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O trabalho dos índios numa "terra muito destituída de escravos": políticas indigenistas e políticas indígenas na antiga Capitania de Porto Seguro (1763-1808)

The work of the Indians in a "land far devoid of slaves": Indigenous policies and Indian policies in the former Captaincy of Porto Seguro (1763-1808)

Resumos

Este artigo analisa a presença e a dinâmica do trabalho indígena na antiga Capitania de Porto Seguro, entre os anos de 1763 e 1808. Apresenta o projeto de colonização reformista elaborado para a referida região, com destaque para o papel dos índios enquanto mão de obra fundamental para alavancar os empreendimentos coloniais. A partir do diálogo com várias correspondências realizadas entre autoridades régias, com relatos de cronistas e viajantes e com outros documentos administrativos, demonstra como o surto econômico experimentado no atual extremo sul da Bahia no fim do período colonial se estruturou em um campo de forças que colocava em embate as políticas indigenistas e as políticas indígenas.

Porto Seguro; política indigenista; políticas indígenas; colonização reformista


This article analyzes the presence and the dynamics of indigenous labor in the former Captaincy of Porto Seguro, between the years 1763 and 1808. It presents the design of reformist colonization prepared for that region, highlighting the role of the Indians as the fundamental labor force that leverage the colonial enterprises. Through a dialogue with various correspondences between royal authorities with reports of travelers and chroniclers, and other administrative documents, it demonstrates how the current economic boom, experienced in southern Bahia in the late colonial period was structured in a force field, which put in conflict the indigenous policies and indigenous policies.

Porto Seguro; Indian policy; Indigenous policies; reformist colonization


Introdução1 1 Este artigo é uma versão modificada de partes da tese do autor defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia.

Nos últimos anos, uma renovada historiografia sobre a América portuguesa tem destacado o importante papel da mão de obra indígena na construção e reprodução da estrutura produtiva colonial. Em geral, esses estudos revelam como a exploração do trabalho escravo indígena desempenhou papel-chave nos processos de acumulação interna, especialmente nos períodos em que as elites coloniais em formação ainda não detinham liquidez efetiva para se aventurar no crescente mercado de escravos africanos. (Cf. SCHWARTZ, 1988SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550 - 1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.; FRAGOSO, 2010FRAGOSO, João. A Formação da Economia Colonial no rio de Janeiro e de Sua Primeira Elite Senhorial (Séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.; MONTEIRO, 1994MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Cia das Letras, 1994.). Ademais, têm igualmente demonstrado como os índios aldeados foram fundamentais não apenas na produção dos negócios dos colonos e nos serviços da coroa, mas também na formação de uma inestimável riqueza advinda dos negócios jesuíticos. (ALMEIDA, 2003ALMEIDA, Maria Regina Celestino. Metamorfoses Indígenas: cultura e identidade nos aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.; ASSUNÇÃO, 2004ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São Paulo: EDUSP, 2004.). Também tem sido analisado o lugar dos índios nas economias regionais no decurso da execução das reformas do reinado josefino e da implantação da política indigenista baseada no Diretório. (LOPES, 2005LOPES, Fátima Martins. Em Nome da Liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século XVIII. 2005. 669 f. Tese (Doutorado em História) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.; COELHO, 2005COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). 2005. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, 2005.). Este texto se inspira e dialoga com estas produções, no intuito de demonstrar que a economia mercantil desenvolvida na antiga Capitania de Porto Seguro, entre fins dos setecentos e princípios dos oitocentos, se estruturou no uso sistemático do trabalho indígena a partir da formulação de uma política indigenista que, embora orientada pelo Diretório, apresentava forma e sentido próprios que refletiam as especificidades daquela região.

As informações aqui apresentadas permitem afirmar que a história da antiga Capitania de Porto Seguro no fim do período colonial estava inextricavelmente imbricada à questão indígena. A importância dessa questão, obviamente, não se restringia ao peso demográfico daquela população (quase metade dos habitantes da capitania), nem apenas aos interesses dos colonos em explorar sua força de trabalho e expropriar seus territórios. Também não se limitava aos discursos e estatutos legais forjados pela coroa portuguesa e seus agentes políticos que, movidos pela ganância e ambição coloniais, buscavam legitimar e regulamentar o próprio processo de conquista e colonização. Antes mais, a questão indígena ganhava sentido porque se transformava em um problema resultante do conflito de projetos e interesses entre índios e luso-brasileiros, uma vez que a realização da colonização passava necessariamente pelas disputas e negociações com os próprios índios. Por isso, o que mais caracterizou as experiências aqui analisadas foi o campo de forças sobre o qual tais experiências se plasmaram. No cotidiano das povoações ou nas relações sociais de produção, as experiências vividas por índios, colonos e autoridades régias estavam delineadas pelos permanentes embates entre políticas indigenistas e políticas indígena.2 2 Neste texto, políticas indigenistas representam "o conjunto de medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas", refletindo "ideias e práticas relativas à inserção dos povos indígenas em sociedades subsumidas a estados nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para tratamento das populações nativas operados, em especial, segundo uma definição do que seja índios". (LIMA, 1995, p. 15). E, por sua vez, as políticas indígenas consistem no "conjunto de ações concretas elaboradas e executadas pelos povos indígenas no enfrentamento da situação colonial", manifestadas por meio de "alianças, fugas, rebeliões, acomodações, negociações e estratégias de sobrevivência física e cultural". (CANCELA, 2012, p. 21).

A política reformista em Porto Seguro e sua nova vocação econômica

Entre os papéis assinados pelo rei d. José I no Palácio de Nossa Senhora d´Ajuda, em 02 de abril de 1763, havia um decreto que determinava a introdução de uma nova política colonial para o território que pertencia à antiga Capitania de Porto Seguro. Esta ordem régia criava uma ouvidoria para a administração do governo temporal, com jurisdição em toda aquela comarca recentemente anexada à Capitania da Bahia (1758). Tal medida, antes de representar mais uma ação generalista do reinado josefino, deve ser compreendida como a principal política reformista planejada especificamente para a antiga donataria de Porto Seguro, cuja intenção se resumia a reorientar a política de colonização regional, com elaboração de um verdadeiro projeto de inserção de Porto Seguro no circuito comercial colonial. Como argumentava o monarca português, a criação de um novo "governo civil" em Porto Seguro se justificava diante do seu desejo de "fazer grandes progressos" e "beneficiar os vassalos da mesma capitania". (DECRETO, 1763DECRETO porque Sua Majestade há por bem erigir em Ouvidoria a Capitania de Porto Seguro, cuja Comarca se estenderá a todo seu distrito, nomeando para criá-la o Doutor Tomé Couceiro de Abreu, por tempo de três anos. Portugal, 02 abr. 1763, AHU_ACL_CU_005, Cx 150, D. 11510, 1763.).

A "Nova Ouvidoria de Porto Seguro" representava uma estratégia de inserção definitiva daquela região no movimento geral de reorientação da política administrativa nos territórios de além-mar. Afinal, durante o reinado de d. José I a coroa portuguesa executou um conjunto de medidas de centralização política, cujo principal objetivo estava assentado no desejo de expandir e consolidar o poder régio sobre os territórios do império português, estabelecendo-se uma rígida hierarquia institucional que depositava no governo central de Lisboa a responsabilidade de elaborar e fazer executar as ações de controle dos territórios de ultramar. (GOUVÊA, 2010GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-1808). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.). O Antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.). Sendo assim, essa política de centralização administrativa refletiu na antiga Capitania de Porto Seguro pela criação de um novo aparelho jurídico-administrativo, que seria encarregado de estender a autoridade monárquica àquele território, governado por meio da atuação de um oficial régio.

É importante destacar que na América portuguesa as ouvidorias não eram instituições limitadas apenas à esfera judicial. As funções desempenhadas pelos ouvidores rompiam os limites da magistratura e avançavam para o campo do governo e da administração. Embora fosse exigida a formação em direito civil ou canônico, os ouvidores acabaram por desempenhar "múltiplas funções", dentre as quais se destacavam a sentença, em primeira instância, de determinados processos cíveis e criminais, a fiscalização do trabalho das autoridades locais (como juízes, tabeliães e meirinhos), o acompanhamento das eleições dos oficiais da câmara e da guerra, o controle da arrecadação tributária, o fomento ao povoamento de suas comarcas, a promoção de benfeitorias para as povoações e o abastecimento regular de víveres para a população. (WEHLING, 2004, p. 36WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Direito e Justiça no Brasil Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.).

A implantação deste "governo civil" na antiga Capitania de Porto Seguro foi orientada pela Instrução para o ministro que vai criar a Nova Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro. Segundo Graça Salgado (1985, p. 16)SALGADO, Graça (org.). Fiscais e Meirinhos. Administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985., a elaboração de documentos dessa natureza, que serviam para "instruir os funcionários em suas respectivas áreas de atuação, bem como determinadas atribuições, obrigações e jurisdições dos diversos cargos e órgãos incumbidos de gerir a administração colonial", tornou-se uma prática bastante comum na tradição administrativa do império português. No contexto das reformas do reinado josefino, esses documentos constituíram importantes mecanismos de controle, racionalização e planificação da ação político-administrativa dos agentes régios nomeados para o serviço real nos territórios de além-mar. Por meio de instruções públicas ou secretas dirigidas a inúmeras autoridades coloniais, o governo português procurou executar uma política colonial que assegurasse a dilatação das fronteiras e o crescimento econômico da colônia americana.

