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Pesquisa biográfica junto de imigrantes em Portugal: experiência de pesquisa participativa e relevância analítica dos testemunhos privados

Resumos

O presente texto é resultados do projeto "Pesquisa das migrações e abordagem biográfica: construindo um trabalho em colaboração no contexto português", desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Este estudo é uma proposta de trabalho em colaboração entre investigadores das ciências sociais e imigrantes residentes naquela cidade do centro de Portugal. Mais especificamente, procura-se estudar e conhecer a experiência migratória de imigrantes com origens e perfis muito diversos que escolheram - de uma forma ou de outra - a cidade de Coimbra para viver. Os objectivos de partida do trabalho decorrem do nosso foco privilegiado nas experiências e relatos biográficos dos sujeitos nossos interlocutores: 1) qual a perspectiva dos migrantes sobre sua experiência migratória? 2) qual o impacto da pesquisa biográfica na vida dos migrantes e sociedade de imigração? 3) como reconhecer os sujeitos interlocutores para além de um propósito meramente objectificante da pesquisa? Propõe-se aqui fazer uma reflexão, em diálogo com os referenciais teóricos da pesquisa biográfica emancipatória, bem como da pesquisa partilhada ou participativa em ciências sociais.

biografia; migração; imigração; relatos biográficos


This work is a result of the project "Research on migration and biographical approach: building a collaborative work in the Portuguese context", developed at the Center for Social Studies of the University of Coimbra and Financed by the Foundation for Science and Technology. This study is a proposed collaborative work between researchers from the social sciences and immigrants residing in that city the center of Portugal. More specifically, it seeks to study and understand the migration experience of immigrants with very diverse backgrounds and profiles they chose - in one form or another - the city of Coimbra to live. The objectives of departure of this work derive from our privileged focus on experiences and biographical accounts of the subjects our interlocutors: 1) what is the perspective of migrants on their migratory experience? 2) the impact of biographical research on the lives of migrants and immigration society? 3) how to recognize the subjects of communication beyond a merely objectificant purpose of the research? It is proposed here to make a reflection in dialogue with the theoretical frameworks of emancipatory biographical research as well as shared or participatory research in social sciences.

biography; migration; immigration; biographical accounts


DOSSIÊ - BIOGRAFIAS, MEMÓRIAS E TRAJETÓRIAS

Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. Contato: elsalechner@ces.uc.pt

RESUMO

O presente texto é resultados do projeto "Pesquisa das migrações e abordagem biográfica: construindo um trabalho em colaboração no contexto português", desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Este estudo é uma proposta de trabalho em colaboração entre investigadores das ciências sociais e imigrantes residentes naquela cidade do centro de Portugal. Mais especificamente, procura-se estudar e conhecer a experiência migratória de imigrantes com origens e perfis muito diversos que escolheram - de uma forma ou de outra - a cidade de Coimbra para viver. Os objectivos de partida do trabalho decorrem do nosso foco privilegiado nas experiências e relatos biográficos dos sujeitos nossos interlocutores: 1) qual a perspectiva dos migrantes sobre sua experiência migratória? 2) qual o impacto da pesquisa biográfica na vida dos migrantes e sociedade de imigração? 3) como reconhecer os sujeitos interlocutores para além de um propósito meramente objectificante da pesquisa? Propõe-se aqui fazer uma reflexão, em diálogo com os referenciais teóricos da pesquisa biográfica emancipatória, bem como da pesquisa partilhada ou participativa em ciências sociais.

Palavras-chave: biografia; migração; imigração; relatos biográficos.

1. Introdução

No Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, estamos a desenvolver o projecto "Pesquisa das migrações e abordagem biográfica: construindo um trabalho em colaboração no contexto português", financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.1 1 Trabalho financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, de Portugal. PTDC/CS-ANT/111721/2009. Este apresenta-se como uma proposta de trabalho em colaboração entre investigadores das ciências sociais e imigrantes residentes naquela cidade do centro de Portugal. Mais especificamente, procuramos estudar e conhecer a experiência migratória de imigrantes com origens e perfis muito diversos que escolheram - de uma forma ou de outra - a cidade de Coimbra para viver.

