Acessibilidade / Reportar erro

Os indígenas do Brasil entre a razão de Estado e o Direito Natural: as contribuições de André Thévet e Jean de Léry

Resumos

Análise da percepção, em André Thévet e Jean de Léry, das questões do estado de natureza, bondade natural e direito natural nos indígenas brasileiros com os quais os cronistas da França Antártica tiveram contato. Indaga-se se já existe nos autores clara consciência dessas questões, ou se foram deduzidas ou mesmo treslidas por autores posteriores, que já partiam de concepção apriorística sobre o assunto. Faz-se referência à trajetória do direito natural de Maquiavel a Locke, com a emergência de um novo jusracionalismo e são estudadas as informações dos dois autores. Conclui-se com a avaliação da recepção dos cronistas, do significado por eles atribuído às questões e ao papel do direito natural em seu discurso. Os textos aparecem então como elemento empírico num longo processo de estabelecimento do novo direito natural, o do "direito racional" na classificação de Bobbio, processo que por sua vez se conflita com outra doutrina emergente no século XVI - a da razão de Estado.

indígenas; direito natural; razão de Estado


Analysis of perception, in André Thévet and Jean de Léry, of the issues of the State of Nature, natural law and natural goodness in Brazilian indigenous who the chroniclers of Antarctic France had contact. Here, we inquire if the authors have already the clear awareness of those issues, or if it has been deducted by aftermost authors, who have an a priori conception on the subject. Reference is made to the trajectory of the natural law from Maquiavel to Locke with the emergence of a new jusracionalismo and the information of the two authors is contemplated. It concludes with an evaluation of the reception of the chroniclers, the meaning assigned by them to the issues and the role of natural law in their speech. The texts are shown as empirical element in a long process of establishment of the new natural law, the "rational law" in Bobbio's classification, a process which conflicts with other emerging doctrine in the sixteenth century - the Reason of State.

indigenous; natural law; reason of state


DOSSIÊ- IMAGENS DOS NOVOS MUNDOS NA CULTURA OCIDENTAL

Os indígenas do Brasil entre a razão de Estado e o Direito Natural: as contribuições de André Thévet e Jean de Léry

The Indians from Brazil between the Reason of State and the Natural Law: the contributions of André Thévet and Jean de Léry

Arno Wehling

Professor Titular da UFRJ e Professor Emérito da UNIRIO. Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)

RESUMO

Análise da percepção, em André Thévet e Jean de Léry, das questões do estado de natureza, bondade natural e direito natural nos indígenas brasileiros com os quais os cronistas da França Antártica tiveram contato. Indaga-se se já existe nos autores clara consciência dessas questões, ou se foram deduzidas ou mesmo treslidas por autores posteriores, que já partiam de concepção apriorística sobre o assunto. Faz-se referência à trajetória do direito natural de Maquiavel a Locke, com a emergência de um novo jusracionalismo e são estudadas as informações dos dois autores. Conclui-se com a avaliação da recepção dos cronistas, do significado por eles atribuído às questões e ao papel do direito natural em seu discurso. Os textos aparecem então como elemento empírico num longo processo de estabelecimento do novo direito natural, o do "direito racional" na classificação de Bobbio, processo que por sua vez se conflita com outra doutrina emergente no século XVI - a da razão de Estado.

Palavras-chave: indígenas; direito natural; razão de Estado.

ABSTRACT

Analysis of perception, in André Thévet and Jean de Léry, of the issues of the State of Nature, natural law and natural goodness in Brazilian indigenous who the chroniclers of Antarctic France had contact. Here, we inquire if the authors have already the clear awareness of those issues, or if it has been deducted by aftermost authors, who have an a priori conception on the subject. Reference is made to the trajectory of the natural law from Maquiavel to Locke with the emergence of a new jusracionalismo and the information of the two authors is contemplated. It concludes with an evaluation of the reception of the chroniclers, the meaning assigned by them to the issues and the role of natural law in their speech. The texts are shown as empirical element in a long process of establishment of the new natural law, the "rational law" in Bobbio's classification, a process which conflicts with other emerging doctrine in the sixteenth century - the Reason of State.

Keywords: indigenous, natural law; reason of state.

