governante, como homem conhecedor da legislação e diligente na sua aplicação adequada (DUARTE, 2005, Cap. 11DUARTE, L. M. D. Duarte. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2005.; VENTURA, 2013, p. 137-154VENTURA, M. G. A Corte de D. Duarte. Política, cultura e afectos. Vila do Conde: Verso da História, 2013.).

Sem dúvida que a reforma da justiça e dos seus servidores é uma das linhas de um vasto processo de efectiva retoma e construção do poder real, após os primeiros anos do reinado de D. João I. Essa retoma consiste em subtrair poder, isto é, possibilidade de usar a força, a outrem (senhores leigos e eclesiásticos, poderes locais) que não o monarca e aqueles que actuam em seu nome. Assim, não deixa de ser significativa a narrativa que exprime a reserva do Condestável D. Nuno Álvares Pereira em assumir em definitivo o encargo da justiça em terras de Entre-Tejo-e-Odiana: depois de aí, rapidamente, fazer sentir uma justiça igual para todos, sentindo que alguns grandes se afastavam dele, "entendeu que tal carrego lhe nom compria e que somente pertencia a el rei e, porém, pediu a el rei que por mercee que lhe tirasse tal cárrego" (CRÓNICA, 2011, p. 230CRÓNICA do Condestável de Portugal D. Nuno Álvares Pereira. Preparação do texto e Introdução de António Machado de Faria. Lisboa: Academia Portuguesa da História; QuidNovi, 2011.).5

É com a legislação sobre os que têm encargo de administrar justiça que se inicia o Livro I das Ordenações Afonsinas. Lembramos que a sua compilação se deve ao infante D. Pedro, as quais ficaram concluídas em 26 Julho de 1446 (ALBUQUERQUE, 1993ALBUQUERQUE, M. O Infante D. Pedro e as Ordenações Afonsinas. Biblos, LXIX, Coimbra, 1993, p. 157-171.).

Repare-se como está bem expressa a importância dos executantes das leis, um raciocínio que, quase lugar comum, não deixa de ter conteúdo e não deixa de ser dito nas considerações que antecedem as Ordenações:

convinhavel cousa nos pareeceo, que em começo de Nossa obra ajamos primeiramente de formar alguns titulos apropriados á sua pessoa [rei], especialmente daquelles, que primeiramente teem carreguo de reger, e ministrar justiça [...] sem as quaees a Leyx feitas pouco aproveitaraõ, porque cousa conhecida he, que toda a principal virtude das Leyx está na boa pratica, e eixecuçom dellas (ORDENAÇÕES, 1984, Liv. I, p. 7).

Um dos principais cargos em que o seu detentor participa do poder da Justiça régia é o de corregedor. Como ficou dito, é demolidora a apreciação que o infante D. Pedro faz dos corregedores, aos quais chama "danadores que se chamam corregedores das comarqas". O remédio para a incúria destes oficiais seria obrigá-los a conhecer e a conhecer e a cumprir o regimento que lhes fora entregue, trazendo à colação o caso de um tal Gonçalo Peres

[...] e o remedio desto e doutras muytas cousas seria gardar se bem o regymento que he dado aos danadores que se chamam corregedores das comarqas mas eu creo senhor que eles nem também este regimento como ouuvy contar ao senhor rey que Gonçalo perez vyra hũ que lhe ele dera que nunqa o tyrou dhũa arca ate que acabou todo o que lhe elle mandara fazer (DOM DUARTE, 1982, p. 34).

D. Pedro sugere mesmo a presença física, por todas as comarcas, do infante e da corte num giro anual ou, pelo menos, de dois em dois anos. Tal iniciativa agradaria à corte e seria eficaz para premiar os bons e castigar os maus: de novo a fórmula de teoria política (passe o modernismo) trazida à colação do concreto.

[...] e outro muyto espeçial proueyto a todos feitos de uosa terra cada hũ ano ou ao menos de dous em dous anos andardes uos por todalas comarqas dela e leuaseis conuosco boa gente e non muyta, e ysto me parece que deuja de ser a uos e aos de uosa corte desenfadamento e aos bos de uoso Reyno proueyto e prazer e aos maos castigo e espanto e os outros bens que se disto seguyrão me seria longo de screuer (DOM DUARTE, 1982, p. 34).