A Instrução para a criação da Nova Ouvidoria de Porto Seguro, assinada por Sebastião José Carvalho e Melo em 30 de abril de 1763, possuía um conjunto de recomendações de ordem prático-política, distribuídas em 18 parágrafos. Essas ordens refletiam uma leitura da própria realidade colonial de Porto Seguro, apontava questões relacionadas ao governo civil, à ocupação territorial, à produção econômica e ao relacionamento com os povos indígenas. Conforme tradição jurídica da época, o conteúdo desse documento consistia mais em um rol de orientações políticas para uma plataforma de governo do que em um regulamento restrito à definição dos limites jurisdicionais da atividade do cargo de ouvidor. Por isso, a Instrução pode ser interpretada como um documento que retrata o projeto reformista para a colonização da antiga Capitania de Porto Seguro, evidenciando-se em seus parágrafos os princípios, as estratégias e as ações formuladas pela coroa portuguesa para uma nova inserção, mais efetiva e profunda, daquele território e daqueles povos no sistema colonial.

Um dos aspectos que mais chamam atenção na Instrução é o conjunto de parágrafos que orientava o redimensionamento da economia regional. Apoderando-se de princípios fisiocráticos, a coroa portuguesa estabeleceu a agricultura como a principal fonte de riqueza para os moradores, ao afirmar que "seu produto trará dinheiro em abundância para [os colonos] comprarem todos os negros que lhes forem precisos para adiantar suas plantações e dilatarem seus cabedais". Ao mesmo tempo, definiu como rota comercial prioritária o abastecimento interno dos centros urbanos coloniais, advertindo aos "novos colonos que não pod[ia]m ter maior riqueza do que lavrarem muita quantidade de frutos e algodão para socorrerem as duas maiores capitais do Grande Império do Brasil". (INSTRUÇÃO, § 9, 1763INSTRUÇÃO para o ministro (Tomé Couceiro de Abreu), que vai criar a Nova Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro. Palácio d'Ajuda, 30 abr. 1763, AHU_ACL_CU_ORDENS E AVISOS PARA A BAHIA, Cod. 603, 1763.). Desta forma, a nova política colonizadora buscava, no plano econômico, inserir de forma mais articulada a Capitania de Porto Seguro no sistema colonial na condição de região fornecedora de gêneros alimentícios para as cidades de Salvador e Rio de Janeiro.

Nessa estratégia econômica também se destacava a preocupação em diversificar as atividades produtivas pela exploração comercial de recursos naturais existentes em Porto Seguro. A intensificação da extração das preciosas madeiras das matas litorâneas logo foi identificada como uma atividade crucial para o crescimento do comércio na capitania, quando constava a notificação de que a coroa se comprometeria com o envio de mestre de ribeira para qualificar e coordenar os cortes das madeiras, sendo estabelecido o monopólio estatal na compra desse produto e a determinação de se construir uma feitoria no sítio mais adequado para o escoamento da produção. Também consta num dos parágrafos a determinação de analisar as condições geográficas para a pesca das baleias que rondavam a região do Arquipélago de Abrolhos, tendo em vista a construção de uma fábrica de azeite para exportação do óleo para as cidades de Salvador e Rio de Janeiro. Por fim, a coroa igualmente buscou ampliar a atividade pecuária, ordenando ao novo ouvidor que

[...] onde houver campinas suficientes mande Vossa Mercê estabelecer todos os currais de gado que couber no possível, porque além de ser uma das essenciais partes da abundância para os Moradores é uma das principais riquezas do Brasil e será um útil ramo do Comércio este dos gados para o sustento da Bahia e dos couros para aquela Cidade e para este Reino. (INSTRUÇÃO, §18, 1763INSTRUÇÃO para o ministro (Tomé Couceiro de Abreu), que vai criar a Nova Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro. Palácio d'Ajuda, 30 abr. 1763, AHU_ACL_CU_ORDENS E AVISOS PARA A BAHIA, Cod. 603, 1763.).

A última estratégia econômica proposta pela coroa portuguesa por meio da Instrução estava relacionada ao comércio. Como demonstrado anteriormente, a coroa pretendia fazer que a produção econômica de Porto Seguro fosse destinada ao mercado de Salvador e Rio de Janeiro, sendo necessária a criação de uma infraestrutura de transporte e comunicação para garantir o escoamento dos produtos. Por isso, três parágrafos do documento em análise determinavam medidas para ampliar os contatos comerciais da capitania, em que se ordenava a construção de uma estrada que ligasse Porto Seguro ao Espírito Santo, como forma de diminuir a distância entre aquela capitania e o Rio de Janeiro, uma vez que o contato com Salvador já se fazia mais regularmente por rotas marítimas. Sendo assim, a Instrução explicitava ao oficial régio que

[...] a comunicação da Nova Ouvidoria [de Porto Seguro] com a [Capitania] do Espírito Santo é sumamente interessante tanto ao serviço de Sua Majestade como ao bem comum daqueles moradores: Pelo que o ordena o mesmo Senhor que Vossa Mercê dê toda a providência que julgar necessária para que as duas ouvidorias se façam comunicáveis e visto o interesse recíproco que a ambas se segue. (INSTRUÇÃO, § 13, 1763INSTRUÇÃO para o ministro (Tomé Couceiro de Abreu), que vai criar a Nova Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro. Palácio d'Ajuda, 30 abr. 1763, AHU_ACL_CU_ORDENS E AVISOS PARA A BAHIA, Cod. 603, 1763.).

Este plano econômico proposto pela coroa portuguesa para a antiga Capitania de Porto Seguro pode ser interpretado como uma tentativa de instituir uma nova vocação para aquele território, baseada num modelo econômico calcado na produção de gêneros de subsistência e voltado para o abastecimento interno. Aliás, tal argumentação ganha maior sentido quando se considera que a redefinição da função econômica daquela capitania representava também uma medida fundamental para garantir a sustentação da economia do açúcar e do tabaco em Salvador e seu recôncavo, bem como para o abastecimento do novo centro administrativo do Brasil, sediado na cidade do Rio de Janeiro desde 1763. Portanto, é possível argumentar que a política reformista da coroa para Porto Seguro estava articulada com o conjunto das ações que visavam a reorganizar e fomentar o próprio sistema colonial na América portuguesa.

O lugar dos índios no novo projeto colonial

Ao elaborar a Instrução destinada a ser referência para a criação da Nova Ouvidoria de Porto Seguro, o secretário do reinado josefino, Sebastião José de Carvalho e Melo, não perdeu a oportunidade de inserir naquelas ordens as novas diretrizes da política indigenista da coroa portuguesa. Afinal de contas, o estadista lusitano sabia que, para redimensionar a colonização daquela região, transformando-a em um polo produtor de víveres para a sustentação das cidades de Salvador e Rio de Janeiro, fazia-se necessário e urgente uma reformulação do estatuto jurídico e social dos povos indígenas naquela sociedade colonial. Não foi à toa que, na referida Instrução, oito dos seus 18 parágrafos tratavam diretamente da questão indígena, evidenciando-se a dimensão e a importância que os índios detinham para a realização do projeto de colonização reformista na antiga Capitania de Porto Seguro.

Embora tenham sido classificados pelo futuro marquês de Pombal como indivíduos em "estado de feras", os índios de Porto Seguro foram concebidos como agentes potenciais para a colonização da antiga donataria. A eles caberiam as funções de camponês, povoador e vassalos - o que, em outros termos, significava produzir para o mercado colonial, atuar na ocupação do território e defender os interesses da monarquia portuguesa. Nessa perspectiva, o parágrafo terceiro da Instrução determinava a necessidade de "aproveitar toda aquela gente que ainda resta[va]" nas povoações e sertões de Porto Seguro. (INSTRUÇÃO, § 3, 1763INSTRUÇÃO para o ministro (Tomé Couceiro de Abreu), que vai criar a Nova Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro. Palácio d'Ajuda, 30 abr. 1763, AHU_ACL_CU_ORDENS E AVISOS PARA A BAHIA, Cod. 603, 1763.).

De início, o uso do verbo "aproveitar" merece aqui uma atenção especial. Na experiência colonizadora europeia, a estratégia de aproveitamento das populações nativas dos territórios conquistados se transformou em um dos elementos fundamentais da política de dominação e exploração das possessões coloniais. No caso específico do império ultramarino lusitano, como bem destacou Russel-Wood (1998, p. 16)RUSSEL-WOOD, A. J. Um mundo em movimento: os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Lisboa: DIFEL, 1998., a extensão da soberania portuguesa aos territórios coloniais foi construída "com e não isoladamente contra os povos com os quais [os portugueses] entraram em contato". No contexto particular da segunda metade dos setecentos, a reedição dessa estratégia colonizadora de aproveitamento dos povos nativos ganhou novas conotações relacionadas ao ideário iluminista e às demandas conjunturais da própria coroa portuguesa, resultando na generalização de uma política indigenista que pretendia a completa integração dos índios à sociedade colonial, a partir de um conjunto de medidas que visavam à assimilação, por parte dos indígenas, do modus vivendi europeu, tanto nos aspectos culturais quanto nos aspectos políticos e econômicos.