A questão do estado de natureza, dabondade natural e do direito natural em sua relação com os indígenas americanos e, particularmente, os habitantes do Brasil foi objeto de estudos importantes e clássicos, como os de Gilbert Clinard, L'éxotisme américain dans la littérature française au XVI.ème siècle e de Affonso Arinos de Mello Franco, O Índio brasileiro e a Revolução Francesa (CLINARD, 1933; MELLO FRANCO, 1971). Nestes e em outros trabalhos fica em lugar de destaque sobre o tema o capítulo Dos Canibais, dos Ensaios de Montaigne que, por sua vez, possui entre suas fontes os livros de André Thévet, Les singularités de la France Antartique e Cosmographie Universelle e o de Jean de Léry, Histoire d'un voyage fait en la terre du Brèsil (THÉVET, 1953; LÉRY, 1961)

A tese consagrada é a de que, a partir de textos como os de Thévet, Léry, Schmidel, Hans Staden, Lopez de Gomara, Juan de Acosta e outros viajantes quinhentistas, revelou-se um novo universo social, cultural e político que remetia às origens da humanidade. Era como se as discussões teóricas sobre a existência de um "estado de natureza" contraposto à organização social conhecida desde a Antiguidade clássica, da bondade ou maldade inatas ao homem ou da existência ou não de um direito natural, recebessem um imenso aporte empírico, um laboratório povoado por milhões de seres humanos capazes de evidenciar a correção ou erro das diferentes opiniões.

De fato, ao longo de três séculos, se incluirmos o Romantismo, autores dos mais significativos da literatura, do ensaísmo, do direito e da filosofia, debruçaram-se sobre essas questões, quer lendo Montaigne, quer buscando as próprias fontes quinhentistas às quais se acrescentaram os viajantes e cronistas dos séculos subsequentes.

Não vamos repetir o que fizeram esses autores nem os historiadores do tema, como Affonso Arinos. A pergunta que nos interessa é outra.

O que vamos indagar da leitura de André Thévet e Jean de Léry, os cronistas da França Antártica, é se efetivamente existiu neles a consciência das questões do estado de natureza e do direito natural, ou se elas foram deduzidas ou mesmo treslidas por autores posteriores que já partiam de uma concepção apriorística sobre o assunto.

Como essa hermenêutica de ambos os textos ainda não foi feita, a pergunta é cabível, sobretudo se a colocarmos numa perspectiva quinhentista. Tal perspectiva pode contemplar uma multidão de facetas, mas o que se propõe aqui é cruzar duas coordenadas, a da emergência da razão de Estado e a da crise do direito natural de inspiração ciceroniana e/ou escolástica. Mais: com base neste cruzamento, formula-se a hipótese de que textos como os de Thévet e Léry fundamentaram empiricamente o que Norberto Bobbio caracterizou como sendo a mudança axial da concepção medieval para a moderna - e mesmo contemporânea - do direito natural.

A trajetória do direito natural, de Maquiavel a Locke

Preliminarmente, é necessário distinguir um tema de característica nitidamente filosófico-ontológica, como o do estado de natureza, de um eminentemente jurídico, como o do direito natural.

O conceito de estado de natureza atribui ao homem características intrínsecas a seu próprio ser; estamos na esfera da ontologoia. Já o direito natural, visto como consequente àquele, seria a sua tradução jurídica, definindo-se um território próprio de jurisdicidade. A relevância da questão está no fato de que, colocada deste modo, todo o direito positivo dos povos estaria sujeito a regras jusnaturalistas, separando-se as normas justas, afinadas com o direito natural, das normas injustas, que com ele se chocariam (PIDAL, 1947). Para aclarar a encarnação histórica do conceito, é importante vê-lo no século XVI.

O direito natural escolástico sofria um claro recuo nesse século. As teses caras ao jusnaturalismo medieval sobre a natureza do homem, as leis naturais divinas e humanas e os limites do poder encontravam-se em franca defensiva numa época tão violenta e apaixonada como o século XVI. Não por acaso, o historiador holandês Huizinga, referindo-se ao "outono da Idade Média", fala de um "teor violento da vida" (HUIZINGA, s/d, p.9ss) para caracterizar o quadro geral da época, que certamente estendeu-se e até ampliou-se no quinhentismo.

Do ponto de vista intelectual, esse questionamento do direito natural escolástico acompanhou o clima geral de conflitos, violências e guerra dos últimos séculos medievais.

