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A peregrinação da alma no Scivias de Hildegard de Bingen: criação, queda, redenção e salvação

The pilgrimage of the soul in the Scivias of Hildegard of Bingen: creation, fall, redemption and salvation

Resumos

Hildegard de Bingen, religiosa beneditina que viveu no século XII, alegava ter escrito sua primeira obra, o Scivias, obedecendo a um "comando divino" que ela teria recebido em uma de suas visões espirituais. Segundo Hildegard, essas visões a acompanhavam desde sua infância, e nelas ela recebia mensagens "divinas". O Scivias, escrito entre 1141 e 1151, consistia, de acordo com Hildegard, na transcrição dessas mensagens e era uma obra com ensinamentos em ortodoxia doutrinária. A obra, contendo as visões de Hildegard, é dividida em três partes de tamanho desigual que tratam respectivamente da criação e queda (primeira parte), da redenção e da salvação. Este artigo visa a analisar a quarta visão da primeira parte do Scivias em que Hildegard narra a peregrinação de uma alma pecadora. A caminhada dessa alma é interessante à medida que sintetiza, em sua jornada, as etapas doutrinárias cristãs trabalhadas em todo o Scivias, a saber, criação, queda, redenção e salvação.

ortodoxia; peregrinação; espiritualidade medieval; história da salvação


Hildegard of Bingen, religious Benedictine woman who lived in the twelfth century, claimed to have written her first work, the Scivias, under a "prophetic call", that she would have received in one of her spiritual visions. According to Hildegard, her visions had been with her since childhood and in them she received "divine" messages. The Scivias, written between 1141 and 1151, consisted of, as Hildegard claimed, the transcription of these messages and it was a work with teachings in doctrinal orthodoxy. The book, with Hildegard's visions, is divided in three parts of unequal size which deal respectively with creation and fall (first part), redemption and salvation. This article aims to analyse the fourth vision of the first part of the Scivias in which Hildegard relates a pilgrimage of a sinner soul. The journey of this soul is interesting as it synthetizes the doctrinal phases worked in all Scivias, meaning creation, fall, redemption and salvation.

orthodoxy; pilgrimage; medieval spirituality; history of salvation


ARTIGOS LIVRES

A peregrinação da alma no Scivias de Hildegard de Bingen: criação, queda, redenção e salvação

The pilgrimage of the soul in the Scivias of Hildegard of Bingen: creation, fall, redemption and salvation

Maria Carmen Gomes Martiniano de Oliveira

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil Contato: camitavandepoll@hotmail.com

RESUMO

Hildegard de Bingen, religiosa beneditina que viveu no século XII, alegava ter escrito sua primeira obra, o Scivias, obedecendo a um "comando divino" que ela teria recebido em uma de suas visões espirituais. Segundo Hildegard, essas visões a acompanhavam desde sua infância, e nelas ela recebia mensagens "divinas". O Scivias, escrito entre 1141 e 1151, consistia, de acordo com Hildegard, na transcrição dessas mensagens e era uma obra com ensinamentos em ortodoxia doutrinária. A obra, contendo as visões de Hildegard, é dividida em três partes de tamanho desigual que tratam respectivamente da criação e queda (primeira parte), da redenção e da salvação. Este artigo visa a analisar a quarta visão da primeira parte do Scivias em que Hildegard narra a peregrinação de uma alma pecadora. A caminhada dessa alma é interessante à medida que sintetiza, em sua jornada, as etapas doutrinárias cristãs trabalhadas em todo o Scivias, a saber, criação, queda, redenção e salvação.

Palavras-chave: ortodoxia; peregrinação; espiritualidade medieval; história da salvação.

ABSTRACT

Hildegard of Bingen, religious Benedictine woman who lived in the twelfth century, claimed to have written her first work, the Scivias, under a "prophetic call", that she would have received in one of her spiritual visions. According to Hildegard, her visions had been with her since childhood and in them she received "divine" messages. The Scivias, written between 1141 and 1151, consisted of, as Hildegard claimed, the transcription of these messages and it was a work with teachings in doctrinal orthodoxy. The book, with Hildegard's visions, is divided in three parts of unequal size which deal respectively with creation and fall (first part), redemption and salvation. This article aims to analyse the fourth vision of the first part of the Scivias in which Hildegard relates a pilgrimage of a sinner soul. The journey of this soul is interesting as it synthetizes the doctrinal phases worked in all Scivias, meaning creation, fall, redemption and salvation.

Keywords: orthodoxy; pilgrimage; medieval spirituality; history of salvation.

Considerações preliminares

Por volta dos anos 1146-1147, o abade cisterciense Bernardo de Clairvaux empreendeu uma longa viagem ao redor da Europa com o objetivo de promover a Segunda Cruzada. Um de seus destinos era o Vale do Rio Reno, na Alemanha. Ali, sua pregação foi muito bem recebida e, entre sua audiência, encontrava-se Hildegard de Bingen, monja alemã que dirigia a ala feminina do mosteiro de Disibodenberg, situado naquela região. É possível que o encontro com o abade, ainda que não tenha passado da simples assistência de Hildegard à sua pregação, tenha encorajado a religiosa a escrever-lhe, por essa mesma época, uma missiva, solicitando seu apoio para a propagação do conteúdo de suas visões espirituais.

Um ano depois, Bernardo de Clairvaux voltava às terras renanas, desta vez acompanhado de seu antigo discípulo, Bernardo Pignatelli, o então Papa Eugênio III, para o sínodo de bispos de Trier (novembro 1147 – fevereiro 1148). Nos anos anteriores, Henrique, arcebispo de Mainz, ouvira falar das visões e mensagens "divinas" que Hildegard dizia receber e se incumbira de trazer o assunto à tona perante aquela assembleia de prelados. Informado sobre o caso, o Papa Eugênio nomeou uma comissão papal para visitar Hildegard em Disibodenberg e trazer um manuscrito do ainda inconcluso Scivias – primeira obra de Hildegard de Bingen. Apesar da escassez de evidências, parece que Bernardo de Clairvaux também interviu com o Papa Eugênio em nome de Hildegard.1 1 Cf. BAIRD, Joseph L. Introduction. In: HILDEGARDIS BINGENSIS. The Personal Correspondence of Hildegard of Bingen: Selected letters with an Introduction and Commentary by Baird. Oxford, New York: Oxford University Press, 2006, p. 20). O que quer que tenha ocorrido, o fato é que, nesse encontro, o Scivias recebeu o selo da aprovação apostólica, uma vez que, depois de receber o manuscrito, o papa o leu perante grande audiência e enviou à religiosa uma carta ordenando que ela continuasse registrando suas visões.

Encorajada pelo incentivo papal e, provavelmente, pela resposta do abade cisterciense a sua carta, que deve ter-lhe constituído um estímulo, Hildegard se engajou definitivamente na tarefa de registrar suas visões. Em sua missiva, Bernardo de Clairvaux afirmava

regozijar-se na graça de Deus que está em você. E, então, nós sinceramente a exortamos e lhe pedimos que reconheça esse dom como graça e que lhe responda entusiasmadamente com toda humildade e devoção, com o conhecimento de que'Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes' (Tg 4.6). (Bernardo de Clairvaux apud BAIRD, 2006, p. 21).2 2 Os trechos da correspondência entre Hildegard e Bernardo de Clairvaux foram extraídos da obra de Joseph L. Baird referenciada na bibliografia deste artigo.

Apesar de perfunctória, a resposta do abade cisterciense denota claramente sua aceitação do "dom" de Hildegard, o qual ele considera uma graça divina, além de recomendar que a religiosa reconhecesse e respondesse a esse dom, o que logicamente significava utilizá-lo. E Hildegard, que desde muito dizia possuir tais visões que ela também acreditava constituírem uma graça divina, sentiu-se finalmente encorajada para dar prosseguimento ao registro das mensagens "divinas" que dizia receber, concluindo assim o Scivias, em 1151.

Hildegard iniciara a escrita do Scivias em 1141, depois de um longo período adoentada e acamada, fato que ela atribuía a sua recusa em registrar o que testemunhava em suas visões. No entanto, naquele ano que era o

quadragésimo terceiro ano da minha jornada terrestre, enquanto eu observava com grande medo e atenção trêmula uma visão celeste, eu vi um grande esplendor no qual ressoou uma voz do Céu, me dizendo, 'Ó frágil humana, cinza das cinzas, sujeira das sujeiras! Fale e escreva o que você vê e ouve. Mas, uma vez que você é tímida na fala e simples na exposição, e sem aptidão para a escrita, fale e escreva essas coisas não pela boca humana, e não pelo entendimento da invenção humana [...], mas como você as vê e ouve nas alturas nos lugares celestiais nas maravilhas de Deus'. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 3).3 3 Em nosso trabalho, utilizamos o texto latino do Scivias, editado e publicado por Adelgundis Führkötter e Angela Carlevaris. CCCM (Corpus Christianorum, Continuatio Medieualis). Turnhout, Bélgica: Brepols, 1978.

No excerto acima, que se encontra num breve introito da própria Hildegard ao Scivias, a religiosa já demonstra a humildade que Bernardo de Clairvaux a aconselhara a adotar e que pautaria toda sua vida e obra. Prova disso é a frase recorrente que ela empregava para iniciar muitos de seus escritos, fossem eles longos textos ou sucintas correspondências: "Eu, pobre pequena mulher que sou...". Ademais, em outras passagens de sua obra, Hildegard sublinhará ainda sua pouca cultura literária e seu parco conhecimento do latim, chegando a afirmar que "sabia ler apenas no nível mais elementar, certamente sem uma análise profunda". (HILDEGARDIS BINGENSIS apud BAIRD, 2006, p. 18). 4 4 Para Joseph L. Baird, o propósito de Hildegard ao afirmar que "sabia ler apenas no nível elementar" não era dizer que ela mal sabia ler, mas sim "que ela não lê como os eruditos, que se esforçavam para extrair o sentido profundo de textos de difícil compreensão. De fato, seu aprendizado, ela explica, não acontece absolutamente dessa maneira, mas vem do próprio céu. A ênfase de Hildegard aqui, como em toda sua vida, está na fonte divina de seu entendimento". BAIRD, Joseph L. Introduction. In: HILDEGARDIS BINGENSIS. The Personal Correspondence of Hildegard of Bingen, p. 18). Porém, como sublinhou Barbara Newman,

o principal motivo dessa aparente autodepreciação não era se diminuir ou comentar as falhas de sua primeira educação, mas sim enfatizar que a fonte de suas revelações era divina, e não humana. Sem este indispensável apelo à profecia, sua carreira como escritora e pregadora teria sido impensável. (NEWMAN, 1998, p. 7).

Desse modo, mantendo sempre uma atitude humilde e modesta e sustentando que suas obras tinham origem divina, Hildegard ganhou popularidade e notoriedade nos meios eclesiásticos e seculares de seu tempo, tendo ficado conhecida como uma profetisa.

O Scivias foi inteiramente concebido e escrito a partir da perspectiva de que as visões que Hildegard ali descrevia lhe eram transmitidas por Deus. Mas, além do apelo à profecia, outro motivo para a aprovação da obra de Hildegard entre o clero se destaca: a clara ortodoxia da religiosa. O Scivias, por exemplo, é divido em três partes que tratam respectivamente da criação, redenção e salvação. Nessa divisão em três partes há uma alusão à Trindade. Na segunda parte, Hildegard discorre incansavelmente sobre os sacramentos de redenção: batismo, confirmação ou crisma, ordenação, penitência e eucaristia. Portanto, as ideias de Hildegard estavam em pleno acordo com a doutrina da Igreja de sua época. E ainda que, muitas vezes, se dirigisse veementemente contra uma parte do clero que ela considerava corrupto, fazia-o de acordo com as ideias reformistas bastante difundidas no meio eclesiástico naquele período.

Este artigo tem como objetivo analisar uma visão de Hildegard – a quarta visão – incluída na primeira parte do Scivias.

O Scivias e o início da jornada da alma peregrina: criação e queda

Hildegard nasceu em 1098 em Bermersheim, no vale do rio Reno. Era filha do nobre Hildebert de Bermesheim e de sua mulher, Mechthild. Pouco se sabe sobre a vida dessa família além de que era rica, prolífica – consta que Hildegard era a mais nova de dez irmãos – e de que pertencia à nobreza. Segundo uma das fontes sobre a vida de Hildegard, a Vita Sanctae Hildegardis5 5 A Vita de Hildegard, referenciada em nossa bibliografia, foi produzida por dois monges respectivamente: Gottfried von St. Disibod e Theodoric von Echternach. , ela demonstrara uma espiritualidade precoce, tendo sido acompanhada por visões desde tenra infância. De acordo com um relato incluído no segundo livro da Vita, Hildegard teve sua primeira experiência visionária antes dos 5 anos de idade quando, ao caminhar com sua ama, exclamou: "veja que bezerrinho bonitinho dentro desta vaca. Ele é branco com manchas no peito, nas patas e nas costas". (VITA apud FLANAGAN, 1998b, p. 1).

É possível que a espiritualidade precoce de Hildegard tenha influenciado na decisão de seus pais de dedicarem-na à vida religiosa quando era ainda uma criança. Segundo a Vita de Hildegard, ela foi enclausurada no mosteiro de Disibodenberg ao lado de Jutta, uma jovem anacoreta seis anos mais velha que ela, filha do conde Stephen de Sponheim e de sua esposa, Sophia.

Pouco se sabe sobre os primeiros anos da vida religiosa de Hildegard, pois a Vita quase não se detém nessa época, trazendo informações mais detalhadas sobre o período em que Hildegard já era bastante conhecida. Sabe-se, porém, que depois de ser entregue à tutoria de Jutta Hildegard passou a ser instruída na recitação dos salmos durante grande parte do dia e, obviamente, em outras ocupações femininas no tempo que restava depois da programação de orações.