Na antiga Capitania de Porto Seguro, o aproveitamento dos índios para a execução do projeto reformista de colonização demandava uma crítica contundente à velha política indigenista colocada em prática desde o século XVI. Isso porque a estrutura e a dinâmica da sociedade colonial porto-segurense estavam assentadas nas práticas da escravidão indígena e no uso dos serviços dos índios aldeados; e, ainda que a "reforma jesuítica" (levada a cabo em 1759) tenha resultado na decretação da liberdade aos índios e na extinção dos aldeamentos, tais mudanças não apresentaram novas regras capazes de normatizar as relações entre colonos e indígenas na região. Ao refletir sobre esse processo, Sebastião José de Carvalho e Melo destacou a necessidade de superação do "costume daquelas partes" de se "desprezarem inteiramente os índios", afirmando também que essa prática

[...] produziu as prejudicialissimas consequências de, por uma parte, se perderem toda aquela imensidade de almas, e, pela outra, de se conservarem em brutalidade todos aqueles homens que, criados em polícia, deveriam ter concorrido para a cultura das terras, para o descobrimento dos sertões, para a governança das repúblicas e para as navegações. (INSTRUÇÃO, § 3, 1763INSTRUÇÃO para o ministro (Tomé Couceiro de Abreu), que vai criar a Nova Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro. Palácio d'Ajuda, 30 abr. 1763, AHU_ACL_CU_ORDENS E AVISOS PARA A BAHIA, Cod. 603, 1763.).

Assim, de acordo com os argumentos pombalinos acima apresentados, a viabilidade do projeto colonizador formulado pelo reinado de d. José I para a antiga Capitania de Porto Seguro estava condicionada ao aproveitamento dos índios como agentes da própria colonização, cuja possibilidade dependia centralmente da execução de um programa de transformação cultural baseado na política assimilacionista que já estava em desenvolvimento no norte da América portuguesa. A criação da Nova Ouvidoria de Porto Seguro, portanto, não representou apenas a conclusão do processo de secularização iniciado com a destituição dos aldeamentos, a expulsão dos jesuítas e a incorporação da donataria ao patrimônio da coroa. Antes mais, a instituição desse novo aparato jurídico-administrativo representou um momento oportuno para completar a aplicação da nova política indigenista em Porto Seguro, recorrendo-se, nesse momento, ao uso do Diretório dos Índios como principal código legal para conferir poder e legitimidade às autoridades coloniais na execução das medidas que visavam à sua efetiva colonização.

De acordo com a instrução encaminhada para orientar a criação da Nova Ouvidoria de Porto Seguro, os índios aliados da capitania deveriam ser incorporados à sociedade colonial por meio da "inviolável" observação do Diretório de 1757. Criado no contexto da demarcação das fronteiras da colônia americana e destinado originariamente às povoações indígenas da região amazônica, este estatuto legal foi posteriormente estendido para ser executado em toda a América portuguesa e se transformou no principal referencial indigenista do fim do período colonial. Com uma forte política assimilacionista, o Diretório apresentava como suas principais medidas a extensão da vassalagem aos índios, a substituição dos missionários por párocos, a transformação das aldeias em vilas, a introdução de administradores temporais, a obrigação do uso da língua portuguesa, a transformação dos indígenas em pagadores de impostos, o incentivo ao casamento com brancos, o estímulo à ocupação dos cargos da governança local e o fomento à produção agrícola autônoma. (Cf. ALMEIDA, 1997ALMEIDA, Rita Heloísa de. O Diretório dos índios: um projeto de "civilização" no Brasil do Século XVIII. Brasília: Editora UnB, 1997.; DOMINGUES, 2000DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.; SAMPAIO, 2001SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos Partidos: etnia, legislação e desigualdade na colônia. 2001. Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2001.; COELHO, 2005COELHO, Mauro Cezar. Do sertão para o mar: um estudo sobre a experiência portuguesa na América, a partir da Colônia: o caso do Diretório dos Índios (1751-1798). 2005. Tese (Doutorado em História) - Universidade de São Paulo, 2005.).

Colonos e autoridades régias não receberam esta nova legislação sem confrontá-la com as condições políticas, econômicas e culturais de Porto Seguro. Seguindo uma tradição de flexibilização da política indigenista, traduziram o Diretório para a realidade regional, atentando para suas demandas imediatas e para as especificidades dos grupos indígenas residentes naquela capitania. Assim surgiram as Instruções para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, documento elaborado pelo ouvidor José Xavier Machado Monteiro, que mesclava a orientação civilizatória pombalina com as medidas pragmáticas típicas do mercantilismo reformista português. Transformando-se no principal instrumento viabilizador do redimensionamento da colonização na antiga Capitania de Porto Seguro, este regimento trouxe uma grande inflexão na questão da distribuição da mão de obra indígena, assegurando as condições necessárias para transformar a região num celeiro de víveres para Salvador e Rio de Janeiro. (INSTRUÇÕES, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.).

As Instruções e a organização da mão de obra indígena

Com a externalização do papel dos índios como força de trabalho predominante na região, as Instruções para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguroestabeleceram um novo modelo de aproveitamento da mão de obra indígena para os empreendimentos coloniais. Mediante regras bem definidas, organizou-se e se disponibilizou um numeroso contingente de trabalhadores indígenas, que seria arregimentado de forma compulsória e distribuído conforme idade, sexo e suposto grau de civilização. Além disso, este novo modelo estava ancorado em um rígido sistema de vigilância e punição, que permitia o controle coercitivo de boa parte desses trabalhadores.

Para os índios em idade pueril (até 7 anos) e juvenil (de 7 até 15 anos), além da frequência obrigatória à escola, o regimento de José Xavier Machado Monteiro determinava a obrigatoriedade do trabalho na companhia dos brancos com a finalidade pedagógica de "se civilizarem espiritual e temporalmente". Afinal, segundo argumentava o ouvidor, "nem todos [os índios] tinham propensão para chegarem a saber perfeitamente ler, escrever e contar", sendo, por isso, possível "tirar [das escolas] os mais rudes e inaptos para os disporem a ofícios ou a soldada e depois os brutos a proporção de sua idade, capacidade e força para os ministérios a que se houverem de aplicar". Curiosamente, o pretexto legal para justificar tal proposição foi tomado de empréstimo das Ordenações do Reino, as quais determinavam que os filhos órfãos de pais que trabalhavam em ofícios mecânicos (como sapateiro, pedreiro, moleiro) ou os filhos de pais dementes deveriam ser destinados a aprender um ofício ou a prestar serviço, a soldos regulares, a terceiros a fim de que pudessem servir ao bem comum do Estado e da sociedade. Para o bacharel Machado Monteiro, "o mesmo parec[ia] justo [que] se observ[asse] com os filhos de índios, ainda que tenham pais vivos, porque por dementes e pródigos se reputam governados por Diretores como seus tutores". (INSTRUÇÕES, § 9 e 10, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.).

Assim, os índios em idade escolar seriam distribuídos para as atividades laborais conforme "sua vontade de servir" ou de acordo com a demanda dos colonos, ou segundo sua "brutalidade". A priori, seriam destinados a aprender ofícios mecânicos todos os que "pedirem para lhes ensinarem" e todos os que fossem solicitados pelos mestres ou amos. Depois, os outros índios classificados como mais brutos ou rudes seriam destinados ao "serviço da lavoura" ou para "o da navegação e pescaria". Em todos os casos, contudo, não poderiam "por modo algum [...] servirem a homens cativos, nem a negros, ainda que libertos [...], mas tão somente a brancos ou a pardos meio disfarçados, que vivam, se tratem e estimem como os mesmos brancos e hajam de estimar e bem educar [aos índios]". (INSTRUÇÕES, § 11, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.). Nestes termos, ainda que o discurso legislativo reproduzisse as ideias iluministas de transformação da cultura indígena por meio do convívio com os brancos, a decorrência mais imediata dessa medida estava centralizada na disponibilização de uma força de trabalho regular e necessária para impulsionar os negócios dos colonos luso-brasileiros no contexto geral da execução do projeto josefino, que buscava redimensionar o lugar da Capitania de Porto Seguro como polo produtor de gêneros alimentícios para Salvador e Rio de Janeiro.