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Convém, portanto, que conheçamos o regimento de que fala o infante, e seus antecedentes.

O ofício de corregedor - na sua definição, reforço, erros de execução e reforma - deve ser estudado em articulação com a política global de reforço do poder régio: um processo que, em Portugal se inicia, muito precocemente em relação aos outros reinos da cristandade, no reinado de D. Dinis (PIZARRO, 2005, p. 12-18PIZARRO, J. A. S. M. D. Dinis. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005.; VENTURA, 2012-2013VENTURA, M. G. As leis de desamortização de D. Dinis: expressão de um regalismo com futuro. Iacobus, Sahagún (Léon), 31-32, 2012-2013, p. 219-140.). Assim, começaremos o nosso percurso com a primeira definição do ofício de corregedor, e terminaremos com uma breve referência, já no reinado de D. João II (MENDONÇA, 1995, p. 212, 215, 369MENDONÇA, Manuela. D. João II. Um percurso humano e político nas origens da modernidade em Portugal. 2. ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. e ss.). Todavia, mau grado tão largo tempo, daremos especial relevo à documentação cuja cronologia confina com a da carta de Bruges ou com o seu autor, já como regente: o regimento de 1418; alguns capítulos dos procuradores do povo nas cortes de 1427, de 1439 e de 1442; o novo regimento dos corregedores inserido nas Ordenações Afonsinas.

O cargo de corregedor terá surgido em 1278, mas de forma esporádica (MORENO, 1989MORENO, H. B. A presença dos corregedores nos municípios e os conflitos de competências (1332-1459). Sep. da Revista de História, Porto, Centro de História da Universidade do Porto, v. IX, 1989.). D. Dinis, em carta de 16 de Janeiro de 1323, nomeia um seu vassalo, Aparício Domingues, como corregedor de Entre Douro-e-Minho para fazer justiça sobre todos os malfeitores implicados na revolta de seu filho D. Afonso. O corregedor deveria fazer justiça e "corregimento" sobre todos os que praticassem malfeitorias na região, e a sua jurisdição abrangia meirinhos, juízes e tabeliães, sendo estes obrigados a denunciar-lhe todos os crimes, de forma a que fossem exemplarmente castigados. Tratava-se ainda de uma nomeação extraordinária, direcionada a um caso particular. No entanto, é o conteúdo dessas funções que servirá de mote para futuros regimentos.

O reforço da intervenção régia na justiça e na administração do reino irá passar, entre outras soluções, pela sistematização do ofício de corregedor, leia-se a sua instituição em permanência e a sua regulamentação através de regimentos pormenorizados e revistos sempre que tal era considerado necessário. É D. Afonso IV que dá início a estes regimentos, como forma de aplicar a legislação que, paralelamente, ia produzindo. A regulamentação do cargo de corregedor é, pois, inseparável da acção legislativa e da administrativa inerente ao seu ofício real (CAETANO, 1981, p. 322-323CAETANO, M. História do Direito Português (1140-1495). Lisboa: Editorial Verbo, 1981.; 374-375; 491-493; SOUSA, 2005, p. 73 e ssSOUSA, B. V. D. Afonso IV. Mem Martins: Círculo de Leitores, 2005..).

As cortes de Santarém de 1331 vão permitir avaliar o estado do reino, também no que concerne à autoridade judiciária do monarca em todo o território, e alguns capítulos permitem perceber a existência de corregedores em permanência por todo o reino. Assim, é de 1332 o primeiro Regimento dos Corregedores; segue-se outro em 1340, o qual, embora baseado no anterior, contém numerosas alterações (CAETANO, 1990, p. 131-139CAETANO, M. A Administração Municipal de Lisboa durante a 1ª dinastia (1179-1383). 3. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1990.; BARROS, 1954, p. 170BARROS, H. G. História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV. 2. ed. Tomo XI. Lisboa: Liv. Sá da Costa Ed., 1954. e ss.; SOUSA, 2005, p. 80-81SOUSA, B. V. D. Afonso IV. Mem Martins: Círculo de Leitores, 2005.).