O nominalismo, a partir de Guilherme de Occam, esforçou-se por distinguir teologia e ciência, sapientia e scientia, contribuindo para separar os dois planos em grau até então inexistente numa cultura fundamentada na concepção da absoluta predominância do sagrado. O fortalecimento do singular, em abordagem puramente filosófica em detrimento dos universais, traduziu-se cada vez mais nas gerações seguintes aos nominalistas, num individualismo que penetrou incisivamente as relações políticas, econômicas e jurídicas (WEHLING, WHELING, 2005, p.30ss).

O fortalecimento da economia inter-regional a partir do século XIII, a afirmação da vida urbana e das associações corporativas e o delineamento do papel centralizador das monarquias foram enfraquecendo instituições e também concepções a elas vinculadas, como o papado, a ordem senhorial, o império cristão e o direito natural escolástico. Mesmo o indiscutível prestígio de Cícero como modelo filosófico, jurídico e historiográfico, que se estenderia por toda a era moderna, nesse aspecto não resistiu ao questionamento do direito natural. Sem ser de todo rejeitada, a concepção ciceroniana do direito natural sofreu ranhuras profundas, desde as premissas estoicas até sua pedra angular, o universalismo do conceito. Podem ser lembrados vários exemplos desse novo espírito filosófico, científico, político e jurídico na obra de autores do século XV como Marsílio de Pádua ou Nicolau de Cusa. Aquele, aliás, constituiu-se elo para a via modernorum - expressão surgida no mesmo século para definir um esforço pela renovação da Igreja - à medida que defendeu o fortalecimento das instituições centrais da monarquia em detrimento dos poderes locais e, ainda mais significativamente, o poder dos concílios em detrimento do poder papal.

O novo ente político-social, que vai sendo assim delineado e que no final da Idade Média ainda era denominado "monarquia" ou "reino", passará a ser conhecido, em diferentes idiomas, como "estado" (GUENÉE, 1971, p.60ss). Ele foi logo associado na prática do poder e nas doutrinas políticas e jurídicas como o inimigo por excelência das formas "antigas" - no sentido de baixo-medievais - de sociedade e cultura. Entre elas, o direito natural escolástico: transitava-se, assim, para um direito natural diferente, "novo".

Com que fundamento?

O século XVI das guerras religiosas e dos conflitos interestatais também é o século de Maquiavel e da razão de estado (MEINECKE, 1955, p.10ss). Rapidamente difundiu-se a concepção da autonomia da esfera política em relação à moral e à religião, contra o que até então fora defendido pelos escolásticos - e a rapidez deveu-se provavelmente à realidade brutal das lutas políticas deste século. As teses do jusnaturalismo católico desmentiam-se na prática, e os detentores do poder na Igreja do início do século XVI - como os papas Alexandre VI, Julio II e Leão X - foram os primeiros a separar o ideal cristão da ação política quotidiana.

Maquiavel e o maquiavelismo (MOUNIN, 1966, p.147ss; POCCOCK, 1997, p.48-49; SKINNER, 1985, p.276ss), nas diferentes recepções que Friedrich Meinecke,Gaston Mounin e John Poccock analisaram sob óticas diversas, passaram a representar muito precocemente, no que aqui nos interessa, o antiescolaticismo e o antidireito natural, em nome de uma historicidade nua e crua, muito distante das teorias elaboradas nos gabinetes dos filósofos e teólogos medievais. Mesmo um de nossos cronistas, Jean de Léry, quando quis referir-se às violências praticadas pelos indígenas brasileiros contra seus inimigos, não encontrou melhor analogia do que considerá-los semelhantes aos discípulos de Maquiavel, hostis aos ensinamentos de Cristo (LÉRY, 1961, p.166).

