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Zeferino Ribamar das Mercês: uma representação do ator revolucionário na ditadura militar brasileira

Zeferino Ribamar das Mercês: arevolutionaryversionof the actor in theBrazilian military dictatorship

Resumos

O artigo analisa o personagem Zeferino Ribamar das Mercês, criada pelo caricaturista Henrique de Souza Filho durante os anos 1970, explorando a representação do sujeito revolucionário proposta pelo autor. No intuito de demonstrar o caráter político e crítico da produção humorística de Henfil, serão explorados os recursos visuais e discursivos empregados, bem como as temáticas abordadas por esse personagem.

ditadura; humor; cultura


The paper analyzes the character of Zeferino Ribamar das Mercês, created by cartoonist Henrique de Souza Filho during the 1970s, exploring the representation of the revolutionary subject proposed by the author. In order to demonstrate the political and critical production of humorous Henfil, will explore the visual and discursive employees as well as the issues addressed by this character.

dictatorship; humor; culture


ARTIGOS LIVRES

Maria da Conceição Francisca Pires

Professora Doutora, Departamento de História, Universidade Federal de Viçosa, Campus Viçosa, Avenida Peter Henry Rolfs, s/n, Campus Universitário, 36570-000 VIÇOSA - MG. E-mail: conceicao.pires@uol.com.br. Esse artigo trata-se de um trecho reformulado de um capítulo de minha tese de doutorado: Cultura e Política entre Fradins, Zeferinos, Orelanas e Graunas, SP: Annablume, 2010

RESUMO

O artigo analisa o personagem Zeferino Ribamar das Mercês, criada pelo caricaturista Henrique de Souza Filho durante os anos 1970, explorando a representação do sujeito revolucionário proposta pelo autor. No intuito de demonstrar o caráter político e crítico da produção humorística de Henfil, serão explorados os recursos visuais e discursivos empregados, bem como as temáticas abordadas por esse personagem.

Palavras-chave: ditadura, humor, cultura.

ABSTRACT

Thepaper analyzes the character ofZeferino Ribamar das Mercês, created by cartoonistHenrique de Souza Filho during the 1970s, exploring the representationof the revolutionary subjectproposed by the author. In order to demonstrate the political and criticalproduction ofhumorous Henfil, will explore thevisual and discursive employees as well as the issues addressed by thischaracter.

Keywords: dictatorship, humor, culture.

Durante a década de 1970, três personagens se tornaram responsáveis pela representação - esporádica no Pasquim, cotidiana no Caderno B do Jornal do Brasil e mensal na revista Fradim - dos problemas e contradições socioeconômicos vividos naquele período no Brasil: um "cangaceiro-macho-lutador", que atendia pela alcunha de Zefé ou Zezé, acompanhado de uma minúscula ave preta, a Graúna, e de um pragmático bode intelectual chamado Francisco Orelana.

Essa década se caracterizou pela consolidação dos pressupostos que tentaram justificar o golpe em 1964, expresso pela radicalização violenta e absurda da repressão política, neste momento ocultado pelo invólucro do milagre econômico. Enquanto Marias e Claricesi i Trecho da música O Bêbado e o Equilibrista, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc. choravam na clandestinidade, oficialmente cultuava-se um coração verde amarelo, branco, azul-anilii que se regozijava do "crescimento do bolo" propalado pelo ministro da Fazenda Delfim Neto.

Era um Brasil cindido entre a febre consumista das classes médias, ciosas do clima de "calma e tranquilidade" divulgado pelo governo em seus comerciais televisivos, e a vertiginosa ascensão dos índices de subnutrição e da mortalidade infantil. Entre a constatação da exorbitância alcançada pela dívida externa gerada para alimentar o monstro do crescimento, do expressivo aumento do êxodo rural com piora das já péssimas condições de vida nas grandes cidades, a promoção dos programas de difusão da agropecuária exportadora e o alardear da ideologia do "Brasil Grande", representado por obras faraônicas como a Transamazônica e a ponte Rio Niterói. Em torno dessas questões, dentre outras, se desenrolaram as histórias do grupo do Alto da Caatinga, cabendo aos seus componentes caracterizar os impasses e as transformações geradas neste contexto sociopolítico.

Segundo Henfiliii, o grupo foi gerado com a missão de aplacar a sanha do leitor do JB contra o caráter desregrado dos Fradins. Um leitor que parecia habituado aos temas convencionais e ao tratamento também convencional dado a estes pela grande imprensa. Além disso, era constante a presença dos quadrinhos estrangeiros no jornal, dotados de um humor ameno repassado por meio de uma linguagem bem mais comedida. Isso gerou uma pressão no interior do jornal que comprometeu tanto a criação como a publicação das histórias dos Fradins.

Para minimizar os conflitos com os leitores do JB, Henfil optou pela adoção de uma tática bem flexível de comunicação, tática que se tornou responsável pela acolhida calorosa, sobretudo, da personagem Graúna.

As experiências vivenciadas pelo grupo na caatinga serviram como metáforas da vida no interior do auge da ditadura, em que predominava a desesperança e a constante iminência da morte, e o sertanejo Zeferino, sem terra, alimento e trabalho, foi empregado como uma representação da cotidiana luta pela sobrevivência naquele ambiente de completa restrição das liberdades civis e políticas.

Em diferentes momentos - por meio de entrevistas ou cartas aos seus leitores - Henfil ressaltou o fato de que as histórias do Zeferino não eram apenas tentativas artísticas de reprodução de uma realidade, mas uma recriação do Brasil a partir de duas faces que são reais: "a da caatinga (Brasil real, sofrido, silenciado pelos mecanismos de poder político) x sul maravilha (Brasil do milagre brasileiro, do privilégio, das multinacionais que invadiam o país)" (SEIXAS, 1980, p. 85).

As relações estabelecidas entre o grupo favoreceram o desenvolvimento de discussões sobre questões referentes aos mitos e preconceitos inerentes às relações homem/mulher, ao duelo e/ou convívio entre senso comum e saber intelectual, as formas cotidianas de opressão e violência física e simbólica, a crise do sujeito e da ideia de mudança revolucionária, a função social da intelligentsia, a expansão da indústria cultural, além dos problemas e contradições especificamente relacionados à realidade brasileira, como a censura e a autocensura, o crescimento da fome e da miséria, a mortalidade infantil, a propaganda ideológica disseminada pela ditadura, a burocratização dos órgãos públicos, a expansão e o domínio econômico das empresas multinacionais, a questão fundiária, o patriarcalismo e o patrimonialismo, o caráter da abertura política, as "patrulhas ideológicas", dentre outros temas contemporâneos.