Os objectivos de partida deste trabalho decorrem do nosso foco privilegiado nas experiências e relatos biográficos dos sujeitos nossos interlocutores: 1) qual a perspectiva dos migrantes sobre a sua experiência migratória? 2) qual o impacto da pesquisa biográfica na vida dos migrantes e sociedade de imigração? 3) como reconhecer os sujeitos interlocutores para além de um propósito meramente objectificante da pesquisa?

Para tal, lançámo-nos ao terreno, ao mesmo tempo que fizemos uma pesquisa e análise da legislação portuguesa sobre imigração, bem como dos discursos mediáticos sobre a matéria em Portugal. Este confronto entre o discurso normativo sobre a imigração e as experiencias concretas de migrantes "em carne e osso" constitui um aspecto central do nosso trabalho analítico, da nossa proposta metodológica assente em oficinas biográficas (LECHNER, 2012) e do nosso esforço de sensibilização ou publicitação a partir dos resultados audiovisuais a produzir pelo projecto (o filme documentário e o DVD do projecto).

O presente artigo visa apresentar este trabalho efectuado em oficinas biográficas ou "rodas de histórias" com imigrantes, discutindo-se o valor heurístico e estatuto social dos testemunhos privados. O que trazem os relatos biográficos dos imigrantes ao estudo das migrações? Quais os potenciais e limites do testemunho produzido em grupo? Faremos esta reflexão em diálogo com os referenciais teóricos da pesquisa biográfica emancipatória e também da pesquisa partilhada ou participativa em ciências sociais.

2. Pesquisa biográfica com grupos de voluntários migrantes

O projecto em foco neste artigo partiu dos referenciais teóricos da pesquisa biográfica emancipatória (DELORY-MOMBERGER, 2012; LECHNER, 2009) dialogante com o trabalho de Paulo Freire (1967, 1969) e Boaventura de Sousa Santos (2003, 2008), almejando-se um trabalho de epistemologia cívica. (JASANOFF, 2004a, 2004b). Procurámos conhecer as experiências biográficas de imigrantes em Portugal a partir de seus próprios relatos produzidos em entrevistas individuais, encontros informais e oficinas biográficas (LECHNER, 2012) ou "rodas de histórias".

Entre 2011 e 2014, realizamos quatro oficinas com grupos distintos, bastante heterogéneos. Apesar de alguma dificuldade inicial em recrutar voluntários, as tentativas fizeram germinar os primeiros contactos, que criaram oportunidades de encontro com comunidades migrantes, instituições públicas e serviços do Estado que concretizaram uma implicação crescente entre a equipe de investigação, os voluntários e instituições locais. No segundo ano do projecto, o trabalho de campo consistiu justamente no contacto com instituições e pessoas susceptíveis de nos facilitarem o acesso a potenciais voluntários para as oficinas biográficas. Também desenvolvemos encontros e entrevistas individuais com os participantes no terreno. Tivemos uma primeira reunião com a Rede Social da Câmara Municipal de Coimbra (CMC) em janeiro de 2012.

Esta reunião permitiu dar a conhecer o projeto e receber o apoio formal na procura de voluntários. Na sequência deste primeiro encontro, foram agendadas novas reuniões entre a equipe de investigação e os técnicos de acção social da CMC, que nos puseram em contacto com migrantes residentes na cidade de Coimbra: Serviço de Habitação, Cartão Família, nomeadamente. Realizámos um encontro com o Serviço de Habitação da Câmara no Bairro do Ingote a 30 de janeiro de 2012, data em que recrutámos alguns dos voluntários para as oficinas. Outros já haviam sido recrutados no meio universitário, onde há uma grande percentagem de estudantes estrangeiros com o estatuto legal de imigrante em Portugal e que demonstraram muita abertura e interesse em participar. No total, contactámos cerca de 100 pessoas e mantivemos contacto regular com 20. As instituições e mediadores foram decisivos nesta etapa de construção do trabalho em colaboração.