Aos índios "amestrados", exigia-se uma relação de subordinação a seu respectivo mestre ou amo, pela qual se julgava possível não somente ensinar determinado ofício como também os ministérios próprios da vida civilizada. O processo de aprendizagem não incluía nenhuma regra ou norma didático-pedagógica, geralmente era realizado por meio da convivência cotidiana, da observação e imitação dos movimentos e da exaustão dos serviços. De acordo com o regimento de Machado Monteiro, os índios "amestrados" deveriam permanecer na condição de aprendizes até o momento em que casassem, recebendo durante todo o período a assistência de seu mestre "com o sustento necessário" e com o pagamento irrisório de salários anuais baseados única e exclusivamente em vestimentas.

Aos índios destinados à "soldada", por sua vez, a relação entre trabalhador e empregador se baseava no cumprimento da tabela de preços e serviços definida pelo regimento do ouvidor José Xavier Machado Monteiro. Antes de se constituir como prestações de serviços de curta duração, essa modalidade de trabalho regulamentada na Capitania de Porto Seguro permitia a expropriação da mão de obra indígena por longos anos, conforme negociação entre o colono e os índios, sob a intermediação direta dos diretores de cada povoação. Nos dois primeiros anos de serviço, o pagamento do trabalho indígena deveria ser feito em forma de vestuário, cabendo nos anos seguintes a pactuação de soldos anuais de 3 mil a 8 mil réis.

Para as mulheres indígenas em idade escolar (até 15 anos), o regimento local também definiu uma política específica de regulamentação do trabalho, condizente com o próprio lugar das mulheres na sociedade de Antigo Regime. Assim como os homens, as índias também deveriam ser distribuídas para a companhia de mulheres brancas e divididas em três categorias: primeiro, as consideradas "mais zelosas da conservação de sua honra e honestidade" seriam destinadas a "se civilizarem" por meio do simples convívio com os colonos luso-brasileiros; segundo, as que se dispusessem a trabalhar "de portas adentro", para desenvolver toda sorte de trabalho doméstico; e, terceiro, as que quisessem aprender a "fiar, coser e biltrar". Para todos os casos, as índias estavam condicionadas a longos anos de trabalho, em que os três primeiros eram pagos exclusivamente com vestimenta, e os demais, com soldos anuais entre 2.400 e 5.000 réis.

Quadro 1.
Relação de pagamento da mão de obra indígena Fonte: INSTRUÇÕES, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777..

Além dos índios em idade escolar, o regimento indigenista de José Xavier Machado Monteiro procurou organizar a grande massa de índios em idade apta ao trabalho direto que se encontravam na faixa etária entre 15 e 50 anos. Segundo as regras estabelecidas pelo ouvidor de Porto Seguro, todos os índios que fossem considerados já civilizados deveriam trabalhar na "agricultura própria", determinando-se a obrigatoriedade da abertura de um roçado de, no mínimo, duas mil covas de mandioca por família, dividido em duas partes para que "acabando de plantar um lhes façam, dentro do mesmo ano, segundo a estação do tempo, derrubar mato para outro". (INSTRUÇÕES, § 34, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.). Além disso, procurava-se fomentar o comércio colonial com determinação também do plantio de algodão, milho, feijão, batata, fumo, cacau e café, nas roças indígenas. Por fim, para suprir a própria demanda alimentar de cada família, obrigava-se igualmente o cultivo de árvores frutíferas e a criação de aves nos quintais das casas nas povoações. (INSTRUÇÕES, § 35 e 37, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.). Com essas medidas, o ouvidor de Porto Seguro buscava assegurar a proposta do Diretório de formação de um estrato indígena camponês, acentuando-se o papel dos índios como encarregados pela produção regular de gêneros alimentícios, de modo que se definiriam as bases sob as quais atuariam: a pequena propriedade fundiária e o regime de trabalho familiar.

Por outro lado, para os índios considerados "ociosos", assim como para "todos aqueles que não se trata[ssem], estima[ssem] e traja[ssem] como os brancos", as Instruções de Machado Monteiro prescreviam sua distribuição para os "serviços alheios", com disponibilização para os colonos de um imensurável contingente de mão de obra exclusivamente destinada aos trabalhos manuais e agrícolas. Segundo constava no referido regimento indigenista, tais índios trabalhariam "por jornal para os serviços dos brancos e pardos que os pedi[ssem], assim [no trabalho] da terra como do mar, conforme aptidão que tive[ssem] e conveniência dos preços estipulados". (INSTRUÇÕES, § 39 e 40, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.). Essa modalidade de trabalho se constituirá naquela de maior predominância durante a execução da colonização pombalina na antiga Capitania de Porto Seguro, evidenciando o verdadeiro lugar de mão de obra subjugada ocupado pelos povos indígenas neste contexto.

Para assegurar o cumprimento dessas diretrizes relacionadas ao trabalho indígena, as Instruções para o governo dos índios determinavam ainda um rígido sistema de vigilância e punição aos índios, centralizado na figura do diretor. Com o objetivo de controlar de forma racionalizada e planificada a força de trabalho indígena, existiam em cada povoação dois livros para que os diretores registrassem "o nome do índio ou índia, de quem é filho, aonde habita o pai, a quem é dado, em que dia, se a ofício ou a soldada, com que cláusulas e com que salário e vestuário". (INSTRUÇÕES, § 21, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.). Da mesma forma, cabia aos diretores a realização semestral de uma vistoria nas roças, oficinas e demais locais de trabalho para a certificação da presença e da produtividade dos índios. Por fim, com a intenção de manter a ordem, evitar os maus exemplos e coibir o antitrabalho, os diretores eram também autorizados a prender e castigar "com alguns dias de tronco ou horas de [ar]golinha" todos os índios que praticassem ou incentivassem a fuga, a vadiagem ou a ociosidade. (INSTRUÇÕES, § 23, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.).

Trabalho indígena, negócios coloniais

A mão de obra indígena se transformou, portanto, na peça fundamental do sistema produtivo que emergiu na antiga Capitania de Porto Seguro no fim do período colonial. A política indigenista pombalina ali executada, sobretudo a tradução do Diretório,elaborada pelo ouvidor José Xavier Machado Monteiro, cumpriu papel central na organização da distribuição dessa mão de obra, o que permitia a ampliação da oferta de trabalhadores, a redução dos custos de produção e a potencialização da expansão das atividades agrícolas, extrativistas e manufatureiras.

Com a implantação do novo regime de distribuição da mão de obra, um número surpreendente de índios com até 15 anos de idade foi incorporado compulsoriamente ao mundo do trabalho. Julgadas inaptas para o aprendizado das letras e dos números, centenas de crianças foram excluídas das listas escolares para serem disponibilizadas aos colonos luso-brasileiros. Nas residências dos brancos e sob sua tutela, esses indivíduos estavam obrigados a trabalhar como prestadores de serviços ou como aprendizes de algum ofício mecânico. Em média, trabalhavam cerca de três anos em cada moradia, recebendo como salário basicamente o vestuário e a alimentação. Com tais indícios, não seria exagero supor que os colonos se apropriaram dessas crianças como um simples instrumento de produção, impondo-lhes um regime de trabalho de fronteiras bastante tênues com a escravidão. Aliás, em vários momentos, autoridades coloniais e colonos fizeram referência à escravidão como um regime ideal para a disciplinarização dos meninos índios, como pode ser observado nesse trecho de uma carta do ouvidor Machado Monteiro:

Serão perto de 400 os que atualmente existem de um e outro sexo distribuídos a ofícios e soldadas pelas casas dos mesmos brancos e se tivesse a onde assim colocar os mais creio que dentro em poucos anos se veriam todos tão civilizados e ladinos, como bem mostra a experiência com os negros boçais que saem dos sertões da África para América. (CARTA, doc. 8581).

As índias postas à soldada conheceram desde muito cedo o árduo trabalho doméstico que lhes era reservado nas casas das famílias brancas. Destinadas a aprender os "ministérios próprios do seu sexo", as pequenas índias acabavam por servir nas atividades de limpeza e asseio da casa, na produção e preparação da comida, na fabricação e utilização de pequenos equipamentos domésticos e na fiação e higienização das roupas dos colonos luso-brasileiros. Em certa medida, o domínio de um conjunto de saberes e fazeres úteis à sobrevivência na colônia muito contribuiu para a preferência das índias de realização dos afazeres domésticos. Afinal, tecer redes, traçar esteiras, fabricar tigelas, produzir farinha e preparar beijus, angus e toda sorte de alimentos derivados da mandioca exigiam o domínio de conhecimentos e técnicas próprias da cultura indígena que se tornaram fundamentais para a reprodução da vida humana naquela sociedade. No entanto, também contava nessa escolha a ausência de recursos para aquisição de escravas africanas, o que fez da disponibilização das meninas indígenas uma alternativa muito bem aceita pelas famílias luso-brasileiras. Não por outra razão, essa prática se transformou num padrão dominante nas vilas de índios de Porto Seguro, onde

as meninas órfãs e as filhas daqueles que lhes dão má criação, [eram] distribuídas, na falta [...] de mestras públicas, pelas casas daquelas mulheres brancas e honestas que se querem obrigar a ensiná-las e trazê-las bem vestidas de vestido semanário e festivo. (CARTA, doc. 8446).

