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"Esta viagem é tão boa quanto qualquer viagem ao Peru". O Minion of London no Brasil (1581)

Resumos

o artigo focaliza a viagem comercial do Minion of London ao Brasil, em 1581, organizada por cinco mercadores de Londres, e os documentos relativos a essa viagem publicados por Richard Hakluyt na coletânea Principall Navigations. A expedição pretendia estabelecer comércio direto entre o Brasil e a Inglaterra, trocando manufaturas e têxteis ingleses pelo açúcar da colônia portuguesa. A viagem reflete o propósito inglês de burlar o monopólio português e espanhol no Novo Mundo, depois da viagem de Drake, e a ambiguidade dos habitantes da colônia portuguesa diante dos mercadores estrangeiros, num momento de transição na geopolítica europeia.

Brasil; Inglaterra; Comércio; Minion of London


this papes focuses on a comercial voyage to Brazil, in 1581, by the Minion of London, organized by five London merchants, and the documents about the enterprise edited in Richard's Hakluyt's Principall Navigations. The expedition had the intention of establishing direct trade between Brazil and England, exchanging english textiles and manufactured goods for Brazilian white sugar. This voyage reflects english attempts to bypass the Portuguese and Spanish monopoly in the New World, after Drake´s voyage, and the ambiguity of brazilians colonists towards the foreigner merchants, in a particular moment of change in European geopolitics.

Brazil; England; trade; Minion of London


DOSSIÊ - DESLOCAMENTOS CULTURAIS

Professora Doutora - Escola de Letras - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO - Av. Pasteur, Urca, CEP 22290-240, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. A investigação que resultou neste artigo contou com bolsa de pesquisa da Biblioteca Nacional. E-mail: sheila.hue@gmail.com

RESUMO

o artigo focaliza a viagem comercial do Minion of London ao Brasil, em 1581, organizada por cinco mercadores de Londres, e os documentos relativos a essa viagem publicados por Richard Hakluyt na coletânea Principall Navigations. A expedição pretendia estabelecer comércio direto entre o Brasil e a Inglaterra, trocando manufaturas e têxteis ingleses pelo açúcar da colônia portuguesa. A viagem reflete o propósito inglês de burlar o monopólio português e espanhol no Novo Mundo, depois da viagem de Drake, e a ambiguidade dos habitantes da colônia portuguesa diante dos mercadores estrangeiros, num momento de transição na geopolítica europeia.

Palavras-chave: Brasil; Inglaterra; Comércio; Minion of London

Em dois de junho de 1579, um dos navios da esquadra de Francis Drake, o Elizabeth, comandado por John Winter, volta à Inglaterra levando informações sobre o Brasil. Após desgarrar-se, durante a turbulenta travessia do estreito de Magalhães, dos demais navios da expedição, que seguiram na viagem de circunavegação e rapina pelos territórios das colônias espanholas, o Elizabeth errou durante quatro meses pelo litoral do Brasil, em busca de um porto onde pudesse reestabelecer seus homens e reparar os estragos sofridos na tempestade. Em São Vicente, encontraram boa acolhida e puderam fazer uma longa parada, de forma a proceder à reconstrução da nau, além de abastecer o navio de água e alimentos frescos para prosseguir na volta. Na vila, Winter travou contato com um inglês residente na terra, John Whithall, casado com a filha do rico senhor de engenho genovês José Adorno. Whithall, conhecido pelos portugueses como João Leitão, veio a ser o principal informante de Winter sobre o território e, com seu relatório sobre as características e potencialidades daquele trecho do litoral, levou a acender a curiosidade dos comerciantes ingleses por uma provável nova rota de comércio no Novo Mundo que envolvia as vilas de São Vicente e Santos. Segundo Winter, a partir das informações de John Whithall ele pôde "compreender o estado da terra e a disposição de seus habitantes" (ANDREWS, 1984, p. 55).

O estado e as condições daquele trecho da capitania de São Vicente diziam respeito à grande produção de açúcar, que alcançava um alto preço na Europa, e às informações sobre o recente descobrimento de minas de metais preciosos nas proximidades. Segundo as noções geográficas de então, a região de São Vicente localizava-se nas vizinhanças das ricas terras do Peru e das minas de Potosi, e os sertões ainda inexplorados, uma terra incógnita situada entre o rio Paraná e a costa, já visitados por ingleses em 1526,1 1 BARLOW, Roger, A brief summe of Geographie, livro escrito por um dos ingleses que acompanhavam Caboto, em que há um trecho com a descrição da terrra ao longo do rio Paraná. seriam abundantes em minas ainda não descobertas.

O imaginário elisabetano sobre a região sudeste do Brasil e São Vicente foi ilustrado também por relatos impressos, que tiveram grande difusão, como a tradução inglesa de Singularitez de la France Antarctique (Paris, 1557), de André Thevet, publicada em Londres em 1568 com o título The new found worlde, or Antarctike (ANDREWS, 1981, p. 5), em que o frade franciscano se alonga sobre as qualidades da província de "Morpion" (São Vicente) - descreve o desenvolvimento agrícola da terra, a produção açucareira e confirma a descoberta de riquezas minerais: "No início da colonização plantou-se aí muita cana de açúcar, mas este cultivo não prosperou depois que os habitantes preferiram a mais rendosa exploração das jazidas de prata descoberta nos seus arredores" (THEVET, 1978, p. 176).2 2 Sobre essa informação, marcante no imaginário daqueles anos de especulação sobre as ainda mal conhecidas terras sob o domínio da coroa portuguesa, Thevet a reforça com um episódio "baseado em narrativas que ouvi durante minha viagem de volta, contadas por alguém que asseverou ter tomado parte nessa expedição [a São Vicente]": "[os viajantes] repararam em umas pedras reluzentes como prata. Recolheram algumas amostras e lavaram-nas para Morpião, a 18 léguas daquele ponto. Ali ficaram sabendo, após o exame das pedras, que estavam diante de rico minério de prata. A partir de então a exploração daquele local e a extração das pedras, que eram ali infinitas, passaram a produzir enormes rendimentos ao rei de Portugal" (THEVET, 1978, p. 210).

Quanto à disposição da gente que ali habitava, colonos e portugueses, o contato do navegador John Winter com o bem relacionado e estabelecido John Whithall, familiar dos 'principais' da região, proprietários de terras, plantações e engenhos, mostrou uma franca disposição e abertura para negócios com os estrangeiros.

Os homens de Winter, na sua volta à Inglaterra, quando ainda não se sabia quando e como voltaria a frota de Francis Drake, foram entrevistados por uma das figuras-chave da proto-história do império britânico, Richard Hakluyt, que mais tarde publicaria uma copiosa coletânea de relatos de viagem, as Principall Navigations, editadas em volume único em 1589 e reeditadas, com ampliações, em três grandes volumes em 1600, que lançariam as bases ideológicas para a legitimação do direito inglês à exploração e colonização das rotas marítimas e dos territórios então sob o monopólio comercial e político das coroas espanhola e portuguesa, livros que atuaram como propaganda da expansão marítima e do projeto colonial inglês (ARMITAGE, 2000).

Hakluyt, figura proeminente junto à rainha Elisabeth e que seria um dos principais articuladores da colonização inglesa da América do Norte, entusiasmou-se com os relatos de John Winter e de sua tripulação sobre a desconhecida colônia portuguesa e, como observa K. R. Andrews, "parece ter considerado o extremo sul do Novo Mundo altamente importante para o futuro da Inglaterra como uma potência comercial e colonial" (ANDREWS, 1984, p. 55). Hakluyt escreveu imediatamente um memorando clamando pela imediata conquista do Estreito de Magalhães e de São Vicente (ANDREWS, 1966, p. 160). O projeto previa a construção de um forte no Estreito, de forma a tentar controlar a passagem, e tornar São Vicente uma base de abastecimento para as viagens marítimas inglesas rumo ao mar do sul:

Instalando entre eles alguns bons capitães ingleses, e mantendo nas baías dos Estreitos uma boa armada, na há dúvida de que iremos submeter à Inglaterra todas as minas de ouro do Peru e toda a costa e trato daquela terra firme da América ao largo do mar do Sul. E fazer o mesmo em regiões vizinhas àquela terra (HAKLUY apud ANDREWS, 1981, p. 14).