Para esse artigo, vou-me deter nas características pessoais do personagem Zeferino, ressaltando o reflexivo trabalho de crítica política e social sobre a realidade brasileira desenvolvido por esse personagem no interior das histórias do Alto da Caatinga. Assinalando como que por intermédio das recriações paródicas com relação às discussões do campo da política, efetivou-se um rebaixamento de certas atitudes e práticas também políticas, proporcionando-se uma leitura diferenciada destas.

Iniciarei com uma sucinta apresentação do personagem e darei seguimento à análise a partir da exposição de uma história selecionada.

Zeferino Ribamar das Mercês foi o primogênito do grupo. É um personagem cujas influências são bastante claras, a começar pela reunião de aspectos próprios de sua ascendência familiar mineira, originária da região do Polígono das Secas no norte de Minas. Segundo Henfil, "Zeferino seria um pouco como meu pai, seu Henrique" (SEIXAS, 1980, p.162), homem com uma "visão arejada do mundo" (MORAES, 1996, p.28) que fora tocador de acordeão e tropeiro durante a infância na Fazenda Saco Grande, em Pirapora, norte de Belo Horizonte. Associados a essa vivência interiorana encontram-se alguns elementos de sua mãe, D. Maria, procedente de Bocaiúva, cidade tranquila da zona do Alto São Francisco, como a religiosidade quase mística e o espírito pacato e ordeiro que acompanhava de perto sua fé. A junção de tais elementos contribuiu para a composição de um personagem que consegue, mediante atitudes rústicas, expressar a simplicidade, a resignação, as astúcias e a altivez do povo dos sertões.

Trata-se de um homem de meia idade cujos trajes, hábitos, discursos e práticas revelam sua condição jagunça. "É um cangaceiro que vive na caatinga, com os problemas da caatinga paralelos ao do Brasil" (Henfil, 1977, p. 31). O uso contínuo do grande chapéu de couro, das cartucheiras entrelaçadas ao corpo e das alpercatas, apenas visíveis em algumas sessões de espancamento da Graúna, reforçam a caracterização de sua condição social de sertanejo.

Traços fisionômicos marcantes - olhar agressivo, busto largo e fartos bigodes -, associados a apetrechos pessoais, como armas (facão, revólver ou carabina) e a rede em que dorme (próprio da sua condição de despossuído), constroem a imagem de cabra valente constantemente desmentida por gestos acovardados e, por vezes, hesitantes.

A sua primeira aparição foi no Jornal dos Sports, de 1º de abril de 1969, vésperas das eliminatórias da copa do mundo, durante um ato de pajelança praticado pelos personagens "Urubu, Bacalhau, Cri-Cri e Pó de Arroz" (MORAES, 1996, p. 142).

A ideia era apresentar um personagem que pudesse representar uma síntese da torcida brasileira na Copa do Mundo de 1970. Do JS, Zeferino fez, ainda nos anos 70, algumas aparições na revista Placar paralelamente a pequenas atuações em anúncios, como esse reproduzido logo abaixo, publicado no Pasquim. Em virtude da grande popularidade dos Fradins no Pasquim, estes foram utilizados de forma criativa por Henfil para "apadrinhar" o Zeferino em sua estreia como garoto-propaganda da revista.

Em agosto de 1972, após essa rápida passagem pela Placar, acompanhado do Bode Orelana e da ave Graúna, o personagem conquistou um espaço no JB. O discurso de Zeferino intentava representar um clamor para a luta política:"(...) Visava chamar as pessoas para o antimilagre brasileiro e chamar principalmente os homens para enfrentar a ditadura, nem mais, nem menos!" (SOUZA, 1984, p. 25).

Em seus discursos, realiza-se a interseção entre falares sertanejos repletos de arcaísmos, característicos destes universos discursivos, e enunciações próprias do espaço intelectual urbano de onde são retiradas as matérias para as estórias e onde estas são produzidas. A partir desse encontro configura-se um personagem que, pela fala rústica sertaneja, traduz reflexões contemporâneas acerca dos mecanismos de exploração e opressão social e política e sobre as estratégias e os rumos da luta revolucionária contra a ditadura militar.

Zeferino parece constituir a representação de um novo agente revolucionário: o povo fustigado pela miséria e pela fome. O entranhamento na pobreza lhe daria a radicalidade necessária para que se tornasse o promotor de uma transformação profunda alcançada por meio da luta violenta contra seus opressores. Seria, então, uma visão mitificada do povo, prenhe de um imaginário retirado d´Os Sertões, de Euclides da Cunha, e dos Grandes Sertões, de Guimarães Rosa, "no qual a violência, a ferocidade, a fome e a revolta são atributos ou condições do homem e da Terra (...)" (BENTES, 1997, p. 28). Assim, Henfil ofereceu virtudes à miséria na medida em que a dor tornava-se gestora da revolução. Ao contrário do jagunço sertanejo descrito por Euclides da Cunha como "os homens mais bravos e mais inúteis de nossa terra" (Apud, GALVÃO, 1986, p. 20), na caatinga inventada por Henfil "os bravos inúteis transformam-se em bravos úteis" (Idem). O homem urbano vivente no olho do furacão - que era a própria ditadura -, tal qual o homem do sertão, parecia nada mais ter a perder, e era esta condição de radicalidade que Henfil buscava destacar como fundamental para incentivar o engajamento na luta contra a ditadura.

A partir das produções discursivas do personagem se torna possível identificar a idealização que o autor fazia do homem rural, uma espécie de "Robin Hood caboclo" similar às lideranças populares que permearam os movimentos insurrecionais do Brasil, na Colônia e no Império. Um homem que expressava uma profunda consciência sobre sua miserável condição e subjugação social e econômica e que, em diversas ocasiões, buscou a reversão dessa situação por meio da violência. Ao mesmo tempo, o personagem desenvolvia práticas alienantes e alienadas que negavam esta conduta ativa e reflexiva.