Quando Jutta morreu em 1136, Hildegard, então com trinta e oito anos, foi unanimemente escolhida como a nova magistra do mosteiro. No entanto, esse evento trouxe poucas modificações a sua vida, pois se encontrava sempre enferma devido à presença constante daquelas visões que ela afirmava brotarem de fonte divina. Mas, segundo a própria Hildegard, ela se recusava a revelar tais visões, "devido à dúvida e à má opinião sobre mim mesma". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 3). A nova líder do mosteiro teria confiado sua situação apenas ao monge Volmar, seu grande amigo, secretário e confidente, o qual, mais tarde, comunicaria ao abade de São Disibod,6 6 O mosteiro onde Hildegard vivia era conhecido como Disibodenberg ou São Disibod, sendo Disibod o nome de um eremita irlandês que teria fundado o local no século VII. Kuno, o"problema" de Hildegard. Assim, com o incentivo de Volmar e o apoio de Kuno, Hildegard finalmente superaria seus medos e iniciaria, em 1141, a escrita de sua primeira obra, o Scivias. Ela levou dez anos para concluí-lo e, embora tenha escrito outras obras, este foi seu trabalho mais conhecido durante sua vida, já que a aprovação do Papa Eugênio III propagou sua fama.

O Scivias se dirigia prioritariamente a um público monástico e clerical, mais especificamente a um público masculino de clérigos que Hildegard considerava indolentes. A obra, como vimos acima, é dividida em três partes, que Hildegard chama de livros. Os livros do Scivias apresentam tamanho desigual. O primeiro livro contém seis visões, o segundo, sete, e o terceiro contém treze. O primeiro livro explora conexões entre macrocosmo e microcosmo, o que está acima e o que está abaixo, o mundo criado e o mundo caído. No segundo livro, que é dominado pela figura da Ecclesia ou Mãe Igreja, Hildegard se ocupa, como já foi dito, dos sacramentos da redenção: batismo, confirmação ou crisma, ordenação, penitência e eucaristia. O terceiro livro apresenta estrutura dupla, ao mesmo tempo histórica e moral. A maioria das visões aí contidas desenvolve a imagem de um complexo edifício alegórico, o "edifício da salvação", que é sustentado pela divindade e habitado pelas Virtudes. Pela descrição de suas paredes, pilares e torres, Hildegard traça as idades sucessivas da história da salvação, da criação até o julgamento final, enquanto suas visões das Virtudes personificadas permitem que ela apresente uma teologia da vida moral. A última visão do Scivias termina com uma sinfonia de louvor para os habitantes do Céu. Após as canções, há uma peça curta que narra a luta de uma alma tentada pelo diabo, mas resgatada e fortalecida por um coro de Virtudes, até que finalmente alcança a salvação e vê o diabo derrotado.

Na quarta visão do primeiro livro do Scivias (à qual dedicamos este artigo), em que Hildegard pretende abordar a questão "Corpo e Alma" (assim a religiosa denomina essa visão), ela narra a caminhada de uma alma em um lugar do além. A caminhada dessa alma sintetiza, nos obstáculos que enfrenta, as etapas da história da salvação, quais sejam, criação, queda, redenção e salvação. Trata-se de uma narrativa interessante justamente por representar, de maneira resumida, a ideia que Hildegard fazia da vida humana, desde a queda engendrada pelo pecado original de Adão e Eva até a longa espera pelo Julgamento final. E, para Hildegard, o caminho para a salvação, embora infestado de tentações, não era tão complicado. Bastava ao ser humano afastar-se dos vícios, seguir as virtudes, praticá-las, e a Jerusalém celeste estaria ali, bem ao seu alcance.

Em todas as visões do Scivias a organização é uniforme: Hildegard sempre começa com a descrição, geralmente breve, daquilo que ela viu, e no fim de cada visão tem início a interpretação desta, muitas vezes, mas nem sempre, introduzida pela fórmula: "E eu ouvi uma voz do céu, dizendo [...]". Segue, a partir daí, uma interpretação alegórica do fenômeno visual, acompanhada de um ensinamento elaborado que elucida pontos de doutrina e moralidade que foram sugeridos na visão. Hildegard elabora esse ensinamento dividindo a visão em itens numerados, interpretando e explicando esses itens separadamente.

A visão em que ora nos detemos é particularmente grande, contém 32 itens, enquanto algumas têm 8, uma outra, 9, outra ainda, 17, etc. Na visão que nos propusemos analisar, Hildegard descreve o que "vê", mas em vez de, em seguida, interpretar essa visão, como costuma fazer, ela inicia a narrativa da peregrinação de uma alma pecadora, e a interpretação da visão só ocorrerá mais adiante, após o fim da narrativa, a partir do item 9. No entanto, o relato da peregrinação que se inicia no primeiro item dá continuidade à última etapa da visão de Hildegard, em que esta descreve:

a imagem de uma mulher que tinha uma forma humana perfeita em seu útero. E atenção! Pelo desígnio secreto do Grande Criador, aquela forma se moveu com movimento vital, de maneira que um globo ardente que não tinha delineamentos humanos possuiu o coração daquela forma e tocou seu cérebro e se espalhou por todos os seus membros. Mas então, essa forma humana, dessa maneira vivificada, deixou o útero da mulher e mudou sua cor de acordo com o movimento que o globo fez naquela forma. E eu vi quando muitos redemoinhos assaltaram um desses globos em um corpo e o curvaram até o chão; mas, retomando sua força e se erguendo bravamente, ele os resistiu com coragem e disse com um gemido: (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 61-62).

Aqui o relato da visão se interrompe para dar lugar à narrativa da peregrina,7 7 Trata-se de uma peregrina (no feminino) e não de um peregrino. No desenvolvimento desse artigo, abordaremos o significado dessa figura feminina que desempenha o papel da peregrina na narrativa. No entanto, o objetivo deste artigo não é trabalhar as concepções hildegardianas do feminino, e sim compreender como a peregrinação dessa alma sintetiza as etapas doutrinárias abordadas no próprio Scivias, além de expressar o simbolismo do sentimento religioso daquela época. que se inicia (no primeiro item, como foi dito) com o que Hildegard chama de "lamento de uma alma voltando pela graça de Deus do caminho do erro para Sião". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 62). Esse lamento é um "gemido" de arrependimento e revela a situação em que essa alma se encontra quando ela questiona: Ego peregrina ubi sum? In umbra mortis. Et qua via eo? In via erroris. Et quam consolationem habeo? Quam peregrini habent. ("Uma peregrina, onde estou eu? Na sombra da morte. E em que caminho estou viajando? No caminho do erro. E que consolo tenho eu? Aquele que os peregrinos têm."). (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 62). A partir desse momento, a peregrina se lança numa tentativa desesperada de recuperar o que tinha perdido – sua mãe Sião - por menosprezar os dons divinos. Para essa alma que caíra na perdição do pecado, sua caminhada representa o retorno a Sião, isto é, à Jerusalém celeste, ao Paraíso perdido. Mas esse retorno para Sião constitui uma jornada lenta e cheia de percalços, pois trata-se de uma alma pecadora, vencida pelas tentações. No trecho da visão de Hildegard acima transcrito os "redemoinhos" configuram as tentações. Aliás, a visão é bastante explícita ao demarcar as fases da vida da alma: quando Hildegard descreve "uma mulher com uma forma perfeita em seu útero" está se referindo a uma gravidez; no momento em que "um globo ardente... possui o coração daquela forma e toca seu cérebro", a criança, ainda no útero, liga-se a uma alma, ou seja, é "tomada" por uma alma; logo em seguida, nasce a criança, quando aquela "forma humana...deixa o útero da mulher"; e, finalmente, quando "muitos redemoinhos assaltam um desses globos em um corpo e o curvam até o chão", isso significa que as tentações assediam e "dobram" essa pessoa, ou seja, ela cede às tentações.

E é assim, assediada pelas tentações e tombada pelo seu peso, que a filha de Sião se encontra quando inicia sua longa caminhada. Por isso, como ela própria o reconhece, ela está mergulhada "na sombra da morte" e viajando "no caminho do erro". E o seu consolo é "aquele que os peregrinos têm". Mas o que Hildegard quereria dizer com isso: qual era esse consolo?

Hildegard não responde de imediato a essa questão. Porém, se o sentido religioso da peregrinação consiste na busca do sagrado, na vontade de união com o divino, esse então deve ser o consolo, a saber, a esperança de, no fim do trajeto, alcançar a Deus, ou seja, a salvação. No decorrer da narrativa da jornada dessa alma, tal objetivo se delineará paulatinamente.

A peregrinação, além de constituir uma prática sagrada comum na Idade Média, apresentava elementos extraordinários que faziam parte do imaginário medieval e com os quais o homem daquele período se identificava em suas crenças religiosas. No contexto da espiritualidade medieval, peregrinar constituía uma prática de devoção em que o sentido da troca, da barganha com o divino, é evidente. O peregrino caminhava para receber um milagre, e como a jornada implicava, muitas vezes, a expiação dos pecados, ele se achava no direito de receber essa dádiva. Portanto, tal prática piedosa estava quase sempre associada ao milagre, que exercia forte atração sobre o homem da Idade Média. Como notou Hilário Franco Junior, a peregrinação constitui

Uma atitude religiosa particularmente rica, na medida em que sintetiza praticamente toda a espiritualidade: é busca de objetos de veneração, é experiência especialmente propícia a atrair manifestações divinas, é talvez das atitudes humanas a mais carregada de religiosidade, de busca do sagrado. (FRANCO JUNIOR, 1996, p. 47).

Não à toa, Hildegard se serve desse tipo de relato piedoso, pois essa foi uma das maneiras que a religiosa encontrou para atrair seus leitores, transmitindo, assim, sua mensagem doutrinária. A jornada da filha de Sião no Scivias simboliza, como vimos acima, todas as etapas doutrinárias trabalhadas no decorrer de todo o Scivias, a saber, a Criação e a Queda, a Redenção e a Salvação. A peregrina de Hildegard é, no nível metafísico, a alma perdida que se desviou de Deus e que recebe como penitência e castigo a peregrinação, na qual irá purgar e expiar seus pecados na busca da salvação. E nessa busca o arrependimento ocupa um papel relevante, sendo evidente o arrependimento dessa alma:

Eu deveria ter tido um tabernáculo adornado com cinco gemas quadradas mais brilhantes que o sol e as estrelas, porque não seriam o sol e as estrelas a brilhar ali, mas a glória dos anjos; o topázio seria sua fundação e todas as gemas sua estrutura, suas escadas feitas de cristal e seus pátios pavimentados com ouro. Porque eu deveria ter sido um companheiro dos anjos, pois eu sou um hálito vivo que Deus colocou na lama seca; assim eu deveria ter conhecido e sentido Deus. No entanto, quando meu tabernáculo percebeu que poderia voltar seus olhos para todas as direções, ele voltou sua atenção para o Norte; ai, ai! E lá eu fui capturada e destituída de minha visão e da alegria do conhecimento, e toda a minha vestimenta foi rasgada. E assim, despojada de minha herança, eu fui levada a um lugar estranho sem beleza ou honra, e ali sujeita à pior escravidão. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 62).

A alma está arrependida porque pecou e, ao fazê-lo, perdeu seu "tabernáculo". Ao analisarmos o relato em questão, chegamos à conclusão de que o tabernáculo a que Hildegard se refere é o próprio corpo da peregrina, é o invólucro que envolve a alma. Essa primeira parte da narrativa encerra elementos que estão presentes nos relatos bíblicos da Criação e da Queda.8 8 A respeito da importância do relato do Gênesis para os religiosos da Idade Média, Barbara Newman observou que "tanto para Hildegard como para os cristãos medievais em geral, a estória do paraíso perdido recontada no Gênesis serviu como a pedra de toque para toda a meditação sobre o homem e a mulher. Ela explicava sua origem, fim e a presente situação, assim como suas relações com Deus, Satã e entre eles mesmos". NEWMAN, B. Sister of Wisdom: St. Hildegard´s Theology of the Feminine. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1997, p. 89. Como vimos acima, o Scivias é uma obra doutrinária que aborda os temas da criação, da queda, da redenção e da salvação. A segunda visão do primeiro livro do Scivias dedica-se inteiramente aos temas da criação e da queda, e nela Hildegard revela suas concepções sobre o papel do homem (Adão) e da mulher (Eva) no desencadeamento da queda, aproveitando para expor ensinamentos sobre casamento e sexualidade. Naquele capítulo, Hildegard exonera Eva, em grande parte, do peso da culpa pelo primeiro pecado, transferindo o maior fardo da culpa ao Diabo. Na construção da narrativa da peregrina, Hildegard procede, em diversas passagens, a associações com o relato da Criação e da Queda, seja implícita ou explicitamente. Por nossa vez, buscamos, neste texto, destacar as passagens em que isso acontece, para demonstrar a analogia que Hildegard realiza em sua obra com o texto bíblico, mas não nos cabe aqui proceder a qualquer abordagem filosófica dos diferentes significados dos papéis de Adão e Eva para a espiritualidade medieval. Conforme sua afirmação, ela – peregrina – é um "hálito vivo que Deus colocou na lama seca". A semelhança com a passagem bíblica é explícita: segundo o relato da Criação, "Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente". (GÊNESIS 2,7).

E assim como Adão e Eva desprezaram a vida que Deus lhes deu, e por isso a perderam, a filha de Sião também, tendo sido criada por Deus, desprezará e perderá a vida, pois ao declarar, no início da narrativa, que "deveria ter tido um tabernáculo" ela quer dizer que já não é possuidora do tabernáculo, ou seja, da vida.

Na continuação do relato, a alma pecadora, que desviou seus olhos de Deus ("eu deveria ter sido um companheiro dos anjos, eu deveria ter conhecido e sentido Deus"), volta-se para o Norte. No pensamento hildegardiano, o Norte corresponde à região onde o Diabo reside

A frase, no entanto, se cotejada com o texto bíblico da Queda, parece, à primeira vista, encerrar uma contradição, já que a causa primordial da queda de Adão – seu pecado original – foram sua insolência e desobediência ao comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Se, em Hildegard, a peregrina é destituída de seu conhecimento ao abandonar a Deus, no relato da Queda, o evento se dá em sentido inverso, já que, ao almejar o conhecimento do bem e do mal, Adão renuncia a Deus, ou melhor, à sua herança divina. Mas a contradição pode ser resolvida se considerarmos que se trata de dois tipos diversos de conhecimento. No caso de Adão, o conhecimento usurpado pelo seu pecado não constitui

nem a onisciência, que o homem decaído não possui, nem o discernimento moral, que o homem inocente já tinha e que Deus não pode recusar à sua criatura racional. É a faculdade de decidir por si mesmo o que é bom e o que é mal e de agir consequentemente: reivindicação de autonomia moral pela qual o homem nega seu estado de criatura. (GÊNESIS 2, 17, nota b, p. 34).