Na Península Ibérica procurou-se reagir ao recuo do escolasticismo com a revivescência da segunda escolástica e a reafirmação do direito natural (MARAVALL, 1997, p.113ss). Entretanto, não foi essa a tendência dominante no Ocidente europeu, que continuou aprofundando a razão de estado e, na concepção do cardeal de Richelieu, o puro e simples "interesse do Estado"i i Ainda quando existisse algum tipo de conciliação com a filosofia política cristã: "O rei está acima da lei, mas normalmente ele deve se submeter a ela, porquanto a lei é a razão e a razão é superior a todos, interiormente inspirada pelo Espírito Santo e portanto de natureza divina. Mas os reis podem mudar as leis, por obrigação de seu dever de assegurar "o bem de seu Estado, o bem público e as necessidade de seus súditos"; Roland Mousnier, L'Homme Rouge ou la vie du Cardinal de Richelieu (1585-1642), Paris, Robert Laffont, 1994, p. VII-VIII e p. 763. (MEINECK, 1955, p.205). Nesse sentido, afirmava-se paulatinamente a Realpolitik, e o processo histórico passava a obedecer cada vez mais a uma razão imanente, desvinculada de limites morais metafísicos. Se as guerras religiosas do século XVI causaram horror a Léry, que contra a sua violência mais de uma vez protestou em seu livro, a Guerra dos Trinta Anos, no século XVII, levou a crueldade na guerra e fora dela a um paroxismo inaudito.

Foi esse motivo concreto, e não nenhuma discussão filosófica ou jurídica, que estimulou a busca por uma nova formulação para o direito natural, um direito que deveria existir, na expressão celebrada de Grotius, "mesmo se Deus não existisse". O abuso da própria força na guerra, contra direitos essencialmente humanos, motivou o jurisconsulto holandês a escrever seu clássico "O Direito da Guerra e da Paz", em que afirma:

Estou convencido... que existe um direito comum a todos os povos e que serve para a guerra e na guerra. (...) Via no universo cristão uma leviandade com relação à guerra que teria deixado envergonhadas as próprias nações bárbaras. Por coisas fúteis ou mesmo sem motivo se corria às armas, e quando já com elas às mãos, não se observava mais respeito algum para com o direito divino nem para com o direito humano, como se, pela força de um edito, o furor tivesse sido desencadeado sobre todos os crimes. (GROTIUS, 1994, p.51).

Na busca desse novo direito comum a todos os povos durante as guerras, que lógica e necessariamente remontava a um direito humano mais amplo, sem ter obrigatoriamente fundamento religioso ou metafísico, encaminhou-se o pensamento filosófico-jurídico posterior a Grotius. Hobbes definiria ainda neste século a lei natural como "preceito ou regra geral, estabelecida pela razão", e não por Deus (HOBBES, 1953, p.140ss; SKINNER, 2008, p.37ss).

Locke, também no século XVII, no Segundo Tratado do Governo, afirmou não só a existência de um estado da natureza como a liberdade que nele existia, tomando como fonte o texto de José de Acosta, mas numa referência que este faz aos indígenas do Brasil (LOCKE, 1953, 5-7; 62-63; BOBBIO, 1997, p.45ss). Fechava-se o ciclo de um direito natural leigo, desprovido de fundamento religioso, para o qual a existência empírica do homem americano (particularmente nas culturas mais primitivas, como as das tribos do Brasil) foi notável reforço argumentativo.

O novo jusnaturalismo, comparado ao jusnaturalismo tomista, como concluiu Norberto Bobbio, caracterizou-se assim pela "passagem de uma concepção ontológica e metafísica da natureza para uma concepção empírica" e pela substituição da ideia de razão como adequação à ordem do universo pela de que a razão "é o conjunto de procedimentos intelectuais com os quais o homem resolve os problemas relacionados com a sua posição e a sua afirmação no mundo" (BOBBIO, 1997, p.48). Na concepção medieval, a norma impõe-se à conduta por seu caráter transcendente; na moderna, a norma deriva da "natureza das coisas", ou seja, da regularidade mecânica do Universo (BOBBIO, 1997, p.48).

Se por um lado as condições materiais concretas levaram a um distanciamento da matriz jusracionalista escolástica - que acabaria tendo de ser substituída por outra, de origem imanente, face, sobretudo, aos problemas provocados pela guerra na Europa -, por outro podemos indagar qual o papel que a abertura antropológica do homem do Renascimento para outras culturas - algumas já superficialmente conhecidas, como as africanas e do extremo oriente, outras desconhecidas, como as americanas - teve nessa reformulação das ideias sobre o estado de natureza, a bondade natural e o direito natural (WEHLING, WHELING, 2005, p.31).ii

Parece claro que esta abertura antropológica provocou vários choques culturais - conflitos e dizimação de indígenas, protestos de Las Casas contra a violência dos espanhóis, a bula Veritas ipsa do Papa Paulo III, que atribuiu alma aos índios, o texto de Montaigne sobre os canibais. Parece claro também que a maioria dos autores que deram nova inflexão ao direito natural associou o hipotético "estado de natureza", um ente de razão sem identidade histórica, com o mundo empírico do homem americano, não propriamente das altas culturas, mas dos indígenas percebidos pelos contemporâneos como mais primitivos, a exemplo dos tupis ou dos guaranis, sobre os quais tinham melhor conhecimento haurido na leitura de cronistas, entre eles, os da França Antártica.