Um ano mais tarde, já depois do retorno de Drake, Hakluyt retornaria à mesma ideia em uma carta à rainha:

A ilha de São Vicente pode ser facilmente tomada por nossos homens, visto que não tem guardas e não é fortificada, e sendo conquistada deve ser mantida por nós. Essa ilha e a região circunvizinha é tão abundantemente provida de mantimentos que pode alimentar infinita multidão de gente, como nos relataram nossos homens que lá estiveram com Drake, e que lá conseguiram vacas, porcos, galinhas, limões, laranjas e etc (HAKLUYT apud TAYLOR, 1935, p. 141).

Os relatos de John Winter e sua tripulação sobre John Whithall e São Vicente despertaram também o interesse dos mercadores ingleses, menos políticos e mais práticos em relação aos projetos coloniais de Hakluyt. Em carta de janeiro de 1580, D. Bernardino de Mendoza, embaixador de Felipe II na Inglaterra, relata ao rei que o navegador John Hawkins, um dos investidores da viagem de circunavegação de Drake, estava armando três navios para levar mercadorias ao litoral do Brasil:

Aparelham três navios em Plymouth sob o nome de Juan Aquines [John Hawkins], de 100, 80 e 70 toneladas, com a desculpa de que levam mercadorias para a costa do Brasil, efetivamente carregando-os com algumas [mercadorias], o que é diretamente prejuízo para a coroa de Portugal, não obstante não estar confirmado o contrato3 3 O tratado de comércio, conhecido como "abstinência", assinado em 1576 entre Portugal e Inglaterra. que se havia feito com esta rainha por três anos e que feneceu em meados de novembro, no qual não se decidiu cabalmente proibir esta navegação e a de Berberia, havendo os ingleses concordado que não iriam a da Mina e a da costa do Brasil (RAYON e ZABALBURU, 1888a, p. 452).

Em carta de 20 de fevereiro, o destino da expedição é mais específico, revelando o quanto a vila litorânea no sudeste do Brasil tinha se tornado familiar para os ingleses:

Aqui anseiam pelo retorno de Drake, pela falta que este tem de navios e por ser tão extensa a navegação, julgando que, se não chega dentro de dois meses, está irremediavelmente perdido. E sobre aqueles que escrevi a V.M. que se armavam para ir a São Vicente, na costa do Brasil, estão prontos para partir (RAYON e ZABALBURU, 1888a, p. 453).

Uma carta patente da mesma época dava permissão a William Hawkins, irmão de John, para descobrir novas rotas de comércio, com poderes e direitos, em uma viagem para as costas sul e sudeste da África e da América, com licença para atacar navios e portos espanhóis e servir aos interesses de D. Antônio, prior do Crato, pretendente ao trono de Portugal, contra os seus inimigos, ou seja, contra o rei espanhol (ANDREWS, 1966, p. 161). Com a morte do Cardeal D. Henrique, a sucessão da coroa portuguesa dividia-se entre os partidários de Felipe II - que conquistaria Portugal na batalha de Alcântara, em agosto de 1580 - e de D. Antonio, que viria a se refugiar na Inglaterra de modo a obter o apoio da rainha Elisabeth contra o rei espanhol. Poucos meses depois, em setembro, Drake já havia voltado e se associado aos irmãos Hawkins. A expedição comercial a São Vicente projetada por John Hawkins ampliou seu escopo não apenas do ponto de vista geográfico, incluindo-se as "East Indies", mas também no que ser refere a seu caráter político, como relata D. Bernardino de Mendoza em 16 de outubro de 1580:

[Drake] está tomando providencias para voltar com seis navios, e oferece aos investidores o retorno de sete para cada pound sterling em um ano. Isto teve tão grande influência sobre os ingleses que todo mundo quer ter parte na expedição. Os navios sobre os quais escrevi a V. M. que estavam indo para a costa do Brasil foram postergados pela volta de Drake, de forma a embarcar um número maior de homens em consequência das promessas feitas por Juan Rodriguez de Souza, que acaba de chegar aqui como representante de D. Antonio, e por causa das vantagens que terão se ele for com eles, não somente para a costa do Brasil mas também para as Índias portuguesas. Por esta razão seria desejável para os interesses de V.M. que sejam dadas ordens para que nenhum navio estrangeiro deva ser poupado, seja nas Índias espanholas ou portuguesas, e que todos sejam postos a pique e nenhuma alma a bordo seja mantida com vida. Esta será a única maneira de prevenir que ingleses e franceses sigam para essas partes para saquear, porque neste momento dificilmente se encontra um inglês que não esteja falando em empreender tal viagem, tão encorajados estão pelo retorno de Drake.4 4 Simancas: 'October 1580', Calendar of State Papers, Spain (Simancas): Volume 3, 1580-1586 (1896), p. 52-63. Disponível em: http://www.british-history.ac.uk/report.aspx?compid=87077&strquery=brazil. Acesso em 10 out 2008.

A política inglesa, no momento em que D. Antônio, derrotado pelas tropas do duque de Alba, foge de Portugal e segue para a Inglaterra, consiste em apoiar o Pretendente tendo em vista os projetos de expansão marítima inglesa e a possibilidade de, ao se alinhar com D. Antônio, tomar parte em terras do império português, Açores, Brasil e Índias orientais, especialmente as Molucas (ANDREWS, 1981, p. 16).

A viagem dos irmãos Hawkins, figuras notórias na Inglaterra elisabetana, que combinaria comércio e saque e passara a contar com o apoio de Drake e de diversos investidores, parece não se ter realizado, assim como não foram concretizados os planos estratégicos de Richard Hawkins para conquistar os estreitos e São Vicente.

Entretanto, enquanto esses projetos relacionados a apoios da coroa inglesa não tiveram prosseguimento, um grupo de cinco mercadores ingleses que operavam na Spanish Company, atuantes no comércio com Espanha, ilhas atlânticas, Mediterrâneo e Portugal conseguiu empreender, por outras vias e seguindo outras motivações, uma viagem estritamente comercial ao litoral da capitania de São Vicente. O Minion of London zarpou de Harwich a três de novembro de 1580 com dois integrantes da tripulação de John Winter a bordo, homens que conheciam a rota e tinham no currículo uma estadia em São Vicente: Thomas Grigges, que fora despenseiro do Elizabeth, agora com a posição de tesoureiro, e o piloto Edward Cliffe, que viria a protagonizar um curioso episódio em Salvador, um ano mais tarde.

Dez dias depois da partida do navio, D. Bernardino de Mendoza, que contava com uma excelente rede de informantes - como se vê por suas cartas, que abrangem eventos desde a Irlanda aos Países Baixos, incluindo Portugal e o Brasil -, escrevia a Felipe II que Juan Rodriguez de Sousa, o emissário de D. Antônio responsável por angariar apoios da coroa inglesa, do duque de Guise e da casa de Orange para reagir à conquista de Portugal pelo rei espanhol, não havia embarcado no Minion, como tinha planejado, permanecendo em terra para completar sua missão:

[Sousa] deixou de ir à costa do Brasil, conforme escrevi a V.M., como havia tratado com uma nau das que se preparavam, carregando com mercadorias para lá e que já partiu, e se chama Miñona de Londres, a qual vai direto para o porto de São Vicente, encaminhada a um inglês que se chama Vintidal [Whithall], que está casado com uma filha de um Juan Bautista Malio5 5 Trata-se de uma informação imprecisa. João Batista Malio foi, juntamente com dois outros senhores de terras, governador da capitania de São Vicente em 1595. , genovês, que reside no dito porto, sendo este inglês o que instou os de aqui a fazerem a viagem, e outro que está em Pernambuco (RAYON e ZABALBURU, 1888a, p. 521-522)

A empreitada contava não somente com a expertise dos homens do Elizabeth, mas também se vinculava ao inglês radicado em Santos, John Whithall, o principal interlocutor de Winter em São Vicente que, anos mais tarde, também receberia a frota inglesa comandada por Edward Fenton.