Em ambos os regimentos o monarca expõe com pormenor como deverá actuar o corregedor nas diversas localidades onde se deslocava: contêm, pois, a explanação da justiça régia, no concreto e em articulação com o poder concelhio, isto é, com a administração do território, como destacam recentes trabalhos de Humberto Baquero Moreno, Carvalho Homem, Maria Helena da Cruz Coelho e de alguns jovens investigadores em Portugal (p. ex. Mário Farelo) e no Brasil (Rafaella Ferreira de Sousa).

Mencionamos algumas das disposições do regimento de 1340, começando pela primeira, a qual consistia em ordenar que os corregedores, mal chegassem ao seu destino, exigissem aos tabeliães que lhes apresentassem o "estado" dos processos pendentes; deveriam assumir atribuições relacionadas com a segurança pública, castigando os que encobrissem degredados e malfeitores e, também, nomear dois vigilantes que controlassem a estada de estranhos potencialmente desordeiros; deveriam controlar todos os que exerciam ofícios públicos, como os advogados, procuradores, juízes ou almoxarifes; deveriam fiscalizar tudo o que se relacionasse com a defesa do reino, desde castelos, muralhas e prisões até ao recrutamento e treino militar (mesmo nas Ordens Militares); cumpria-lhes vigiar questões de ordem económica com impacto directo nas populações, como o abastecimento de géneros, o cultivo das terras ou a adequada aplicação das rendas dos concelhos em obras de interesse público (pontes, calçadas, fontes...); deveriam inventariar os vassalos régios e respectivo modo de vida (DUARTE, 2005, p. 67DUARTE, L. M. D. Duarte. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2005.).

Como se disse, o regimento de 1340 desenvolve algumas disposições do anterior, concretizando procedimentos. Uma das novidades é a obrigação de o corregedor percorrer a sua jurisdição (correição) duas ou três vezes por ano. Em paralelo, D. Afonso IV promove a clarificação da justiça ministrada e reforça a sua ligação com o poder régio: ordena, pois, que o corregedor mande escrever todas as sentenças que der, assim como todas as outras decisões que tomar no âmbito das suas jurisdições, de forma a que possa prestar contas ao rei ou a quem ele enviar anualmente a cada julgado. Fica assim reforçada, através da função máxima da administração da justiça, a presença efectiva do rei por todo o reino. Neste ponto, será decisiva a presença dos juízes de fora, designados como "juízes por el-rei". Mas esta questão sai do objectivo do nosso trabalho.

A presença régia por todo o reino funda-se no aprofundamento e evolução dos ofícios inerentes à Justiça, originando tensões, tanto com outros oficiais régios como com a administração concelhia e com a nobreza local, para já não falar na clerezia. Estes relacionamentos, amplamente estudados, não cabem, porém, neste trabalho.

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Prosseguindo o nosso propósito de nos aproximarmos da área cronológica da carta de Bruges, bastará lembrar que os conflitos em redor dos corregedores se acentuam já no reinado de D. João I, com sucessivas queixas dos povos contra esses oficiais. De facto, era difícil conseguir que esses homens prestigiados pelo rei, fossem ou não de boa linhagem e saber, não cruzassem a fronteira que separa o zelo do abuso do poder. Disto se queixam os povos em sucessivas cortes (COELHO, 2005, p. 230COELHO, M. H. C. D. João I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005. e ss.).6

Nas cortes de Santarém de 1406 (SOUSA, 1990, v. 2, p. 258SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.) os povos apresentam três capítulos sobre os corregedores: reclamam contra a sua presença, acompanhados por oficiais subalternos, nas cidades vilas e lugares, com direito de aposentadoria por longos meses; contra a obrigação de guardarem os presos; contra a proibição de os tabeliães facultarem os processos às partes envolvidas em processos. Nas cortes de Évora de 1408 (SOUSA, 1990, v. 2, p. 259-260SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.) outros dois capítulos dão conta de idênticos abusos. Os pedidos de "remédio" obtiveram sempre deferimento, ainda que, por vezes, parcial. Não consta nenhum capítulo sobre os corregedores nas cortes de 1410 e de 1413 (SOUSA, 1990, v. 2, p. 266-267SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.).