Na tradição bíblica, o que o primeiro homem usurpou, na realidade, foi o poder de decisão entre o que é bem e o que é mal, foi uma autonomia que não lhe era de direito. O primeiro pecado de Adão foi, portanto, um pecado de orgulho. Adão quis se igualar a Deus, pois a serpente disse a Eva: "Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes [do fruto da árvore proibida], vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal". (GÊNESIS 3, 5).

Adão não reivindicava, desse modo, um discernimento moral, pois ele já o possuía. E é esse discernimento moral, fundamental em Hildegard, que a peregrina de sua visão perde ao desviar seu olhar para o Diabo.13 13 Na tradição da espiritualidade cristã, o dom da contemplação consiste essencialmente no fato de que a alma toma consciência de Deus que está presente e age sobre ela. O conhecimento contemplativo não é, portanto, separável da experiência da presença de Deus. Trata-se de conhecimento sob a forma de copresença. Como somos conscientes de conhecer e de amar um amigo presente, assim a consciência espiritual que adere ao reino de Deus presente nela percebe o próprio Deus que a atrai e a impele para aquela adesão, concedendo-lhe a graça necessária. Cf. FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo (org.). Dicionário de espiritualidade. Trad. da ed. Espanhola e adaptação Augusto Guerra e Isabel Fontes Leal Ferreira. São Paulo: Paulus, 1993, p. 187-188. Acerca da teoria cristã do conhecimento, podemos afirmar, ainda, que Hildegard compartilha de uma extensa tradição patrística. Para aprofundamento de temáticas tais como o conhecimento sensível, o conhecimento racional, o mestre interior, a luz e o caminho da alma. Cf. GILSON, Étienne. Introduction à l'étude de Saint Augustin. Paris: Vrin, 2003. Nesse sentido, as duas narrativas convergem para o mesmo ponto, já que a alma pecadora da narrativa hildegardiana possuía a capacidade de discernimento entre o que é bem e o que é mal, capacidade essa que Adão também possuía antes mesmo de comer da árvore proibida.

A filha de Sião, devido aos seus erros, será despojada também de sua herança. Não é difícil deduzir que se trata de sua herança divina, que está associada à vida, ao direito à eternidade (é a perda do "tabernáculo maravilhosamente adornado"). Assim também, no relato da Queda, quando, instigado por Eva, Adão desrespeita o comando divino comendo da árvore do conhecimento, ele perde o direito de comer o fruto da árvore da vida, proibição divina que simboliza a perda da eternidade e a aquisição, como punição, da morte. Essa morte, que aparece como consequência direta do pecado original e da queda e que não caracteriza uma morte imediata ao pecado, uma morte instantânea (Adão e Eva prosseguirão vivendo e terão filhos), constitui uma das grandes preocupações de Hildegard em todo o Scivias. Para ela, a grande provação da humanidade, seu maior sofrimento, é a morte resultante do pecado original. A própria jornada da peregrina configura uma morte, mas a morte em sentido figurado: de perda, de ruptura com a vida paradisíaca e eterna. Não à toa, uma das admoestações mais contundentes da religiosa nessa obra é para que se pratiquem as virtudes, como forma de redenção pessoal e, consequentemente, de recuperação da vida eterna e de superação da morte, o que, em última instância, consiste na salvação.

No pensamento hildegardiano, a morte, sempre em oposição à vida eterna, é a grande inimiga a ser vencida. E a vitória da humanidade, sua salvação final, só será viabilizada por meio da aquisição e realização das virtudes. O terceiro livro do Scivias trata minuciosamente das virtudes e da necessidade de praticá-las. Para Hildegard, a única maneira de se redimir e alcançar o Paraíso ou a vida eterna era pela prática das virtudes que se manifestaram na Terra por meio da encarnação do Filho de Deus. Como acertadamente observou Constant Mews,

A ênfase de Hildegard na importância da vida correta mais do que na graça conferida por meio dos sacramentos é análoga ao seu enfoque, na terceira parte do 'Scivias', no caminho moral que os fiéis devem seguir. Sua preocupação é sempre com a vida, seja a vida da criação ou a vida da humanidade, ou mesmo a divindade como a própria Luz Viva. Um indivíduo tem que escolher entre os caminhos do bem e do mal. Não há dúvida em Hildegard sobre o caminho da vida. Com a ajuda das virtudes, um fiel cresce como uma palmeira para adornar a cidade de Deus (III.2.26). Falando da assistência propiciada pelas virtudes e da inspiração do Espírito Santo em detrimento da atuação da graça, Hildegard desenvolve o seu tema de que as virtudes, engajadas na edificação da cidade celestial, incorporam a própria vida. (MEWS, 1998, p. 62).

Na jornada que ora acompanhamos, o arrependimento (o qual mencionamos acima), como reflexo da virtude mais exaltada pela religiosa – a humildade –, é a marca mais forte de sua vontade de redenção. Para se redimir e vencer a morte, a peregrina terá que enfrentar, primeiramente, muitos obstáculos em seu caminho e só será capaz de fazê-lo caso esteja arrependida e seja humilde o suficiente para aceitar todas as provações pelas quais terá que passar. Em seguida, ela terá que derrotar aquele que provocou a morte, o Diabo. Para Hildegard, o Diabo, como o grande sedutor do primeiro homem, está na origem de todo o mal que assola a humanidade e de todo o mal que, na forma das tentações, interpõe-se na vida do homem indivíduo. Ela acredita que o Diabo, sob a máscara de uma serpente, foi quem seduziu Eva que, por sua vez, persuadiu Adão a comer o fruto proibido. Assim, para Hildegard, foi o Diabo a causa primordial do surgimento da morte e de todo sofrimento humano. O grande pecado de Adão e Eva foi aceitar a persuasão de Lúcifer que infundiu em suas mentes o orgulho e a presunção.

Quando a filha de Sião olhou para o Norte, isto é, para o Diabo, ela penetrou no caminho do erro, atraindo para si as mesmas provações e sofrimentos que Adão e Eva haviam suscitado quando de sua queda. A escravidão a que será submetida daí em diante é a sujeição aos maus desígnios do Demônio. E só pelo arrependimento e penitência é que ela poderá expurgar seus pecados, escapando às armadilhas demoníacas.

Hildegard conta que, durante o percurso da peregrina, aqueles que a capturaram fizeram com que ela comesse com os suínos, levaram-na a um lugar deserto, deram-lhe de comer ervas amargas misturadas com mel e submeteram-na a toda sorte de tortura. Depois de a despojarem de suas roupas e lhe infligirem muitos ferimentos, eles a deixaram ir apenas para que fosse perseguida e capturada por criaturas venenosas, tais como escorpiões, cobras e outros. E estes expeliram seu veneno sobre todo o corpo da peregrina paralisando-a. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 63).

Estas imagens evocam uma paisagem infernal: o deserto no Antigo Testamento é um lugar de provações, de vida errante e de desprendimento. (LE GOFF, 1993, p. 84). "Também já foi sublinhada a existência de estreitos laços entre o deserto, o oceano, a morte e o sheol, a morada como que infernal dos mortos". (LE GOFF, 1993, p. 85). Os animais peçonhentos colocados no encalço da peregrina são igualmente simbólicos dos locais infernais. A literatura escatológica medieval representava incansavelmente os lugares infernais repletos de monstros, dragões e serpentes. A própria Hildegard, em uma obra posterior ao Scivias, o Livro dos Méritos da Vida – Liber Vitae Meritorum – escrito entre 1158 e 1163, consagra cinco visões aos castigos que esperam os pecadores nos lugares do além. Entre tais castigos, encontram-se todos aqueles típicos do inferno do imaginário medieval como o fogo, o mar de enxofre, os poços profundos cheios de piche, escorpiões, aranhas, os pântanos fétidos, etc.

Além dessas criaturas repugnantes, surgem ainda, no rastro da filha de Sião, outros perseguidores: os demônios ou "espíritos do mal" ou "maus espíritos" como Hildegard os denomina. Atormentada e torturada por tais perseguidores que zombam dela perguntando Ubi est honor tuus nunc? (Onde está a sua honra agora?) (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 63), a peregrina volta a se lamentar:

Oh, onde estou eu? De onde eu vim? Que conforto devo procurar nesse cativeiro? Como posso quebrar essas correntes? Que olhos podem olhar minhas feridas? Que nariz pode suportar seu terrível fedor? E que mãos as untarão com óleo?14 14 Na referência à unção com óleo, pode haver menção ao sacramento da crisma ou confirmação em que, após o batismo, o fiel é untado com o óleo da confirmação pelo bispo, muito embora, em se tratando da crisma, não se untem as feridas e sim uma pessoa. Nesse período, trata-se de um dos ritos do próprio batismo, além da unção que acompanha, desde o período carolíngio, a coroação real – ápice do processo de sacralização da realeza. Os sacerdotes também são ungidos ao receber as ordens, e o costume de aspergir o óleo sagrado nas mãos e na fronte de bispos e monarcas remonta à tradição vetero-testamentária. Cf. KANTOROWICZ, Ernest H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Quem terá misericórdia de minha aflição? Que o Céu possa ouvir o meu pranto [...]. Porque a tristeza mais amarga me oprime, que sou uma peregrina sem conforto e sem ajuda. Oh, quem me consolará se até minha mãe me abandonou quando eu me desviei do caminho da salvação? Quem me ajudará senão Deus? Mas quando eu me lembro de você, oh mãe Sião, em quem eu deveria ter residido, eu vejo a amarga escravidão a que estou submetida. E quando eu recordo a música de todo tipo que vive em você, eu sinto minhas feridas. [...] Para onde voltar-me? Para onde escapar? [...] Porque se eu continuar nessas maldades, eu me tornarei companheira daqueles que eu conheci na terra da Babilônia. E onde está você, oh mãe Sião? Pobre de mim que tão infortunadamente me afastei de você. (HILDEGARDIS BINGENSIS, p. 73).

Dos percalços que a alma pecadora enfrenta, o que lhe parece mais doloroso é a sua condição de abandono, é a perda de sua mãe Sião, que simboliza a Jerusalém celeste,15 15 A referência a Jerusalém se encontra no termo Sião, pois a cidade de Jerusalém foi erigida ao lado do Monte Sião. Mas é óbvio que a alegoria não nos transporta para a cidade de Jerusalém, já que se trata de algo divino e perdido pela filha pecadora. Trata-se, portanto, da Jerusalém celeste. (2 Sm 5,9, cf. citado supra) o Paraíso perdido. A peregrina contrapõe a alegria celestial – "a mãe Sião em quem deveria ter residido" – a suas dores terrenas; a Jerusalém celeste à Babilônia16 16 A Babilônia apresenta uma forte conotação sexual: no Apocalipse, personificada por uma mulher, ela é a grande prostituta. Na verdade, a mulher é aquela que aparece "vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz." (Ap 12, 1-2). Em seguida, surge o Dragão "cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas." (Ap 12, 3) Ele pretendia devorar o filho da mulher tão logo ela desse à luz "um varão, que regerá todas as nações com cetro de ferro." (Ap 12, 5) Seu filho, porém foi levado para junto do trono divino e a mulher fugiu para o deserto , "onde Deus havia preparado um lugar em que fosse alimentada por mil duzentos e sessenta dias." (Ap 12, 6). Quanto à Babilônia, ela é mencionada em Ap 11,8: "Seus cadáveres ficarão expostos na praça da Grande Cidade que se chama simbolicamente Sodoma e Egito, onde também o Senhor delas foi crucificado." A grande cidade de Babilônia é, na linguagem de São João, Roma, chamada de Sodoma e Egito por causa de dois grandes crimes: impudícia e opressão dos fiéis de Cristo (Cf. Ap. 17, 4-6); aqui é identificada com Jerusalém, que não é somente Cidade santa, pois ela "matou os profetas." (Mt 23, 37). que é o símbolo do pecado, da arrogância e do afastamento de Deus.

O sentido de tais alegorias utilizadas por Hildegard é explícito e está intimamente associado às imagens bíblicas, mas há ainda, na referência à filha de Sião e à sua perdição, outro significado, mais oculto, que é particular à obra da religiosa. Na visão 5, livro II (As três ordens na Igreja), Hildegard "vê" a imagem de uma mulher aureolada por uma luz brilhante – Ecclesia – de cujo peito saía uma claridade que se estendia até o céu, na qual aparecia uma outra imagem, belíssima, de uma jovem de cabelos negros, com a cabeça descoberta e vestida com uma túnica vermelha. Hildegard então "ouviu a voz do Céu dizendo" que "isso é o desabrochar da Sião celestial, a mãe e flor das rosas e lírios do vale." E a religiosa viu ainda que ao redor daquela jovem se reunia uma grande multidão, "mais brilhante que o Sol". E a voz de Deus lhe explicou mais uma vez que "estas são as filhas de Sião". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 175).

Na explicação da visão, Hildegard interpretará a figura da bela jovem como "serena Virgindade, inocente de toda imundície da luxúria humana". "Ela é também [...] a nobre filha da Jerusalém celestial [...]". Já "as filhas de Sião" que circundam a figura da Virgindade são "uma multidão maravilhosa de virgens". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 181).

Desse modo, podemos concluir que a peregrina da visão a que dedicamos nossa análise, sendo uma filha de Sião, representa também a figura da Virgindade. E assim como Adão e Eva, pelo pecado do orgulho e da presunção, suscitaram a perda da inocência, a perdição da filha de Sião implica igualmente sua perda da inocência e da pureza.