Em junho de 2012, fizemos uma apresentação pública do projecto, por ocasião do seminário "Rumina©ções urbanas:2 2 Este título joga com a palavra "ação", indicando uma dupla função dos relatos experienciais na roda: ruminar (falar, mastigar, tomar consciência) e agir sobre o tema ou área em discussão, neste caso, a cidade. conte a sua cidade numa roda de histórias", na Casa da Cultura. Esta contou com a participação de alguns dos imigrantes contactados previamente bem como com o responsável camarário pelo Serviço de Educação e Cultura. Após estes contactos pudemos organizar duas oficinas biográficas (julho e outubro 2012). Na primeira, participaram apenas estudantes (oriundos de cinco países: Argentina, Brasil, Cabo Verde, China, Ucrânia); na segunda, contámos com a presença de um grupo misto, bastante heterogéneo (estudantes, não estudantes, um imigrante iletrado) de sete países diferentes: Angola, Austrália, Brasil, Cabo-Verde, Costa do Marfim, São Tomé, Uzbequistão. Cada uma destas oficinas durou três dias e seguiu a mesma estrutura e protocolo de exercícios (escuta, partilha, ressonâncias) analisados no artigo já referenciado dedicado às oficinas biográficas. (LECHNER, 2012).

A realização destas duas oficinas biográficas permitiu identificar grandes temas a aprofundar na análise do projecto. São eles a discriminação (dupla e tripla quando se trata de mulheres imigrantes negras e brasileiras solteiras ou divorciadas), o racismo - nomeadamente por parte dos serviços do Estado diretamente vocacionados para os imigrantes (como o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nos seus atendimentos ao público) - , e a importância das Igrejas e religiões no acolhimento e redes de solidariedade dos imigrantes. Tanto a discriminação como o racismo e as religiões parecem envoltos num manto de inconsciência por parte de quem os pratica, contra a qual as oficinas biográficas muito contribuem, graças ao formato circular e horizontal dos diálogos e a seus efeitos formadores e transformadores. Realizamos uma oficina só sobre religiões, em junho de 2013, com a participação de seis religiões diferentes (Baptista, Católica, Espírita, Candomblé, Messiânica, Mórmons, Muçulmana), na qual os vários participantes referiram seu espanto em ver e sentir tanto respeito entre pessoas de credos diferentes.

O trabalho de contacto com os voluntários do projecto e das oficinas biográficas pôs a nu o desafio que é tentar fazer colaboração em contextos sociais de assimetria. E, precisamente porque se tornou tangível na nossa experiência de investigação esta diferença estrutural entre os mundos da universidade e o mundo "lá fora" da imigração (menos evidente na primeira oficina com estudantes), organizámos a terceira e quarta oficinas directamente focadas na questão das mulheres3 3 Oficina realizada no Centro de Acolhimento João Paulo II com um grupo de mulheres do Brasil, Guiné Bissau, Moçambique, Ucrânia, beneficiárias das ajudas sociais do centro. (março de 2013) e das religiões (junho de 2013), quando pudemos conhecer experiências outras que trouxeram um nível maior de alteridade para nosso trabalho colaborativo. Neste confronto de realidades ficámos, por exemplo, a saber da existência de uma Mesquita na cidade de Coimbra, desconhecida inclusivamente da Rede Social da Câmara Municipal. Foi, aliás, nosso projecto que deu a conhecer a existência da Mesquita aos técnicos daquele serviço da Câmara Municipal de Coimbra.