Com data de 12 de Setembro de 1418 temos um novo regimento (OLIVEIRA, 1885, v. 2, p. 29-38OLIVEIRA, E. F. Elementos para a História do Município de Lisboa. Lisboa: Tipografia Universal, 1885. 17 v.), já da iniciativa explícita de D. Duarte. Meses antes, entre Junho e Agosto, tinham-se reunido cortes em Santarém (SOUSA, 1990, v. 2, p. 340-341SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.). Aí, uma vez mais, os povos reclamam contra a permanência dos corregedores e seus auxiliares nas terras, com direito de aposentadoria. A queixa é parcialmente deferida, mas o assunto é remetido para um "caderno da justiça", que se perdeu (SOUSA, 1990, v. 2, p. 270SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.). É bem possível, portanto, que o regimento dos corregedores de Setembro de 1418 esteja relacionado com os capítulos da Justiça nas cortes de Santarém, reunidas uns três meses antes.

D. Duarte, que desde 1413 estava encarregue dos assuntos da Fazenda e da Justiça, deixa, neste regimento, a sua primeira intervenção normativa comprovada (DUARTE, 2005, p. 65 e ss.DUARTE, L. M. D. Duarte. Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2005.). É certo que as responsabilidades entregues ao infante nas vésperas da expedição a Ceuta se vão alargando, quanto mais não seja pela perícia governativa que ia adquirindo, combinada pela idade do monarca. Talvez fosse nestas cortes que tal tenha sido formalizado ou anunciado, o que explicaria a escrita e promulgação de dois regimentos fundamentais no final desse ano: este, dos corregedores e o dos coudéis.

O regimento dos corregedores traz as marcas de D. Duarte, isto é, o conhecimento do estado do reino e a fundamentada esperança de o melhorar. Sem dúvida que teve o auxílio de peritos legistas, nomeadamente João Mendes, escolar em leis e corregedor da corte (HOMEM, 1990, p. 346-347HOMEM, A. L. C. O Desembargo Régio (1320-1433). Lisboa: INIC, 1990.; FREITAS, 1996, p. 190-191FREITAS, J. A. G. A Burocracia do "Eloquente" (1433-1439). Os textos, as normas, as gentes. Cascais: Patrimonia, 1996.). Mas, sabendo nós como D. Duarte trabalhava, a intencionalidade seria dele, em articulação com os seus conselheiros, homens que tinham a sua confiança e amizade, cuja colaboração está amplamente documentada noutras situações: entre eles, o infante D. Pedro. O projecto global em que se insere o regimento dos corregedores é o da reforma da administração local, que o mesmo é dizer, a reforma da governança régia no concreto do reino: por todo o reino e em todos os assuntos.

O regimento de 1418 demonstra um profundo conhecimento do reino e das instituições e avança com reformas corajosas fundamentadas nesse mesmo conhecimento tanto quanto respaldadas em conceitos operativos de teoria política (VENTURA, 2014VENTURA, M. G. D. Duarte: vivência religiosa e ofício de reinar. In: D. Duarte e a sua época: arte, cultura, poder e espiritualidade. Coord. de Catarina Fernandes Barreira e Miguel Metelo de Seixas. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais; Universidade Nova de Lisboa, Centro Lusíada de Estudos Genealógicos, Heráldicos e Históricos; Universidade Lusíada de Lisboa, 2014.). D. Duarte retoma o regimento de 1340, focalizando a intervenção dos corregedores sobre assuntos que continuavam sensíveis, isto é, sujeitos a pressões dos poderes locais e à negligência ou à corrupção dos oficiais que tinham o encargo de os resolver de acordo com a vontade régia e o bem comum do reino.