É provável que, tendo elegido o sexo feminino para desempenhar o papel de um peregrino e de sua queda, Hildegard tenha, intimamente, refletido muito mais na figura de Eva do que na de Adão.17 17 Embora o papel do peregrino seja desempenhado por uma mulher, a narrativa da peregrina deixa claro que tanto Adão como Eva foram responsáveis pela queda: vimos como, no início da narrativa, ao lamentar sua situação, a peregrina diz que "é um hálito vivo que Deus colocou na lama seca". Essa referência ao relato bíblico da criação é uma associação explícita com Adão e não com Eva, já que foi Adão, o primeiro homem, que nasceu da terra. Eva, por ter sido retirada de uma costela de Adão, não nasceu da terra e sim da carne. Isso não implica, necessariamente, que a religiosa julgue Eva como a grande culpada pelo pecado original ou que tenha desenvolvido uma teoria misógina com relação à mulher. Pelo contrário, quando aborda os temas da criação e da queda na segunda visão do primeiro livro do Scivias, ela, como observamos acima, isenta Eva dessa grande culpa, depositando-a no Diabo. Mas se tomarmos a peregrina em seu papel de "filha de Sião", ou seja, como símbolo da Virgindade, não podemos subtrair à narrativa nem seu caráter sexual, implícito na "perda dessa virgindade", nem a carga de culpabilidade inerente ao responsável por tal perda. E é aqui que os papéis da "filha de Sião" e de Eva se confundem.

A figura de Eva é muito emblemática nas concepções hildegardianas. Além de ser a mulher responsável pelo primeiro pecado e consequente queda da humanidade, Eva configura ainda outra faceta, a de primeira mãe dessa mesma humanidade. Em razão destas duas facetas de Eva, o entendimento que Hildegard tem de seu papel na história da vida humana é, no mínimo, ambivalente. Se por um lado, Eva representa o poder criador da divindade18 18 De acordo com a etimologia popular, o nome Eva, Havvah, é explicado pela raiz hayah, "viver"; e daí o texto do Gênesis (3, 20) esclarecer a escolha do nome "por ser a mãe de todos os viventes". por meio da maternidade, por outro, Hildegard não pôde escapar nem à influência da tradição agostiniana que ligava o pecado original a concupiscência ou desejo e nem à tradição monástica com sua forte estima pela virgindade. Estas tradições, formadas e perpetuadas que eram por homens celibatários, são notórias por sua tendência em identificar o sexo em geral com o sexo feminino em particular, condenando assim Eva e suas filhas como a fonte da tentação. Como mostrou Bernhard Scholz:

O relato bíblico [Gn. 3, 16] é um símbolo do que os seus autores pensavam das mulheres em sua sociedade mas serviu também como uma imagem potente que generalizava o lamentável lapso de Eva em uma propensão constitucional da mulher para a maldade. A mulher era temida como a pedra na qual a virgindade monástica poderia sempre esbarrar, e o ascetismo cristão, como resultado, abraçou com paixão a noção da mulher como instrumento do demônio e um ser não apenas inferior, mas mau. Eva tornou-se a fonte do pecado, do sexo não mais controlado pela vontade, e de toda insuficiência da humanidade, desde o parto doloroso até a inescapável mortalidade. (SCHOLZ, 1980, p. 371).

Segundo Scholz, embora uma tradição cristã antiga tenha elegido, contra essa personificação do mal na mulher, um antagonista poderoso do mesmo sexo na Virgem Maria, isso não significaria um julgamento mais caridoso para com a mulher em geral, e apenas no século XII as implicações do papel de Maria para as mulheres começariam a ser notadas. (SCHOLZ, 1980, p. 371-372).

E Hildegard, vivendo e pensando de acordo com seu século, refletiria sua filosofia: para a religiosa, embora influenciada pelo diabo,

A mulher causou a queda do homem, mas pela mulher o mal foi superado. A mulher foi o instrumento pelo qual Satã procurou extirpar a vida, mas através de uma mulher, Deus frustrou o esquema do demônio. A mulher trouxe a morte através de Eva, mas a morte recuou por causa de Maria. A Virgem estava destinada a transformar a queda da mulher em um benefício e assim a confundir a antiga serpente. (SCHOLZ, 1980, p. 372).

De fato, no pensamento hildegardiano, a virgindade faz de Maria a contrapartida de Eva. Se em Eva reside a concupiscência, em Maria revela-se a grande pureza virginal, virgindade essa que se torna ainda mais santificada por ter gerado o Filho de Deus. No entanto, como assinalou Augustine Thompson,

Talvez pelo fato de toda a vida humana ter sido engendrada através dela, Eva, até mais que a Virgem Maria, representa a mulher no pensamento de Hildegard. No mundo imagético de Hildegard, Eva como mãe é associada à eterna teofania de Deus e ao aspecto feminino de Deus por meio de seus atributos icônicos do espelho, da vestimenta, da nuvem, os quais são imagens sapienciais divinas. (THOMPSON, 1994, p. 356).

Outro fator pode ter influenciado ainda mais nessa preponderância de Eva sobre a Virgem Maria no pensamento hildegardiano: sua maior identificação com a raça humana caída. Eva, como todos nós em nossa jornada terrena, colheu os frutos do pecado cometido. A figura pecadora19 19 No relato da Queda, quando Adão responde a Iahweh Deus que a mulher lhe dera o fruto da árvore proibida e ele comera, Deus condena a mulher ao sofrimento: "multiplicarei as dores de tuas gravidezes,/ na dor dará à luz filhos." (Gn. 3, 16). , e por isso sofredora, de Eva explica melhor os sofrimentos e percalços enfrentados pelo ser humano. Maria, em sua perfeição, permanece em um patamar por demais inatingível para que sua figura possa ser comparável à do ser humano. Maria é virgem e mãe, duas noções incompatíveis em uma mulher comum. Uma mulher normal, que não seja agraciada com algum milagre, só pode ser mãe se perder a virgindade e uma virgem genuína nunca poderá ser mãe. Assim, enquanto a maternidade de Maria só ocorreu devido a um milagre divino, os filhos gerados por Eva nasceram de sua união com Adão, um homem comum. Não à toa, a peregrina pecadora de nossa análise configura a virgindade perdida; a "filha de Sião", que caiu em perdição, não se associa a Maria e sim a Eva.

No relato da peregrinação aparece outra mulher, a mãe da pecadora, a Mãe Sião. É provável que, no pensamento de Hildegard, a Mãe Sião represente o outro feminino: o divino celestial. E talvez não apenas a contraparte de Eva – a Virgem Maria – mas toda a dimensão feminina divina, encarnada nas diversas alegorias femininas que a religiosa emprega em sua obra, como a Sabedoria (Sapientia) que, segundo Barbara Newman, seria a consorte divina de Deus, a grande noiva de Deus; a Caritas, o amor divino; a Ecclesia, mãe dos fiéis, e a própria Virgem Maria.

Baseando-se no fato de que Hildegard, movendo-se no rico e complexo mundo do simbolismo cristão, utiliza, em muitas de suas visões, imagens femininas para retratar a realidade, Barbara Newman acredita que a religiosa teria, na realidade, desenvolvido uma "teologia do feminino". (Cf. NEWMAN, 1997). Segundo Newman, as figuras femininas que aparecem na obra de Hildegard, como Sabedoria divina (Sapientia) e Amor celestial (Caritas); Eva e Maria como arquétipos da humanidade caída e redimida; e Ecclesia, a Mãe Igreja, estariam na base dessa teologia do feminino. Todas estas figuras emergiriam da mente de Deus, manifestando-se como formas das ideias divinas. E, de acordo com Newman, onde quer que surjam tais imagens

nós encontraremos a cosmologia platonista que cativou os pensadores do século XII: as ideias divinas, eternas na mente de Deus e encarnadas nas criaturas; a alma do mundo [anima mundi]; a profunda ressonância do macrocosmo com o microcosmo; e a esperança fervorosa de acesso a Deus através da racionalidade humana e da virtude. (NEWMAN, 1997, p. 44-45).

O que significa dizer que o poder criador divino perpassa o feminino e só se completa na sua fusão, pois, assim como não há procriação sem a união do masculino com o feminino, não haveria também, em nível macrocósmico, criação sem a união destes dois opostos. Para Barbara Newman, o que faz com que, no pensamento de Hildegard, figuras femininas apareçam como cocriadoras divinas, ou seja, o que determina, a priori, a existência de um feminino divino, é a crença da religiosa na predestinação de Cristo. Hildegard partilhava com alguns teólogos de seu tempo a ideia platonista de que todas as coisas criadas preexistiam eternamente na mente de Deus, inclusive a encarnação de Cristo.

[...] no século XII, que testemunhou uma ressurgência do platonismo cristão, teólogos como Rupert de Deutz e Honório foram os primeiros a propor a absoluta predestinação de Cristo: a doutrina segundo a qual Deus se tornaria homem mesmo se o homem nunca tivesse pecado. [...] Embora Hildegard nunca tivesse elaborado a questão hipotética 'se Deus se tornaria homem se o homem não tivesse pecado', ela compartilhava a visão absolutista de seus compatriotas beneditinos. A Encarnação era, para ela, [...] o propósito divino para o qual o mundo foi feito. (NEWMAN, 1997, p. 55).

Um trecho da primeira visão do livro II do seu Scivias enfatiza claramente essa crença, que Hildegard explicará em um dos subitens (o de número três) que se segue:

Quod verbum ante et post assumptam humanitatem indivisibiliter et aeternaliter apud patrem est. ("Que o Verbo estava e está indivisivelmente e eternamente no Pai").

Você vê que 'aquele fogo tem uma chama da cor do céu, que queima ardentemente com um suave hálito, e que é inseparável desse fogo como a víscera é do ser humano'; o que significa dizer que antes que as criaturas fossem feitas o Verbo Infinito estava indivisivelmente no Pai; o qual no curso do tempo viria a encarnar-se no ardor da caridade, miraculosamente e sem a mancha ou peso do pecado, através do doce frescor do Espírito Santo na aurora da virgindade abençoada. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 114).

De acordo com Newman, para o pensamento hildegardiano, no Verbo gerado antes de todos os tempos, o Pai já intencionava a encarnação de seu Filho e de seu corpo místico, a Igreja. Assim, a realização do objetivo divino por intermédio da Virgem Maria levou Hildegard a ligar a ideia da predestinação com o feminino. (NEWMAN, 1997, p. 56).20 20 Por outro lado, é típico do pensamento cristão medieval, essencialmente cristocêntrico, identificar a Encarnação como centro da História, a determinar tudo aquilo que teria acontecido no passado e tudo aquilo que aconteceria no futuro. A interpretação encontra-se de acordo com o Evangelho de João (Jo 1,1): "No princípio era o logos". E aí, nesse feminino, está incluída também a imagem da Jerusalém celeste como mãe da humanidade que, na visão que analisamos, Hildegard chama de Mãe Sião. O Speculum virginum (Espelho das Virgens), um manual bastante lido pelas freiras na Idade Média, estabelece de maneira exemplar a predestinação de Cristo, da Virgem Maria e da própria Jerusalém celeste:

Por isso, se todas as coisas existiam na Sabedoria do Verbo de Deus, esperando para serem reveladas em suas diferentes espécies de acordo com sua natureza, modo e ordem preordenados, como poderia a Mãe não preexistir com o Filho, cuja concepção e nascimento abriram caminho para que toda a criação racional fosse santificada, unificada e restaurada na paz? Como poderia ela estar ausente, em quem um decreto eterno tinha estabelecido a fundação de um edifício eterno, a Jerusalém celestial? (BERNARDS apud NEWMAN, 1997, p. 62).

Newman acredita que Hildegard poderia, muito facilmente, ter conhecido este texto que associa a ideia da eterna predestinação com Sapientia, Maria, e "a Jerusalém do alto, que é nossa mãe". (GÁLATAS 4, 26). "Estas três figuras femininas, quase intercambiáveis, apontam para a Encarnação e seu fruto, a sociedade dos redimidos, como a causa final da criação". (NEWMAN, 1997, p. 62).

Desse modo, a imagem feminina da Mãe Sião, além de símbolo da Jerusalém celeste, comporta outro sentido: o de mãe de uma humanidade que busca a salvação por meio da redenção. E é nesse sentido que a peregrinação da filha de Sião assume um caráter metafísico, pois a peregrina, ao associar-se à figura de Eva, representa toda a humanidade perdida em busca da salvação. E a Mãe Sião, por sua vez, em sua perfeição imaculada e virginal, representa a divindade maior que um dia receberá sua filha-humanidade redimida de braços abertos.

O caminho da salvação: redenção da alma peregrina

A narrativa da peregrina prossegue pontilhada por diversos obstáculos, percalços e torturas que ela enfrenta ao longo do caminho. A "perversa Babilônia" continua a atormentá-la. Mas ela consegue fugir de seus perseguidores "por um caminho estreito" e se esconde da visão do Norte em uma pequena caverna. Depois disso, "chora amargamente pela perda de sua mãe, por toda a sua tristeza e por todas as suas feridas", derramando muitas lágrimas. Em diversas passagens do Scivias, Hildegard enfatiza a importância do arrependimento e da penitência na busca da salvação. E o choro da filha de Sião constitui um sinal claro do arrependimento. Na realidade, as lágrimas desempenham uma função catártica e são o indício de um recomeço, da vontade de retorno ao bem, da vontade de redenção. Não à toa, após muito chorar, a peregrina sente "uma fragrância muito doce tocando suas narinas, como uma leve respiração exalada por sua mãe" (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 64), o que evidencia uma pequena recompensa pelo início da redenção que ainda não foi além do arrependimento e do choro. E, depois de sentir essa leve presença de sua mãe, ela prossegue derramando copiosas lágrimas e se dirige a sua mãe como se esta pudesse ouvi-la: "Oh mãe, Oh mãe Sião, o que será de mim? E onde está sua nobre filha agora? E por quanto tempo eu tenho estado privada de sua doçura maternal?". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 64).