A viagem do Minion of London começa a se delinear, na verdade, dois anos antes, quando Whithall escreve, de Santos, uma carta ao ativo e proeminente comerciante londrino Richard Staper, fundador ao lado de Edward Osborne, da Spanish Company (BRENNER, 2003). A carta, redigida em 1578, foi publicada por Hakluyt6 6 A letter written to M. Richard Stapers by John Whithall from Brasill, in Santos the 26 of June 1578. In HAKLUYT, Richard, 1589, p. 638-640. [também in HAKLUYT, 1600, p. 701-703] em 1589 juntamente com dois documentos sobre a viagem7 7 A carta dos cinco mercadores ingleses dirigida a John Whithall, enviada no Minion of London, e o relato de viagem escrito pelo tesoureiro Thomas Grigges. ; nela, Whithall começa por dizer a Staper que, apesar de lhe ter escrito outra carta poucos dias antes, enviada de Lisboa com a informação de que em breve se reuniria com ele, tinha, nesse meio tempo, mudado de planos. A referência a uma conexão com Staper via Lisboa e a um certo senhor Holder, estabelecido na mesma cidade, que conseguiria o portador para levar a carta-resposta de Staper a Santos, demonstra a ligação desses dois ingleses com Portugal. De fato, a Spanish Company, criada em 1577 após a assinatura do tratado de comércio entre Portugal e Inglaterra em 1576,8 8 O tratado está publicado na íntegra em VISCONDE DE SANTAREM, 1865, p. 299. mantinha cerca de 30 mercadores e uma série de assistentes em Portugal e na Espanha (CHAPMAN, 1907, p. 161), e o Sr. Holder, Barthomomew Holder, citado em uma carta da rainha Elisabeth de outubro de 1577 como responsável por receber uma restituição financeira devida pela coroa portuguesa ao sócio de Staper, Edward Osborne (VISCONDE DE SANTAREM, 1865, p. 311), era um dos mercadores da Spanish Company radicados em Lisboa, onde viveu e trabalhou longos anos (SCAMELL, 2003, p. 297).

Whithall, na carta, informa Staper de sua radical mudança de planos. Em lugar de voltar a Lisboa e seguir ao encontro do chefe da Spanish Company, como combinado, ficaria no Brasil para se casar com a filha única de um rico senhor de engenho. Pode-se inferir, portanto, que Whithall seria um dos assistentes da companhia radicados em Lisboa e que provavelmente viera ao Brasil em uma viagem de prospecção de negócios. A prática de enviar trade researchers era comum na companhia comercial de Staper e Osborne (BRENNER, p. 18;114), e o fato de Whithall ter um encontro marcado com Staper após sua volta do Brasil, via Portugal, vem reforçar essa hipótese.

Mas o destino reservara novos caminhos para o assistente comercial inglês em sua temporada em Santos:

Veio-me a oportunidade de casar-me nesta terra, podendo eu escolher entre três ou quatro [moças], de modo que há uns três dias combinei com um senhor italiano de casar-me com sua filha dentro dos próximos quatro dias. Este meu amigo e sogro, senhor Ioffo Dore [José Adorno], nasceu na cidade de Gênova, na Itália, e sua família é bem conhecida entre os italianos vivendo em Londres. Além disso, ele tem somente esta filha, que preferiu entregar a mim do que a qualquer português desta região. Junto com ela ganho em casamento parte de um engenho que ele possui, que produz todo ano mil arrobas de açúcar. Este casamento vai render-me uns dois mil ducados, pouco mais ou menos. Além disso, meu sogro, o senhor Ioffo Dore, pretende deixar em minhas mãos todo o engenho, com sessenta ou setenta escravos, e assim fazer-me feitor dele. Agradeço a Deus por conceder-me tanta honra e tanta abundância de todas as coisas (HAKLUYT, 1589, p. 638).9 9 Todas as traduções dos documentos publicados por Hakluyt referentes à viagem do Minion of London citados neste artigo são de Vivien Kogut Lessa de Sá, a quem agradeço a permissão de usá-las.

A carta de Whithall a Staper é anterior à temporada de reparos e reestabelecimento da nau Elizabeth, de John Winter e de sua tripulação em São Vicente, e as informações que o feliz noivo detalha para seu chefe em Londres em 1578 não devem ser muito diferentes daquelas que ele relatou para o comandante da frota de Drake, de viva voz, em 1579: a alta produção açucareira da província, a escassez de produtos manufaturados e outros itens de consumo, a proximidade daquela terra com o Peru e a riqueza mineral a ser explorada.

A carta, em primeiro lugar, como estratégia de captação da benevolência de seu destinatário, revela a descoberta de minas de ouro e prata na capitania de São Vicente (provavelmente as minas de Jaguará), informação assegurada pelo Provedor e pelo Capitão: "estão aguardando a qualquer momento a chegada de mestres para abrir as ditas minas que, quando abertas, vão enriquecer em muito esta terra". Como 'cidadão livre da terra' e com a permissão daqueles que "governam toda esta região" - a saber, "o Capitão, o Provedor10 10 Jerônimo Leitão e Brás Cubas, respectivamente, segundo Olga Pantaleão. e meu sogro" -, Whithall, agora aportuguesadamente João Leitão, conta como poderá obter licença para mandar vir uma nau de Londres com mercadorias que renderiam "enorme lucro": "Para cada produto e mercadoria que o senhor enviar de Londres paga-se aqui três por um e então os ganhos podem ser usados para comprar açúcar branco por quatrocentos réis a arroba". E continua, enfatizando a oportunidade de estabelecer uma nova rota comercial, direta e proveitosa, sem interferência portuguesa, entre São Vicente e Londres: "Esta viagem é tão boa quanto qualquer viagem ao Peru".

Na sua nova condição de proprietário de engenho de açúcar e parceiro dos mandatários da região, Whithall dirige-se a Staper como um emancipado homem de negócios:

Se o senhor e o Sr. Orborne desejarem negociar aqui, dar-lhes-ei precedência em nome de nossa antiga e estreita amizade. [...] Meu sogro e eu (se Deus quiser) produziremos boa quantidade de açúcar a cada ano, que pretendemos embarcar para Londres de agora em diante, se pudermos contar com um amigo tão bom e leal como o senhor para negociar conosco (HAKLUYT, 1589, p. 639).

Whithall envia sua carta a Staper em 26 de junho de 1578, menos de dois meses antes da batalha de Alcácer Quibir e da morte de D. Sebastião. Dois anos antes, a 15 de novembro de 1576, o tratado de comércio entre Portugal e Inglaterra, conhecido como 'abstinência', tinha sido firmado entre as duas coroas após anos de negociação.11 11 A íntegra do tratado encontra-se em VISCONDE DE SANTAREM, 1865, p. 299. No tratado, os reinos comprometiam-se a combater a pirataria, o ataque e saque de naus, prática que vinha se intensificando e provocando uma série de processos jurídicos e diplomáticos dos dois lados, e estabelecia o direito para os comerciantes ingleses de negociar no continente, na Madeira e nos Açores, sem referências ao Marrocos, à Guiné ou ao Brasil. Mas, como observa Robert Brenner, durante a década de 1580, a partir da anexação de Portugal pela Espanha, os grupos de mercadores ingleses das Muscovy, Venice, Turkish e Spanish Company começaram a acelerar seus esforços no sentido de abrir acesso comercial direto nos impérios ultramarinos portugueses e espanhóis, o que incluía franquear o caminho para os mercados coloniais portugueses na América do Sul:

Em 1578, na mesma época em que Richard Staper, com Edward Osborne, buscava agir pelas costas dos atravessadores ibéricos de forma a estabelecer comércio permanente com o Mediterrâneo oriental, estava também em contato com um John Whithall investigando a possibilidade de passar ao largo dos portugueses para negociar diretamente o açúcar do Brasil (BRENNER, 2003, p. 19).

O interesse dos comerciantes ingleses por novos mercados, como o Marrocos, a Rússia, a Pérsia, a Turquia, a Guiné, Veneza e as chamadas Índias Ocidentais, foi movido tanto pela crise de exportação de sua principal mercadoria, os têxteis, quanto pelas periódicas interrupções de suas rotas habituais. Tornou-se, portanto, um caminho viável buscar novas rotas comerciais num período de enfraquecimento dos impérios ultramarinos de Espanha e Portugal, e que marcava o crescente desenvolvimento comercial, náutico e econômico da Inglaterra (BRENNER, p. 5). O comércio com Portugal envolvia a importação de sal, especiarias e vinho e, em retorno, a venda de tecidos, especialmente os coloridos de Kent e Sussex. No Brasil, a equação articulava a colônia, pautada na economia da monocultura de cana-de-açúcar e produtos manufaturados e têxteis ingleses.