Retornamos, assim, à nossa pergunta inicial: como, no que se refere a essas questões - estado de natureza e direito natural - se comportaram André Thévet e Jean de Léry?

As informações de Thévet e Léry

As informações de Andre Thévet sobre as questões que nos interessam podem ser classificadas em quatro pontos: a religião, o casamento, a guerra e a liderança.

Em relação ao primeiro aspecto, chamou-lhe atenção a crença dos indígenas na perenidade da alma, distinguindo-se entre as daqueles que haviam combatido corajosamente daquelas dos que não o fizeram. Os primeiros "iriam com muitos outros espíritos, aos lugares agradáveis, com belos bosques, jardins..."; os outros, "as almas dos que não haviam combatido bem, seriam levados por Arinhã, que é como chamam ao espírito maligno" (THÉVET, 1953, p.84-85)

Quanto ao casamento, registrou, contra a opinião daqueles que acreditavam na promiscuidade dos indígenas, o respeito aos laços de consanguinidade e a consequente existência de relações de parentesco. Esses aspectos foram assinalados tanto nas Singularidades da França Antártica, em 1557, como na Cosmografia Universal, de 1575.

Em caso de adultério, diz Thévet na última obra: "Se uma mulher vem a pecar e engravidar, a criança ao nascer é enterrada viva e a mãe ou é trucidada ou abandonada aos rapazes" (THÉVET, 1953, p.934).

A guerra deveria ser decidida em assembleia, ouvindo-se com respeito os anciãos - e o faziam, segundo ele, como se estes fossem provectos senadores de Veneza. Os anciãos permaneciam deitados e os demais, sentados, por serem mais sábios os primeiros, "e parece que aprenderam esta filosofia na escola de um Aristóteles, ou outro dos sábios antigos" (THÉVET, 1953, p.178-179).

Ao fazer essa afirmação, buscaria Thévet algum elo genealógico dos indígenas com os povos europeus da Antiguidade, pensaria num paralelismo cultural com base numa natureza comum ou praticava mera analogia discursiva? Não podemos, à luz das informações de que dispomos, escolher qualquer das opções, mas apenas admitir sua verossimilhança se lembrarmos, para a primeira opção, que Varnhagen, na segunda metade do século XIX, ainda estudou a origem "turaniana" dos tupis-guaranis, ou, para justificar a segunda, que entre antropólogos do século XX a possibilidade do paralelismo cultural esteve presente para explicar semelhanças culturais, sem que nem de longe cogitassem em fundamentá-las no "estado de natureza".

A questão da liderança, por sua vez, foi associada pelo cronista católico à guerra. As lideranças surgiram em razão da guerra. Thévet registra a existência de alguns "reis" com características guerreiras, mas sublinha que, em geral, "não tem reis entre eles e são todos da mesma qualidade... (...) Os principais destes bárbaros e primeiros entre eles, aqueles que detêm alguma autoridade, e que falam em ir para a guerra, são os chefes de todos os outros e são os que devem responsabilizar-se pelas provisões de guerra" (THÉVET, 1953, p.252).

As informações de Jean de Léry são da mesma natureza das de Thévet, embora o calvinista fosse mais explícito e direto nas questões que nos interessam, relativas ao estado de natureza.

Sobre a religião dos indígenas, Léry constata que não possuíam ritual nem lugares destinados a sua prática, embora acreditassem e temessem efeitos da feitiçaria.