O método seguido no regimento de 1418 é, por um lado, a clarificação da eleição para os diversos ofícios e o desejo de saber quem os ocupa em cada lugar, como se vê logo no primeiro item; segue-se, em outros quinze itens, a definição de cada ofício, desde o seu provimento e pormenorizada descrição das respectivas obrigações, até à proibição de cobrar dinheiro pelo exercício do ofício pelo qual eram pagos pela coroa. Assim vão surgindo coudéis, juízes dos órfãos, procuradores do número, tabeliães, inquiridores, alcaides pequenos, carcereiros... a respeito de todos, tudo deverá ficar claro para proporcionar a possibilidade de vigilância e de correcção aos que detêm esses deveres. E, como este regimento não anula o anterior de 1340, podemos supor que permanece o alerta para os abusos cometidos pelos próprios corregedores, esses que devem corrigir o povo e dar exemplo de comportamento justo.

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Retomemos o nosso rumo, cujo eixo é a carta de Bruges, datada de finais de 1426. Volvidos oito anos sobre a promulgação do regimento eduardino, não parece que os corregedores servissem bem a causa da Justiça, muito pelo contrário: "danadores" rima com "corregedores"... Para que o reino fosse defendido e melhorado bastaria, escrevia o infante D. Pedro, que neste assunto como em outros, se cumprisse o que estava ordenado. Acontecia, porém, que o regimento poderia não ser sequer conhecido, simplesmente porque o corregedor nunca o tirou da arca, segundo o testemunho que atrás citamos.

D. Pedro propõe a solução: que o próprio infante herdeiro percorresse as comarcas todos os anos ou, pelo menos, de dois em dois anos, levando consigo pouca e boa gente. Por certo que isto resultaria em proveito para os bons e castigo para os maus: (registe-se novamente a fórmula...).

É a propósito da correção do ofício de coudel que conhecemos um caso no qual o infante D. Duarte se insurge contra a incúria em reparar os armazéns de armamento das fortalezas. Todos os regimentos - 1332, 1340, 1418 - conferem aos corregedores a vigilância última sobre fortalezas e armazenamento de material bélico, a qual, aliás, virá consignada nas Ordenações Afonsinas (ORDENAÇÕES, 1984, Liv. 1, Tit. XXIII, §20ORDENAÇÕES Afonsinas. Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa e nota textológica de Eduardo Borges Nunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 5 v.). Por isso - e à semelhança do infante D. Pedro... - seja-nos permitido trazer aqui um caso particular que atesta, por um lado, a multiplicidade de responsáveis sobre o armazenamento de armas e materiais bélicos, e, por outro, a surpreendente ausência de qualquer referência ao corregedor e suas responsabilidades. Na carta de quitação que encerra o episódio pode ler-se que, através do inventário que D. Duarte mandara fazer em 1433 ou 1434 ao castelo de Estremoz, se descobrira que a porta do armazém estava podre, a fechadura quebrada, e que todo o material bélico - espadas, lanças, escudos, bacinetes, paus e coronhas - aí guardado estava igualmente podre e em pedaços, só se aproveitando duas "bombardas de metal" (CARTA, 1435CARTA de quitação a Maria Anes, Évora, 28 mar.1435, T. T. Chanc. D. Duarte, liv. 3, fl. 42v.). A responsabilidade seria do tesoureiro, pois a sua viúva (beneficiária da carta) não conseguiu auferir de modo imediato a desejada carta que quitação? Do alcaide? Do almoxarife? O facto é que jamais o corregedor é mencionado.

Podemos, pois, duvidar da eficácia do regimento de 1418 no que concerne à acentuação da vigilância e emenda exercida pelos corregedores sobre outros oficiais. Quanto à qualidade e ao comportamento dos próprios corregedores, este novo regimento não esclarece algumas questões presentes no de 1340 ou frequentemente trazidas pelos concelhos às cortes, como sejam o status desses oficiais, o modo de actuação, a permanência nos locais com direito de aposentadoria e diversos abusos de poder, frequentemente cometidos em conluio com outros oficiais de justiça.

São recorrentes as queixas trazidas às cortes pelos procuradores do povo, antes e depois da redacção do regimento eduardino. Mas, pela proximidade cronológica - que supõe o mesmo contexto de preocupações de governança -, aproximemo-nos das cortes reunidas em Lisboa nos finais de 1427 (SOUSA, 1990, v. 1, p. 342-343; v. 2, p. 275-282SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.; MORENO, 1989, p. 82MORENO, H. B. A presença dos corregedores nos municípios e os conflitos de competências (1332-1459). Sep. da Revista de História, Porto, Centro de História da Universidade do Porto, v. IX, 1989.). São quinze os capítulos apresentados sobre os corregedores e todos eles recebem deferimento total ou parcial por parte do rei, ou melhor e por certo, por parte do infante D. Duarte em nome do rei.