Aos meninos indígenas, o sistema de distribuição implantado na capitania também reservava severas condições de trabalho. A generalização da repartição de índios como aprendizes possibilitou aos luso-brasileiros que possuíam algum ofício o rápido acesso a uma representativa força de trabalho, de modo que, em 1772, o ouvidor de Porto Seguro noticiou que não havia um único oficial mecânico que não tivesse pelo menos um índio à sua disposição. Da mesma forma, os meninos que foram distribuídos à soldada compuseram parte da mão de obra utilizada pelos colonos na dilatação da produção agrícola, fazendo que, em 1775, a lavoura de mandioca sofresse uma surpreendente duplicação no número de covas plantadas. (CARTA, 1772CARTA do ouvidor da capitania de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, à rainha, queixando-se do abuso praticado pelo vigário da Vila de São Mateus, que excomungou o juiz ordinário de Vila Viçosa, Manuel Nunes da Costa, que tinha ido para lá, desempenhar serviços, sob suas ordens. Porto Seguro, 10 jan. 1778, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 9551, 1778.; CARTA, 1775CARTA do ouvidor da capitania de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, à rainha, queixando-se do abuso praticado pelo vigário da Vila de São Mateus, que excomungou o juiz ordinário de Vila Viçosa, Manuel Nunes da Costa, que tinha ido para lá, desempenhar serviços, sob suas ordens. Porto Seguro, 10 jan. 1778, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 9551, 1778.).

Os índios maiores de 15 anos, por sua vez, eram distribuídos periodicamente aos colonos para prestar os "serviços alheios". De acordo com as Instruções para o governo dos índios, se enquadravam nesses serviços "tudo o que em Portugal se faz por homens mecânicos", o que, em outras palavras, correspondia a um sem-número de atividades dos mais variados ramos produtivos. Na questão da remuneração, diferente da tabela de preços fixados para os meninos e meninas, os índios adultos receberiam por jornada de trabalho, sendo os preços combinados em comum acordo entre eles, os colonos e os diretores, levando-se em consideração a especialidade, o volume e a natureza do trabalho.

Nesse esquema, as diferenças econômicas locais permitiram a montagem de diferentes preços sobre os serviços indígenas, potencializando a exploração da mão de obra conforme as situações específicas de cada povoação. Deve-se destacar que apenas aqueles índios que serviam à república, se aplicavam ativamente à lavoura própria e se comportavam "como se fossem brancos" estavam isentos da prestação de serviços alheios, sendo a autoridade de julgar tal isenção atribuída aos diretores, o que permitia uma constante violação dessa regra. (INSTRUÇÕES, § 39-42, 1777INSTRUÇÕES para o governo dos índios da Capitania de Porto Seguro, que os meus Diretores ao de praticar em tudo aquilo que não se encontrar com o Diretório dos Índios do Grão-Pará. José Xavier Machado Monteiro. Porto Seguro, ant. 1777, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9494, 1777.).

Em quase todas as vilas da capitania, um dos ramos que mais demandaram o emprego da mão de obra indígena foi o de extração, transporte e beneficiamento de madeiras. Estas atividades, como se sabe, há muito estavam inseridas nas relações sociais de produção da região, em que se difundia a grande habilidade e importância da mão de obra indígena para sua realização. Afinal, não era apenas a força motriz dos índios que interessava aos colonos, mas também o domínio de conhecimentos botânicos que se tornaram fundamentais para a exploração destes recursos naturais, sobretudo nos aspectos relacionados ao ciclo natural das florestas, às qualidades específicas de cada espécie e à própria habilidade da vida nas matas. Não por outra razão, o colono João Xavier da Arruda argumentava que "quase todos [os índios eram] aptos e mostra[va]m ter natural propensão" para os serviços relacionados ao trato com as madeiras nas vilas de Porto Seguro. (AUTO, 19/10/1803AUTO de inquirição de testemunhas a que procedeu o Ouvidor interino de Porto Seguro, Sargento-mor Francisco Dantas Barbosa, para se informar do estado de civilização dos índios. Porto Seguro, 19 set. 1803, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 26334, 1803.).

Esse tipo de trabalho envolvia um complexo e diversificado sistema de produção que extrapolava as atividades de corte e transporte de madeiras. Nos diversos documentos consultados, muitos índios estavam classificados como "serralheiros", "carapinas", "serradores", "casqueiros", "falqueadores" e "apanhadores de paus", denotando não apenas uma divisão de trabalho especializado no interior da atividade madeireira, como também a existência de várias etapas a serem realizadas conforme a espécie trabalhada e o tipo de produto almejado. Aliás, deve-se destacar que dessa atividade resultava uma multiplicidade de produtos, tais como as toras de madeiras de lei destinadas à construção civil e naval, os tabuados produzidos para a fabricação das caixas de açúcar e, por fim, as cordas, estopas e cabos produzidos para serem usados na navegação, na construção naval e no próprio arrasto das madeiras. O comércio destes produtos também contribuiu para conectar a antiga Capitania de Porto Seguro ao circuito mercantil colonial, principalmente à crescente indústria naval, que expandia nos estaleiros de Salvador e Rio de Janeiro no fim dos setecentos.

Os índios de algumas vilas se especializaram com maior intensidade na atividade madeireira, principalmente os que pertenciam a povoações que possuíam ricas matas em seus territórios. Os Meniãs de Belmonte, por exemplo, desde o século XVII estavam engajados nos serviços da floresta, para o que eram considerados "convenientíssimos para o trabalho nos cortes da madeira". (OFÍCIO, 1764OFÍCIO do ouvidor de Porto Seguro, Tomé Couceiro de Abreu, ao [ministro dos negócios do Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado] no qual transmite muitas e interessantes informações, sobre povoações, rios, população e madeiras da sua capitania. Porto Seguro, 16 jun. 1764, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 35, D. 6508, 1764.). Na vila do Prado, muitos eram os índios que "tira[va]m madeiras, embiras e estopas" para os colonos, que aproveitavam o fato de eles serem "bons falqueadores e serradores". (INFORMAÇÃO, 1803INFORMAÇÃO de alguns moradores da Vila do Prado, dirigida ao Ouvidor Francisco Dantas Barbosa, sobre os índios. Vila do Prado, 16 out. 1803, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 26333, 1803.). Os indígenas das vilas de Trancoso e Verde também viviam da prestação de serviços em que produziam "diversos produtos da floresta", dentre os quais se destacavam "toras de pau, gamelas (bacias de madeira) e canoas, além de algumas embira e estopa". (WIED MAXIMILIAN, 1989, p. 233WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Trad. Edgar S. de Mendonça; Flávio P. de Figueiredo. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Editora da USP, 1989.).

No entanto, em conformidade com as intenções metropolitanas, foi na atividade agrícola que a força de trabalho indígena mais se destacou. Requisitados para trabalhar nas roças de mandioca, milho, feijão, arroz, algodão e cana, os índios eram divididos em esquadras de, no máximo, seis integrantes e prestavam serviços por até três meses para cada colono. Em geral, executavam nesse trabalho as atividades de derrubada da mata, limpeza e preparação do terreno, plantio e colheita dos frutos e, posteriormente, beneficiamento e transporte para as sedes das povoações. Segundo observou o inglês Tomas Lindley (1969, p. 154), a prestação de serviços a jornal representava a base da produção agrícola da capitania, uma vez que "muitos [eram] os índios da costa [que] se assalaria[va]m aos lavradores portugueses, cultivando, ao mesmo tempo, as próprias lavouras".

Como a principal riqueza da terra, na cultura da mandioca era que os colonos empregavam a maior parte dos índios adultos. Embora realizado mediante práticas e técnicas agrícolas bastante rudimentares, o plantio da mandioca não demandava muito trabalho árduo. Em terrenos já abertos, o trabalho dos índios se limitava a limpar a terra e levantar as covas, que consistiam em pequenos montes de dois palmos de altura, dispostos alinhadamente a uma distância de três palmos uns dos outros. Em seguida, plantavam-se em cada cova dois ou três pedaços do caule do próprio pé de mandioca (chamados de manivas), de onde brotava o arbusto em poucas semanas, sem que fosse preciso rega da terra, necessária em semeadura. Nos terrenos ainda virgens e ocupados por matas primárias, por sua vez, o trabalho indígena era mais prolongado, pois tinha-se que fazer a derrubada do matagal, acompanhada pela queimada dos destroços para a limpeza do terreno. (DESCRIÇÃO, 1799DESCRIÇÃO da cultura da Capitania da Bahia, em cumprimento da ordem régia de 4 de janeiro de 1798, feita pelo secretário da Mesa de Inspeção da Bahia, José da Silva Lisboa. Bahia, 15 mar. 1799, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 98, D. 19238-19239, 1799.).