O caráter paradoxal das práticas zeferinas parece expressar o conflito entre a idealização revolucionária do autor e a prática inativa imposta pela realidade vivida. Nesses momentos de conflito entre ação e inação do personagem, o autor se recorre ao procedimento de distanciamentopara insinuar ao leitor uma reflexão sobre o caráter da mobilização social contra a ditadura. Assim, se por um lado Zeferino pode representar a exposição e incorporação de um ideário revolucionário específico dos anos 1960, compartilhado pelo autor, suas ambiguidades e fragilidades podem também ser concebidas com uma crítica mordaz a este mesmo ideário. Com esse conflito interno, o caráter mítico e heroico do personagem se dissipava no convívio com os outros personagens, e a inação se torna seu traço distintivo, sem que isto significasse a ausência de uma consciência sobre os problemas sociais em que estava mergulhado. A ambiguidade tornou-se, aliás, a marca de todos os personagens que compõem o Alto da Caatinga. E foi essa paradoxal junção de reflexão e perplexidade que norteou as histórias. Esse paradoxo não distanciou a metáfora da caatinga da vida na ditadura, pois era também assim que os personagens da vida real, teóricos, artistas, jornalistas e outros profissionais, estavam vivenciando a crua realidade da ditadura militar.

A história abaixo explora essa ambiguidade do personagem. Nesta, mescla-se macheza e ingenuidade, intuição, conhecimento e superstição, configurando-se a peleja interna do personagem para colocar de lado sua conduta machista e patriarcal e adotar práticas alternativas e místicas para alcançar a resolução do problema da seca na caatinga.

Figura 5


Algumas práticas e hábitos do personagem foram explorados pelo autor, tanto para fazer referência a sua condição social como para expressar essa situação/sentimento de inação que não é só dele (do autor ou do personagem), mas que caracteriza o estado de espírito de parte da sociedade brasileira. A frequente embriaguez é a principal dessas práticas. Ao intelectual Orelana coube o questionamento reprovador da bebedeira, enquanto a Graúna a utilizava para satisfazer seus ímpetos masoquistas mediante os arroubos de violência gerada pelo ébrio Zeferino. Em ocasiões esparsas, refletindo momentos agudos de crise, a embriaguez e seus efeitos (fuga, violência, alucinação) eram partilhados por todo o grupo da caatinga.

Os momentos de embriaguez de Zeferino serviram de representação do apogeu da situação de opressão, imobilidade e ostracismo imposto pela ditadura militar. Em geral, as tiras que abordam esse tema apresentam uma perspectiva ampliada do espaço geográfico da Caatinga. Algumas vezes a embriaguez parece constituir a adesão do grupo às condições alienantes impostas pela ditadura, como ocorre na história:

Figura 6


Em outras situações, esta despontava como uma forma lúdica de resistência adotada pelos personagens, que tinham consciência da realidade que se impunha e, por meio da embriaguez, a rejeitavam e buscavam enxergar uma realidade alternativa, como se verifica na história abaixo:

Assim, da oscilação entre luta e resistência, entrega e desfrute se constituía Zeferino. Além das influências familiares interioranas, identifica-se a ascensão dos ideais revolucionários que habitaram as premissas de intelectuais, artistas, partidos e movimentos de esquerda dos anos 60, que

Valorizavam a ação para mudar a história, para construir o homem novo, nos termos de Marx e Che Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, 'do coração do Brasil', supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista (...) (RIDENTI, 2003, p. 135).

Tratava-se de uma tentativa de redescobrir o Brasil, identificar suas "raízes" para, daí, propor "as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante" (RIDENTI, 2003, p. 138).

A referência à luta contra o latifúndio e pela reforma agrária, tal qual fundada pelas Ligas Camponesas, esteve presente de forma diversificada no teatro, na poesia e na produção cinematográfica do período. Desta última, destacam-se os filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), produzidos por Glauber Rocha, que inauguraram um olhar diferenciado sobre o povo e sua rebeldia primitiva, apresentando-o como uma possibilidade revolucionária no interior da marginalidade e da miséria.

A influência de Glauber na constituição de sua visão de mundo foi assinalada pelo cartunista durante a polêmica travada com o cineasta sobre os rumos do processo de abertura políticaiv. A relação entre a produção de Glauber e as histórias do Zeferino foi mencionada algumas vezes. Para ilustrar, destaquei esta história publicada no número 07 da revista Fradim, de março de 1976:

Como Henfil, Glauber parecia acreditar na necessidade de se restaurar a fé na revolução por intermédio do homem em seu estado máximo de brutalidade, alcançado quando este já não está apenas próximo da miséria, mas é sua própria materialização. Glauber explorou o misticismo e o cangaço, intentando exercer sobre eles um efeito desmistificador que os afastaria das perspectivas colonizadoras, comuns na produção literária de viés naturalista ou regionalista, que os apresentava como expressão do atraso e da passividade do homem pobre rural. Com este propósito, os mitos apareceram como "tradição a ser superada e fator de transformação e resistência cultural" (BENTES, 1997, p.27). Desta forma, em seus filmes os heróis revolucionários foram forjados pela figura de cangaceiros, beatos, vaqueiros, matadores de aluguel e mercenários que viviam em meio a crises existenciais.

Se por um lado Zeferino concentrava esse potencial simbólico crítico e revolucionário de esquerda, por outro atuou na representação dos valores, práticas e enunciados de um conservadorismo machista de direita que se impunha por meio da força e do emprego das armas. Em várias histórias em que o personagem contracenava diretamente com a Graúna, este aspecto se tornava evidente. Estas mesclaram a problemática do conflito entre gêneros - algumas vezes endossando perspectivas tradicionais, noutras colocando-as em xeque-, temas referentes à luta de classes.

Ao inserir um enfoque político sobre aspectos sutis da experiência cotidiana em que se desenvolvem os antagonismos entre os sexos, o cartunista, além de tornar manifestos clichês sobre os papéis e atuações sociais de homens e mulheres, colaborou para desnaturalizar tais conflitos e apresentar formas tênues por onde se constroem e se exercem relações de poder, tanto na esfera pública como na esfera privada. Assim, nas análises das participações de Zeferino é importante dedicar maior atenção ao caráter heterogêneo que estas assumem, dependendo do local e das condições em que este elabora suas falas e práticas, para que não nos percamos em suas ambiguidades.