Os procuradores queixavam-se da falta de conhecimentos dos corregedores, os quais, frequentemente, não sabiam ler nem escrever. Esta ignorância contrastava com o poder que assumiam, dando sentenças de pena de morte sem apelação para a coroa, como se fossem reis e não oficiais de justiça. Insurgiam-se os povos contra o abuso que cometiam ao tomar conhecimento dos feitos cíveis, sem que os juízes dos lugares lho solicitassem; queixavam-se de que negavam recurso das suas sentenças; que recusavam cartas de segurança a malfeitores de crimes leves. Os procuradores pedem que o rei os obrigue a acatar sem insultos as ordens dos juízes que os contrariassem; que os mande proceder a inquirições junto a fidalgos e poderosos ou junto dos homens dos meirinhos; que não obriguem os vizinhos a transportar presos mais do que até ao julgado contíguo; que não se intrometam na vida interna dos municípios em ocasião de eleições dos respectivos oficiais; que não possam apropriar-se das sentenças de apelo e de agravo para a corte. Também insistiam para que não permanecessem nas localidades mais tempo do que o necessário.

Nas cortes de Santarém de 1430, os procuradores apresentam quatro petições relativas aos corregedores, todas parcialmente ou totalmente deferidas, com vista à limitação da intervenção dos corregedores.

Nos começos do seu reinado, muito provavelmente ainda em 1433, D. Duarte elabora um memorando para seu uso sobre o horário e a forma como diversos assuntos e pessoas deverão ir a despacho. O corregedor vem incluído nesse "memorial", com a promessa de, mais tarde, lhe conferir "çerta regra espeçial" (DOM DUARTE, 1982, p. 15DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.).

Por outro lado, entre as questões urgentes para tratar nas cortes de Leiria-Santarém (DOM DUARTE, 1982, p. 171DOM DUARTE. Livro dos Conselhos de El-Rei D. Duarte (Livro da Cartuxa). Edição Diplomática. Lisboa: Editorial Estampa, 1982.), essas primeiras do reinado de D. Duarte, onde todos esperavam ver o modo de governança do novo rei - estão "todolos offiçios de todo o reyno", mas há um apontamento particular para os corregedores, não para o seu modo de actuar em geral, mas sim referindo especificamente o seu relacionamento com prelados e fidalgos.7

Nestas mesmas cortes de 1433 (SOUSA, 1990, v. 2, p. 289-319SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.) são apresentadas oito petições sobre os corregedores, muitas delas já usuais, insistindo na sua preparação jurídica, no respeito pelas atribuições dos juízes, no limite máximo de permanência no cargo, na repressão dos malfeitores em articulação com os juízes das terras e na exigência de tratar todos, grandes e pequenos, de igual maneira. Mas num desses capítulos formula-se um requerimento que não é habitual. Na verdade, apesar das continuadas queixas em cortes sobre assuntos, na sua maior parte; recorrentes, nunca os povos tinham alvitrado qualquer solução punitiva para os corregedores que não cumprissem o seu ofício. Ora, no capítulo 38º, os procuradores solicitam que sejam agravadas as penas aos corregedores que não guardassem as ordenações e regimentos promulgados a seu respeito, e que sejam constituídos executores eficazes para essas mesmas penas. Talvez pela complexidade da implementação deste castigo, D. Duarte adia a resposta ao pedido.