A relativa facilidade do plantio da mandioca contribuiu para a expansão das áreas cultivadas nas cercanias das novas povoações porto-segurenses. Um colono com uma roça já aberta, ao contratar uma esquadra de seis índios, conseguia obter, em apenas um mês de trabalho, cerca de 30 mil covas de mandioca, o que lhe rendia, no mínimo, surpreendentes 600 alqueires de farinha. Ademais, após o plantio das manivas, o mandiocal demandava apenas algumas capinas periódicas a fim de extirpar as ervas daninhas, que podiam ser feitas, pelo menos, uma vez por mês. No período de nove a 18 meses que se esperavam até a realização da colheita das raízes, expedições de vigilância também se faziam necessárias para evitar o roubo ou perda das mandiocas, principalmente a causada pelas formigas, que atacavam e destruíam rapidamente as plantações.

Segundo J. Barickman (1995, p. 276)BARICKMAN, B .J. "The indians", "Wild Heathens", and settlers in Souther Bahia in the late Eighteenth and early Nineteenth Centuries. Americas, 51, v. 3, 1995., um "padrão escalonado de plantio" movia a economia agrícola da mandioca. Como a planta não obedecia a nenhuma sazonalidade inerente, os lavradores podiam abrir roçados em diferentes épocas do ano, possibilitando diversos níveis de maturação dos mandiocais e uma distribuição mais uniforme da força de trabalho neles empregada. Com isso, tornava-se possível a realização de colheitas durante todo o ano, pelo que se garantia a produção da farinha de forma intermitente. Nos roçados de mandioca de Porto Seguro, o uso desse "padrão escalonado" permitia o aproveitamento racional da mão de obra indígena contratada, que, nos três meses de serviços, podia trabalhar em todas as etapas da produção e do beneficiamento da mandioca.

A produção da farinha consistia na etapa mais delicada desta cultura. Com poucas alterações tecnológicas, o método produtivo era baseado na tradição secular dos povos indígenas, com o acréscimo pontual de alguns equipamentos de metal e a introdução de engenharias de moagem mais modernas para acelerar o ritmo da produção. Em geral, o beneficiamento das raízes era realizado nas próprias roças, onde se instalavam pequenas choupanas equipadas com moendas giratórias, grandes fornos de lenha, alguns tachos de cobre e barro, além de prensas feitas de palha ou de madeira. Em 1816, ao percorrer os arredores da vila de Alcobaça, o príncipe Maximiliano se deparou com muitos galpões dedicados ao fabrico de farinha e relatou com certo espanto sua composição:

Nas fazendas esparsas se viam amplos alpendres, nos quais se preparavam grandes quantidades de farinha de mandioca, produto principal da região. Abertos de todos os lados, são constituídos simplesmente de cobertura de palha ou folhas de palmeira, suportada por moirões, resguardando muitos tachos grandes para secar farinha murados em volta. (WIED MAXIMILIAN, 1989, p. 181WIED MAXIMILIAN, Prinz Von. Viagem ao Brasil. Trad. Edgar S. de Mendonça; Flávio P. de Figueiredo. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; Editora da USP, 1989.).

Nessas casas de farinha, os índios trabalhavam atentamente no complexo processo de beneficiamento da mandioca. Ali raspavam, lavavam e ralavam as raízes, produzindo-se uma massa fragmentada que passava a ser prensada para retirar seu suco venenoso de ácido cianídrico e, após um dia de decanto, era peneirada e torrada até ficar seca e consistente. Com os resíduos dessa produção, os índios ainda preparavam outros produtos também bastante valorizados, dentre os quais se destacava a tapioca, que correspondia ao sedimento branco e fino que se acumulava no fundo do tacho posto embaixo das prensas. Esse processo de produção da farinha foi descrito por Tomas Lindley no início dos oitocentos, quando visitou a fazenda de um colono nas cercanias de Porto Seguro e pôde observar os índios de vila Verde trabalhando na sua preparação:

Arrancadas as raízes e retirada sua casca, resta uma substância farinácea, leitosa e glutinosa, que é reduzida a pequenos pedaços, num ralador giratório, recoberto com uma chapa de cobre perfurado, caindo tudo num cocho que lhe fica por baixo. É então posta a secar em panelas rasas, a fogo brando, até que se evapore toda umidade, assemelhando-se, então, a uma substância granulada e seca, pronta para ser usada. A tapioca é o suco da raiz, escorrido das raspas e granulado da mesma maneira, a fogo brando. (LINDLEY, 1969, p. 52LINDLEY, Tomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1969.).

Os índios ainda eram empregados no transporte da farinha para as vilas e no carregamento das embarcações. Com isso, participavam de todas as etapas de produção e compunham a base sobre a qual se estruturava a economia agrícola mercantil porto-segurense. Ao final do exaustivo trabalho, cada índio podia receber, no máximo, cerca de 1.600 réis por cada 20 alqueires de farinha produzida. Deste valor, o farinheiro ainda podia descontar os gastos que contraíra com a alimentação da esquadra e pagar até a metade dos salários na forma de vestimentas, ferramentas e canadas de aguardente. Do pouco que restava, os índios ainda eram obrigados a entregar uma parte aos diretores, que tinham expressa ordem de "empregar em vestuário, ferramentas e outros móveis, de que mais carec[ia]m". Daí se entende a informação do ouvidor Machado Monteiro, em 1777, de que "pelos lucros de seu trabalho, nenhum índio anda[va] nú. Antes todos universalmente quando menos de camisa e calção". (RELAÇÃO, doc. 9493RELAÇÃO individual do que o Ouvidor da Capitania de Porto Seguro (José Xavier Machado Monteiro), nela tem operado nos 10 para 11 anos que, tem decorrido desde o dia 3 de maio de 1767 até o fim de junho de 1777. Porto Seguro, 27 de julho de 1777. AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 51, D. 9493, 1777.). Em verdade, antes de trazer algum lucro aos índios, o regime de produção imposto pela legislação indigenista garantia a emergência da lucrativa economia da farinha na antiga Capitania de Porto Seguro, quando alimentava a riqueza e o poder de proprietários e comerciantes luso-brasileiros.

Para além do trabalho alheio, todos os índios adultos também estavam obrigados a trabalhar nas suas roças particulares quando não estivessem distribuídos a serviço dos colonos. Essa espécie de "brecha camponesa" consistia numa estratégia que visava a assegurar a subsistência das famílias e combater o modo de vida indígena pouco afeito à ideia de produzir excedentes para a comercialização. (REIS; SILVA, 1989REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito:a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.). Não à toa, a fim de ampliar a produção agrícola e fomentar o comércio colonial, a legislação indigenista obrigava o plantio mínimo de duas mil covas de mandioca por família, o que representava uma produção de quase 40 alqueires de farinha, sendo este um volume muito superior ao que era exigido para a alimentação anual de um grupo familiar de seis integrantes. Ao analisar essa imposição, J. Barickman (1995, p. 330)BARICKMAN, B .J. "The indians", "Wild Heathens", and settlers in Souther Bahia in the late Eighteenth and early Nineteenth Centuries. Americas, 51, v. 3, 1995. lançou a hipótese de que a coroa portuguesa objetivava transformar as populações indígenas porto-segurenses numa espécie de "índio-camponês estável e produtivo", o que podia representar a formação de um estrato camponês livre e autônomo.

As lacunas documentais, no entanto, não permitem reconstruir a produção e comercialização dessas roças indígenas. Lamentavelmente, não se pode descobrir a proporção de alimentos que eram cultivados, tampouco a porcentagem do que era destinado ao consumo de subsistência e do que era distribuído ao comércio colonial. Informações contraditórias apresentam cenários distintos para cada vila da capitania. Em Alcobaça, por exemplo, os colonos reclamaram, em 1803, que os índios "muita pouca farinha faz[iam] para vender [sendo] a maior parte da mandioca que planta[va]m quase sempre [destinada] para beberem cauim". (AUTO, 18/10/1803AUTO de inquirição de testemunhas a que procedeu o Ouvidor interino de Porto Seguro, Sargento-mor Francisco Dantas Barbosa, para se informar do estado de civilização dos índios. Porto Seguro, 19 set. 1803, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 26334, 1803.). Já em Belmonte, um ano depois, o capitão-mor João da Silva Santos anunciou que nas margens do rio Grande "se achavam afazendados os índios gerais com bastantes lavouras, que chega[va]m a abastecer a vila de mantimentos". (DESCRIÇÃO, 1804DESCRIÇÃO diária do Rio Grande de Belmonte desde o Porto grande desta Vila até o fim dela ou divisão de Vila Rica, em conformidade da ordem cometida ao capitão-mor da Capitania de Porto Seguro João da Silva Santos, cuja expedição e embarque foi no dia 1º de outubro de 1804. Porto Seguro, 1 out. 1804, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 136, D. 27114, 1804.).

Provavelmente, o engajamento da população indígena na agricultura comercial tenha sido um processo descontínuo e diversificado ao longo do tempo e do espaço. Não se pode negligenciar que a crescente demanda local pela mão de obra indígena limitava as possibilidades de consolidação de um segmento camponês autônomo, pois interessava mais aos colonos a exploração daquela força de trabalho do que sua disposição enquanto agente econômico independente. Por outro lado, as evidências indicam que a "brecha camponesa" passou a ser utilizada pelos indígenas mais como uma alternativa de sobrevivência econômica, política e cultural do que como um espaço de submissão que necessariamente resultava na sua transformação em um produtor agrícola inserido no mercado colonial. Nesse sentido, mais que fomentar a formação de um índio-camponês autônomo, as políticas indigenistas implantadas em Porto Seguro visaram a assegurar maior disciplinarização e oferta da mão de obra indígena para os empreendimentos coloniais.