Além deste aspecto, é importante enfatizar a dificuldade para centrar a análise unicamente em Zeferino, apesar de ele nomear as histórias do grupo. Isto se dá pelo fato de que a atuação dos personagens, durante o desenvolvimento das histórias, muitas vezes ganha destaque diferenciado, fazendo com que a condição de ator central alterne em conformidade com o tema abordado. Ao se ter ciência deste aspecto é que se torna compreensível, por exemplo, a condição secundária assumida repetidamente por Zeferino tornando-se a Graúna condutora da ação nas tramas da caatinga. Essa condição, porém, não comprometeu a capacidade de Zeferinode colocar em relevo, de forma reflexiva, questões importantes para a crítica política proposta por Henfil. Assim, mesmo quando este expressava uma condição de inação e perplexidade, sobretudo se comparado à Graúna, é possível identificar na sua participação a ideia original de apresentar um personagem que, nas palavras do autor, "intentava conquistar os homens para a luta política naquele período, em que o AI-5 começou pra valer (...)" (SOUZA, 1984, p. 25). Ou seja, um personagem combativo que representasse a tomada de uma atitude enérgica, aliando a força à reflexão. Esta postura vigorosa e decisiva se manifestava ora por meio de arroubos de violência do personagem, ora por uma intervenção veemente, às vezes de caráter paternal ou senhorial, que aplacava os excessos internos e possíveis interferências externas. Ainda assim, nem sempre esta recuperação de um estado potencialmente transformador resultava em sucesso; raras vezes era aceita de forma consensual pelos demais personagens, sendo comum o desenvolvimento de uma apreciação crítica sobre a atuação do cangaceiro. Com isso, via de regra, este ideário salvacionista se desagregava.

Foi pensando nesta condição ambivalente de Zeferinoque achei oportuno colocar para exame as histórias em que se sucedem os enfrentamentos entre o pessoal da caatinga e o rival Lati, pelas terras do Alto da Caatinga. O interesse por estas histórias foi despertado pelo fato de estas desenvolverem uma discussão em torno da questão agrária, tema que há muito tempo tem se constituído no cerne do debate político brasileiro, especialmente em 1964, quando as pressões em torno dessa problemática mostraram-se determinantes para o desenrolar do golpe.

Guerras Campesinas na Caatinga

Um aspecto importante das lutas campesinas pré-64 foi o papel desempenhado pelo homem comum em seu interior. Embora naquele momento os movimentos rurais pudessem contar com o apoio e a organização do Governo Federal e de lideranças sindicais, nem sempre originadas no meio rural, foi o trabalhador rural, categoria apenas reconhecida como tal em 1963, que atuou como principal agente combativo no interior destes movimentos. Só a partir de então os problemas relacionados à herança rural, nos termos abordados por Sérgio Buarque de Hollanda (1995), ganharam evidência, assumindo a condição de um problema social a ser sanado a partir do estabelecimento de uma série de medidas de cunho político, como a reforma agrária.

O golpe de 1964 representou, entre outras coisas, a tentativa de frear a discussão e a movimentação democrática que tais movimentos suscitaram, com a desmobilização e repressão destes. Neste sentido, o êxito parece ter sido evidente. Entretanto, parece também não ter sido suficiente para fazer retroceder a repercussão que o debate sobre a reforma agrária alcançou entre a população brasileira. Segundo dados apresentados por Mário Grynszpan: "pesquisas de opinião conduzidas em março de 1964 indicavam que 72% do eleitorado das principais capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza e Curitiba apoiavam sua realização" (GRYNSZPAN, 2003, p. 321). Certamente, o respaldo desta discussão, associado à cautela do governo norte-americano quanto à incidência de novos focos revolucionários na América Latina, foi decisivo para que o primeiro governo militar pós-64 criasse uma legislação ordenadora da reforma agrária no País. No entanto, apesar de o conjunto de leis que acompanharam o Estatuto da Terra congregar ações que vinham sendo pleiteadas desde o governo João Goulart, o aspecto político no qual a luta pela reforma agrária havia sido imbuída esfarelou-se, sendo esta sobreposta por uma justificativa de ordem econômica que afastava e relegava a segundo plano, até então, a decisiva participação dos trabalhadores rurais.

A tática de resistência adotada pelos trabalhadores rurais, via Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e com o apoio da Igreja Católica, foi decisiva para que o movimento não se esvaecesse: a utilização do Estatuto da Terra e do Estatuto do Trabalhador Rural para reivindicar os seus direitos. Este movimento de resistência ganhou reforço a partir de 1968, quando um grupo de oposição assumiu a direção da CONTAG, tornando-se, assim, decisivo para a intermediação e organização das reivindicações num âmbito nacional. Lutava-se pela "implementação de medidas previstas pela legislação, mas que dela nunca haviam saído" (GRYNSZPAN, 2003, p. 327), o que - num contexto de ditadura - significou uma intensa e exaustiva peleja.

Tendo este contexto em vista, torna-se compreensível a relevância da introdução deste debate na crítica humorística henfiliana. A história a ser analisada foi produzida em 1973, editada com restrições no JB e publicada na íntegra na revista Fradim, em 1976, no mesmo momento em que se percebem os primeiros sinais de reorganização dos movimentos dos trabalhadores urbanos, especificamente o movimento operário, e dos movimentos sociais aos quais Henfil se mostrou profundamente solidário. Deste modo, ao incorporar esta questão, mesmo que de forma ainda idealizada, Henfil apresentava sua contribuição para a retomada e a proliferação da discussão sobre a reforma agrária entre seus leitores, bem como demonstrava seu apoio à reorganização dos movimentos de luta pela abertura via união entre movimentos sociais de trabalhadores urbanos e rurais.

A história se divide em 25 quadros - 14 em plano geral e 11 num plano total - expostos em seis páginas. A adoção deste tipo de enquadramento permite que sutis detalhes do cenário contribuam para o reforço do caráter de conflito que subjaz à estória. Destaco a aparição do sol em quadros alternados e a presença das emblemáticas caveiras de gado, expressão da morte, assistindo à batalha bem próximas dos nossos combatentes. Na parte introdutória, um aspecto de imediato é colocado em evidência de forma hábil pelo autor: as formas de atuação e o conteúdo discursivo propagado por grupos distintos quando unidos no contexto de luta contra o autoritarismo, dando singular ênfase às discordâncias existentes entre eles. Coube ao bode Orelana comunicar aos demais a invasão iminente.