Registra também, como Thévet, a crença na perenidade da alma, que associa com a admissão de sua imortalidade e a ideia de que as almas dos guerreiros corajosos iriam

(...) para além das altas montanhas, dançar em lindos jardins com as almas de seus avós. Ao contrário, as almas dos covardes vão ter com Arinhã, nome do diabo, que as atormenta sem cessar. Cumpre notar que esta pobre gente é afligida durante a vida por este espírito maligno(...) (LÉRY, 1961, p.182)

Admite Léry a existência, entre os indígenas que conheceu, de uma "semente de religião" que "brota e não se extingue nelas, não obstante as trevas em que vivem" (LÉRY, 1961, p.189). Para comprová-la, utiliza constatações como a da "imortalidade da alma", a do temor aos trovões e aos espíritos malignos e a da presença de xamãs, que denomina "falsos profetas". A descrição da cena em que os indígenas entoavam cânticos religiosos, lamentando seus antepassados e consolando-se por encontrá-los após a morte, é um dos pontos altos, do ponto de vista etnográfico, do relato de Léry (LÉRY, 1961, p.193) e um aspecto importante para fundamentar o tema que abordamos.

Os ritos de sepultamento não passaram despercebidos a Léry, que os associou, como em tantos outros aspectos que descreveu, a passagens bíblicas nas quais via semelhanças.

Sobre o casamento e as relações de parentesco, a obra de Léry tem servido de referência a diversos estudos antropológicos e etnográficos. Sob o ângulo que nos interessa, o cronista descreve o casamento, as relações de parentesco e a atitude referente ao adultério, tomando como pontos de comparação os textos bíblicos no que respeita à poligamia e à própria sociedade francesa de sua época, reforçando a ideia da existência de traços comuns, naturais, a todos os homens. Quanto ao adultério, afirmava expressamente que "o homem enganado pode repudiar a mulher faltosa, despedi-la ignominiosamente ou mesmo matá-la regendo-se pela lei natural" (LÉRY, 1961, p.202).

Quanto à organização social, as descrições e as valorações de Léry encaminham-no para a constatação de que, excetuada a guerra com outras tribos, os indígenas viviam em harmonia, "guiados pelo seu natural", ao contrário de seus conterrâneos, que desdenhavam as leis divinas e humanas (LÉRY, 1961, p.207). Afirma-se, assim, a ideia de um estado de natureza e abre-se a possibilidade para um passo adiante: o da bondade natural do homem. Apenas uma possibilidade de interpretação, aliás, porque suas observações sobre a guerra entre tribos poderiam, por sua vez, embasar a tese hobbesiana da luta de todos contra todos. Elas, de todo modo, já ratificavam o maquiavelismo.

Declarada a guerra entre qualquer dessas nações, alegam todos que ressentindo-se o inimigo eternamente da injúria seria absurdo deixar o preso escapar; o ódio entre eles é tão inveterado que se conservam perpetuamente inconciliáveis. Donde nos parece concluir que Maquiavel e seus discípulos, de que a França por infelicidade anda cheia nesses tempos, não passam de imitadores desses bárbaros cruéis. (LÉRY, 1961, p.166).

***

Assim, em primeiro lugar podemos nos perguntar sobre a efetiva recepção dos cronistas da França Antártica para a discussão dos temas do estado de natureza e do direito natural. Existem, sem dúvida, outras fontes quinhentistas sobre o tema, como os cronistas espanhóis e portugueses. Os primeiros, entretanto, referiam-se, principalmente às altas culturas, e as informações que disponibilizavam sobre os povos indígenas de órbita da colonização portuguesa eram, em geral, de segunda mão. Os portugueses publicaram pouco sobre o Brasil no século XVI, e a coleção de textos organizada por Purchas e editada na Inglaterra, sobre fontes portuguesas, é da terceira década do século XVII. Portanto, além de Hans Staden, Ulrich Schmidel e Pero de Magalhães Gândavo - este tinha contra si o fato de ter publicado em língua menos conhecida - Thévet e Léry constituíam fontes importantes para os leitores do século XVI e início do seguinte.

Ademais, tiveram a ventura de serem lidos por Montaigne, embasando parte substancial de suas considerações sobre os "canibais". Os Ensaios, por sua vez, que tiveram sucesso no século XVI, apesar de pouco editados no século XVII, voltaram a despertar interesse no século XVIII, constituindo, de qualquer modo, fonte importante da construção do imaginário sobre o tema.

Reconhecida sua relevância, cabe indagar se os autores a partir de Montaigne não levaram longe demais a interpretação, lendo uma caracterização do estado de natureza e do direito natural onde não estariam autorizados a fazê-lo. Este é o centro dessa investigação: essas questões estariam no próprio texto de Thévet e Léry ou teriam sido resultado de uma leitura livre e eventualmente exagerada de quem estava predisposto a encontrar no indígena americano o que já pressupunha existir?