Assim, percebemos como a colaboração em contextos de assimetria social ou estatutária (entre nacional/estrangeiro; universitário/iletrado, etc.) leva a reciprocidades assimétricas (TEMPLE, 2003) que trazem para o coração do processo de trabalho colaborativo com imigrantes uma alteridade potenciadora de mútua aprendizagem e diálogo transformador. Tanto esta aprendizagem recíproca como o diálogo transformador, por sua vez, podem ser conducentes a uma acção inovadora na esfera colectiva. Para que tal aconteça, é preciso que ambas as partes queiram agir nesse sentido construtivo aquém e além dos estatutos sociais de partida. Ou seja, como diria Temple, é preciso que o valor material da troca não se sobreponha ao valor simbólico da partilha. Ou ainda, é preciso que os valores simbólicos associados aos diferentes estatutos sociais de partida não bloqueiem a possibilidade de transformação de seus pesos na produção compartilhada do valor da responsabilidade e autoria comuns. E aqui mesmo encontramos novos desafios, nomeadamente o da relação e da comunicação entre pessoas com culturas, línguas, linguagens diferentes.

Ora, uma das ferramentas mais úteis para trabalhar "por dentro" estes desafios teóricos, metodológicos e cívicos da colaboração é o registo e análise das imagens do próprio processo de trabalho. Assim, temos a totalidade das horas em oficina biográfica (60 horas) filmada e gravada com autorização de todos os participantes. Houve apenas um participante que, no início, não quis ser filmado. Mas, justamente após prestar seu testemunho (um dos primeiros) sobre a discriminação e racismo que sentiu no balcão de atendimento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (Loja do Cidadão), ele próprio reconheceu a importância de dar a conhecer essa experiência a um público alargado e anónimo. Desta forma, temos um corpus audiovisual riquíssimo que está a ser objeto de análises direccionadas por temas e que fará parte do DVD sobre o projecto, bem como do filme documentário que iremos realizar com os voluntários sobre o tema da imigração.

3. Valor heurístico dos testemunhos biográficos

Apresentámos na introdução deste artigo a nossa intenção de discutir o valor heurístico e social dos testemunhos privados biográficos. Perguntámos também o que trazem os relatos biográficos ao estudo das migrações e quais são os potenciais e limites do testemunho privado produzido em grupo, nas oficinas.

Para tentar responder a estes desafios, há que relembrar primeiro a história dos estudos biográficos nas ciências sociais, nomeadamente na sociologia e na antropologia. O surgimento e desenvolvimentos posteriores da pesquisa biográfica não se dissociam dos respectivos contextos sociais, políticos e civilizacionais nos quais se verificam. As mudanças ocorridas nas ciências sociais e humanidades ao longo do século XX permitiram o interesse e produção de pesquisas sobre a história não factual (Nova História), a interpretação em busca de significados contextualizados (antropologia), os significados atribuídos por indivíduos às suas vivências sociais (sociologia).

A Escola de Chicago é apontada como a mãe da sociologia qualitativa, responsável por estudos como o clássico The Polish peasant in Europe and America, de William Thomas e Florian Znaniecki, nos anos 1920, baseado na análise de correspondência e relatos biográficos de camponeses polacos imigrados nos EUA. Suzie Guth, autora do livro Chicago 1920: aux origines de la sociologie qualitative, chama-lhe mesmo "uma nova antropologia", pela qual o conhecimento directo dos indivíduos, famílias e comunidades imigrantes de Chicago permite estudar teoricamente o que é a desorganização social de uma comunidade, em dada era. (GUTH, 2004, p. 79-97).