O anúncio foi feito sob a expressão de temor e aflição do intelectual que, em seguida, se postou trêmulo e com olhar amedrontado atrás de Zeferino. À Graúnacoube a ação de expressar, em forma de palavra de ordem, a indignação geral para em seguida, com um cínico sorriso nos lábios, partir também de forma acovardada. Os primeiros papéis parecem ser indicados a partir do espaço geográfico que cada personagem passa a ocupar na história: à frente do grupo, pronto para sofrer os reveses do ataque inimigo, o atônito Zeferino, cuja postura silenciosa e imóvel foi enfatizada pelo autor pelo desenho de sua boca em forma de asterisco, resguardando-o da responsabilidade de ter iniciado o desafio; em segundo lugar, também estático e calado, próximo às bases e protegido por estas, o intelectual Orelana; finalmente, num plano distanciado, a Graúna, cuja contribuição se limitou à indução ao combate por meio da elaboração de slogans de protesto.

Na segunda parte, ainda com Zeferino e Orelana mantendo-se na mesma posição, a Graúna toma para si a condição de porta-voz do grupo, inserindo um caráter dialógico ao confronto. A estratégia argumentativa empregada se apresenta revestida de duas naturezas: a princípio, com um cunho ético-moral que busca sensibilizar o inimigo.

A utilização de argumentos fundados em pressupostos ético-morais, embora de forma simples e caricata (é bonito istocê num tem coração não, capeta), foi comumente feita nas histórias de Henfil. Acredito que isto remete à proximidade estabelecida com a Igreja Católica em sua vida pessoal - imposta pela mãe na infância, sugerida pelos irmãos na adolescência e por laços de amizade na vida adulta - e à participação de militantes católicos progressistas na luta por direitos humanos e sociais durante a ditadura. Salienta-se a direção equivocada tomada pelo discurso apaziguador e a vulnerabilidade que tal equívoco ocasionava ao locutor. A outra vertente discursiva teve um caráter político. Esta buscou conhecer os interesses e motivações do rival sobre as áridas terras da caatinga, indagar sobre a possibilidade do estabelecimento de um consenso que resultasse na partilha do poder sobre elas e propor a instituição do diálogo para que o adversário apresentasse suas justificativas.

O limiar da história apresenta uma interpretação comum aos defensores da luta armadav v A esse respeito, ver Gorender, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. SP, Ática, 1987. : a constatação do imobilismo com que a esquerda assistiu à tomada do poder pela direita golpista e de que a reação armada veio de forma tardia, em condições já adversas. De modo parodístico, Henfil expôs as críticas que fundamentaram os conteúdos discursivos de alguns grupos que compunham a extensa frente de luta contra o autoritarismo e por mudanças nas estruturas econômicas e sociais do País.

A defesa da ação armada revolucionária se desenvolveu entre algumas tendências de esquerda no início da década de 60. Segundo Ridenti, propagando esta linha de atuação destacaram-se a Ação Popular (AP) defensora da "criação de uma alternativa política que não fosse capitalista nem socialista, inspirada num humanismo cristão mesclado com influências da Revolução Cubana (...)" (RIDENTI, 1993, p. 26), e a Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM-POLOP) cuja premissa central era "a defesa da luta armada revolucionária pelo socialismo" (Idem). Após o golpe, durante o processo de autocrítica que se desenvolveu no interior das esquerdas, a defesa da luta armada ganhou ênfase e dimensão diferenciada. Enquanto o PCB permanecia preconizando a via pacífica, as demais organizaçõesvi discutiam sobre a maneira pela qual ela deveria ocorrer - se por meio da guerrilha rural ou urbana, quais os polos teóricos a serem adotados, dividindo-se entre o guevarismo, o maoismo e/ou a fusão dos dois e, finalmente, o peso das massas urbanas ou rurais no desenrolar da guerrilha. Apesar desta série de discordâncias entre as esquerdas armadas, estas tinham em comum, em primeiro lugar,"a proposição de iniciar a revolução pela guerra de guerrilhas no campo" (RIDENTI, 1993, p. 63); e, em segundo lugar, um projeto de derrubar a ditadura e avançar "rumo ao fim da exploração de classe, embora houvesse divergências entre as organizações sobre como se chegaria ao socialismo" (Idem).

Com a eliminação da Guerrilha do Araguaia, em 1974, o projeto guerrilheiro faleceu definitivamente. Entretanto, seu caráter libertário permaneceu vivo ainda por um bom tempo no imaginário dos que, como Henfil, perceberam nesta estratégia de luta uma forma de remissão dos erros revolucionários do passado. Este referencial ideológico é esquadrinhado nesta história quando Henfil coloca nas mãos de Zeferino, sob o enigmático sol quadrado e de posse das armas, a ação de convocar e organizar seus pares à luta tão logo se declaram suspensas as possibilidades de manutenção do consenso e do diálogo. O combate se inicia com a propositura da edificação de uma cidadela de resistência. A ideia de construção de uma cidadela traz ao fundo o projeto, partilhado pelas esquerdas armadas, de transformação de toda a estrutura social, cultural, política e econômica vigente.

Na frente da trincheira, um só inimigo: o invisível Lati, representante dos interesses dos latifundiários, da direita conservadora, autoritária e militarizada e das multinacionais. Por trás da trincheira, os deserdados da caatinga - representantes dos destituídos da terra e dos que se sentiam cassados em seus direitos e liberdades basilares. Ali, nesse lado da batalha, um novo conflito se instaura: como nomear essa trincheira ideológica que se formou Também de forma subjacente a discussão parece girar em torno de decidir qual nome/grupo/partido/ideologia conseguirá congregar e representar todos os interesses.

A natureza do debate que se desenvolve indica três tendências ideológico-discursivas em parceria e em confronto íntimo: a primeira, defendida pela Graúna, seguia a lógica do discurso militar, buscava legitimidade na mística do crescimento e propunha a denominação Caatingão para a cidadela de resistência, sem se aperceber da proximidade estabelecida com a retórica inimiga, ao mesmo tempo que rebatia o regimevii.

Figura 14


Entendo que a alusão a esta proximidade de interesses entre grupos que se localizavam em posições opostas durante a ditadura consistiu na exposição da crítica, que não era específica do autor, à linha política defendida pelo PCB e que se mostrou fatal para o desenrolar da almejada revolução brasileira. Nesta, em linhas gerais, defendia-se uma revolução em duas etapas - a primeira, "a da revolução nacional e democrática, de conteúdo anti-imperialista e antifeudal, realizada a partir da composição de forças sociais que reuniria: o proletariado, os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia nacional" (GORENDER, 1987, p. 30). Gorender afirma ainda ter sido ilusória a crença na viabilidade de uma revolução no Brasil pela via pacífica e com o apoio de uma burguesia que "já era classe dominante e tinha vinculação estreita com o imperialismo" (1987, p. 31). Assim, a proposição da Graúna a coloca como representante da burguesia nacional que parece encarar com simpatia o ideário de crescimento divulgado, com especial rigor, pela ditadura militar.