Thévet e Léry não eram especialistas em temas teológicos, filosóficos e jurídicos, embora tivessem alguma informação sobre todas essas matérias. Nas descrições que fazem, as ilações e juízos de valor estão mais presentes na obra de Léry do que na de Thévet; a leitura do "cosmógrafo do rei" é mais empírica e descritiva, como convém a um informante que busca ser erudito e imparcial. A de Léry é mais apaixonada e valorativa e, para nossos fins, torna-se mais explícita do que a do cronista católico. Mas em ambos ressalta a ideia de um "estado de natureza" e em Léry faz-se expressa referência ao direito natural.

As descrições das regras de parentesco, da religiosidade e do comportamento social dos indígenas em Thevét e Léry remetem a um estado natural primitivo, comum a todos os homens. A despeito de atitudes de estranhamento em relação à religião, à guerra ou a costumes, é comum a ambos os cronistas a constatação de que esses traços guardam semelhança com o comportamento de seus próprios contemporâneos - no que tinha em geral de mais condenável.

As atitudes negativas que veem nestes - como a conduta na política e na guerra ou a corrupção dos costumes - aparecem associadas com o primitivismo, remetendo não só a uma origem comum como a uma natureza humana comum, cujas manifestações frequentemente rompiam a capa de polidez e civilidade que o cristianismo inculcara aos homens. Preocupam-se, ademais, em comparar esses comportamentos com situações bíblicas ou clássicas, como fazem diversas vezes, evocando cenas como as do casamento de Jacó com Lia e Raquel, ou as de Circe e Ulisses, o que reforça a ideia de similitude por sobre as diferenças culturais.

A preocupação com as comparações em relação ao passado judaico-cristão e clássico, portanto, reforça a hipótese de que tanto Thévet como Léry constatam a existência do "estado de natureza" do homem, comum a todos os seres humanos e culturas, questão, aliás, que antecede a da existência de vínculos históricos ou a do paralelismo cultural.

Quanto à existência ou não de um direito natural, a questão aparece claramente exposta e argumentada em Jean de Léry.

No capítulo 14 da Viagem à Terra do Brasil, Léry associa a crueldade dos indígenas na guerra com a atitude, em idênticas situações, dos "discípulos de Maquiavel", contrários à doutrina cristã. Essa associação poderia admitir que o lado mau dos homens fosse afinal comum a todos eles, afirmando, embora pela negativa, a existência de uma natureza comum, independentemente do fato de existir ou não um "estado de natureza" primitivo. Por outra, o "lado bom" do homem seria representado pela convivência pacífica em sua própria comunidade. Assim, quer embasando malgré lui o futuro argumento hobbesiano, quer o rousseauniano, a premissa definida por Léry é a da identidade entre o homem americano e o europeu, variando-se o estágio cultural e admitindo-se um estado de natureza que, por sua vez, remeteria a uma lei natural.

Em seguida, o cronista calvinista parece colocar em dúvida o conceito ciceroniano de que existe a consciência da existência de Deus em todos os povos e culturas: o comportamento dos índios do Brasil, sobretudo na guerra, parece dissuadi-lo disso.

Entretanto, acaba por desenvolver o raciocínio contrário, arrolando argumentos como o da percepção, pelos indígenas, da imortalidade da alma, a crença na existência do demônio e, não obstante a ausência de crença em Deus - refere-se evidentemente ao conceito cristão -, sublinha que acreditam em um espírito imortal e na recompensa ou punição após a morte. Esses argumentos o conduzem a afirmar, por fim, que Cícero estava certo, já que os indígenas evidenciavam uma natureza comum - ainda que longinquamente - aos europeus. Seguia-se, assim, a possibilidade de um direito natural, fundamentado nesta natureza comum inculcada a todos os homens pela divindade.

***

Pode-se afirmar, portanto, que, a despeito de não serem teólogos, filósofos ou juristas, os cronistas da França Antártica tiveram sobre a existência e o significado dos indígenas com os quais conviveram uma concepção semelhante à dos principais intelectuais europeus de sua época. Fortalecida pela experiência vivenciada na América, essa concepção reforçou a tradição jusracionalista que se encontrava abalada na Europa da "razão de estado" de Maquiavel; se este fato, no plano ibérico, auxiliou um verdadeiro "ressourciment" da escolástica, que se estenderia de Francisco Suarez ao século XVIII sobretudo pela via da Ratio Studiorum, no norte da Europa avançou para o racionalismo moderno, com sua afirmação de um direito natural identificado com a razão, e não necessariamente com a fé.