A carta de John Whithall relaciona uma longa lista de itens que deveriam ser enviados no navio pela companhia de Staper e Osborne e orienta que algumas mercadorias, como vinho, azeite e peles de Córdoba (nas cores laranja, amarelo, vermelho e preto retinto), deveriam ser carregadas nas Canárias, onde o navio deveria fazer escala e obter os ditos produtos em troca de lãs de Hampshire e Devonshire, levadas especialmente para serem vendidas lá. A partir da lista, temos um pormenorizado testemunho das mercadorias inglesas necessárias na colônia portuguesa e do acurado conhecimento de Whithall acerca dos produtos têxteis ingleses e do mercado interno da vila de Santos. Impressiona o detalhismo na descrição das mercadorias, com especificação de cores e padrões específicos para cada tipo de têxtil, e a encomenda de vários tecidos de alta qualidade, o que revela que havia demanda não só para as rústicas indumentárias de trabalho, mas também para as vestimentas refinadas a serem usadas pela elite da vila de Santos em 1578, com o emprego de rendas, cetins, veludos, tafetás, linho e fustão em diversas cores, e o sofisticado skarlet, tecido ricamente adornado. A lista inclui também material para fabrico e conserto de barcos, como breu e estopa, e para os engenhos, como ferro e pregos para as caixas, além de itens manufaturados essenciais, como facas, anzóis, machados e tesouras. O setor artístico vem representado por um único item: cordas para cítara.

Segue, na íntegra, a lista de Whithall:

Em primeiro lugar, quatro peças de linho holandês de qualidade média.

Também uma peça de linho holandês fino.

Quatrocentas varas de linho de Osnabruck muito fino.

Quatro dúzias de tesouras, de todo tipo.

Dezesseis quintais de breu das Canárias.

Vinte dúzias de facas grandes embrulhadas em feixes, de baixo preço.

Quatro dúzias das pequenas.

Seis peças de lã grosseira de qualidade inferior.

Uma peça de lã de boa qualidade.

Quatrocentas varas de algodão inglês, a maior parte preta, verde e alguma amarela.

Oito ou dez dúzias de chapéus, metade com a borda de tafetá, a outra simples, com as abas de madeira.

Seis dúzias de camisas grosseiras.

Três dúzias de gibões de lona.

Três dúzias de gibões de lona pespontada.

Uma peça de fino fustão italiano listrado.

Seis dúzias de fechaduras para portas e caixas.

Seis mil anzóis de todo tipo.

Quatro dúzias de resmas de papel.

Quatro dúzias de copos diversos.

Duas dúzias de copos venezianos, metade grandes, metade médios.

Duas dúzias de mantos de frisa, do preço mais baixo que exista.

Três dúzias de vestidos de frisa.

Quatrocentas libras de estanho do tipo usado em Portugal, a maioria em pequenos pratos e travessas.

Quatro libras de seda de todas as cores.

Vinte libras de especiarias: cravo, canela, pimenta e açafrão.

Dois quintais de sabão branco.

Três libras de linha branca, preta e azul.

Três libras de linha branca fina.

Idem, meia dúzia de lã inglesa grosseira de várias cores.

Quatro [peças de] sorting clothes, azul, vermelho, amarelo e verde.

Seis [peças de] dozens do Norte de diversas cores.

Um tecido fino azul de oito libras.

Uma estamenha fina de dez ou doze libras.

Um tecido fino de lã crua de doze libras.

Um tecido fino de lã inglesa, preto.

Uma peça fina de lã vermelha.

Seis jardas de veludo preto.

Três barris de pregos para caixas.

Dois barris de pregos para navios e barcos.

Seis quintais de estopa.

Duas dúzias de cintos de veludo sem alças.

Quatro jardas de tafetá vermelho, preto e azul, com algum verde.

Duas dúzias de cintos de couro.

Seis dúzias de machados, machadinhas e pequenas alabardas para cortar lenha.

Quatro conjuntos de cordas de cítara.

Quatrocentas ou quinhentas varas de algum linho que seja barato

Quatro toneladas de ferro.

[...]

Além do já mencionado envie seis jardas de skarlet e renda delicada de várias cores.

Seis jardas de veludo vermelho.

Seis jardas de cetim vermelho.

Doze jardas de tecido de lã negra.

[...]

Envie também uma dúzia de camisas para mim, se mandar a nau.

Também seis ou sete pecas de sarjas para mantos de mulher, que é a coisa mais necessária que se possa mandar.

Estes são os produtos que eu gostaria que o senhor mandasse (HAKLUYT, 1589, p. 639-640).

O navio deveria ser despachado nas Canárias no nome de João Leitão, a quem também deveria ser subscrita toda a correspondência.

Entretanto, Staper e Osborne não enviaram o navio com os produtos requisitados. Whithall escreveu também cartas para seu irmão James, em Londres, e para os mercadores Robert Walkaden e John Bird, ativos no comércio em Lisboa, com, igualmente, uma lista de mercadorias, prometendo lucros de três para um e garantia de que seriam bem recebidos pelas autoridades locais ("meu sogro junto com o Capitão e o Provedor são quem mandam nesta terra"), e assegurando que conseguiriam vender todos os produtos e que a nau retornaria para a Inglaterra "carregada do melhor, mais fino e branco açúcar, pagando no máximo um ducado por 32 libras de peso".

O negócio só veio a se realizar dois anos mais tarde, quando cinco mercadores londrinos, envolvidos com as companhias da moroccan e da spanish trade, alguns deles com experiência nos negócios com Portugal, armaram e abasteceram o Minion of London. Eram eles, Christopher Hoddesdon, Anthony Garrard, Thomas Bramley, John Bird e William Elkin, que montaram uma companhia especialmente para a empreitada sul-americana, assumindo "grandes encargos". Junto com o Minion, enviam a Whithall uma carta - também publicada na coletânea de Richard Hakluyt em 158912 12 HODSDON, Christopher; GARRARD, Anthony; BRAMLY, Thomas; BIRD, John e ELKIN, William. A copie of the letters of the Adventurers for Brasill sent to John Whithall dwelling in Santos, by the Minion of London. Ano 1580, the 24 of October in London, In HAKLUYT, 1589, p. 640-64. [também in HAKLUYT, 1600, p. 703-704] - que esclarecia suas intenções, requisitando garantias e estabelecendo as condições do negócio.

Uma das principais preocupações dos mercadores era deixar claro que a viagem tinha caráter pacífico e puramente comercial, de forma a diferenciar a expedição das que, como os irmãos Hawkins e Drake pretenderam fazer, combinavam negócios e saques. Como garantia da "boa fé e honestidade" de seus propósitos, enviavam uma declaração escrita de intenções com os selos da "venerável cidade de Londres", uma carta em espanhol para os "magistrados" locais e, como reforço, ordenaram que os feitores (agentes comerciais embarcados, responsáveis por negociar as mercadorias dos investidores londrinos) deixassem em terra alguns reféns. Em retorno pediam, "como se faz na Galícia", uma certidão assinada pelas autoridades de Santos de que seriam "protegidos e defendidos de qualquer represália ou embargo de príncipes ou súditos por qualquer razão ou motivo":

De nossa parte, com base em nosso crédito e boa fé, prometemos não cometer qualquer afronta, seja no mar ou em terra, nem permitir que qualquer membro de nossa tripulação o faça, mas sim defender e proteger todos os mercadores de paz como nós, bem como suas naus e mercadorias. [...] a justa causa da nossa vinda foi comerciar pacificamente como mercadores e não como piratas vindos para cometer qualquer ofensa (HAKLUYT, 1589, p. 641).

O navio vinha carregado, segundo os investidores, com todas as mercadorias requisitadas e ainda com outras "que cremos poderão de todo modo agradá-lo e ser úteis na região". O Minion trazia também, a pedido de Whithall, caldeirões de cobre, ferro e outros equipamentos para seu engenho de açúcar, além de artífices ingleses encarregados de montar os equipamentos e um técnico com a tarefa de procurar salitre nos arredores. Os mercadores, como prova de amizade, mandaram um presente luxuoso para o anfitrião, uma cama (fieldbed) de nogueira, com baldaquim, dossel, cortinas, sanefas e puxadores folheados a ouro.

A fieldbed era um leito de viagem, transportável, usada ao ar livre (como a cama, metafórica, que parece fria demais para uma personagem de Romeu e Julieta, de Shakespeare) ou também, como parece ser esse o caso, no interior dos aposentos. A fieldbed com baldaquim (canopy) era um mobiliário refinado e aparece em algumas peças do teatro elisabetano como um sonho de consumo de personagens desfavorecidos. Os complementos luxuosos, como são as cortinas, as sanefas - geralmente bordadas com temas narrativos - e os preciosos puxadores tornam o presente ainda mais requintado. Pode-se tentar imaginar o impacto causado pela chegada em Santos, em 1581, dessa peça de mobiliário elisabetano que, aliás, foi o primeiro item desembarcado do navio após ancoragem no porto.