Prosseguindo com o relato, Hildegard diz que o choro e os lamentos da peregrina foram ouvidos por seus inimigos (os mesmos que a haviam mantido cativa), que voltaram a persegui-la. Mas ela saiu secretamente da caverna onde esteve escondida e subiu tão alto que seus inimigos foram incapazes de encontrá-la. Eles, no entanto, prepararam-lhe novas armadilhas, entre estas "um calor furioso" sobre o qual ela não poderia passar. Ela pensa estar novamente abandonada por sua mãe, mas, devido à breve sensação anterior da presença desta, pela primeira vez ela se enche de tanta força que se vira para o Leste e retoma sua jornada através de "um caminho estreito". Ela enfrenta novamente neste caminho inúmeros obstáculos, tais como espinhos e cardos, mas com muita luta consegue vencê-los. Assim, chega ao topo da montanha onde antes havia se escondido e dali desce para o vale, onde novamente encontra escorpiões, serpentes e outras criaturas rastejantes. Aterrorizada, a peregrina suplica novamente pela ajuda de sua mãe. E então ouve a voz da mãe dizendo: "'Oh filha, corra! Porque o Doador Mais Poderoso a quem ninguém pode resistir lhe deu asas para voar. Por isso voe rapidamente sobre todos estes obstáculos.' E eu, confortada com grande consolo, tomei asa e passei sobre todas aquelas coisas venenosas e mortais". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 66).

A fuga da peregrina configura o ponto alto da narrativa, pois finalmente ela consegue escapar às armadilhas de seus inimigos e, contando com a ajuda da Mãe Sião e de Deus, finalmente sobrevoa os obstáculos, deixando-os para trás. Pode-se testemunhar nessa etapa do relato a inserção de elementos do maravilhoso medieval, ligados ao sobrenatural: "a fragrância" que toca as narinas da peregrina, o "calor furioso" lançado por seus inimigos, os animais rastejantes que ela encontra e, por fim, as asas oferecidas por Deus.

Segundo Le Goff, "nos séculos XII e XIII, o sobrenatural ocidental se repartia por três domínios que são cobertos, aproximadamente, por três adjetivos: 'mirabilis', 'magicus','miraculosus'". (LE GOFF, 1993, p. 49). O mirabilis seria o maravilhoso de origens pré-cristãs; o magicus, de termo neutro, passara rapidamente para o sobrenatural maléfico, e ao miraculosus pertenceria o sobrenatural cristão em que se destacava o miraculum, o milagre, que era apenas um elemento do vasto domínio do maravilhoso.

Os eventos que se sucedem durante a jornada da peregrina enquadram-se no domínio do miraculosus, que abarca não somente o milagre realizado pelo santo, mas também qualquer acontecimento milagroso que escape ao entendimento racional do ser humano. Ora, "uma das características do maravilhoso é o fato de ele ser produzido por forças ou seres sobrenaturais [...]." (LE GOFF, 1993, p. 50). Tais forças e seres estão presentes e atuantes na trajetória da peregrina, alimentando o caráter extraordinário e sedutor do relato. Aliás, no imaginário medieval, era principalmente o maravilhoso e, no domínio deste, o milagre, que atraíam grande número de fiéis para uma peregrinação. Em sua trajetória rumo ao sagrado, o peregrino podia deparar-se com toda sorte de milagres.

Como mostrou Dupront (1987, p. 42), o essencial numa peregrinação é o sobrenatural, porque a peregrinação é ato transcendente.

Todo o perfil do ato peregrinatório é justamente tensão para um além, quer seja ele sagrado, quer seja ele elevação para a transcendência, ou os dois ao mesmo tempo. [...] Também todo dado constitutivo, no agir peregrino, da realidade sagrada, deve ser sempre passível de uma dupla leitura, aquela do esforço humano levado ao extremo de sua realização religiosa, e aquela do dom, da graça ou do favor divinos. (DUPRONT, 1987, p. 44).

Na jornada empreendida pela peregrina do Scivias, todos estes elementos estão presentes: a peregrinação da filha de Sião transcende não só a vida – devido à presença dos fenômenos sobrenaturais – como o próprio corpo, pois, na leitura da narrativa, tem-se a impressão de que a alma vagueia sem seu "tabernáculo", sem seu corpo, errando em outra dimensão. Ademais, a filha de Sião reúne toda a sua força para conseguir fugir das armadilhas de seu passado pecaminoso e caminhar para Deus, o qual, por sua vez, lhe favorece com dons divinos.

As forças sobrenaturais que se sucedem a cada etapa da caminhada da peregrina parecem se alternar entre o comando divino e o diabólico. Primeiro, a "fragrância" divina; depois, o "calor" diabólico; em seguida, os animais peçonhentos e, mais adiante, as asas providas por Deus. Tal dicotomia, a luta entre o bem e o mal, a batalha árdua da peregrina para vencer os obstáculos, suas conquistas e recaídas simbolizam, em última instância, a batalha humana pela redenção e salvação, sempre acompanhada pela tentação diabólica e pela proteção divina. A jornada de nossa alma pecadora exemplificaria, desse modo, a vida da humanidade em sua caminhada terrena em direção ao fim último, que é a salvação. Há nessa busca um sentido escatológico. Pode-se dizer aqui de uma escatologia coletiva representada por um indivíduo (a peregrina), mas há ao mesmo tempo uma escatologia individual vivida pela peregrina. Se, como mostrou Le Goff, a escatologia é tradicionalmente relativa à coletividade, não se pode, no entanto, descartar a ideia de uma escatologia individual associada à esperança salvacionista.

A escatologia refere-se, por um lado, ao destino último do indivíduo e, por outro, ao da coletividade – humanidade, universo. Mas como me parece que esta consideração das enciclopédias contemporâneas amplia um pouco abusivamente aos indivíduos um termo formado e usado tradicionalmente para falar dos 'fins últimos' coletivos e como o destino final individual depende em grande parte do destino universal, tratarei essencialmente da escatologia coletiva.

A escatologia individual só assume real importância na perspectiva da 'salvação' que adquiriu, inegavelmente, um lugar de primeiro plano nas especulações escatológicas, mas não é certo que ela seja fundamental, nem original nas concepções escatológicas. Os problemas ligados à escatologia individual são fundamentalmente os de um julgamento depois da morte, da ressurreição e da vida eterna, da imortalidade. (LE GOFF, 1994, p. 326-327).

E são esses os aspectos que, como fundamentos da salvação, concernem ao Scivias, que tem como objetivo final instruir os fiéis no caminho da salvação. Daí podermos falar de um sentido escatológico na narrativa da peregrina que caminha, em meio a inúmeras atribulações, para o seu julgamento final que determinará seu lugar no além e sua imortalidade. Não há, nesse relato de peregrina, a problemática escatológica ligada à apocalíptica que evoca o Juízo, o fim dos tempos e o surgimento de um novo mundo. Hildegard não aborda aqui o problema do final dos tempos para a humanidade; o que a preocupa é, como já foi dito, a salvação individual que, para ela, determinaria, em última instância, a salvação de toda a humanidade.

No item de número vinte e nove da visão que analisamos, Hildegard trata da questão da "alma que abandona o corpo e que espera sua sentença com grande medo". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 85). Segundo a religiosa, depois que sai do corpo a alma teme "o iminente tribunal do Juiz Celestial, no qual compreenderá, pelo justo julgamento de Deus, os méritos de suas ações", (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 85) o que implica um destino final, um juízo final para cada indivíduo.

Para se apresentar perante o Juiz Supremo e receber um bom julgamento, há que "levar" uma ficha de boas ações. Vimos acima como Hildegard coloca a ênfase, para o alcance da vida eterna, na prática das virtudes, mais do que na graça. Cristo é a graça, é o dom divino para a humanidade, mas é preciso agir de acordo com seus ensinamentos. Por isso, quando a peregrina se volta para o Leste21 21 Vimos mais acima, à nota 8, o sentido do Leste no pensamento de Hildegard. , ou seja, para Deus, ela enfrenta todo tipo de dificuldades, e o caminho que ela trilha é estreito, pois não é sem luta que se atinge o Céu, que se adquire a vida eterna. Escutam-se aqui ecos de uma conhecida passagem do Novo Testamento que nos admoesta a entrar "pela porta estreita porque largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram". (MATEUS 7, 13-14).

A alma pecadora da visão de Hildegard consegue avançar por esse caminho estreito, vencendo a marcha e se superando, ou seja, vencendo a si mesma, o que para Hildegard significa vencer as tentações da carne. Ora, segundo Dupront, há,

na peregrinação, um duplo comportamento quanto à vida do espaço. Aquele de ganhar outro lugar, por um lado e, por outro, gênio profundo – ou espírito – da marcha, aquilo que diz o bruto da palavra, 'ganhar' [no sentido de vencer]. Para alcançar o 'outro lugar', é necessário, com efeito, vencer as dificuldades do espaço, cósmicas certamente, mas também, dentro do esforço pessoal de se mover e de alcançar, travar o combate contra si mesmo – em definitivo domínio do espaço, e triunfo sobre si mesmo. (DUPRONT, 1987, p. 48).

Hildegard acreditava que se o homem vencesse a si mesmo, superando as tentações, ou seja, se ele se redimisse, ele teria direito à vida eterna. Assim, após concluir sua caminhada, alcançando o triunfo sobre si mesma, a redenção, a alma peregrina estava apta a receber novo tabernáculo. Abrindo novo tópico dentro da narrativa, Hildegard tratará então do:

De tabernacvlo qvod ingressa est ("Do tabernáculo em que [a alma] entrou"): E eu cheguei a um tabernáculo cujo interior era feito do mais forte aço. E, entrando, eu realizei atos de luz onde eu havia previamente realizado atos de escuridão. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 66)

A imagem da redenção alcançada por meio da peregrinação é clara: depois de enfrentar e vencer inúmeros percalços, a alma ganha novo corpo, e, desta vez, trata-se de um corpo forte, resistente. O que não é explicado em momento algum da narrativa é o que foi feito do "antigo tabernáculo", e como a alma conseguiu este novo corpo. Observamos anteriormente que a maneira como a narrativa é conduzida nos leva a conjeturar sobre o destino do "tabernáculo", já que a alma parece estar "vagando" por dimensões outras, dissociada do seu corpo. Hildegard não se detém nesta questão, mas o fato de a alma haver "penetrado" em novo tabernáculo parece confirmar a impressão de que caminhava sem seu corpo. Daí concluirmos que Hildegard relata assim uma peregrinação da alma.

E o que nos interessa aqui é o significado da aquisição de um novo tabernáculo por essa alma. Tal evento suscita mais de uma interpretação. Em um nível mais superficial, a conotação pode ser a de uma nova chance. Se no antigo corpo a alma cometeu erros, pecou e caiu, no novo tabernáculo ela encontra a oportunidade de se refazer, de retomar a jornada por um novo caminho, o caminho do bem. Mas o sentido espiritual deste novo tabernáculo pode ser mais profundo. A imagem de uma alma adquirindo um novo corpo evoca a ideia de renascimento e, no plano religioso, remete à reencarnação ou à metempsicose, como era chamada a doutrina reencarnacionista conhecida na época. Na metempsicose, crença de origem hinduísta, a alma reencarna sucessivamente em diferentes corpos (que tanto podem ser animais, vegetais ou humanos). "A duração desta vida múltipla e a forma das reencarnações dependem dos atos e méritos do indivíduo (karman)". (LE GOFF, 1994, p. 337). No entanto, não é provável que Hildegard se referisse à metempsicose (ou à reencarnação), já que, além de não abordar o assunto em sua vasta obra, ela era muito ortodoxa em suas ideias (a Igreja não aprovava a teoria reencarnacionista) e, ademais, foi grande opositora dos cátaros, grupo herético que surgiu no sul da França no século XII e que tinha entre seus postulados a crença na metempsicose. Quando em sua terceira turnê de pregação, entre 1161-1163, Hildegard fez um sermão acalorado aos clérigos de Colônia, um dos alvos de sua crítica foram os cátaros, a quem, segundo a religiosa, a frouxidão moral do clero estaria cedendo espaço.

Há ainda outra via de abordagem para a questão aqui levantada e que nos parece a mais plausível: a da ressurreição. É bastante lógico, no contexto hildegardiano, cogitar que se trate da ressurreição do corpo (no cristianismo, a alma é imortal, mas o corpo só será reencontrado na ressurreição), que constitui uma das etapas finais da história da salvação, fundamental na obra de Hildegard. Como notou Jacques Paul, "os cristãos, convencidos do caráter exemplar da vida de Cristo, consideram a ressurreição como a salvação propriamente dita". (PAUL, 2004, p. 14).22 22 Para uma abordagem da mística da Ressurreição da Carne e da "espera do Paraíso", a saber, a escatologia, Cf. DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

No cristianismo, o apóstolo Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios, abordou "a ressurreição dos mortos", combatendo nos homens a descrença no "fato da ressurreição" e explicando "o modo da ressurreição". Segundo o apóstolo, a ressurreição do Cristo constitui "as primícias dos que adormeceram", ou seja, Cristo ressuscitou para que nós ressuscitemos, e sua ressurreição só faz sentido se um dia todos os mortos ressuscitarem ("Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou" – 1 CORÍNTIOS 15, 13).

Para Paulo, o apóstolo, há um corpo psíquico e há também um corpo espiritual; primeiro veio o psíquico, vindo depois o espiritual. O corpo psíquico é o princípio vital que anima o corpo humano, é a vida do corpo, e corresponde ao corpo corruptível que morrerá, já que "semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual". (1 CORÍNTIOS 15, 44).

De acordo com explicação em nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém,

o cristianismo concebe a imortalidade estritamente como restauração integral do homem, ou seja, como ressurreição dos corpos pelo Espírito, princípio divino que Deus retirou do homem em consequência do pecado e que lhe devolve pela união ao Cristo ressuscitado, homem celeste e espírito vivificante. (1 CORÍNTIOS 15, 44, nota b, p. 2170).

Hildegard partilhava dessa concepção. Embora não se encontre no Scivias a palavra ressurreição, na visão de número doze do terceiro e último livro – O Novo Céu e a Nova Terra – em que Hildegard descreve "os últimos dias" e o "julgamento final", ela insere também um trecho sobre a ressurreição de todos os mortos, segundo o qual "os corpos dos mortos se levantarão novamente em sua integridade e gênero." (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 607)

E quando, como você viu, o comando divino para levantar-se novamente soar, os ossos dos mortos, onde quer que eles possam estar, são agrupados em um único momento e cobertos com sua carne. Eles não serão impedidos por coisa alguma; mas se eles foram consumidos por fogo ou água, ou comidos por pássaros ou bestas, eles serão rapidamente restaurados. E assim a terra os entregará como o sal é extraído da água; porque o Meu olho conhece todas as coisas, e nada pode ser ocultado de Mim. E assim todas as pessoas se levantarão de novo num piscar de olhos, em corpo e alma, sem qualquer deformidade ou mutilação mas intacto em corpo e em gênero; e os eleitos resplandecerão com o brilho de suas boas ações, enquanto os réprobos suportarão a escuridão de seus atos de miséria. Pois suas ações não estarão ocultadas, mas aparecerão neles abertamente. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 607-608).