Nessa concepção, que se revelaria dominante na Ilustração, há um arco que vai do panteísmo ao ateísmo, mas que sustenta todo o "novo" direito natural, isto é, o "direito racional", como o denominou Bobbio. E os cronistas de um evento afinal secundário e abortado da expansão quinhentista europeia, a França Antártica, contribuíram empiricamente para o embasamento de uma nova visão do homem e do direito, aquela que nos é tão familiar, tributários que somos, apesar de todos os pós-modernismos, da tradição racionalista da Ilustração.

Notas

ii Discussão do problema do direito e da justiça no âmbito do "encontro de culturas" desde o século XVII, Arno Wehling e Maria José Wehling, Direito e justiça no Brasil colonial - o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1751-1808, Rio de Janeiro, Renovar, 2004, p. 9ss. Luiz Felipe Barreto, Descobrimentos e Renascimento, Lisboa, 1983, p. 169.

Recebido em outubro/2012.

Aprovado em novembro/2012.

  • BARRETO, L. F. Descobrimentos e Renascimento Lisboa, 1983.
  • BOBBIO, N. Locke e o direito natural Brasília: UNB, 1997.
  • CLINARD, G. L'exotisme américain dans la littérature française au XVI.ème siècle Paris: A. Colin, 1933.
  • GROTIUS, H. O Direito da guerra e da paz v.I. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
  • GUENÉE, B. L'Occident aux XIVe. et XVe. Siècles Paris: PUF, 1971.
  • HOBBES, T. Leviathan Londres: Dent and Sons, 1953.
  • J. HUIZINGA. O declínio da Idade Média Lisboa: Ulissea, s/d.
  • LÉRY, J. Viagem ao Brasil Rio de Janeiro: Bibliex, 1961.
  • LOCKE, J. Segundo Tratado do Governo São Paulo: Ibrasa, 1963.
  • MARAVALL, J. A. Teoria del estado en España del siglo XVII Madri: CEC, 1997.
  • MEINECKE, F. Die Idee des Staatsräson in der neurer Geschichte Munique: Oldenbourg, 1955.
  • MELLO FRANCO, A. A. O Índio brasileiro e a Revolução Francesa Rio de Janeiro: José Olímpio, 1971.
  • MOUNIN, G. Machiavel Paris: Seuil, 1966.
  • MOUSNIER, R. L'Homme Rouge ou la vie du Cardinal de Richelieu (1585-1642) Paris: Robert Laffont, 1994.
  • PIDAL, R. M. El Pe. Las Casas y Victoria Buenos Aires: Espasa Calpe, 1947.
  • POCCOCK, J . Le moment machiavélien Paris: PUF, 1997.
  • SKINNER, Q. Hobbes e a liberdade republicana São Paulo: FEU, 2008.
  • _____. Los fundamentos del pensamiento politico moderno Mexico: FCE, 1985.
  • THÉVET, A. Les français em Amérique pendant la deuxième moitié du XVIe. Siècle ed. De S. Lussagnet e C. A. Julien. Paris: PUF, 1953.
  • WEHLING, A. WEHLING, M. J. Direito e justiça no Brasil colonial - o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, 1751-1808 Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
  • _____. Formação do Brasil colonial Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
  • i
    Ainda quando existisse algum tipo de conciliação com a filosofia política cristã: "O rei está acima da lei, mas normalmente ele deve se submeter a ela, porquanto a lei é a razão e a razão é superior a todos, interiormente inspirada pelo Espírito Santo e portanto de natureza divina. Mas os reis podem mudar as leis, por obrigação de seu dever de assegurar "o bem de seu Estado, o bem público e as necessidade de seus súditos"; Roland Mousnier,
    L'Homme Rouge ou la vie du Cardinal de Richelieu (1585-1642), Paris, Robert Laffont, 1994, p. VII-VIII e p. 763.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Abr 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      Out 2012
    • Aceito
      Nov 2012
    Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
    E-mail: revistahistoria@unesp.br