Ainda que esta tenha sido a regra geral, há indícios que permitem afirmar a existência de um pequeno número de índios que vivia do seu "trabalho próprio" e conquistara relativa autonomia na manutenção de sua existência. Nessa modalidade se encaixavam os indivíduos que atuavam no mercado local das vilas vendendo em suas "lojas de portas abertas" seus serviços de sapateiro, alfaiate, tecelão, calafate e outros. Esse era o caso, por exemplo, do índio Francisco Liberto, tecelão da vila de Porto Alegre, que pagou cinco tostões à Câmara para obter a licença de sua oficina. Também faziam parte desse grupo os oficiais mecânicos que prestavam serviços mais especializados e percorriam todas as vilas da capitania, aproveitando a intensa demanda local por serviços como pedreiros, oleiros e construtores de embarcação. Nesse último caso, tem-se o exemplo de Paulo Taveiro, natural da vila de Trancoso, contratado pelo alferes Paulo de Araújo, da povoação de Santa Cruz, para fazer uma lancha nas margens do rio Grande (Jequitinhonha), onde passou mais de oito meses na execução da referida tarefa. (TERMO, 1776TERMO de corrida de almotacés do dia 31 de março de 1776. Senado da câmara da vila de São José de Porto Alegre. APB - Seção Colonial, maço 485-3, 1776.; AUTO, 1764AUTO de inquirição de testemunhas a que procedeu o Juiz Ordinário da Vila de Alcobaça Pedro Antunes Guerra, para se informar do estado de civilização dos índios. Alcobaça, 18 out. 1803, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 26335, 1803.).

Por fim, deve-se lembrar que os índios adultos também foram destinados aos serviços a favor da Coroa portuguesa. Embora essa determinação fosse uma antiga norma da colonização americana, o contexto de intensas transformações por que passava a antiga Capitania de Porto Seguro criou um cenário de maior demanda da mão de obra indígena para os trabalhos públicos. Afinal, com a criação de seis novas vilas e a tentativa de redefinir o lugar da capitania no sistema colonial, uma série de ações se tornava necessária, destacando-se a própria construção e manutenção física das vilas e o abastecimento local de gêneros alimentícios. Além disso, os índios foram requisitados inúmeras vezes para a defesa das povoações, compondo as expedições que adentravam os sertões em retaliação aos ataques constantes dos grupos indígenas não aliados. Outro serviço público bastante comum era o de apoio nas expedições oficiais que percorriam os vastos territórios porto-segurenses, quando os índios auxiliavam não apenas na localização geográfica e sobrevivência nas matas, mas também no transporte dos equipamentos, na defesa contra os inimigos e na mediação cultural com outros grupos étnicos com que porventura se fizesse contato.

Com as informações acima apresentadas, torna-se evidente como a política indigenista reformista possibilitou a dilatação da economia comercial na região. Num contexto de fomento metropolitano à agricultura e de imposição de uma nova vocação para a região do extremo sul da Bahia, o regime de distribuição da mão de obra indígena elaborado pelo ouvidor José Xavier Machado Monteiro permitiu a intensificação e ampliação da exploração da força de trabalho indígena. Em consequência, a natureza e o funcionamento da economia regional conheceram significativas mudanças - experimentaram a dilatação das atividades agrícolas e extrativistas e também a formação de um mercado local mais dinâmico e articulado com redes comerciais intercoloniais.

Limites e tensões: as políticas dos índios

Os moradores indígenas não assistiram passivamente à implantação dessa política. Como em outros períodos da colonização portuguesa, engendraram uma gama variada de medidas que buscavam contrapor seu lugar naquela sociedade em formação. Dentro das possibilidades existentes e das expectativas formadas por cada grupo, forjaram diversas formas de resistir ao trabalho compulsório, ora fazendo uso das instituições e práticas políticas com as quais foram obrigados a conviver, ora recorrendo a antigas práticas mais drásticas e negadoras da própria sociedade colonial. Como o projeto de colonização reformista implantado em Porto Seguro dependia centralmente da incorporação dessas populações "domesticadas", as políticas por elas executadas acabaram imprimindo um ritmo diferenciado ao processo colonial, delimitando-se, inclusive, alguns limites e tensões.

A fuga se transformou na principal expressão da resistência indígena nas vilas porto-segurenses. Realizada individual ou coletivamente, esta prática já estava incorporada à tradição política das populações indígenas em contato com a sociedade colonial. Em toda a América portuguesa, notícias de fugas de índios dos aldeamentos religiosos ou das fazendas de colonos se tornaram bastantes comuns desde o princípio da colonização, o que imputou aos referidos grupos o estigma de "inconstantes" e "indolentes".

Para o modelo produtivo no qual os índios foram inseridos na colonização setecentista da antiga Capitania de Porto Seguro, a realização de fugas representava não apenas a perda de braços para a reprodução da economia regional, mas também uma demonstração dos limites do próprio sistema de dominação vigente. Ao levar em conta as notícias divulgadas pelo ouvidor Machado Monteiro, a frequência das fugas ganhou impulso significativo a partir da década de 1770. Este aumento pode ser explicado pelo crescimento da atividade agrícola, especialmente da expansão da plantação da mandioca e do fabrico de farinha, que exigia maior imposição de regras de controle e submissão da população indígena concebida como principal força motriz dos empreendimentos coloniais. Incomodados e resistentes ao sistema ao qual estavam submetidos, vários índios passaram a abandonar as povoações coloniais em busca de melhores condições de vida em outras paragens.

Em 1771, por exemplo, Machado Monteiro anunciou ao monarca que buscava evitar as fugas com aplicação de castigos a quem fosse encontrado em estradas sem passaporte, embora tal método não estivesse inibindo que alguns índios fugissem para Ilhéus e Espírito Santo. Em 1773, buscou retrair as fugas pela proibição do transporte de índios e degredados nas embarcações que percorriam os portos da capitania, e estabelecia multa aos mestres que conduzissem índios sem a autorização dos juízes de suas povoações. Em 1774, queixou-se da impossibilidade de fundar mais vilas em Porto Seguro pela falta de gente, denunciou que nem nas novas povoações que havia criado conseguia multiplicar a população por causa das muitas fugas dos seus moradores. Em 1775, chegou a quantificar o número de índios que haviam desertado das povoações em direção à Capitania de Ilhéus, anunciando - com certo exagero - que cerca de 400 indivíduos lá estavam abrigados "fugindo da sua obrigação de se civilizarem". (CARTA, 1771CARTA do ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, ao rei, relatando os progressos dessa capitania em 1770. Porto Seguro, 10 maio 1771, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 45, D. 8446, 1771.; CARTA, doc. 8581; CARTA, 1774CARTA do ouvidor de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro (para Martinho de Mello e Castro), em que lhe comunica diversas informações relativas àquela capitania. Porto Seguro, 1 maio 1774, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 46, D. 8628, 1774.; CARTA, 1775CARTA do ouvidor da capitania de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, à rainha, queixando-se do abuso praticado pelo vigário da Vila de São Mateus, que excomungou o juiz ordinário de Vila Viçosa, Manuel Nunes da Costa, que tinha ido para lá, desempenhar serviços, sob suas ordens. Porto Seguro, 10 jan. 1778, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 9551, 1778.).

Os destinos dos fugitivos, portanto, variaram conforme suas expectativas e possibilidades. As fazendas de mandioca de São Mateus, Viçosa e Caravelas atraíram muitos indígenas das vilas de Porto Alegre, Verde e Trancoso, que aceitavam se abrigar nas propriedades de colonos luso-brasileiros em troca de certa frouxidão nas regras de conduta cultural e econômica. De Belmonte e Trancoso também desertaram muitos índios em direção às povoações de Santa Cruz e Patipe (em Ilhéus), onde se acomodavam com maior autonomia por nesses vilarejos não haver diretores e juízes ordinários. Várias famílias indígenas egressas das mais diversas povoações coloniais ainda se arrancharam nas margens dos rios Jucuruçu, Itanhém, Mucuri e Grande, criando pequenas cabanas de palha e abrindo algumas roças de mantimentos, de onde tiravam sua subsistência e onde podiam viver sem a perseguição, opressão e punição das autoridades coloniais. (AUTO, 1803AUTO de inquirição de testemunhas a que procedeu o Ouvidor interino de Porto Seguro, Sargento-mor Francisco Dantas Barbosa, para se informar do estado de civilização dos índios. Porto Seguro, 19 set. 1803, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 26334, 1803.). Assim, contraditoriamente, fugiam da obrigatoriedade do trabalho aos colonos sem que necessariamente estivessem fugindo do convívio com a sociedade colonial, com a qual buscavam, de acordo com sua própria dinâmica, também suprir algumas de suas necessidades e interesses.