Obviamente, Hildegard conhecia muito bem o texto do apóstolo dos gentios sobre a ressurreição, pois as semelhanças são muitas; para o apóstolo, a ressurreição também se daria como "num piscar de olhos", constituindo grande transformação:

eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim, a trombeta final tocará, e os mortos ressurgirão incorruptíveis, e nós seremos transformados. Com efeito, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade. (1 CORÍNTIOS 15, 51-53).

A ideia da transformação também está presente no pensamento hildegardiano, já que os corpos readquiridos estarão intactos, "sem qualquer deformidade ou mutilação". Portanto, estes corpos transformam-se de cinza, de pó que eram, em novos corpos. E tanto para Paulo como para Hildegard, a vitória final é a vitória sobre a morte, com o triunfo da imortalidade.

Na continuação da narrativa, Hildegard afirma que ao "adentrar seu novo tabernáculo", a alma "instala" aí inúmeras defesas que a preparam para enfrentar o "inimigo" novamente. E, com efeito, enquanto estava absorvida nesse trabalho (de fortificar seu tabernáculo), seus inimigos a atacaram de novo, desta vez atirando-lhe flechas, mas, concentrada que se encontrava, ela não notou "essa loucura" até que o seu portão encheu-se de flechas. Mas nenhuma destas pôde atingi-la ou feri-la, o que incitou seus perseguidores a enviarem inclusive uma enchente para arrastá-la, mas nada a alcançou. Ao que a peregrina os desafiou dizendo:

O arquiteto que construiu este tabernáculo foi mais sábio e mais forte que vocês. Tomem suas flechas e abaixem-nas, porque de agora em diante elas não podem fazer sua vontade triunfar sobre mim. [...] Retrocedam, retrocedam porque vocês já não mais me possuem. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 67).

Segundo Hildegard, a peregrina estivera tão absorta pelas boas ações que nem percebera as tentações do Demônio; ela agora se voltara para Deus, que a criara (fora o "arquiteto" de seu novo tabernáculo), e contra Deus aquelas criaturas nada podiam. A mensagem é clara: fortalecendo-se no bem e em Deus, nem as tentações da carne, nem o Demônio podem atingir o homem.

O fato de que o novo corpo (juntamente com sua alma, é claro) continue sofrendo as investidas do demônio mesmo depois da transformação-ressurreição encerra uma contradição, já que a ressurreição como triunfo sobre a morte deveria garantir uma vida renovada, longe das "corrupções" de outrora e das tentações demoníacas. No entanto, segundo Hildegard, depois da ressurreição a raça humana será conduzida ao julgamento final no qual o Filho de Deus tomará parte apresentando "a forma humana que Ele tinha na Sua Paixão" e encaminhará tanto os justos quanto os ímpios à presença do "Justo Juiz", que lhes dará a sentença final de acordo com seus méritos. No julgamento, os bons serão separados dos maus e

os eleitos se tornarão esplêndidos com o esplendor da eternidade, e com Meu Filho seu Líder e o glorioso exército celestial abraçarão a glória e os júbilos celestes; enquanto os réprobos, juntamente com o Demônio e os seus anjos, dirigirão sua trajetória para a punição eterna, onde a morte eterna os espera por terem seguido seus desejos ao invés dos Meus comandos. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 612).

Assim, de acordo com Hildegard, após a ressurreição e o julgamento final a raça humana encontrará um destino certo – o Céu ou o Inferno – dependendo das ações de cada um. Contudo, quando a alma peregrina adquire novo corpo, as dificuldades que tem que enfrentar não são típicas nem do Paraíso nem do Inferno alcançados após o julgamento, o que corrobora a contradição com a ideia da ressurreição. No entanto, o fato de a alma adquirir novo "tabernáculo" pode significar a ressurreição num sentido figurado, implicando apenas a transformação que o evento acarreta, sendo que o novo corpo configuraria a nova vida que a alma transformada adotaria.23 23 A respeito das visões do Paraíso hauridas nos monastérios e meios religiosos em geral, Cf. o capítulo 3 de SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Mesmo com a alma transformada, dentro de um "tabernáculo resistente", ligada a Deus e realizando boas ações, a peregrina teme fraquejar. E se lamenta, apontando a fragilidade do seu corpo:

Eu sou uma pobre coisinha, mas eu tenho um grande dever. Oh, o que sou eu? E qual é o tema do meu protesto? Eu sou a respiração viva no ser humano, colocada em um tabernáculo com medula, veias, ossos e carne, dando a ele vitalidade e apoiando qualquer movimento seu. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 67).

Por causa "da grande sensibilidade do tabernáculo", ele assume facilmente uma conduta de vícios, deixando-se persuadir pela influência do Diabo. E quando as ações do "tabernáculo" prosperam, essa persuasão demoníaca o encontra e o impele ao pecado. Porque "quando meu tabernáculo conhece o desejo carnal, então, porque eu sinto prazer nestes atos carnais, eu mesma realizo estes atos". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 68). No entanto, a razão que mora na alma lhe mostra que ela foi criada por Deus. Como Adão, ela se esconde de Deus ao perceber a "vileza" de seus atos. E, ao pensar na "pesada escala do pecado", ela condena as ações que "queimam com o desejo carnal".

Hildegard detém-se longamente neste conflito da alma tentada por ardentes desejos que, embora incitados pelo Demônio, encontram grande receptividade em seu "tabernáculo". A religiosa encara essa luta interior como a batalha de um peregrino: "Pobre de mim, uma peregrina! Como eu posso sobreviver entre estes perigos?". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 68). De acordo com Hildegard, todos estes venenos, instilados na alma humana devido à desobediência de Adão, produziram a corrupção do vício. "E agora, através dos maus hábitos do vício, eu vivo na inquietude. Oh, de todas essas maneiras eu sou uma peregrina!". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 69). Portanto, para Hildegard, o "ser" peregrino denota uma luta constante; a caminhada é repleta de interferências, de quedas, de retomadas, enfim, é o combate de si mesmo que Alphonse Dupront salientara a respeito do "fato peregrino". (DUPRONT, 1987).24 24 Ao longo da Idade Média, a ideia de peregrinação assumiu contornos intensos e ao mesmo tempo variados. Veja-se, por exemplo, uma das acepções fundamentais do conceito ao tempo de Hildegard, a saber, aquele da Cruzada. A Cruzada, ao criar uma sociedade com seus mecanismos próprios de funcionamento, bem como um sistema particular de abastecimento e de gerência de rendas, consistia em uma sociedade provisória, cujo final dar-se-ia na medida da realização de sua finalidade, a saber, a conquista da Terra Santa (com todas as implicações espirituais que esse evento acarretava). O encerramento da sociedade cruzadística consistia na própria realização da Igreja Triunfante sobre a terra. Para maiores informações sobre a temática, a qual não pretendemos desenvolver aqui, Cf. GROUSSET, René. Histoire des Croisades. Paris: Perrin, 2002; TYERMAN, Christopher. Las Guerras de Dios: una nueva historia de las Cruzadas. Barcelona: Crítica, 2006. A peregrinação aparece, portanto, como a metáfora da vida. Vida da humanidade num percurso violento de tentações demoníacas e desejos carnais, sustentada apenas pela devoção a Deus.

As lamentações prosseguem num crescente: as instigações do Demônio incitam a peregrina a um questionamento do sentido da vida, e ela tenta fugir a esse estado começando a "trilhar outro caminho que é difícil para a minha carne suportar, porque eu começo a praticar a retidão". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 69).

Hildegard conta então que a filha de Sião começa a duvidar da "utilidade" de tudo isso e surgem "o desespero, a tristeza e a opressão". E ela gostaria de "voar sobre todas as minhas faculdades e iniciar coisas que eu não consigo terminar". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 69). "Oh, quão triste é esta luta que me força de trabalho em trabalho, de sofrimento em sofrimento, de discórdia em discórdia, privando-me de toda a felicidade". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 69).

Para Hilda Graef, em História da Mística, o relato da peregrinação do Scivias constitui a descrição da jornada da alma através da "via mística", o que significaria também a jornada da própria Hildegard através desta via mística. Segundo Graef, as asas que a peregrina recebera de Deus são "uma metáfora antiga que opõe a tranquilidade da contemplação à meditação laboriosa dos primeiros estados". (GRAEF, 1972, p. 156). O sustento divino, simbolizado pelas asas, teria dado à peregrina "novas forças contemplativas" que a teriam conduzido ao novo "tabernáculo". Depois de superar os ataques demoníacos ao novo "tabernáculo",

a alma acede a uma via mais alta, que começa com purificações muito dolorosas, parecidas com a 'noite do espírito' descrita mais tarde por São João da Cruz. A alma deseja se elevar além de seu próprio intelecto, até à esfera divina e começar coisas que ela não consegue fazer [citado por nós mais acima]. (GRAEF, 1972, p. 156).

Sobre o desespero e a tristeza que dominam a alma a partir daí, Graef afirma que

se trata de um estado bem conhecido dos místicos, que os Padres gregos denominavam 'akédia': a apatia do contemplativo tornada detestável para ele mesmo, se sentindo abandonado por Deus e não encontrando consolo em parte alguma. Hildegard compreende que esta intensa purificação é necessária ao homem para aprender a humildade verdadeira e colher assim muitos frutos. A humildade, ela diz, é para a caridade aquilo que o corpo é para alma: não se pode jamais separá-los nesta vida. (GRAEF, 1972, p. 156-157).

Graef observa que todo o sofrimento, todas as provações enfrentadas pela alma em sua caminhada fazem parte de um estado contemplativo que tem como objetivo final purificar o indivíduo para que ele aprenda a "humildade verdadeira". Com efeito, o valor da humildade é, como já havíamos salientado, bastante enfatizado por Hildegard na marcha redentora. Assim, quando, ao atravessar este caminho espinhoso de grandes conflitos interiores, a alma se pergunta de onde vem esse mal e como combatê-lo, uma das armas apontadas para vencê-lo é justamente a humildade.

Segundo Hildegard, "o mal de todos esses erros" teria sido causado pela "antiga serpente25 25 A serpente simboliza o demônio. [que] tem dentro dela astúcia e capacidade de enganar e o veneno mortal da iniquidade". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 70).

E aos vícios infundidos pela "serpente" Hildegard opõe sempre uma qualidade: à raiva, a bondade; ao ódio, a misericórdia, e ao orgulho, a humildade.

Ao sentir-se "atacada" pelo vício do orgulho, a peregrina pensa na serpente "que caiu na morte por desejar se colocar acima de todos" e devota-se a Deus em cuja "sublimidade ela conhece o bem mais doce, que é a humildade [...]. E assim ela afasta os outros vícios através da impregnável proteção da humildade". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 71).

É interessante notar que Hildegard opõe aquela que ela considera a mais doce virtude – a humildade – ao maior e primeiro pecado – o orgulho. Porque, como já havíamos observado, quando a serpente "quis se colocar acima de todos" seu pecado foi o do orgulho. Esse primeiro pecado teria gerado todo o mal da terra. Não à toa, para Hildegard, a virtude mais adequada para vencer o mal é a humildade.

A humildade ganha tanto destaque entre as virtudes, no pensamento hildegardiano, que no desenrolar da narrativa a próxima sequência será "a morte" da peregrina. É como se, depois de toda a peregrinação, ao "impregnar-se" de humildade, a alma estivesse pronta para realizar essa importante "passagem". Em momento algum, Hildegard utiliza a palavra morte, mas nomeia o item que trata do assunto de "lamento de uma alma que com medo deixa o seu tabernáculo". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 71):

E ela [a alma] disse: 'Eu deixarei meu tabernáculo. Mas, miserável e cheia de dor como eu sou, para onde irei? Eu devo trilhar os terríveis e aterrorizantes caminhos até o julgamento onde serei julgada! Lá eu mostrarei os atos que realizei no meu tabernáculo, e lá eu serei reputada de acordo com meus méritos. Oh, que grande medo, e oh, quanta angústia estará lá pra mim! (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 71).

Hildegard prossegue dizendo que, depois que a alma abandona o corpo, acodem espíritos – alguns de luz, outros da escuridão – que foram seus companheiros durante sua vida e que a encaminharão de acordo com seu comportamento no corpo. E ela diz ouvir uma voz que ordena: "Deixe-a ser guiada de um lugar a outro de acordo com seus atos". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 72). Finalizando a narrativa, a mesma voz anuncia à religiosa que: "aqueles que, quando libertos dos laços do corpo denso, carregam ações boas e sagradas com eles, podem ganhar os júbilos da herança celestial". (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 72).

A saga da peregrina termina aqui com o fim do seu "tabernáculo" e o início da jornada da alma no além. Embora a visão continue, o relato da peregrinação chegou ao fim e Hildegard não discorrerá sobre o destino da alma no além. Parece tratar-se, aliás, de um além não definido onde a alma vagará "de um lugar a outro" consoante suas ações na terra. E é a própria indefinição deste além que suscita outro questionamento: se a alma deixou seu "tabernáculo", já não se trata da ressurreição, uma vez que esta implica a união de corpo e alma a caminho do juízo final; estamos aqui diante da alma liberta de seu corpo, mas conduzida por "espíritos" por caminhos que a levarão ao julgamento. No entanto, se o julgamento final terá lugar apenas no fim dos tempos e depois da ressurreição de todos os mortos (e a questão que se coloca está ligada ao tempo "histórico" linear introduzido pelo judaísmo e adotado pelo cristianismo), onde ficam as almas dos que morrem neste ínterim? Que além é este que, por receber as almas antes do julgamento final, ou seja, antes da sentença condenatória ou da salvação, não pode ser nem exatamente o Inferno nem o Paraíso?