Com a viagem do Minion, tanto Whithall quanto os investidores londrinos tinham o objetivo de iniciar uma parceria comercial, com o plano de enviar a Santos um navio por ano, não parecendo haver, dos dois lados, alguma preocupação com restrições de comércio com estrangeiros no litoral do Brasil. As autoridades (capitão, governador e senhores de engenho) que receberam o Minion em Santos e em Salvador, para onde a nau rumou em seguida, também não tinham tais preocupações. Ao contrário de D. Bernardino de Mendoza, que se exasperou em cartas a Felipe II, escritas em 1582, com referência ao tratado de comércio de 1576, que definira a Guiné e o Marrocos como praças permitidas aos ingleses, mas que não mencionara, como dissemos, o Brasil:

[...] a nau Miñona chegou ao porto de São Vicente, onde contratou duzentas e tantas caixas de açúcar, partindo dali para o porto de Todos os Santos [Salvador-Bahia], no qual, por fazer água a nau, deram-lhe lugar para descarregar os bens e pô-los em franquia [...], o que foi a 19 de setembro do ano passado. [...] pelo que entendo que V.M. mandará castigar os oficiais dos dois portos por haver admitido aquela nau, coisa que é proibida pelas ordens que V.M. tem dado em vista do contrato que a coroa de Portugal no tempo Del rei D. Sebastião fez com esta [coroa] proibindo os ingleses de ir à costa do Brasil, estando no artigo quinzeno especificadas as partes onde podiam traficar os ingleses, pelo qual a dita nau Miñona podia ser presa e confiscada, e mesmo que esse contrato não fosse válido por mais de três anos, que se cumpriram a seis de dezembro de 1579, [...] não se alterou nada por ambas as partes, [...]. [...] e que de nenhum modo pensem os ingleses que hão de fazer com proveito aquela nem alguma outra navegação das Índias ou reinos proibidos por V.M., senão com risco de serem postos a pique, porque de outra maneira se farão prestos a ir armar navios com o falso propósito de comerciar e que roubariam quantos súditos de V.M. topassem pelo caminho. [1° de março de 1582] (RAYON e ZABALBURU, 1888b, p. 294-297)

Após a volta do Minion a Londres, D. Bernardino volta à carga, em carta de quatro de maio de 1582:

Entendo que informaram o Conselho sobre o caso [o retorno do Minion], e muitos outros mercadores foram a dar-lhes conta de como querem fazer aquela navegação e contratar no Brasil, o que será grande deserviço a V.M., e sendo assim, convém que V.M. seja servido remediá-la e ordenar imediatamente aos governadores daquela costa de que se chegue navio estrangeiro a ela, não somente não lhe deem comércio como que procurem de todas as maneiras pô-las a pique, sem deixar homem algum com vida, porque se lhes for dado outro tratamento não será possível, como tenho escrito a V.M. diversas vezes, impedir-lhes a navegação nem atalhar-lhes o passo, senão com manter V.M. ali de ordinário armadas, o que seria excessivamente custoso (RAYON e ZABALBURU, 1888b, p.370-371).

Apesar do entusiasmo causado pela volta a Londres do Minion, a viagem armada pela companhia dos cinco mercadores ingleses não foi completamente bem sucedida, conforme narra o tesoureiro Thomas Grigges em seu diário,13 13 GRIGGES, Thomas, Certaine notes of the voyage to Brasill with the Minion of London aforesaid, in the yeere 1580, written Thomas Grigges Purser of the said shippe, In HAKLUYT, 1589, p. 641-643. [também in HAKLUYT, 1600, p. 704- 706] que relata os sucessos ocorridos em Santos, e de acordo com a pesquisa de Olga Pantaleão nos arquivos ingleses,14 14 PANTALEÃO, Olga , Um navio inglês no Brasil em 1581; a viagem do "Minion of London", também estudado por WILLEN, Thomas Stuart, Studies in Elizabethan foreign trade. que estuda, além da temporada santista, o período que passaram em Salvador e o processo aberto após a volta do Minion à Inglaterra.

A chegada do navio a Santos, em 3 de fevereiro de 1581, contou com a hospitalidade e o bom acolhimento do "capitão, dos oficiais do rei e de toda gente", como conta Grigges. As relações iniciais foram tão boas que o capitão de Santos, chegando à vila a notícia de que quatro navios de guerra franceses tinham tentado atacar o Rio de Janeiro e que provavelmente se dirigiam para lá, foi a bordo do Minion e pediu aos ingleses armas e munição para que pudessem organizar a defesa da vila contra os atacantes, ao que o comandante inglês acorreu imediatamente, estreitando o laço entre os estrangeiros e os colonos. "Então lhes emprestamos vinte arcabuzes e dois barris de pólvora", relata Grigges. A frota francesa terminou por se dirigir diretamente para o Estreito de Magalhães, segundo se soube por ocupantes de duas canoas portuguesas, capturadas pelos franceses no Rio de Janeiro e que chegaram a Santos dias depois.

No final de fevereiro de 1581, quando estavam por quase um mês a negociar os produtos e a sucessão pela coroa portuguesa já havia entrado no estágio de guerra entre o exército de Felipe II e o partido aliado a D. Antônio, chegam a Santos notícias da Europa: "Nessa época chegou a Pernambuco um navio de Portugal trazendo novas de que as ilhas, as Índias e o próprio Portugal estavam sendo assediados e atacados pelos espanhóis, e que os portugueses tinham chamado ingleses e franceses até Lisboa para defendê-los contra a Espanha" (HAKLUYT, 1589, p. 642).

A presença dos ingleses em Santos, portanto, à luz dessa nova configuração política, parecia reforçar ainda mais o laço entre a tripulação inglesa e os portugueses da colônia, agora aliados contra um inimigo comum, a Espanha. A identificação entre os viajantes ingleses e o Brasil, no relato de Grigges, estende-se inclusive à visão que constroem dos índios:

Essa gente [os índios] também têm guerras constantes com os espanhóis. E isto quem nos contou foi um desses índios, que mora com os portugueses há sete anos, com seu senhor que se chamava Manoel Veloso. E este sujeito teria vindo de bom grado conosco para a Inglaterra (HAKLUYT, 1589, p. 641).

Se na esfera política, num momento de instabilidade e rápida mudança das relações de força entre as coroas europeias, não houve atrito entre os viajantes e os colonos, isso se refletiu no andamento dos negócios em terra. Menos de três meses após a chegada do Minion, o navio e outras embarcações foram abastecidos com o açúcar brasileiro, testemunha dos bem sucedidos negócios na vila de Santos.

As condições locais para o comércio foram percebidas como extremamente vantajosas, como relata Grigges em seu diário:

Costumam definir um preço para todos os produtos e mercadorias livres de alfândega no Brasil, o que é feito pelos magistrados da vila de acordo com os decretos do seu rei.

Mas para todas as mercadorias lá sujeitas à alfândega, os mercadores devem vendê-las da forma que quiserem e que lhes traga maior lucro e ganho (HAKLUYT, 1589, p. 642).

Outro grande atrativo da terra e que deve ter influenciado o posterior interesse inglês por viagens comerciais ao Brasil na década de 1580 - como já havia relatado Whithall em sua carta e agora se confirmava por Grigges em sua segunda temporada no litoral da capitania de São Vicente - recaía numa concepção geográfica corrente na época e no fascínio exercido na Inglaterra pelas riquezas do Peru, acenando com a possibilidade do estabelecimento de um caminho terrestre para esses lendários (e reais) tesouros. Como observa K. R. Andrews:

O sucesso dos espanhóis no Peru, culminando com a descoberta e a exploração das minas de Potosi, era então de conhecimento geral. Naquela época de fascínio pelas barras de metais preciosos, para a Europa o Peru significava uma montanha de prata, a mais rica fonte de metais preciosos no mundo, a chave para o enorme poder da Espanha, o definitivo argumento para a colonização do ultramar (ANDREWS, 1981, p. 4).

Não espanta, portanto, o fato de no relativamente pequeno diário de Grigges, em que poucas linhas são dedicadas à descrição da atividade comercial propriamente dita, o conciso tesoureiro alargue-se em informações nesse campo de interesse:

Em relação à província do Peru, soubemos que uma parte dela fica somente a doze dias de viagem por terra e mar da vila de Santos, e depois pode levar quatro ou cinco dias de viagem por mar até a embocadura do rio da Prata.

Da embocadura do rio da Prata e das principais vilas que lá estão faz-se comércio e trocas com o interior do Peru usando carroças, cavalos e mulas.

[...]

A mais ou menos vinte léguas de Santos há um tipo de índio selvagem que vive nas montanhas e que são aliados dos portugueses. Eles têm guerras contínuas contra alguns outros índios que moram perto da fronteira com o Peru, que fica distante de Santos umas 400 ou 500 léguas. Esses índios do Peru possuem grande quantidade de ouro e prata, mas não conhecem qualquer uso para eles (HAKLUYT, 1589, p. 641-642).