O interacionismo simbólico desenvolveu mais tarde nos EUA o estudo das relações humanas sob o pano de fundo das enormes transformações sociais e culturais da época, não se restringindo a interações limitadas entre pessoas. (BLUMER, 1951). Mas foi na Europa dos anos 1980 que o interesse pelo estudo de histórias de vida e relatos biográficos tomou fôlego, pela pena de Franco Ferrarotti e Daniel Bertaux. Em 1981 é publicada em inglês pela Sage uma colectânea de textos organizada por Bertaux em torno da abordagem biográfica nas ciências sociais Biography and Society. The life-history approach in the social sciences. Neste volume, o contributo de Ferrarotti é o mais diretamente dedicado às questões epistemológicas e filosóficas do estudo do biográfico. Partindo do existencialismo de Sarte, o sociólogo italiano desenvolve o cerne da especificidade da abordagem biográfica que considera residir no seu caracter totalizante. A fenomenologia e o materialismo dialéctico convergem na teoria de Sarte com vista a uma adequação à relação entre o singular e o universal, o biográfico e o social, e ao modo histórico de compreensão das identidades individuais. Ferrarotti segue esta razão dialética para construir um modelo hermenêutico não linear de perspectivação e análise da mediação que existe entre agência e estrutura, entre indivíduos e sociedades, o que o autor apelida de praxis sintética.

O potencial heurístico da biografia e a sua natureza subjectiva e histórica trazem à análise dos cientistas sociais a necessidade de estudar esta praxis humana como um processo sintético; uma síntese entre os ingredientes por vezes opostos, mas complementares, já referidos: indivíduo e sociedade, agência e estrutura. Assim, a subjectividade não renegada na análise social permite conhecer nas histórias de vida e narrativas biográficas as respectivas interpretações dos aspectos objetivos da vida social: o que é e como é viver em outro país sem passaporte ou documentos válidos? Como é e o que é ser discriminado por ser negro, asiático ou mulher no país de imigração?

Estas perguntas, bem como a própria forma como as formulamos, remetem para a multidimensionalidade da análise biográfica: para conhecer as experiências migratórias de pessoas em carne e osso temos de recorrer a suas narrativas e vivências concretas. Para tal, torna-se necessário suscitar um discurso em nossos interlocutores, colocando questões ou fazendo perguntas, e entrar numa interação na qual escutamos a partir da nossa posição e lugar dentro dela.

Conhecer as respostas implica reconhecer os constrangimentos da situação de interação, os potenciais e limites da relação e estatutos sociais/relações de poder e saber. Por isso, até chegar ao conhecimento de como é a experiência (por exemplo) de discriminação do outro que conosco dialoga, há que desenhar o mapa e trajetória do encontro. Ou seja, há que seguir a direção e objetivos da pesquisa, dar conta do processo de investigação. Só após esse exame honesto se pode efectivamente compreender o testemunho do narrador e, daí, extrair um conhecimento teórico sobre o tema em questão. Ou seja, do contexto de enunciação (privada) de um tema, passamos ao tema em contexto na análise social.

A pesquisa biográfica serve a este duplo propósito analítico de dar a conhecer as formas de vivência e interpretação concretas de quem se conta, por um lado, e o significado social e político dessas mesmas experiências privadas (as narrativas biográficas) e tentativa de conhecimento coletivo (a pesquisa com e sobre essas narrativas).

Mas esta utilidade não vem sem problemas. E ela requer ainda dois exercícios suplementares que referiremos mais adiante a propósito da hermenêutica da relação na pesquisa biográfica (dimensão ética) e, ainda, da dimensão técnica e estética do trabalho produzido. O retorno do sujeito nas ciências sociais, ou o polo clínico da sociologia, de que fala Ferrarotti, assenta num paradigma humanista que, "em tom de manifesto", radicalizou as virtudes da biografia num dado momento sem ter em conta sua "latitude problemática". (CONDE, 1993, p. 45). Idalina Conde encontra este problema no diálogo difícil entre teoria e biografia: se a biografia é totalizante ou singularizante, se ela serve propósitos nomotéticos (de estabelecer leis) ou ideográficos (representações), se ela não pode servir para prever comportamentos e estabelecer leis sociológicas (defesa do seu carácter ideográfico), então ela não serve só por si, requerendo uma bússola teórica e epistemológica que justifique à partida a preferência metodológica pelas biografias.