Há de ser um lugar "intermédio" onde a alma caminha, após a queda, para a salvação (ou condenação)? Hildegard acredita que, para a grande maioria dos humanos, alcançar a salvação requer um estágio nesse além para a purgação dos pecados. Essa imagem evoca a ideia do Purgatório, cujos indícios já se manifestam não só nessa visão do Scivias, mas também em outras obras de Hildegard, adquirindo inclusive contornos mais bem delineados em textos posteriores da religiosa. Mas isso constitui matéria para um novo artigo.26 26 Nos meus estudos de pós-doutorado na USP, estou desenvolvendo o projeto "A Concepção de Purgatório na obra de Hildegard de Bingen".

Considerações finais

Na primeira visão do primeiro livro do Scivias, Hildegard descreve a imagem de Deus em um trono no alto de uma montanha. Segundo a religiosa, a luz que o envolvia era tão intensa que ela mal podia enxergá-lo, mas, do alto da montanha, ele teria ordenado, em voz alta e forte, que ela falasse

da origem da salvação pura até que aquelas pessoas estejam instruídas, elas que, embora vejam o conteúdo das Escrituras, não desejam dizê-lo ou pregá-lo, porque são mornos e preguiçosos no serviço da justiça de Deus. Abra-lhes a porta dos mistérios que eles, tímidos como são, ocultam num campo escondido e infrutífero. Exploda numa fonte de abundância e transborde com conhecimento místico, até que eles, que agora pensam que você é desprezível por causa da transgressão de Eva, sejam movidos pela inundação de sua irrigação. (HILDEGARDIS BINGENSIS, 1978, p. 8)

No excerto acima, Hildegard, que se vê como representante do gênero feminino ("desprezível por causa da transgressão de Eva"), se arroga a missão de transmitir a um público masculino – muito provavelmente de clérigos, que ela considerava "mornos e preguiçosos" – mensagens divinas que lhes abririam os olhos para um conhecimento místico. Hildegard julgava seu momento histórico como um período de declínio e decadência espirituais. A razão para esse pessimismo residia especialmente nos problemas político-religiosos de sua época como, por exemplo, os conflitos entre papa e imperador, e também a incomodava demasiadamente o relaxamento moral do clero.

A célebre Questão das Investiduras, conflito que engendrou a excomunhão e deposição de Henrique IV, imperador do Sacro Império Romano-Germânico entre 1084 e 1105, pelo Papa Gregório VII (1073-1085), produziu longos anos de guerra civil na Alemanha durante o reinado deste imperador, arrastando-se ainda por novas gerações de reis e papas, que só testemunhariam o encerramento da controvérsia em 1122 com a Concordata de Worms. No entanto, a Concordata de Worms não impediria a eclosão de novos conflitos e, em 1159, um dos mais importantes cismas entre papas e reis foi detonado quando Frederico Barbaruiva desafiou o Papa Alexandre III (1159-1181), apoiando a eleição do antipapa Victor IV.

Hildegard se posicionou claramente a favor dos papas e de seus ideais reformistas que pressupunham especialmente o combate à simonia e ao nicolaísmo, quais sejam, respectivamente, a venda de cargos dentro da Igreja e o casamento e ou concubinato de clérigos. Ao mesmo tempo, as ordens monásticas vivenciavam um fervor religioso alimentado pelo ideal de retorno à ecclesia primitiva. As ordens religiosas que surgiram no período da reforma do século XII buscavam imitar o ideal de vita apostolica que fora vivido nos primórdios da Igreja, de maneira ascética e pobre. Hildegard se sentiu atraída pelos ideais do movimento eremítico e pelos novos conceitos de ecclesia primitiva. E para ela a renovação espiritual consistia principalmente no combate à corrupção e ao relaxamento dos valores clericais.

Ao se dirigir, no Scivias, aos clérigos que considerava indolentes, Hildegard almejava lhes dar uma lição cristã, alegando estar apoiada na "palavra divina". Para tanto, exaltava as virtudes, aconselhava a prática do bem, a fuga das tentações, a penitência, e propunha, pela abordagem da história da salvação, um esquema para o combate do mal que brota no próprio ser humano, principalmente devido à instigação do demônio.

Fazendo da peregrina um modelo do pecador que cai, mas que busca a redenção por meio da luta contra as tentações, é possível que Hildegard, ao escolher a figura feminina para encetar a jornada peregrinatória, estivesse querendo representar a si mesma como a pecadora que, depois da queda, consegue se redimir. Numa época em que o poder, tanto secular como religioso, encontrava-se essencialmente nas mãos de homens, a figura feminina utilizada na peregrinação a salvaguardava do risco de ser julgada por estar condenando homens.

Não que Hildegard não tenha previsto, em outros escritos seus, "a vinda de um reino de terror" para o clero corrupto, mas quando o faz ela promete, ao mesmo tempo, que uma parte desse clero – os que temem a Deus, que são puros e simples – será salva e viverá a "aurora" de uma nova era na história da Igreja. E, como notou Kathryn Kerby-Fulton,

'aurora' é precisamente a metáfora [de Hildegard], uma imagem recorrente em seus textos que significa o reino de justiça divina e fervor espiritual, surgindo, depois de uma noite escura de corrupção clerical e terror, como um símbolo de reconforto. (KERBY-FULTON, 1989, p. 392).

Embora as expectativas escatológicas27 27 Sobre as expectativas escatológicas de Hildegard e sua espera da vinda de um tempo melhor, Cf. KERBY-FULTON, K. A Return to "The First Dawn of Justice": Hildegard´s Visions of Clerical Reform and the eremitical life. The American Benedictine Review, 40, 1989, p. 386-399. A iminência do fim do mundo era sentida por grande parte dos homens medievais, inclusive por Hildegard que via os presságios desse fim anunciados no sol, na lua, nas estrelas, na água, etc. Contudo, uma das diferenças que marcaram o pensamento de Hildegard, no que concerne aos presságios que anunciavam o final, se refere à questão do personagem do imperador dos últimos dias, o chefe messiânico que guiaria a humanidade contra o Anticristo. Essa figura, ao contrário do que acontece em muitos textos escatológicos da época, é ausente da obra de Hildegard, uma vez que, para a religiosa, a grande vitória será de Deus. Ao enfatizar o papel desempenhado por Deus na vitória dos cristãos, onde outros textos insistiam na figura do imperador dos últimos dias, Hildegard manifestava sua recusa em participar de qualquer projeto que fosse útil a Frederico Barbaruiva, ela recusava toda tentativa de messianismo político que era o oposto de sua visão da ordem do mundo. Desse modo, Hildegard não pode ser considerada uma messianista, e embora, como vimos acima, manifestasse claramente sua atração pelos ideais do movimento eremítico e pelos novos conceitos da ecclesia primitiva, tampouco pode-se dizer que ela era uma milenarista, já que não se pronunciava sobre a duração do reino de paz e justiça em cuja vinda acreditava. de Hildegard apareçam explicitamente em alguns de seus textos, isso não ocorre com o Scivias, com o qual a religiosa pretende, particularmente, instruir o clero na observância das virtudes, no combate aos vícios, como forma de preveni-los da condenação no dia do Julgamento. Se, na visão que analisamos, a alma peregrina deixou seu tabernáculo partindo para um além indefinido, na última visão do Scivias – Sinfonia dos Abençoados, Hildegard acompanha a trajetória de uma alma penitente que finalmente alcança a salvação. Trata-se, na realidade, de uma dramatização em que as virtudes personificadas acompanham essa alma que, depois de resvalar e quase cair sob a influência do demônio, consegue, enfim, sempre acompanhada pelas virtudes, chegar à Jerusalém celeste.

É uma mensagem otimista – de salvação, mas se não foi sem luta que essa alma conseguiu alcançá-la, também não será sem esforço que o clero o conseguirá. Ao pregar ao clero a reforma interior, Hildegard, com seu Scivias, demonstrava claramente sua associação aos ideais reformistas de sua época.

Notas

Fontes

HILDEGARDIS BINGENSIS. Scivias. Ed. Adelgundis Führkötter e Angela Carlevaris. CCCM (Corpus Christianorum, Continuatio Medieualis). Turnhout, Bélgica: Brepols, 1978.

Referências Bibliográficas

Recebido em agosto/2013.

Aprovado em novembro/2013.

Maria Carmen Gomes Martiniano de Oliveira é doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Atualmente é pós-doutoranda junto ao programa de Pós-Graduação em História Social da mesma universidade.