A morte de D. Duarte abre um período de grande e crescente perturbação, degradando-se o (aparente) equilíbrio entre pessoas e poderes. Essas tensões trazem obviamente novos relacionamentos no plano dos oficiais da justiça. Mas não são assim tão imediatas as alterações no triângulo oficiais municipais-corregedores-rei. Nem poderíamos esperar outra coisa do regente D. Pedro, ou seja, não era possível abater de tal forma dos "danadores" do povo, que disso resultasse o desregramento dos poderes concelhios controlados por grandes senhores, leigos e eclesiásticos que se enfrentavam num clima de grande conflituosidade e, em breve, de guerra civil. Por isso, nas cortes de Lisboa de 1439 (SOUSA, 1990, v. 2, p. 325-335SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.), D. Pedro não acata os pedidos dos procuradores, apesar da veemência das queixas. De facto, o que mais nos surpreende não é tanto a alegada intromissão dos corregedores nos ofícios municipais, mas o indeferimento do pedido por parte do regente, em contraste com a violência das queixas. D. Pedro apoia os corregedores, apesar dos abusos, dando somente o seu aval à solução proposta pelos procuradores no que toca ao limite de três anos no exercício do ofício: limite, recorde-se, presente em anteriores regimentos.

As Cortes de Évora de 1442 foram convocadas para debater as questões político-militares decorrentes da fuga da rainha D. Leonor para Castela (SOUSA, 1990, v. 1, p. 362-363; v. 2, p. 335SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.). É no clima de pré-guerra, tanto civil como contra Castela, que os procuradores pedem remédio para o "falimento de justiça" que se verifica no reino, solicitando que obrigue os corregedores e os juízes a castigar os poderosos que cometam crimes, usem de violência ou protejam malfeitores. A resposta do regente é evasiva, por certo tendo em conta que os procuradores queriam envolver na reposição da justiça, não só os vereadores e homens bons, mas todo o povo. D. Pedro recusava dar proeminência aos poderes concelhios e temia as intervenções populares potencialmente desenquadradas: preferiu, uma vez mais e apesar de tudo, sustentar o poder de todos os oficiais de justiça.

Chegamos às cortes de Lisboa de 1446 (SOUSA, 1990, v. 2, p. 338-339SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.), as últimas com a presença do infante D. Pedro. Aí foi apresentado um só capítulo sobre os corregedores, referente ao transporte de prisioneiros, com resposta desconhecida.

Finalmente, cumpre referir o novo regimento dos corregedores presente nas Ordenações Afonsinas. Embora os trabalhos para novas ordenações tivessem começado ainda em tempos de D. Duarte e com legistas ao seu serviço, a compilação final é, já como atrás dissemos, obra do regente D. Pedro.

No Livro I destas Ordenações ficaram registados os regimentos dos oficiais da Justiça, peças fundamentais na execução das leis, sendo certo que as leis não têm qualquer eficácia se os oficiais de justiça não as executarem:8

porque cousa conhecida he, que toda a principal virtude das Leyx esta na boa pratica, e eixecuçom dellas, portanto acostumarom sempre os Reyx, e Princepes da terra fazer seus Officiaaes de Justiça, homees Letrados, Sabedores e Virtuosos, por tal, que per seu boõ, e vietuoso entender as possam ligeiramente trazer a boa pratica, e real eixecuçom em todo caso que lhes seja requerido (ORDENAÇÕES, 1984, p. 7-8).

Entre esses oficiais figura o corregedor da corte, (ORDENAÇÕES, 1984, Liv. I, Tit. VORDENAÇÕES Afonsinas. Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa e nota textológica de Eduardo Borges Nunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 5 v.) com diversos poderes de confirmação e vigilância sobre os corregedores das comarcas.

É, pois, nesse Livro I dedicado à Justiça, que se insere o regimento dos corregedores (ORDENAÇÕES, 1984, Liv. I, Tit. XXIIIORDENAÇÕES Afonsinas. Nota de apresentação de Mário Júlio de Almeida Costa e nota textológica de Eduardo Borges Nunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 5 v.). É um longo instrumento com setenta e um artigos, intitulado "Dos Corregedores das Comarcas, e cousas, que a seus Officios pertencem", e cuja novidade reside na sistematização de anteriores disposições, as quais são pormenorizadamente registadas.