Neste sentido, o valor heurístico dos testemunhos e narrativas biográficas nas ciências sociais depende de uma teoria orientadora de cada pesquisa e de teorias processuais adjacentes. Mais do que uma teoria geral do sujeito - à partida necessariamente parcial e problemática - aplicável a todos e cada um dos estudos com histórias de vida, a pesquisa biográfica executa teorias contextuais de sujeitos. O contributo valioso que pode oferecer à análise social reside, assim, no conhecimento intensivo e aprofundado de um dado tema (alargado à sua multidimensionalidade particular), orientado por um objectivo teórico-prático claramente definido à partida. Este é o caso de muitos estudos realizados pela antropologia das migrações que recorrem a entrevistas e relatos biográficos de migrantes para compreender movimentos transnacionais, dinâmicas familiares transcontinentais ou migrações pós-coloniais. (GLICK-SCHILLER; FOURON, 2001).

Os testemunhos biográficos trazem à pesquisa das migrações a necessária informação sobre a experiência migratória de pessoas em carne e osso num dado contexto migratório (inter-nacional, inter-regional, ou transcontinental), mas também (in)formam o próprio narrador e narratários sobre as condições de possibilidade de um discurso sobre essa vivência. Neste sentido, como diz Christine Delory-Momberger (2014), a pesquisa biográfica é inevitavelmente intervencionista. Ela é pesquisa-acção. Pois os efeitos da pesquisa em si ultrapassam os objectivos estritamente científicos do trabalho de investigação. Uma análise tanto dos constrangimentos situacionais e relacionais da pesquisa acima referidos bem como dos efeitos formadores e transformadores da pesquisa biográfica (intervencionista e emancipatória) permite identificar em cada estudo concreto as teorias processuais associadas ou adjacentes à teoria-quadro orientadora da pesquisa.

Assim, podemos mais facilmente distinguir pesquisas sociológicas que recorrem a material biográfico de pesquisas antropológicas baseadas em histórias de vida, ou pesquisas historiográficas sobre memória social. E podemos identificar mais claramente a especificidade da pesquisa biográfica emancipatória mais próxima da sociologia pública ou da antropologia/etnografia colaborativa. Citando Delory-Momberger:

Na própria definição do seu projeto, a pesquisa biográfica encontra-se do lado da pesquisa participativa ou colaborativa, isto é, de formas de pesquisa que, conduzidas ou co-construídas com os actores sociais, perseguem (segundo os casos e em graus diversos) os objectivos individuais e colectivos de formação, valorização de recursos e potencialidades, de produção e de partilha de saberes, de emancipação, de poder de ação, e de transformação social e política. (DELORY-MOMBERGER, 2012).

Neste sentido, a hermenêutica da relação ou dimensão ética da pesquisa biográfica passa por uma análise de e reflexão sobre três grandes desafios que coloca às ciências sociais: as reciprocidades assimétricas, mutualidade de competências entre todos os intervenientes, coautoria. Por sua vez, a dimensão técnica (mesmo tecnológica de uso de materiais audiovisuais e hipermédia) e estética do trabalho colaborativo levanta novas questões ao mesmo tempo que traz algumas (criativas e ricas) respostas à proposta epistemológica da pesquisa biográfica. Acreditamos que os resultados tangíveis e intangíveis da nossa pesquisa colaborativa com imigrantes, por exemplo, respondam pela técnica e estética aos desafios teóricos acima elencados.

4. Potenciais e limites do testemunho privado produzido em grupo

Por último, há que referir neste artigo as especificidades dos testemunhos biográficos produzidos em grupo para podermos analisar os seus potenciais e limites.

No projecto das oficinas biográficas com imigrantes na cidade de Coimbra, identificámos quatro dimensões analíticas dos relatos produzidos em grupo: dimensão linguística, performativa, mnemónica, política.

Como atos de linguagem: constituem-se no tempo e no espaço de uma enunciação particular; são transitórios, moventes, vivos e se reconfiguram incessantemente no presente do momento em que são enunciados. Nunca são de uma vez por todas. Reconstroem o sentido das experiências vividas. Traduzem identidades narrativas. (RICOEUR, 1983).