A segunda foi apresentada por Zeferino enquanto esboçava um gestual de inocente contentamento (olhar distante, sorriso leve, indicador apontando para os lábios num ar de dúvida). Trata-se de uma evocação do legado das lutas do passado para servir como base norteadora do novo projeto insurrecional.

Esta se alinha à perspectiva ideológica comum entre as organizações de esquerda pós-64 que valorizava o papel da guerrilha rural, rejeitava a atribuição revolucionária delegada à burguesia e ressaltava o mérito da ação que "significa violência revolucionária, luta armada, guerrilha" (GORENDER, 1987, p. 96), bem como conferia ao projeto revolucionário um caráter genuinamente popular. Por outro lado, se aproxima também da proposta consolidada entre intelectuais e artistas no início dos anos 60, exortando o desenvolvimento de uma cultura nacional e popular. A exaltação e a busca de aproximação com os oprimidos, trabalhadores e tipos sociais como violeiro, boiadeiro, camponês e favelado sofreram severa crítica de formalistas e vanguardistas no final dos anos 60 e início dos anos 70 por incitar menos uma mobilização revolucionária que um estado de comoção emocional, assim como por seu caráter conservador, contrário a inovações, na forma e no conteúdo.

Finalmente, tem-se a proposta pelo intelectual Orelana, agora apresentando uma expressão de convencimento em substituição às feições de espanto que o caracterizaram até então. A proposta é incorporar a propaganda para que se obtenha o êxito da cidadela revolucionária.

Figura 16


Tal proposição se avizinha da ideia de "propaganda armada" defendida por alguns grupos armados, como a ALA, a VAR-Palmares, a VPR e a ALN, após a radicalização do AI-5 e "com a imersão geral das esquerdas na 'luta armada' e o distanciamento da implantação da almejada guerrilha rural (...)" (RIDENTI, 1993, p. 49). De forma concisa, a "propaganda armada" seria o desenvolvimento de ações armadas urbanas que teriam como objetivo levar ao conhecimento do proletariado e de outras camadas urbanas as ações revolucionárias e conquistar adesão para o movimento. Identifica-se significativa divergência entre os grupos quanto às estratégias dessas ações. Uns defendiam as mais militaristas, como "ataques a bancos, emboscadas, deserções e desvios de armas, recuperação de prisioneiros, execuções, sequestros, sabotagens, terrorismo e guerra de nervos (...)" (Idem, p. 50), enquanto outros, temerosos de se tornar "propaganda das armas por si sós", previam as menos agressivas, mas de impacto, como "colocar no ar manifestos revolucionários através da tomada de rádios, fazer panfletagem nas portas de fábrica por intermédio de grupos armados, (...) aplicar corretivos num capataz especialmente odiado numa fábrica (...)" (Idem, p. 49).

Um aspecto interessante nestes planos de ação é a crença tanto no poder das armas nos meios urbanos como na "lógica do espetáculo", utilizada com especial êxito pelos militares no poder. Como relatado por Herbert Daniel: "os grupos armados, acalentados com os ecos sensacionalistas das suas atividades, consideravam-se maiores: acreditavam no fantasma duma imagem publicitária, num gigantismo obscuro e supersticioso, que servia mais e melhor aos interesses do inimigo" (DANIEL, 1982, p. 110). O desenrolar dos acontecimentos se tornou responsável pelo despedaçar de tais crenças. Por outro lado, a apresentação desta proposta se ajusta à cortante crítica realizada contra as premissas da vanguarda artística representada, sobretudo, pelo tropicalismo que proclamava a inexorabilidade do avanço industrial e tecnológico. O impulso ilimitado da indústria cultural e das nefastas regras do mercado desfez a ilusão sobre o caráter libertário que esta poderia propagar. Henfil questionou a incorporação de um valor de mercado deste tipo de produção artística em detrimento do valor de protesto. Ao abordar pelo viés humorístico a "violência retardada" e este conflito de interesses e parâmetros ideológicos, Henfil iluminou os elementos que, não só na sua perspectiva, fragmentaram e, de certa forma, enfraqueceram a base de luta contra o regime.

Esta premissa é colocada em relevo nos quadros finais da história, em que a sólida muralha que defendia a cidadela foi substituída por uma frágil cerca de madeira.

Ao final desta parte, com as derradeiras palavras de Zeferino, ele promove um distanciamento crítico sobre este complexo ideológico e discursivo ao lançar dúvidas sobre o valor estratégico das constantes mudanças no interior da cidadela de resistência e ao indagar a respeito da participação popular no processo social. Por meio da paródia e com o auxílio da metáfora, ele consente e rejeita, num exercício dialético, os parâmetros ideológicos vigentes no interior das esquerdas, promovendo o questionamento destes.

Dessa forma, o autor tornou pública sua inquietação diante do conjunto de ideias, práticas e discursos, alguns parecendo já esgotados, que ampararam a frente de luta contra a ditadura militar, propondo a necessidade de reavaliá-los ou, quiçá, substituí-los por algo original. Apesar do questionamento e da denúncia que são apresentados, não se identifica a sugestão de esquemas alternativos. O propósito central parece ser o de estimular no leitor uma identidade de resistência (CASTELLS, 1999, p. 24) e impulsionar a capacidade reflexiva, desmitificando-se a esquerda da qual o próprio autor faz parte. Nesse sentido, "parodiar é dessacralizar sem descrer, pois só se discute e se leva em consideração aquilo em que se acredita" (ARAGÃO, 1980, p. 20).

Caráter diverso se desenvolve na continuidade da história, em que se dá um novo confronto entre Lati e os personagens da caatinga e é possível identificar ao final a propositura de um desfecho idealisticamente revolucionário. Esta história me parece pertinente, inicialmente por explorar o caráter heroico e guerreiro do Zeferino, dando ensejo para que algumas premissas que desenvolvi sobre as características centrais do personagem e os elementos motivadores de sua criação sejam verificados. Por outro lado, esta coloca em relevo também o debate que se desenvolvia no interior das esquerdas, políticas e culturais, chamando atenção para as dissonâncias internas que, na perspectiva de Henfil, contribuíram para debilitar a luta contra a ditadura.