  • 9 Embora não faça, nesta visão, nenhuma outra referência ao Norte, no livro III do Scivias, Visão 1, intitulada "Deus e Homem", Hildegard afirma que em sua criação "Deus gira do Leste, origem de toda a justiça, ao Norte, onde o Diabo é confundido, ao Oeste, onde a escuridão da morte tenta extinguir a luz da vida [...], e ao Sul, onde o ardor da justiça de Deus queima nos corações dos fiéis". (p. 339). E mais adiante, Hildegard associa o Norte ao "esquecimento de Deus" (obliuionem Dei - p. 343) e assevera que "você [o ser humano] foi expulso de toda a sua glória; você cresceu no Sul, numa luz clara e ardente, mas você se estabeleceu na escuridão do Norte, o que significa no Inferno". (p. 343). No Edifício da Salvação (Livro III, Visão 2), Hildegard também explica o significado dos quatro pontos cardeais, mas aqui ela oferece duas interpretações diferentes para o que ela chama de "os quatro cantos". Assim, o canto oriental (Leste) seria o nascimento do Filho de Deus com seu sofrimento na carne significando justiça e restauração da vida à humanidade. A Salvação dos fiéis, "por sua fé", trazida ao mundo pelo filho de Deus configura o canto ocidental (Oeste). O canto Norte é o local onde "o Diabo havia enganado e matado [o homem] como um ladrão na queda de Adão". (p. 354). E o canto Sul simboliza a nobre restauração da raça humana, fatalmente caída, através da graça celestial. Numa segunda interpretação dos quatro "cantos" fornecida por Hildegard (item aliter de eisdem angulis), o canto Sul significaria que o primeiro homem, Adão, foi criado por Deus. O canto oriental (Leste) designaria Noé, no qual a justiça começou a se mostrar. O canto Norte simbolizaria as figuras de Abraão e Moisés, os quais, trabalhando contra Satã, envolveram e protegeram a justiça. "Porque, antes da circuncisão e da Lei, a justiça estava nua e desprovida de feitos". (p. 354-355). E o quarto canto, o oriental (Oeste), significa "a verdadeira Trindade, que se mostrou quando o Salvador foi batizado". (p. 355). HILDEGARDIS BINGENSIS. Scivias Ed. Adelgundis Führkötter e Angela Carlevaris. CCCM (Corpus Christianorum, Continuatio Medieualis). Turnhout, Bélgica: Brepols, 1978.
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  • TYERMAN, Christopher. Las Guerras de Dios: una nueva historia de las Cruzadas. Barcelona: Crítica, 2006.
  • 9
    e está associado ao "esquecimento de Deus", ao Inferno, ao local da queda de Adão. Portanto, quando voltou seu olhar para o Norte, a peregrina desviou-se de Deus e voltou-se para o Demônio. E aí estava sua perdição, sua queda. Pois ali ela foi capturada, "destituída de sua visão, da felicidade do conhecimento" e despojada de sua herança.
    10 10 Esse ponto cardeal assume um significado peculiar no Antigo Testamento. Na mitologia canéia, era a sede da divindade, a "montanha do norte", a "montanha da assembleia". O Norte é também causa de desastres: a invasão estrangeira vem do Norte, uma vez que os exércitos invasores deviam seguir o caminho que passava pela Síria (Is 14,31; Jr, 1,14; 4,6; 6,22; 10,22; 16,15, 25,9; Ez 26,7). É também a terra do exílio de onde Iaweh quer tirar Israel (Is 43,6; Jr 3,18; 31,8). É a direção de onde aparece a teofania de Ez 1,4; Ezequiel encontra-se em Babilônia e o carro de Iaweh segue a rota comum de viagem da Palestina para a Babilônia. Cf. McKENZIE, John (ed.). Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1983, p. 660. A perda de sua visão não implica necessariamente a cegueira física (a peregrina não deixará de enxergar), mas constitui uma metáfora para a perda do discernimento, corroborada, logo em seguida, pela destituição do conhecimento. Aquele que não consegue ver não consegue discernir
    11 11 Hildegard discorrerá, ainda nesta visão, sobre "os poderes da alma", entre os quais está o intelecto. E, segundo a religiosa, é o intelecto o responsável pela capacidade de discernimento da alma, qualidade a que Hildegard atribui grande importância. Porque, segundo ela, é a partir do intelecto que somos capazes de entender o que é bem e o que é mal e de fazer a importante escolha entre "as duas estradas", a do bem e a do mal, ensinamento clássico de Hildegard ao qual nos reportaremos mais adiante. entre o bem e o mal. E a destituição do conhecimento
    12 12 No livro III, Visão 2 (O Edifício da Salvação), no item em que discorre sobre "o conhecimento refletivo", Hildegard declara que "o conhecimento brilha tão intensamente como a luz do dia, porque, através dele, as pessoas entendem e julgam suas ações [...]. E toda ação humana procede deste conhecimento. Como? Cada pessoa tem dois caminhos. Como? Com sua sensibilidade, ele conhece o bem e o mal [...]". HILDEGARDIS BINGENSIS. Scivias, p. 357. Segundo Barbara Newman, a "'speculativa scientia', ou o conhecimento do bem e do mal, não é o conhecimento especulativo no sentido de pensamento abstrato, mas conhecimento refletivo no sentido de julgamento moral (o adjetivo vem de 'speculum', espelho); essa faculdade é o aspecto cognitivo do livre-arbítrio". NEWMAN, B. Introduction. In: Hildegard of Bingen, Scivias. Trans. Columba Hart and Jane Bishop. The Classics of Western Spirituality. New Jersey: Paulist Press, 1990, p. 36. significa também a perda da capacidade de conhecer aquilo que é bom e aquilo que é mal. Portanto, Hildegard se serviu aqui apenas de uma repetição para reforçar a sua tese.
  • 1
    Cf. BAIRD, Joseph L. Introduction. In: HILDEGARDIS BINGENSIS.
    The Personal Correspondence of Hildegard of Bingen: Selected letters with an Introduction and Commentary by Baird. Oxford, New York: Oxford University Press, 2006, p. 20).
  • 2
    Os trechos da correspondência entre Hildegard e Bernardo de Clairvaux foram extraídos da obra de Joseph L. Baird referenciada na bibliografia deste artigo.
  • 3
    Em nosso trabalho, utilizamos o texto latino do
    Scivias, editado e publicado por Adelgundis Führkötter e Angela Carlevaris. CCCM (Corpus Christianorum, Continuatio Medieualis). Turnhout, Bélgica: Brepols, 1978.
  • 4
    Para Joseph L. Baird, o propósito de Hildegard ao afirmar que "sabia ler apenas no nível elementar" não era dizer que ela mal sabia ler, mas sim "que ela não lê como os eruditos, que se esforçavam para extrair o sentido profundo de textos de difícil compreensão. De fato, seu aprendizado, ela explica, não acontece absolutamente dessa maneira, mas vem do próprio céu. A ênfase de Hildegard aqui, como em toda sua vida, está na fonte divina de seu entendimento". BAIRD, Joseph L. Introduction. In: HILDEGARDIS BINGENSIS.
    The Personal Correspondence of Hildegard of Bingen, p. 18).
  • 5
    A
    Vita de Hildegard, referenciada em nossa bibliografia, foi produzida por dois monges respectivamente: Gottfried von St. Disibod e Theodoric von Echternach.
  • 6
    O mosteiro onde Hildegard vivia era conhecido como Disibodenberg ou São Disibod, sendo Disibod o nome de um eremita irlandês que teria fundado o local no século VII.
  • 7
    Trata-se de uma peregrina (no feminino) e não de um peregrino. No desenvolvimento desse artigo, abordaremos o significado dessa figura feminina que desempenha o papel da peregrina na narrativa. No entanto, o objetivo deste artigo não é trabalhar as concepções hildegardianas do feminino, e sim compreender como a peregrinação dessa alma sintetiza as etapas doutrinárias abordadas no próprio
    Scivias, além de expressar o simbolismo do sentimento religioso daquela época.
  • 8
    A respeito da importância do relato do Gênesis para os religiosos da Idade Média, Barbara Newman observou que "tanto para Hildegard como para os cristãos medievais em geral, a estória do paraíso perdido recontada no Gênesis serviu como a pedra de toque para toda a meditação sobre o homem e a mulher. Ela explicava sua origem, fim e a presente situação, assim como suas relações com Deus, Satã e entre eles mesmos". NEWMAN, B.
    Sister of Wisdom: St. Hildegard´s Theology of the Feminine. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1997, p. 89. Como vimos acima, o
    Scivias é uma obra doutrinária que aborda os temas da criação, da queda, da redenção e da salvação. A segunda visão do primeiro livro do
    Scivias dedica-se inteiramente aos temas da criação e da queda, e nela Hildegard revela suas concepções sobre o papel do homem (Adão) e da mulher (Eva) no desencadeamento da queda, aproveitando para expor ensinamentos sobre casamento e sexualidade. Naquele capítulo, Hildegard exonera Eva, em grande parte, do peso da culpa pelo primeiro pecado, transferindo o maior fardo da culpa ao Diabo. Na construção da narrativa da peregrina, Hildegard procede, em diversas passagens, a associações com o relato da Criação e da Queda, seja implícita ou explicitamente. Por nossa vez, buscamos, neste texto, destacar as passagens em que isso acontece, para demonstrar a analogia que Hildegard realiza em sua obra com o texto bíblico, mas não nos cabe aqui proceder a qualquer abordagem filosófica dos diferentes significados dos papéis de Adão e Eva para a espiritualidade medieval.
  • 10
    Esse ponto cardeal assume um significado peculiar no Antigo Testamento. Na mitologia canéia, era a sede da divindade, a "montanha do norte", a "montanha da assembleia". O Norte é também causa de desastres: a invasão estrangeira vem do Norte, uma vez que os exércitos invasores deviam seguir o caminho que passava pela Síria (Is 14,31; Jr, 1,14; 4,6; 6,22; 10,22; 16,15, 25,9; Ez 26,7). É também a terra do exílio de onde Iaweh quer tirar Israel (Is 43,6; Jr 3,18; 31,8). É a direção de onde aparece a teofania de Ez 1,4; Ezequiel encontra-se em Babilônia e o carro de Iaweh segue a rota comum de viagem da Palestina para a Babilônia. Cf. McKENZIE, John (ed.).
    Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 1983, p. 660.
  • 11
    Hildegard discorrerá, ainda nesta visão, sobre "os poderes da alma", entre os quais está o intelecto. E, segundo a religiosa, é o intelecto o responsável pela capacidade de discernimento da alma, qualidade a que Hildegard atribui grande importância. Porque, segundo ela, é a partir do intelecto que somos capazes de entender o que é bem e o que é mal e de fazer a importante escolha entre "as duas estradas", a do bem e a do mal, ensinamento clássico de Hildegard ao qual nos reportaremos mais adiante.
  • 12
    No livro III, Visão 2 (O Edifício da Salvação), no item em que discorre sobre "o conhecimento refletivo", Hildegard declara que "o conhecimento brilha tão intensamente como a luz do dia, porque, através dele, as pessoas entendem e julgam suas ações [...]. E toda ação humana procede deste conhecimento. Como? Cada pessoa tem dois caminhos. Como? Com sua sensibilidade, ele conhece o bem e o mal [...]". HILDEGARDIS BINGENSIS.
    Scivias, p. 357. Segundo Barbara Newman, a "'speculativa scientia', ou o conhecimento do bem e do mal, não é o conhecimento especulativo no sentido de pensamento abstrato, mas conhecimento refletivo no sentido de julgamento moral (o adjetivo vem de 'speculum', espelho); essa faculdade é o aspecto cognitivo do livre-arbítrio". NEWMAN, B. Introduction. In:
    Hildegard of Bingen, Scivias. Trans. Columba Hart and Jane Bishop. The Classics of Western Spirituality. New Jersey: Paulist Press, 1990, p. 36.
  • 13
    Na tradição da espiritualidade cristã, o dom da contemplação consiste essencialmente no fato de que a alma toma
    consciência de Deus que está presente e age sobre ela. O
    conhecimento contemplativo não é, portanto, separável da experiência da presença de Deus. Trata-se de
    conhecimento sob a forma de copresença. Como somos
    conscientes de conhecer e de amar um amigo presente, assim a
    consciência espiritual que adere ao reino de Deus presente nela percebe o próprio Deus que a atrai e a impele para aquela adesão, concedendo-lhe a graça necessária. Cf. FIORES, Stefano de; GOFFI, Tullo (org.).
    Dicionário de espiritualidade. Trad. da ed. Espanhola e adaptação Augusto Guerra e Isabel Fontes Leal Ferreira. São Paulo: Paulus, 1993, p. 187-188. Acerca da teoria cristã do conhecimento, podemos afirmar, ainda, que Hildegard compartilha de uma extensa tradição patrística. Para aprofundamento de temáticas tais como o conhecimento sensível, o conhecimento racional, o mestre interior, a luz e o caminho da alma. Cf. GILSON, Étienne.
    Introduction à l'étude de Saint Augustin. Paris: Vrin, 2003.
  • 14
    Na referência à unção com óleo, pode haver menção ao sacramento da crisma ou confirmação em que, após o batismo, o fiel é untado com o óleo da confirmação pelo bispo, muito embora, em se tratando da crisma, não se untem as feridas e sim uma pessoa. Nesse período, trata-se de um dos ritos do próprio batismo, além da unção que acompanha, desde o período carolíngio, a coroação real – ápice do processo de sacralização da realeza. Os sacerdotes também são ungidos ao receber as ordens, e o costume de aspergir o óleo sagrado nas mãos e na fronte de bispos e monarcas remonta à tradição vetero-testamentária. Cf. KANTOROWICZ, Ernest H.
    Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
  • 15
    A referência a Jerusalém se encontra no termo Sião, pois a cidade de Jerusalém foi erigida ao lado do Monte Sião. Mas é óbvio que a alegoria não nos transporta para a cidade de Jerusalém, já que se trata de algo divino e perdido pela filha pecadora. Trata-se, portanto, da Jerusalém celeste. (2 Sm 5,9, cf. citado supra)
  • 16
    A Babilônia apresenta uma forte conotação sexual: no Apocalipse, personificada por uma mulher, ela é a grande prostituta. Na verdade, a mulher é aquela que aparece "vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas; estava grávida e gritava, entre as dores do parto, atormentada para dar à luz." (Ap 12, 1-2). Em seguida, surge o Dragão "cor de fogo, com sete cabeças e dez chifres e sobre as cabeças sete diademas." (Ap 12, 3) Ele pretendia devorar o filho da mulher tão logo ela desse à luz "um varão, que regerá todas as nações com cetro de ferro." (Ap 12, 5) Seu filho, porém foi levado para junto do trono divino e a mulher fugiu para o deserto
    , "onde Deus havia preparado um lugar em que fosse alimentada por mil duzentos e sessenta dias." (Ap 12, 6). Quanto à Babilônia, ela é mencionada em Ap 11,8: "Seus cadáveres ficarão expostos na praça da Grande Cidade que se chama simbolicamente Sodoma e Egito, onde também o Senhor delas foi crucificado." A grande cidade de Babilônia é, na linguagem de São João, Roma, chamada de Sodoma e Egito por causa de dois grandes crimes: impudícia e opressão dos fiéis de Cristo (Cf. Ap. 17, 4-6); aqui é identificada com Jerusalém, que não é somente Cidade santa, pois ela "matou os profetas." (Mt 23, 37).
  • 17
    Embora o papel do peregrino seja desempenhado por uma mulher, a narrativa da peregrina deixa claro que tanto Adão como Eva foram responsáveis pela queda: vimos como, no início da narrativa, ao lamentar sua situação, a peregrina diz que "é um hálito vivo que Deus colocou na lama seca". Essa referência ao relato bíblico da criação é uma associação explícita com Adão e não com Eva, já que foi Adão, o primeiro homem, que nasceu da terra. Eva, por ter sido retirada de uma costela de Adão, não nasceu da terra e sim da carne.
  • 18
    De acordo com a etimologia popular, o nome Eva,
    Havvah, é explicado pela raiz
    hayah, "viver"; e daí o texto do Gênesis (3, 20) esclarecer a escolha do nome "por ser a mãe de todos os viventes".
  • 19
    No relato da Queda, quando Adão responde a Iahweh Deus que a mulher lhe dera o fruto da árvore proibida e ele comera, Deus condena a mulher ao sofrimento: "multiplicarei as dores de tuas gravidezes,/ na dor dará à luz filhos." (Gn. 3, 16).
  • 20
    Por outro lado, é típico do pensamento cristão medieval, essencialmente cristocêntrico, identificar a Encarnação como centro da História, a determinar tudo aquilo que teria acontecido no passado e tudo aquilo que aconteceria no futuro. A interpretação encontra-se de acordo com o Evangelho de João (Jo 1,1): "No princípio era o logos".
  • 21
    Vimos mais acima, à nota 8, o sentido do Leste no pensamento de Hildegard.
  • 22
    Para uma abordagem da mística da Ressurreição da Carne e da "espera do Paraíso", a saber, a escatologia, Cf. DELUMEAU, Jean.
    Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
  • 23
    A respeito das visões do Paraíso hauridas nos monastérios e meios religiosos em geral, Cf. o capítulo 3 de SCHMITT, Jean-Claude.
    Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
  • 24
    Ao longo da Idade Média, a ideia de peregrinação assumiu contornos intensos e ao mesmo tempo variados. Veja-se, por exemplo, uma das acepções fundamentais do conceito ao tempo de Hildegard, a saber, aquele da Cruzada. A Cruzada, ao criar uma sociedade com seus mecanismos próprios de funcionamento, bem como um sistema particular de abastecimento e de gerência de rendas, consistia em uma sociedade provisória, cujo final dar-se-ia na medida da realização de sua finalidade, a saber, a conquista da Terra Santa (com todas as implicações espirituais que esse evento acarretava). O encerramento da sociedade cruzadística consistia na própria realização da Igreja Triunfante sobre a terra. Para maiores informações sobre a temática, a qual não pretendemos desenvolver aqui, Cf. GROUSSET, René.
    Histoire des Croisades. Paris: Perrin, 2002; TYERMAN, Christopher.
    Las Guerras de Dios: una nueva historia de las Cruzadas. Barcelona: Crítica, 2006.
  • 25
    A serpente simboliza o demônio.
  • 26
    Nos meus estudos de pós-doutorado na USP, estou desenvolvendo o projeto "A Concepção de Purgatório na obra de Hildegard de Bingen".
  • 27
    Sobre as expectativas escatológicas de Hildegard e sua espera da vinda de um tempo melhor, Cf. KERBY-FULTON, K. A Return to "The First Dawn of Justice": Hildegard´s Visions of Clerical Reform and the eremitical life.
    The American Benedictine Review, 40, 1989, p. 386-399. A iminência do fim do mundo era sentida por grande parte dos homens medievais, inclusive por Hildegard que via os presságios desse fim anunciados no sol, na lua, nas estrelas, na água, etc. Contudo, uma das diferenças que marcaram o pensamento de Hildegard, no que concerne aos presságios que anunciavam o final, se refere à questão do personagem do imperador dos últimos dias, o chefe messiânico que guiaria a humanidade contra o Anticristo. Essa figura, ao contrário do que acontece em muitos textos escatológicos da época, é ausente da obra de Hildegard, uma vez que, para a religiosa, a grande vitória será de Deus. Ao enfatizar o papel desempenhado por Deus na vitória dos cristãos, onde outros textos insistiam na figura do imperador dos últimos dias, Hildegard manifestava sua recusa em participar de qualquer projeto que fosse útil a Frederico Barbaruiva, ela recusava toda tentativa de messianismo político que era o oposto de sua visão da ordem do mundo. Desse modo, Hildegard não pode ser considerada uma messianista, e embora, como vimos acima, manifestasse claramente sua atração pelos ideais do movimento eremítico e pelos novos conceitos da
    ecclesia primitiva, tampouco pode-se dizer que ela era uma milenarista, já que não se pronunciava sobre a duração do reino de paz e justiça em cuja vinda acreditava.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2013
    • Aceito
      Nov 2013
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