Como actos performativos: fazem dos narradores os sujeitos/personagens da sua história privada. Fazem dos narratários os sujeitos de uma história partilhada na qual se distinguem mais claramente as proximidades e diferenças, aspectos comuns e não comuns das identidades. Fazem da partilha uma fonte de saber que evidencia o papel do corpo na experiência de vida e na narração. Colocam o corpo no campo de compreensão das experiências vividas e do saber produzido (o corpo arquivo de memórias; lugar de experiência; lugar de expressão ou silenciamento; lugar de resistência e de criatividade ou reivindicação identitária e ou de direitos).

Como actos de memória: tecem os acontecimentos vividos com os fios do agora, (re)constroem uma história vivida no passado, constroem uma congruência entre o presente e o passado, constroem uma imagem ou figura do sujeito que se reapropria de si e define uma nova identidade. Constroem pontes de projeção no futuro (sujeito-projecto).

Como actos políticos: traduzem uma competência reflexiva dos sujeitos que lhes permite levar a conhecer os próprios direitos (de cidadania e humanos) e contextos sociopolíticos de existência. Traduzem formas de resistência a regimes políticos ou discursivos dominantes. Traduzem uma visão entre outras da história (ver, a este propósito, ADICHIE, 2007). Produzem formas de conhecimento não hegemónicas.

Os leitores podem verificar como estas quatro dimensões dos relatos biográficos anunciam um programa que é, ele próprio, mais do que uma pedagogia. Trata-se de um quadro de compreensão e de acção sobre a aprendizagem e o saber, vocacionado para um diálogo efectivo entre os sujeitos, na diversidade e na reflexividade. É, por isso, pertinente equacioná-lo com a teoria da ecologia dos saberes de Boaventura de Sousa Santos (2007), que muito esclarece sobre a necessidade de pensar e agir, também nas ciências sociais e humanidades, para além do tradicional pensamento abissal que caracteriza a ciência moderna.

O estatuto e o uso da narrativa autobiográfica no contexto migratório, mais propriamente, revela o peso deste abismo entre as experiências concretas de pessoas em carne e osso e os discursos normativos, oficiais e institucionalizados. Um exemplo radical é o dos pedidos de requerentes de asilo que são sujeitos a uma verdadeira tradução institucional (GIORDANO, 2009) para se poderem conformar às expectativas da administração dos Estados, polícia, juízes ou serviços caritativos de quem, no final, depende dependem a aceitação do relato enunciado e consequente aceitação legal do requerente.

Nas oficinas biográficas com imigrantes não estamos perante um quadro institucional tão opressivo ou constrangedor. Aliás, elas procuram ser um lugar de segurança, de conforto e de confiança entre todos os participantes. Neste quadro cada um/a produz seu relato autobiográfico de migração, verificando-se o que todos os trabalhos da corrente das histórias de vida em formação constatam: o poder formador e transformador destes relatos. (nomeadamente, PINEAU, 1983, 1989, 2006; JOSSO, 2010). Também identificamos os efeitos de validação, valorização e emancipação dos relatos partilhados. Cada um/a sai de sua solidão, conhece outras histórias, partilha sua experiência, o que só por si revela um potencial transformador das relações sociais. Sobretudo no que diz respeito ao conhecimento dos estereótipos, seu funcionamento e clara insuficiência para explicar as identidades e relações interculturais, as oficinas são altamente poderosas. Na verdade, os participantes denunciam os resultados indesejados desses estereótipos (ex.: "a mulher brasileira", "os chineses", "os africanos"), as vivências concretas dessas projecções e introjecções (quando o estereótipo é incorporado ou assumido), para depois as desconstruírem em grupo espontaneamente.