A fuga, às vezes, vinha acompanhada de outras estratégias políticas que visavam a legitimar a permanência dos índios nas novas povoações que haviam escolhido como abrigo. Maria Tereza, por exemplo, ao fugir da vila Viçosa, onde estava disposta ao serviço doméstico na casa de uma importante família de colonos luso-brasileiros, resolveu imediatamente contrair laços matrimoniais com um índio que morava na vila de São Mateus, tentando com este expediente fugir da obrigação do referido serviço. Um grupo de índios que havia fugido de Trancoso assegurou sua permanência na povoação de Santa Cruz a partir da abertura de um roçado de mandioca, com o qual produzia alguns alqueires de farinha que eram vendidos para a subsistência dos moradores da vila de Porto Seguro. Os índios Meniãs, que fugiram de Belmonte e se abrigaram no pontal direito da barra do rio Grande, assumiram a responsabilidade pelo transporte dos viandantes, garantindo assim sua conservação naquele sítio, onde tinham maior autonomia e liberdade. (CARTA, 1778CARTA do ouvidor da capitania de Porto Seguro, José Xavier Machado Monteiro, à rainha, queixando-se do abuso praticado pelo vigário da Vila de São Mateus, que excomungou o juiz ordinário de Vila Viçosa, Manuel Nunes da Costa, que tinha ido para lá, desempenhar serviços, sob suas ordens. Porto Seguro, 10 jan. 1778, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 9551, 1778.; AUTO, 1803AUTO de inquirição de testemunhas a que procedeu o Ouvidor interino de Porto Seguro, Sargento-mor Francisco Dantas Barbosa, para se informar do estado de civilização dos índios. Porto Seguro, 19 set. 1803, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 26334, 1803.).

Os índios "domesticados" também buscaram se apropriar dos direitos conquistados pela nova legislação indigenista para se isentar do trabalho compulsório. No início da década de 1790, após um desentendimento entre os diretores e o ouvidor José Inácio Moreira sobre as condições da distribuição da mão de obra indígena, o magistrado régio resolveu baixar um decreto reduzindo o poder daqueles agentes tutelares e difundindo para os índios parágrafos do Diretório que enfatizavam a ideia de liberdade e da sua condição de vassalos do monarca português. Segundo o colono João José de Medeiro, este episódio causou uma desordem política e econômica na capitania, pois "depois do tempo do ouvidor José Inácio Moreira para cá, anda[va]m os índios levantados, não reconhecendo diretor, nem obedecendo à justiça". Antônio José Correia, com grande espanto, descreveu que após esse episódio, "quando vão fazer algum negócio [com os índios], se lhe dizem vamos primeiro na casa do diretor, logo respondem que eles não são cativos, nem tem senhor que os governe". Mais emblemática ainda foi a declaração de Bernardo José Correia de Melo ao denunciar um radical comportamento dos índios frente a obrigatoriedade do trabalho após se instrumentalizarem com o referido decreto do ouvidor. Segundo o relato do colono,

[...] enquanto ao trabalho, nem para si, nem alugados trabalham [os índios]; e não há juízes que os possam obrigar depois que o ouvidor José Inácio Moreira lhes disse por várias vezes que não andassem trabalhando alugados, que eles eram forros senhores de si e quando algum branco lhes dissesse: "vós quereis trabalhar para vos pagar ou quereis me dar sua mulher ou filha para me cozer farinha?", respondessem: "quereis vós me trabalhar assim para vos pagar, quereis me dar vossa mulher ou filha para me cozer farinha?" Os índios, que de natureza o são vadios, apanhando-se com essa ousadia do ouvidor não há quem os obrigue a trabalhar. (AUTO, 1803AUTO de inquirição de testemunhas a que procedeu o Ouvidor interino de Porto Seguro, Sargento-mor Francisco Dantas Barbosa, para se informar do estado de civilização dos índios. Porto Seguro, 19 set. 1803, AHU_ACL_CU_005-01, Cx. 133, D. 26334, 1803.).

Embora carregado de certo exagero, intencionalmente exposto com a finalidade implícita de conquistar novas determinações sobre a exploração da mão de obra indígena, o cenário descrito pelos colonos no início do século XIX demonstra um momento em que a oferta da mão de obra indígena "domesticada" já não atendia à demanda real que a expansão da atividade agrícola exigia após a dilatação dos negócios da farinha em Porto Seguro. A ação dos índios "domesticados", com suas fugas e com a reivindicação de direitos, dificultava ainda mais o acesso à força de trabalho que os colonos almejavam, sendo por isso bastante criticada enquanto uma ameaça à sobrevivência da empresa colonial na capitania. Reproduzindo preconceitos tradicionalmente imputados aos índios - como a ideia de ociosidade e de gentilidade -, os luso-brasileiros registraram sua perspectiva colonialista que afirmava o trabalho compulsório como alternativa mais acertada para a civilização destes povos.

Essas políticas dos índios "domesticados" resultaram na diminuição da oferta regular de trabalhadores aos empreendimentos coloniais e na fragilização do próprio projeto colonial que se executava na região. Uma alternativa encontrada pelos colonos foi avançar para os sertões, em busca de novas levas de índios ainda não aldeados. Intimidados pelo avanço colonial sobre seus territórios, os índios dos sertões também não se acomodaram e imprimiram uma série de ofensivas às fazendas, roças e povoações, acarretando um cenário de perdas, medo e insegurança que aumentava os custos da produção e impunha uma grande dose de risco às empreitadas coloniais. Foi nesse contexto que se decretou guerra justa aos índios de Porto Seguro, Ilhéus, Espírito Santo e Minas, em 1808. Desta forma, políticas indígenas e políticas indigenistas formavam um campo de forças que moldava a própria dinâmica da colonização da antiga Capitania de Porto Seguro, ora ampliando espaço de negociação e mediação, ora recorrendo a práticas mais violentas de submissão e exploração das populações nativas.

Considerações finais

Uma vez inserida nas políticas reformistas com a criação da Nova Ouvidoria, a antiga Capitania de Porto Seguro não tardou a sofrer intensas transformações em sua estrutura e dinâmica econômica. Com a chegada de novos colonos, atraídos pela política metropolitana de concessões de terras, de isenções de impostos e de privilégios políticos, uma progressiva dilatação das fronteiras internas acompanhou a criação das novas vilas, resultando na expansão da exploração econômica dos recursos naturais existentes e na consolidação daqueles núcleos enquanto pontos estratégicos de povoamento. A política indigenista ali implementada, por sua vez, assegurou aos colonos a mão de obra necessária para movimentar os empreendimentos coloniais, construindo-se as condições necessárias para dinamizar a economia regional com um mínimo de investimento de capitais numa "terra muito destituída de escravos". (CARTA, doc. 8446). Nessas condições, emergiu na antiga capitania um sistema produtivo enlaçado às demandas dos grandes centros urbanos da colônia, que não perdeu a oportunidade de produzir e comercializar mais de uma dezena de gêneros agrícolas, extrativistas e manufatureiros.

Este texto ajuda também a desmontar um estigma difundido perniciosamente durante muitos anos sobre o papel dos povos indígenas na formação do atual extremo sul da Bahia. Tradicionalmente, cronistas e historiadores reputaram aos índios a responsabilidade pela suposta estagnação e decadência da Capitania de Porto Seguro. Taxados como preguiçosos, inconstantes, selvagens e hostis, foram sempre apresentados como uma evidência de atraso, de inferioridade e de pobreza ou como um obstáculo para o avanço do domínio português. Com as narrativas aqui expostas, a atuação da população indígena aliada não pode ser desprezada como uma variante fundamental que contribuiu para a formação da estrutura e dinâmica da sociedade colonial porto-segurense - inclusive para fazer da região "o principal mercado de farinha da costa". (LINDLEY, 1969, p. 156LINDLEY, Tomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1969.).

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  • 1
    Este artigo é uma versão modificada de partes da tese do autor defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia.
  • 2
    Neste texto, políticas indigenistas representam "o conjunto de medidas práticas formuladas por distintos poderes estatizados, direta ou indiretamente incidentes sobre os povos indígenas", refletindo "ideias e práticas relativas à inserção dos povos indígenas em sociedades subsumidas a estados nacionais, com ênfase especial na formulação de métodos para tratamento das populações nativas operados, em especial, segundo uma definição do que seja índios". (LIMA, 1995, p. 15LIMA, Antônio Carlos Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.). E, por sua vez, as políticas indígenas consistem no "conjunto de ações concretas elaboradas e executadas pelos povos indígenas no enfrentamento da situação colonial", manifestadas por meio de "alianças, fugas, rebeliões, acomodações, negociações e estratégias de sobrevivência física e cultural". (CANCELA, 2012, p. 21CANCELA, Francisco. De projeto a processo colonial: índios, colonos e autoridades régias na colonização da antiga Capitania de Porto Seguro (1763-1808). 2012. 337 f. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2012.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2014
  • Aceito
    24 Set 2014
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