Segundo K. R. Andrews, essas observações de Grigges, que participara da viagem de John Winter, fora um dos informantes de Hakluyt e tomaria parte em outras expedições inglesas à América do Sul, mostram que os ingleses preocupavam-se não somente com comércio, mas também com pesquisas na área de inteligência, de forma a conhecer melhor o terreno e planejar novas ações.

Os problemas enfrentados pelo Minion e que provocaram sua partida intempestiva do porto de Santos, antes que pudesse ser consertado para se preparar para a segunda parte da viagem (homens já tinham sido enviados à Bahia para preparar o terreno), foram de ordem religiosa. Logo na chegada do navio, um dos membros da tripulação caiu no mar e se afogou, e este episódio desencadeou uma série de eventos que acabaram por abreviar a estadia inglesa no porto. O tripulante afogado foi enterrado, e seus companheiros desembarcaram para acompanhar o enterro na Igreja em Santos. O caso chegou ao conhecimento do 'administrador' eclesiástico no Rio de Janeiro, que mandou a Santos ordem para que os ingleses não fossem mais admitidos na igreja:

O administrador tinha escrito do Rio de Janeiro dizendo que, como a nação inglesa nesses últimos vinte anos ou mais vinha negando a igreja de Roma e sua conduta, ele ordenava que nenhum de nós fosse à sua igreja. Os padres [de Santos] nos recomendaram paciência e boa vontade, e prometeram defender-nos, fosse por palavra dada ou por escrito, junto ao administrador e ao bispo da Bahia, e ainda pediram que nossa tripulação inglesa não pensasse mal deles (GRIGGES apud HAKLUYT, 1589, p. 642).

Os depoimentos estudados por Olga Pantaleão, recolhidos em processo aberto junto a High Court of Admiralty após a volta do navio à Inglaterra, revelam que a tripulação manteve relações amistosas com os padres de Santos e particularmente com um pe. João Peres, que frequentava o Minion e era próximo do mestre, Stephen Hare, com quem se divertia "às vezes com excesso de bebida" (PANTALEÃO, p. 64). Pelo que se pode depreender do relato de Grigges, o navio partiu às pressas quando o 'administrador' chega a Santos, vindo do Rio de Janeiro. O Minion parte deixando em terra alguns homens, que terão de ir até a ilha de São Sebastião, onde o navio precisou ancorar para passar pelos reparos necessários, para se reunirem à tripulação.

A segunda parte da viagem, a temporada que passaram em Salvador, na Bahia, não está registrada no diário de Grigges, provavelmente por se tratar de um período dominado pelas dissensões entre os membros da tripulação, particularmente entre o mestre Stephen Hare (protagonista do processo aberto após a volta do navio à Inglaterra por ter sido acusado de negligenciar seus deveres) e o piloto Edward Cliffe. Este último, num episódio pouco claro, resolve estabelecer-se na Bahia para se juntar à Companhia de Jesus e se desentende com a tripulação por causa de certos livros, provavelmente tidos por heréticos, que havia deixado no Minion. O caso do piloto inglês que se torna jesuíta em Salvador é referido por Serafim Leite na Historia da Companhia de Jesus no Brasil, como o "capitão de um navio mercante inglês" falecido em 1583 ainda durante seu noviciado (PANTALEÃO, 1963, p. 57), e chegou aos bem informados ouvidos de D. Bernardino de Mendoza, que relata o fato a Felipe II em carta de 4 de maio de 1582:

Com algumas de minhas [cartas] precedentes avisei a V.M. sobre a chegada da nau que veio da costa do Brasil, deixando em terra 17 homens, o que não ocorreu, segundo os próprios ingleses confessam e como eu mesmo me informei, por terem querido lhes tomar a nau, porque se tivessem querido tomá-la seria coisa facílima, porque para repará-la tiveram que colocar toda a gente e toda a artilharia em terra; mas o governador lhes havia dado salvo-conduto para comerciar, pagando os direitos, e o mesmo fez o bispo [D. Antônio Barreiros], de forma que assim puderam guardar suas mercadorias nos armazéns, e os feitores dos mercadores daqui, que tinham a seu cargo as ditas mercadorias, a eles lhes pareceu muito boa a terra, e assim quatro ou cinco deles resolveram se apropriar de mercadorias e ficar na vila, e outro se converteu à santa fé católica romana [...], e por frequentar o ofício divino e os sacramentos começaram os outros a mofar dele, de sorte que o bispo e os inquisidores lhes intimaram (RAYON e ZABALBURU, 1888a, p. 370).

Os desentendimentos entre os homens da tripulação e a polaridade surgida entre os membros da Igreja em Salvador e o navio, por causa da conversão de Cliffe e sua entrada para a Cia. de Jesus, fizeram com que o comércio se realizasse de forma desordenada, gerando o processo instaurado na High Court of Admiralty, e provocaram várias atitudes inesperadas por parte dos homens, como a deserção dos 17 agentes comerciais citados por D. Bernardino, que se radicaram em Salvador, o que contrariava o regimento dos investidores londrinos, como explicaram, na carta a Whithall:

Se porventura algum dos nossos marinheiros ou passageiros, movido por uma desavença a bordo ou na esperança de conseguir se casar ou outro motivo qualquer, buscar permanecer ou residir aí e abandonar suas funções, então o senhor servirá de homem da lei e enviará esses fugitivos de volta a bordo como prisioneiros (HAKLUYT, 1589, p. 641).

A partida de Salvador, como ocorrido em Santos, foi também intempestiva e igualmente movida por motivos religiosos. Como observou Thomas Grigges em seu depoimento à High Court of Admiralty, "é muito perigoso cair nas mãos do clero por causa de religião naquelas terras" (PANTALEÃO, 1963, p. 69). Ainda na Bahia, um português que negociava com os ingleses alertou o mestre Stephen Hare sobre "acusações do bispo contra ele sobre matéria de religião" e o próprio Hare, em seu testemunho em Londres, declarou que tinha sido denunciado como "um tão grande herético que não ousou mais desembarcar" (WILLEN, p. 5-9).

D. Bernardino de Mendoza, na carta de 4 de maio de 1582, conta em detalhes a partida do navio:

Naquele momento, os que estavam na nau, vendo que os demais feitores queriam ficar na vila com as mercadorias, enviaram um barco a terra com 10 homens para admoestá-los que voltassem a bordo, e os inquisidores os prenderam para serem examinados; sabendo disso, os da nau prenderam em represália alguns marinheiros portugueses que ali estavam , em uma caravela de Lisboa, e levantaram as âncoras. Os da terra começaram a atirar canhonaços, acertando alguns dentro da nau, a qual chegou aqui em dois meses e meio (RAYON e ZABALBURU, 1888b, p. 370).

Quanto ao montante dos negócios realizados no Brasil pelo Minion, temos o depoimento do ouvidor-geral Martim Leitão, numa carta de 15 de abril de 1584, datada de Pernambuco, estudada por Olga Pantaleão, segundo o qual a nau teria trazido "mais de 30.000 cruzados em mercadorias" e levado "mais de 25.000 arrobas de açúcar". Pantaleão, entretanto, observa que "a série de incidentes ocorridos na Bahia impediu o carregamento total para a viagem de retorno, como se deduz dos depoimentos feitos no Tribunal do Almirantado" (PANTALEÃO, 1963, p. 67).

Teria sido a viagem comercial ao Brasil tão vantajosa, como indicara Whithall, quanto uma viagem ao Peru? A alguns mercadores ingleses pareceu pelo menos possível estabelecer uma rota comercial pacífica entre a Inglaterra e o Brasil. O fato é que depois do Minion, outras expedições foram armadas com o mesmo objetivo de estabelecer relações comerciais diretas com o Brasil, sem a interferência de Portugal.

Em novembro de 1582, relata D. Bernardino de Mendoza, os irmãos Hawkins e Francis Drake montaram uma frota de quatro naus, armadas para guerra, com destino às costas da África e do Brasil, numa sociedade que se autodenominou "the company of discovery", mas que combinaria comércio e saque. Entretanto, não chegaram a se dirigir para o litoral brasileiro: ao se aproximarem de Cabo Verde, mudaram os planos ao ouvirem sobre uma frota de cinco navios de guerra espanhóis, mandada para proteger a costa do Brasil, e partiram para uma viagem pirática ao Caribe (ANDREWS, 1984b, p. 57). Tratava-se esta frota da grande armada espanhola de Diego Flores de Valdés, enviada por Felipe II para guardar o estreito de Magalhães e combater os navios estrangeiros, em resposta à viagem de circunavegação e rapina de Drake (1577-1580).