Contudo, a maior inovação consiste nas disposições contidas no título seguinte - "Em que modo haõ de enquerer sobre o Corregedor da Comarca, quando acabar ho tempo do seu Officio" - que regula o inquérito que deverá realizar-se, por certo sob as ordens do corregedor da corte, quando os diversos corregedores terminarem o seu mandato. Veja-se como começa:

Este he o Regimento, que Mandamos, que tenhaaes em tirardes Inquiriçom sobre o Corregedor de tal Comarca, pera sermos em conhecimento de como usa em seu Officio, pera lhe gualardoarmos seus boõs merecimentos, ou lhe darmos pena, se o mal fez pera todos haverem exemplo (ORDENAÇÕES, 1984, Liv. I, Tit. XXIIII).

Segue-se a exposição da forma que permitirá a responsabilização em sequência dos corregedores, pois no título anterior (§ 69) está prevista a inquirição do anterior ocupante do cargo.

A "Inquiriçom" incidirá sobre cada um dos setenta e um dos artigos do anterior título, actuando como um espelho do que fez bem e do que fez mal. É de acentuar a indicação bem explícita de quem terá o encargo de escrutinar o desempenho do corregedor em cada julgado da comarca com mais e cem fogos: juízes, oficiais do ano transacto, tabeliães e quatro ou cinco dos principais homens do lugar. Tudo deve ser escrito e de tudo se há-se tirar certidão para entregar ao rei.

Em Maio de 1449 o infante D. Pedro morre na batalha de Alfarrobeira. Com ele, não morre, mas recua, a concepção de poder régio preeminente, na qual o rei e seus oficiais são elemento-chave.

Não é nossa intenção prosseguir a busca da problemática dos corregedores nas cortes, agora que o infante D. Pedro morreu. Mencionemos, todavia, que os procuradores do povo, nas cortes de Lisboa de 1459 (SOUSA, 1990, v. 2, p. 358-369SOUSA, A. As Cortes Medievais Portuguesas (1385-1490). Porto: INIC, 1990. 2 v.), pedem a extinção do cargo de corregedor e o reordenamento do sistema judicial. D. Afonso V não defere o pedido.

Concluindo: do jogo da imagem e da realidade sobra-nos a dialética (!) entre a noção clara dos princípios e perturbada prática da governança.

Referências

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  • VENTURA, M. G. A guerra como condição para a paz: alguns debates e meios logísticos no Portugal quatrocentista. Sep. da Revista da Faculdade de Letras, 5. Série, Lisboa, 2003.
  • 1
    A espantosa realidade das coisas, poema de Fernando Pessoa (heter. Alberto Caeiro): "A espantosa realidade das coisas / É a minha descoberta de todos os dias. / Cada coisa é o que é. / E é difícil explicar a alguém / quanto isso me alegra / E quanto isso me basta".
  • 2
    Artur Moreira de Sá (1952) questiona o local em que teria sido escrita, mas a designação, se bem que posterior a este estudo, é a habitualmente usada.
  • 3
    O bispo, aliás, alude ao Livro do Regimento de Príncipes, de Gil de Roma, que sabemos existir na livraria de D. Duarte.
  • 4
    Podemos ir mais longe porque os "obras", as "boas obras" a que todo o cristão é chamado, manifestam-se, na pessoa régia, pelo cumprimento das exigências do seu ofício real (VENTURA, 2014).
  • 5
    Trata-se uma crónica anónima, que Mendes dos Remédios assegura ter sido escrita por algum companheiro de armas, sendo portanto contemporânea do biografado ou feita imediatamente a seguir à sua morte (1 de Abril de 1432); Pinharanda Gomes (2009), dá como data provável da sua escrita o ano de 1433.
  • 6
    Baquero Moreno resume as queixas dos povos em cortes desde as de Lisboa de 1352 (MORENO,1989, p. 79 e ss.).
  • 7
    Querelas particularmente acesas com os prelados, na sequência das chamadas Leis Jacobinas, publicadas a 19 de Dezembro de 1419 (VENTURA, 2012).
  • 8
    De notar a sequência que o texto exprime entre: a Graça de Deus necessária à boa prática do ofício de reinar; a dignidade e excelência de todos os homens e o direito a serem regidos por boas leis; os oficiais de justiça como último elo dessa sequência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2014
  • Aceito
    03 Fev 2015
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