Num esforço de síntese, centrarei a análise sobre alguns quadros em que os aspectos referentes aos conflitos intra e entre classes, ao papel revolucionário dos intelectuais e das massas, bem como a crítica ao latifúndio ao regime autoritário e ao imperialismo econômico, são colocados em relevo. Inicialmente, os personagens interagem entre si e questionam coletivamente o inimigo; num segundo momento, o confronto com o inimigo se dá de forma individual começando com a Graúna e, em seguida, com Orelana. Durante estes confrontos individuais o cenário vai contribuir para o reforço da mensagem: as aparições do sol, ocupando o fundo ou grande parte das laterais dos quadros, corroboram as reações de Lati, assim como o tamanho das letras, sobretudo quando representam o barulho provocado pelo armamento inimigo, colaboram para acentuar a impressão de intensa agressividade vinda do lado contrário; finalmente, destaca-se o branco somado à presença dos cactos e dunas no fundo, reforçando-se a condição de solidão e pequenez que o personagem vivencia durante a contenda.

Na terceira parte da história, constatado o fracasso da ação dos dois personagens, tem-se a interferência decisiva de Zeferino, que vence e expulsa o adversário. A partir daí, novamente o autor se apropria dos discursos das esquerdas e, por meio da prática da intertextualidade, explora o conflito intragrupo e suas diversidades ideológicas e discursivas, dando, mais uma vez, sinais de dúvida sobre eles. Para instaurar sua crítica, o autor constrói o discurso humorístico se amparando na ironia, no distanciamento, na metáfora e na paródia, com instauração de um humor cuja força está na seriedade do conteúdo que ele invoca. A partir dessa junção de procedimentos artísticos e literários ele constrói um discurso que se mostra autônomo em relação aos de esquerda explorados em suas histórias.

A história principia estimulando no leitor a curiosidade sobre o conteúdo de uma estranha tabuleta que aparece no cenário da caatinga. O primeiro a se deparar com ela, e que revela surpresa, é Zeferino, acompanhado da Graúna, o qual expressa indignação após ler o que está escrito. A leitura e a manifestação de repulsa ocorrem concomitantemente à primeira aparição do sol no canto direito do segundo quadro. Após acompanhar a indignação do cangaceiro, sozinha e com olhar lúgubre, a Graúna se posta na frente da tabuleta e lamenta a condição de analfabeta que a impede de tomar conhecimento sobre o conteúdo escrito. Mesmo ignorando o conteúdo, a ave não se furta a imitar o gesto enfurecido do companheiro assim que percebe a proximidade do bode Orelana.

Figura 18


Entre o sexto e o 18º quadro, a Graúna e o bode Orelana discutem o que está contido na tabuleta. O mistério é estimulado pelo fato de que também Orelana se mostra incapaz de decifrar o significado do que está escrito, apesar de ser o intelectual, que exerce a função de ler para os companheiros. As hipóteses apresentadas pelo bode são repelidas pela Graúna com tiradas irônicas que fazem analogia com temas sociais e políticos, a partir de um jogo de metáforas. Aparições precisas do sol em quadros onde se iniciam ou se concluem as considerações irônicas expostas via Graúna, sob o olhar reprovador e temeroso do intelectual Orelana, são utilizadas para que o leitor divise a gravidade dos sentidos que perpassam os enunciados. Chamo a atenção para o olhar da Graúnaem direção ao imenso sol que desponta no fundo do primeiro quadro, sugerindo uma interação agressiva que se confirma com o desenrolar de sua fala.

Eis os quadros finais dessa série de especulações:

O desenlace do enigma ocorre após a chegada colérica de Zeferino que, para espanto dos seus pares, xinga e ao mesmo tempo fuzila a placa. Mais uma vez, após um período de imobilismo e de inércia permeado por uma hesitante prática dialógica, compete ao cangaceiro a ação decisória exercida pelas armas. Mais uma vez, na vastidão árida da caatinga, o intelectual em silêncio e sob o signo da covardia é colocado na retaguarda da massa. De forma objetiva, dispensando floreios ou esforços retóricos, Zeferino expõe o que está escrito na tabuleta, explica seu significado para o grupo, dirimindo qualquer sentido positivo sobre este para, em seguida, partir, sem se aperceber, em direção ao sol.

Após a ação incisiva do cangaceiro, a primeira intervenção direta ao inimigo, tal qual a história anterior, é feita pela Graúna. Sua atuação individual se desenrola em 15 quadros, oito no plano geral e sete no total, ocupando quatro páginas, especificamente. Quando se dirige à tabuleta interagindo como se esta fosse a personificação do rival Lati, este processo se dá sob o acompanhamento do sol, que aparece vigoroso por trás da tabuleta e do caverino, que por sua vez se posta à frente da tabuleta em posição de plateia. Buscando transpor a barreira posta pela tabuleta, a ave empenha-se em forjar relações de proximidade com o inimigo. Sob o acompanhamento implacável do sol, ela intenta explorar exercícios personalistas para suprimir a condição de rivalidade existente, substituindo-a por uma artificial intimidade com o inimigo. A pseudofamiliaridade da Graúna com o inimigo se apresenta inicialmente revestida de um caráter familiar, se estende ao âmbito profissional e, finalmente, assume uma conotação de camaradagem. A utilização dos pronomes tu/contigo e da expressão Oi, coisinha! reforça a cumplicidade enunciativa que se almeja alcançar.

O desfecho do entreato argumentativo da Graúna ocorre quando esta conduz seus verdadeiros parceiros de danos ao espaço tomado por Lati, ofertando-lhes a pretensa parceria com o inimigo e o usufruto das benesses advindas dessa parceria.

Nessa sequência solo, a Graúna repete a paradoxal atuação da história anterior, apoderando-se de práticas e referências discursivas representativas das elites adversas ao grupo do Alto da Caatinga. Na análise desta participação individual, o que busco colocar em evidência, bem mais que o conteúdo dos seus enunciados,é como o emprego dos estratagemas discursivos citados e a maneira como a ave se dirige ao inimigo auxiliam na construção da imagem que se busca projetar do seu adversário e, por conseguinte, dos grupos aos quais é ficcionalmente representativo. Por intermédio destes artifícios ela tentou conquistar a simpatia do rival, o que parece alcançar, dada a suspensão temporária da violência armada. A suposta simpatia do destinatário torna possível, por sua vez, reconhecê-lo como integrante da posição ideológica da qual a Graúna se faz porta-voz. Assim, o cessar-fogo pode indicar um sinal positivo para o tipo de prática personalista sugerida pelo seu discurso, embora não signifique o efetivo desfecho de uma aliança.