Ainda em 1582, um grupo de mercadores da Venice Company enviou o Merchant Royal a Olinda, onde o navio passou seis meses, numa relativamente bem sucedida empreitada comercial. Como não conseguiram vender toda a mercadoria, deixaram três feitores em terra para que negociassem o restante dos produtos e para receber débitos no valor de mais de quatro mil libras. Esses agentes comerciais, estabelecidos em Olinda, aparentemente negociaram sem problemas até a chegada da armada de Flores de Valdés. Dois desses feitores ingleses tiveram suas mercadorias confiscadas, foram presos e mandados "a ferros para Sevilha" e posteriormente para Lisboa (WILLEN, 1959, p. 9). O mesmo grupo de mercadores da Venice Company, segundo Andrews, conseguiu ainda realizar viagens comerciais a Olinda em 1584-85, o que seria o último suspiro das tentativas pacíficas comerciais inglesas no Brasil (ANDREWS, 1984a, p. 165).

Houve ainda uma expedição planejada para comerciar na Guiné, em São Vicente e no rio da Prata, armada pelo mercador Edward Cotton, de Southampton. Mas a nau naufragou nas costas da Guiné em julho de 1583. Os documentos relativos a essa viagem publicados por Hakluyt revelam que os ingleses pretendiam vender suas mercadorias na ilha de São Sebastião onde havia instruções de permanecer apenas o tempo em que durassem os víveres, talvez de forma a se precaver dos problemas enfrentados pelas expedições precedentes. As instruções de Cotton para o capitão do navio são muito detalhadas e revelam um bom conhecimento do Brasil; recomendavam que procurassem obter âmbar, açúcar, gengibre, algodão, pimentas da terra, papagaios, macacos, tabaco, escabiosa (erva medicinal) e ainda sementes de plantas exóticas e palmitos no caule (HAKLUYT, 1589, p. 187).

O golpe de misericórdia nessas tentativas de relações comerciais entre Inglaterra e Brasil foi dado pela viagem de Edward Fenton, realizada com o investimento de Drake, em 1582-83, e também com a interlocução e o acolhimento, a esta altura já em caráter secreto, de John Whithall. No estudo introdutório de sua edição dos documentos relativos à viagem de Fenton, Eva. G. R. Taylor resume o episódio:

Ao chegarem a São Vicente, entretanto, Fenton percebeu que os colonos haviam aceitado o anúncio de que agora estavam sob a coroa espanhola e tinham sido especialmente alertados pelo rei Felipe para não negociarem com os ingleses por causa dos saques de Drake. No entanto, torna-se evidente que os colonos estavam prontos para negociar sub-repticiamente, não fosse a proximidade da armada espanhola em seu litoral. Uma visita secreta de John Whithall [...] levantou uma esperança por parte dos ingleses, mas o súbito aparecimento de três navios espanhóis [de Diego Flores de Valdés] levou a uma batalha e a uma partida apressada (TAYLOR, 1959, p. VIII).

Fenton ainda tentou fazer negócios no Espírito Santo, onde quase chegou a assinar um tratado de comércio com o governador, segundo um dos relatos sobre sua viagem, mas a chegada de uma pequena nau portuguesa fez com que sua frota partisse novamente. Fenton, na verdade, teve um comportamento lunático durante toda a expedição - planejou tornar-se rei de São Vicente e depois da ilha de Santa Helena - e voltou arruinado para a Inglaterra (TAYLOR, 1959).

Com a definição da situação política de Portugal, a derrocada das intenções de D. Antônio, que viria a falecer em 1595, a expulsão de D. Bernardino de Mendoza de Londres em 1584 e a guerra aberta entre a Espanha de Felipe II e a Inglaterra da rainha Elisabeth (1585-1604), as viagens inglesas ao Brasil se tornariam francamente piráticas, destinadas ao apresamento no mar de naus carregadas de açúcar brasileiro - o que se tornaria prática corriqueira - e ao ataque direto de vilas da colônia portuguesa. Entre essas últimas, temos o saque de Salvador e do Recôncavo, entre abril e julho de 1587, por uma frota armada pelo conde de Cumberland, registrada em um vívido relato escrito por John Sarracol15 15 SARRACOL, John, The voyage set out by the right honorable the Earl of Cumberland, in the yeere 1586, intended for the South Sea, but performed no farther them the latitude of 44. deg. To the south of the Equinoctiall, written by John Sarracoll Merchant in the same voyage", In HAKLUYT, 1589, p. 793-803. ; a tomada de Santos pelo corsário Thomas Cavendish em 1592, que incendiou em seguida os engenhos de São Vicente, episódios relatados no livro de memórias de Anthony Knivet;16 16 KNIVET, Anthony, The admirable adventures and strange fortunes of master Antonie Knivet, wich went with Master Thomas Candish in his second voyage to the south sea. 1591, In PURCHAS. 1625, p. 1202-1242. e o saque do Recife por James Lancaster em 1595, também relatado em uma narrativa vibrante.17 17 The well governed and prosperous voyage of M. James Lancaster, begun with three ships and a galley-frigat from London in October 1594, and intended for Fernambuck, the port-towne of Olinda in Brasil, in HAKLUYT, 1600, p. 708-715.

Após a união ibérica, estabeleceram-se leis que proibiam o exercício do comércio, da mineração e da agricultura por estrangeiros. Em 1588, o regimento do novo Governador-Geral do Brasil estabelecia várias recomendações que visavam a defender o território do ataque de corsários, e proibia que naus estrangeiras comercializassem no litoral, com exceção daquelas que possuíssem uma "provisão real"18 18 GUEDES, Max Justo In Historia Naval Brasileira, tomo II, p. 496-497. O Regimento ordenava que o governador construísse, "por conta de minha fazenda", vinte e quatro galeotas para que pudessem "continuamente andar guardando a costa da bahia atee a praiba", e instava os donos de engenho a ajudarem o policiamento naval "com mantimentos necessarios para os soldados, marinheiros e chusma que ouverem de andar nestas quatro embarcaçoens". O Regimento ordenava ainda que os donatários das capitanias, ao perceberem a presença de corsários, informassem todos os dados sobre as frotas estrangeiras ao porto da Bahia para que fosse enviada uma armada para combater os invasores. Há ainda um alvará de 30 de junho de 1592 que criava a Casa e o Direito do Consulado, em Lisboa, de forma a proteger a navegação e o comércio marítimo português, devido às "muitas perdas que recebem no mar nos roubos dos corsários", Historia Naval Brasileira, tomo II, p. 500. . As recomendações do regimento destinavam-se a Francisco Giraldes, antigo embaixador português na Inglaterra e responsável pela negociação do tratado de comércio assinado em 1576, mas que não chegou a assumir o cargo, ocupado em 1591 por D. Francisco de Sousa, cujo governo foi marcado pelas entradas sertão adentro em busca de minas de metais preciosos.

Dos 50 documentos relativos às viagens inglesas ao Brasil publicados por Richard Hakluyt e Samuel Purchas19 19 PURCHAS, Samuel, Hakluytus Posthumus or Purchas his pilgrimes in five bookes, the second part, 1625. , entre relatos, roteiros, cartas, diários, instruções e notícias, escritos por cerca de 33 autores e abrangendo 19 viagens (HUE, 2009), desde a expedição de Sebastião Caboto ao rio Paraná em 1526, na companhia do inglês Roger Barlow, até a viagem do cirurgião-barbeiro londrino William Davis ao Amazonas em 1608, as cartas de John Whithall e dos cinco mercadores ingleses, juntamente com o diário do agente comercial Thomas Grigges, deixam ver um movimento de aproximação e interesse comercial que, apesar de não ter resultado numa efetiva relação entre a colônia e a Inglaterra, demonstra como os elisabetanos, após a viagem de cincunavegação de Francis Drake, voltaram sua atenção para o litoral da capitania de São Vicente antes de se concentrarem no projeto de colononização da América do Norte, e o quanto, do ponto de vista comercial, foram acolhidos pelos homens de negócios da região, funcionários régios, como eram o governador da capitania de São Vicente, Jerônimo Leitão, e o provedor da fazenda Brás Cubas, a quem John Whithall e D. Bernardino se referem quando citam, sem nomeá-los, as principais autoridades da administração colonial de Santos na época em que o Minion foi recebido. A necessidade de escoar a alta produção de açúcar da capitania e a demanda por mercadorias manufaturadas eram premências mais fortes do que o decreto em vigor, de 1571, de D. Sebastião, que proibia o comércio com naus estrangeiras.