Como limites a estes relatos, encontramos quatro inevitabilidades das interlocuções em contextos de assimetria (como o é o de uma pesquisa académica): a palavra não é um dado adquirido (os silêncios e silenciamentos podem dominar dominar); as narrativas são muitas vezes reproduções de discursos pré-fabricados (pela mídia e senso comum); o relato biográfico não é um modelo universal (em muitas culturas não se pratica ou se aceita, ou não faz sentido); as narrativas são atravessadas por discursos (e línguas, idiomas de subjetivação, quando não de objectificação) dominantes com os quais os narradores e narratários se identificam à sua maneira.

Mas estas limitações são por nós entendidas como um desafio ou mesmo uma potencialidade, pois desafiam nossa definição de pesquisa biográfica apontando no sentido da sua maior clareza e justificação (sua legitimidade e pertinência) no contexto dos estudos migratórios. E, em conjunto com as dimensões técnicas e estéticas supramencionadas, transformam o trabalho com relatos biográficos de imigrantes numa fonte extremamente rica de conhecimento e de transformação das injustiças sociais. Voltamos aos méritos do trabalho dos anos 1920, da análise qualitativa orientada por uma teoria e instrumentos processuais adequados ao tempo e lugar da investigação.

Conclusão

Neste texto, propusemo-nos discorrer sobre a pesquisa biográfica junto de migrantes em Portugal, a partir de uma experiência de pesquisa participativa em Coimbra, refletindo sobre relevância analítica dos testemunhos na primeira pessoa. Para tal, apresentamos o projecto de investigação no qual realizamos oficinas biográficas com imigrantes: seus pressupostos teórico-metodológicos, fases, participantes, concretizações. Uma vez desenhado o quadro mais descritivo deste trabalho, avançamos com uma análise do valor heurístico dos testemunhos biográficos, relembrando, para isso, a história dos estudos biográficos nas ciências sociais, nomeadamente na sociologia e na antropologia.

Esse pequeno esforço de avanço no estado da arte levou-nos, por último, à análise dos potenciais e limites do trabalho com relatos biográficos em grupo no estudo das migrações. E aqui ousamos pensar os limites também como um potencial teórico e criativo que congrega as diversas dimensões analíticas e expressivas da pesquisa biográfica. No final, julgamos poder contribuir para uma maior coerência entre discurso e prática de pesquisas colaborativas ou participativas, como são necessariamente as pesquisa com pessoas que confiam em nós, pesquisador/as, para melhor conhecer, compreender e dar a conhecer a complexidade dos fenómenos migratórios e seus contextos sociais, políticos e históricos. Sem pretender mais do que isso, podemos avançar na construção de uma pesquisa biográfica efectivamente próxima das pessoas com quem trabalhamos nos nossos terrenos de análise.

Notas

Recebido em 02/04/2014

Aprovado em 09/05/2014

Elsa Lechner é doutora em Antropologia Social pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, e co-coordenadora do Núcleo das Humanidades, Migrações, e Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. É investigadora convidada dos grupos EXPERICE (Paris), e GRAFHO (UNEB/Salvador da Bahia), assim como membro membro do conselho de redação da revista Le Sujet dans la Cité. Atualmente é Fulbright Visiting Scholar no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, EUA.

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  • Pesquisa biográfica junto de imigrantes em Portugal: experiência de pesquisa participativa e relevância analítica dos testemunhos privados

    Elsa Lechner
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    Trabalho financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, de Portugal. PTDC/CS-ANT/111721/2009.
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    Este título joga com a palavra "ação", indicando uma dupla função dos relatos experienciais na roda: ruminar (falar, mastigar, tomar consciência) e agir sobre o tema ou área em discussão, neste caso, a cidade.
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    Oficina realizada no Centro de Acolhimento João Paulo II com um grupo de mulheres do Brasil, Guiné Bissau, Moçambique, Ucrânia, beneficiárias das ajudas sociais do centro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Recebido
      02 Abr 2014
    • Aceito
      09 Maio 2014
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