Ao incorporar o discurso personalista, o autor expôs formalmente o discurso alheio, reforçando, por meio deste dialogismo, a recusa a este. Desta forma, a Graúna atua apenas na condição de locutor, ou seja, aquele "que exprime em sua produção discursiva o ponto de vista do enunciador". E, a partir da análise do conteúdo do seu discurso, podem-se identificar os enunciadores (FORGET, 1994, p. 45). Neste caso, o distanciamento não produz envolvimento, mas recusa. É por intermédio do distanciamento, da explicitação do discurso alheio, que o autor apresenta sua posição contrária.

O mesmo não ocorre quando observamos a atuação solo do bode Orelana. Esta, como a da Graúna, dá visibilidade a um conjunto de práticas que faziam parte do universo discursivo dos intelectuais que participavam das organizações de esquerda. Aqui, a construção discursiva se desenvolveu no sentido de compor uma versão crítica sobre a intelectualidade da qual o autor faz parte e o seu papel no interior da luta contra o autoritarismo. Ao apresentá-la de forma carnavalizada e distanciada, Henfil tomou posição neste debate e produziu uma crítica que, por sua vez, sugeria uma revisão de práticas e discursos, mas não necessariamente a rejeição.

A primeira página da sequência, com três quadros em plano geral, fornece os indícios de qual a direção em que se dará o confronto entre o intelectual e Lati. O quadro inicial chama a atenção para a condição do representante da intelectualidade na caatinga quando atingido pelo primeiro disparo adversário: distraído, parado em frente e de costas à tabuleta. Alheio ao risco iminente e evidente, mesmo estando diante do aviso inimigo, o personagem parece absorvido no processo de ingestão/leitura. A apresentação do intelectual recorrendo ao exercício retórico e a um superficial academicismo para obter o apaziguamento do seu adversário permite inferir que se trata de uma crítica ao excessivo teoricismo presente no interior das organizações de esquerda que as colocou numa condição de imobilismo no momento em que a direita tomava o poder.

Figura 23


A postura antiteoricista foi difundida, sobretudo, por organizações de extrema esquerda que, como já foi apresentado em páginas acima, defendiam a necessidade de romper com os limites pequenos burgueses, abandonar a excessiva teorização e partir para a ação que se expressaria via luta armada. A distante reação do bode, que pede para abaixar a televisão, após ser surpreendido pelo tiro do rival, reforça a imagem anterior de permanência num estado de desatenção.

O alheamento de Orelana perdura até o oitavo quadro da sequência, quando, depois de ser atingido em suas partes baixas, ele renuncia à caracterização de ordeiro e pacífico e decide responder de forma provocativa ao agressor. Mesmo quando aborda a reação do intelectual, o que fica patente é a letargia que subjaz à ação. A réplica do inimigo vem em forma de rajada de balas, que leva o assustado intelectual a mudar rapidamente o tom do seu manifesto, negar a veracidade do discurso anterior e a adotar um teor subserviente, reforçado pelo uso formal do pronome lhe e pelo adjetivo pau de trovãoviii, para se dirigir ao oponente.

Tal qual a Graúna, a atuação do bode oscila entre a covardia e a subserviência, sem que esta última signifique, entretanto, adesão. Em ambos os casos é expressão de hesitação, inação e da falta de habilidade para o enfrentamento do inimigo. Esta condição se evidencia nos quadros finais da história, entre o 78º e o 88º quadros, quando se dá o encontro de Graúna e Orelana, que permanece parado e envolto na ingestão/leitura de livros diante da tabuleta. Por 10 quadros, os dois personagens vão permanecer agachados, sob os tiros disparados por Lati. As proposições lançadas pela Graúna, diante do silencioso e imóvel Orelana, têm como alvo relações comerciais com empresas multinacionais. Entretanto, apesar do forte conteúdo político, estas parecem desprovidas de sentido diante do inimigo armado, indicando a ausência de um plano de reação entre os intelectuais e as esquerdas no interior da guerra ímpia.

Segundo Jô Soares (Apud CIRNE, 1970, p. 09), comentando a função ideológica dos super-heróis em quadrinhos, estes personagens mostram-se pertinentes quando a classe média se encontra decepcionada e desorientada e busca soluções para seus problemas. É com este caráter idealisticamente heroico que se dá a aparição armada de Zeferino, neste momento sob a patente de "capitão".

Com esse epílogo Henfil conferiu às massas a responsabilidade pela almejada e idealizada vitória sobre o autoritarismo e a injustiça social. Ainda em termos idealísticos o triunfo sobre o inimigo concede um sentido cavalheiresco ao personagem Zeferino, de modo que o sertanejo torna-se um forte (GALVÃO, 1986, p. 18). Trata-se, enfim, da recuperação ficcional do espaço existencial e, talvez mais importante, do caráter missionário, de salvador da pátria das massas, que fora subtraído e apropriado pelo discurso autoritário para justificar a natureza e a validade de suas ações.

Notas

ii Jingle ufanista cantado pela dupla Dom e Ravel.

iii Entrevista, Revista Fradim, n. 21, 1977, pág. 29.

iv Com poucas palavras Henfil afirmou: ele foi um dos caras que me ajudaram a ter consciência de muita coisa. Em entrevista à Revista Playboy, maio de 1979.

vi Citados por Ridenti, op. cit. págs. 44-53: Partido Comunista do Brasil (PC do B), Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil (ALA), Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), Comandos de Libertação Nacional (COLINA), Ação Libertadora nacional (ALN),Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Partido Operário Comunista (POC), Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), Vanguarda Armada Revolucionária (VAR), Resistência Democrática (REDE), além da AP e do POLOP.

vii O quadro apresenta problemas gráficos impossíveis de solucionar por se tratar de falhas originais da revista.

viii Trata-se de uma expressão retirada da mitologia indígena, que designa o armamento perigoso e desconhecido com o qual o homem branco se apresentou pela primeira vez diante do nativo.

Recebido em maio/2012.

Aprovado em julho/2012.

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    Zeferino Ribamar das Mercês: arevolutionaryversionof the actor in theBrazilian military dictatorship
  • i
    Trecho da música
    O Bêbado e o Equilibrista, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc.
  • v
    A esse respeito, ver Gorender, Jacob. Combate nas Trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. SP, Ática, 1987.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      Maio 2012
    • Aceito
      Jul 2012
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