O apoio filipino para importantes entradas de prospecção mineral, como as expedições organizadas por Gabriel Soares de Sousa e pelo governador-geral D. Francisco de Sousa, e a preocupação de guardar defensivamente o litoral, medidas contempladas no regimento de 1588, repercutem de certa forma o interesse inglês pelas ainda não descobertas minas e pela proximidade com o Peru, atestado pelos relatos de John Winter, John Whithall, Thomas Grigges e Richard Hakluyt. Como observa Arno Wheling sobre as motivações estratégicas da ação da filipina no Brasil:

No continente americano, com o conhecimento geográfico já então disponível, era evidente que a posse do Brasil, [...], representava importante proteção para Potosi e as demais regiões do vice-reino do Peru. Chegou a ser formulada a hipótese, na historiografia brasileira, da concepção do Brasil também como "estado tampão", com o fim de proteger a retaguarda da mineração espanhola na América do sul.

[...] em materia de interesse pelo Brasil, não deve ser esquecida a possibilidade de encontrar-se ouro e prata numa região frequentemente vista, à época, como continuidade geográfica do Peru (WEHLING, 2205, p. 12).

Tinha razão o assistente comercial inglês John Whithall - o João Leitão da elite colonial santista - ao definir para o mercador Richard Staper o que significaria uma viagem à desconhecida capitania de São Vicente em 1578: "Esta viagem é tão boa quanto qualquer viagem ao Peru. [...] Se tiver coragem para tal, em nome de Deus, procure arrumar uma boa embarcação de setenta ou oitenta toneladas e mande-a para cá com um piloto português, até o porto de São Vicente no Brasil, na fronteira com o Peru".

Notas

Recebido em maio/2013

Aprovado em junho/2013

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  • HAKLUYT, Richard. The third and last volume of the voyages, navigations, traffiques, and discoveries of the English Nation, and in some few places, where they have not been, of strangers, performed within and before the time of these hundred yeeres, to all parts of the Newfound world of America, or the West Indies, from 73. degrees of Northerly to 57. Southerly latitude Collected by Richard Hakluyt Preacher. Londres: George Bishop e Ralph Newberie, 1600.
  • HUE, Sheila Moura. Ingleses no Brasil: relatos de viagem. 1526-1608, Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, vol. 126 (2006), p.7-68, 2009.
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  • RAYON, José Sancho; ZABALBURU, Francisco de. Coleccion de documentos inéditos para la história de España Correspondencia de Felipe II con sus embajadores en la corte de Inglaterra. 1558 á 1584. Tomo XCII. Madri: M. Ginesta Hermanos, 1888b.
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  • THEVET, André. As singularidades da França Antártica Tradução de Eugenio Amado. São Paulo: Itatiaia, 1978.
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  • WEHLING, Arno. O Estado no Brasil filipino - uma perspectiva de historia institucional, Revista do Insitituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 166, n. 426, jan./mar. 2005, p. 9-56.
  • WILLEN, Thomas Stuart. Studies in Elizabethan foreign trade Manchester: The University of Manchester Press, 1959.
  • "Esta viagem é tão boa quanto qualquer viagem ao Peru". O Minion of London no Brasil (1581)

    Sheila Moura Hue
  • 1
    BARLOW, Roger, A brief summe of Geographie, livro escrito por um dos ingleses que acompanhavam Caboto, em que há um trecho com a descrição da terrra ao longo do rio Paraná.
  • 2
    Sobre essa informação, marcante no imaginário daqueles anos de especulação sobre as ainda mal conhecidas terras sob o domínio da coroa portuguesa, Thevet a reforça com um episódio "baseado em narrativas que ouvi durante minha viagem de volta, contadas por alguém que asseverou ter tomado parte nessa expedição [a São Vicente]": "[os viajantes] repararam em umas pedras reluzentes como prata. Recolheram algumas amostras e lavaram-nas para Morpião, a 18 léguas daquele ponto. Ali ficaram sabendo, após o exame das pedras, que estavam diante de rico minério de prata. A partir de então a exploração daquele local e a extração das pedras, que eram ali infinitas, passaram a produzir enormes rendimentos ao rei de Portugal" (THEVET, 1978, p. 210).
  • 3
    O tratado de comércio, conhecido como "abstinência", assinado em 1576 entre Portugal e Inglaterra.
  • 4
    Simancas: 'October 1580', Calendar of State Papers, Spain (Simancas): Volume 3, 1580-1586 (1896), p. 52-63. Disponível em:
  • 5
    Trata-se de uma informação imprecisa. João Batista Malio foi, juntamente com dois outros senhores de terras, governador da capitania de São Vicente em 1595.
  • 6
    A letter written to M. Richard Stapers by John Whithall from Brasill, in Santos the 26 of June 1578. In HAKLUYT, Richard, 1589, p. 638-640. [também in HAKLUYT, 1600, p. 701-703]
  • 7
    A carta dos cinco mercadores ingleses dirigida a John Whithall, enviada no
    Minion of London, e o relato de viagem escrito pelo tesoureiro Thomas Grigges.
  • 8
    O tratado está publicado na íntegra em VISCONDE DE SANTAREM, 1865, p. 299.
  • 9
    Todas as traduções dos documentos publicados por Hakluyt referentes à viagem do
    Minion of London citados neste artigo são de Vivien Kogut Lessa de Sá, a quem agradeço a permissão de usá-las.
  • 10
    Jerônimo Leitão e Brás Cubas, respectivamente, segundo Olga Pantaleão.
  • 11
    A íntegra do tratado encontra-se em VISCONDE DE SANTAREM, 1865, p. 299.
  • 12
    HODSDON, Christopher; GARRARD, Anthony; BRAMLY, Thomas; BIRD, John e ELKIN, William. A copie of the letters of the Adventurers for Brasill sent to John Whithall dwelling in Santos, by the Minion of London. Ano 1580, the 24 of October in London, In HAKLUYT, 1589, p. 640-64. [também in HAKLUYT, 1600, p. 703-704]
  • 13
    GRIGGES, Thomas, Certaine notes of the voyage to Brasill with the Minion of London aforesaid, in the yeere 1580, written Thomas Grigges Purser of the said shippe, In HAKLUYT, 1589, p. 641-643. [também in HAKLUYT, 1600, p. 704- 706]
  • 14
    PANTALEÃO, Olga ,
    Um navio inglês no Brasil em 1581; a viagem do "Minion of London", também estudado por WILLEN, Thomas Stuart,
    Studies in Elizabethan foreign trade.
  • 15
    SARRACOL, John, The voyage set out by the right honorable the Earl of Cumberland, in the yeere 1586, intended for the South Sea, but performed no farther them the latitude of 44. deg. To the south of the Equinoctiall, written by John Sarracoll Merchant in the same voyage", In HAKLUYT, 1589, p. 793-803.
  • 16
    KNIVET, Anthony, The admirable adventures and strange fortunes of master Antonie Knivet, wich went with Master Thomas Candish in his second voyage to the south sea. 1591, In PURCHAS. 1625, p. 1202-1242.
  • 17
    The well governed and prosperous voyage of M. James Lancaster, begun with three ships and a galley-frigat from London in October 1594, and intended for Fernambuck, the port-towne of Olinda in Brasil, in HAKLUYT, 1600, p. 708-715.
  • 18
    GUEDES, Max Justo In
    Historia Naval Brasileira, tomo II, p. 496-497. O Regimento ordenava que o governador construísse, "por conta de minha fazenda", vinte e quatro galeotas para que pudessem "continuamente andar guardando a costa da bahia atee a praiba", e instava os donos de engenho a ajudarem o policiamento naval "com mantimentos necessarios para os soldados, marinheiros e chusma que ouverem de andar nestas quatro embarcaçoens". O Regimento ordenava ainda que os donatários das capitanias, ao perceberem a presença de corsários, informassem todos os dados sobre as frotas estrangeiras ao porto da Bahia para que fosse enviada uma armada para combater os invasores. Há ainda um alvará de 30 de junho de 1592 que criava a Casa e o Direito do Consulado, em Lisboa, de forma a proteger a navegação e o comércio marítimo português, devido às "muitas perdas que recebem no mar nos roubos dos corsários",
    Historia Naval Brasileira, tomo II, p. 500.
  • 19
    PURCHAS, Samuel, Hakluytus Posthumus or Purchas his pilgrimes in five bookes, the second part, 1625.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      Maio 2013
    • Aceito
      Jun 2013
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