Acessibilidade / Reportar erro

Corcundas e Constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822)

RESENHAS

Karina da Silva1 1 Mestranda pelo Programa Pós-Graduação em História da UNESP/Franca, bolsista Capes. CEP 14400-690. e-mail: karinasilvabr@yahoo.com.br

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e Constitucionais — a cultura política da Independência (1820-1822). Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003.

Originalmente tese de doutorado de Lúcia Neves, "Corcundas e Constitucionais— A cultura política da Independência (1820-1822)" é uma obra em que, partindo da análise do iluminismo português do século XVIII, a autora estabelece uma cultura política comum a luso-brasileiros da América e portugueses de Portugal. Tendo como referência a idéia de império luso-brasileiro, Neves institui uma conexão entre o movimento iniciado em 24 de agosto de 1820, no Porto, e a Independência brasileira.

A partir da análise dos discursos contidos nos folhetos políticos e nos jornais brasileiros e portugueses, no período de 1820 a 1823 — tidos pela autora como veículos de opinião que registram valores, atitudes e signos indicativos da cultura política, pretende-se buscar a cultura política da Independência. No entanto, em sua análise dos discursos políticos, acabou a autora se voltando para um levantamento do ideário político da Independência, restringindo a amplitude do conceito de cultura política ao campo das idéias, o que leva a classificar seu trabalho como um estudo do pensamento político e não de cultura política propriamente dita.

O livro encontra-se dividido em quatro partes, sendo que nas duas primeiras há uma análise da cultura luso-brasileira, e nas duas últimas ocorre um estudo da política do período, o que também nos leva a questionar se se trata de um trabalho de história e cultura política ou de um estudo de história da cultura e história da política.

Ao analisar a cultura luso-brasileira, Lúcia Neves estabelece as luzes portuguesas como o teatro dessa cultura. Refletindo sobre a ilustração portuguesa, a autora ressalta suas peculiaridades, concluindo que o medo das idéias francesas sempre foi mais forte do que o ideal de ilustração, por isso denomina as luzes em Portugal de "mitigado liberalismo".

Embasada nessa idéia, Neves constrói uma ponte entre os movimento vintista e a Independência brasileira, ressaltando quanto eles estavam ligados ao Antigo Regime, e por isto carregaram em seu bojo idéias que apenas vestiam uma roupagem liberal, e outras que nada tinham de liberal.

É fato conhecido que a ilustração portuguesa foi limitada se comparada a outros países da Europa, no entanto, ao construir sua argumentação tendo por base esse "mitigado liberalismo" português a autora lhe dá uma importância extrema, resumindo o vintismo e a Independência, da forma como se deram, a uma conseqüência desse liberalismo, simplificando esses acontecimentos e comprometendo sua análise, uma vez que se tem a impressão, ao ler a obra, que se o iluminismo português tivesse sido pleno, isto bastaria para que Portugal se tornasse um país liberal, o que levaria os movimentos posteriores a adquirirem um outro formato.

Dentro da analise da ilustração portuguesa a Universidade de Coimbra e outros locais de sociabilização — Maçonaria, sociedades secretas e a Academia Real se destacam como centros propagadores das novas idéias, onde as elites portuguesa e brasileira adquiriam os mesmos valores, normas e padrões de comportamento, homogeneizando-se e compartilhando de uma mesma cultura.

Essa elite culturalmente homogeneizada é que se afirma como a detentora de uma nova consciência a favor da renovação da ordem estabelecida, não desejando uma ruptura brusca, visto que a idéia da monarquia como instituição ideal fazia parte da cultura política desse grupo, que no entanto almejava algumas mudanças. É de dentro dessa elite que sairiam os atores que iriam encenar o drama do vintismo em Portugal, e da Independência no Brasil.

Dentro desta elite ilustrada, Neves destaca a figura de D. Rodrigo de Souza Coutinho, que na busca da renovação das instituições políticas, sociais e econômicas reapresenta em cena a questão de um império luso-brasileiro em condições de igualdade. Idéia esta que tomou corpo com a transferência da família real e da Corte para o Brasil, e que é ponto-chave na argumentação da autora, que a evidencia como motivo da Revolução do Porto e como causa da movimento iniciado no Brasil a partir de 1821, em resposta aos atos das Cortes portuguesas.

Segundo Neves, o povo permaneceu na sombra desses acontecimentos, sendo realmente mero espectador. Sua justificativa para a falta de participação direta das camadas mais baixas da população se deve ao fato de que a cultura política instituída a partir das luzes portuguesas, para ser compreendida e posta em prática necessitava de um referencial intelectual e cultural que o povo não possuía; o povo não compreendia e não participava do ideário político da Independência, por isto não podia fazer parte do movimento.

Ao restringir o movimento constitucionalista no Rio de Janeiro, a Bernarda e o Fico a movimentos militares ou exclusivos da elite, Neves esvaziando a praça pública, uma vez que não dá oportunidade nem para que o povo seja manipulado. Trabalhos recentes mostram a importância da praça pública nesse momento da história brasileira em que, seja através da inserção nos movimentos, ou seja, na comemorações, o povo esta presente. Realmente, a população não compreendia em sua plenitude o que estava acontecendo, no entanto, não era mera platéia na sombra, participou dos acontecimentos, não ficando alheia à realidade, mesmo que esta participação tenha sido manipulada.

No esforço de unir a interpretação cultural aos acontecimentos políticos, Neves analisa a Revolução do Porto como um descontentamento em relação à situação econômica, política e social de Portugal, em oposição ao processo de autonomia que o Brasil vivenciava desde 1808. Tendo-se em mente que o que predominava inicialmente entre brasileiros e portugueses era a idéia de um império luso-brasileiro, a autora observa que as medidas recolonizadoras das Cortes portuguesas teriam minado esse projeto, levando a uma contradição: enquanto os portugueses desejavam um império luso-brasileiro com sede em Portugal e no qual o Brasil se encontrava em posição subordinada, as elites brasileiras, unidas contra o "despotismo" das Cortes portuguesas, almejavam um Império luso-brasileiro em condições de igualdade entre os dois reinos, de preferência com a sede no Brasil.

Assim, Neves vê os acontecimentos luso-brasileiros desencadeados a partir de 1820 como resultado da disputa pela hegemonia entre Brasil e Portugal no interior do império luso-brasileiro, em que as discussões em torno do formato que esse Império deveria assumir punham em questão a sua integridade. Conclui a autora que os dois movimentos — vintismo e Independência — não foram distintos, nascendo ambos do desequilíbrio entre o número de posições disponíveis para a elite burocrática e a população de bacharéis.

Ao analisar o decreto das Cortes portuguesas que abolia os Tribunais Superiores no Brasil, o que traria embaraços à carreira dos elementos mais elevados da elite burocrática, Neves restringe os acontecimentos brasileiros de 1822 a uma luta das elites visando a seus próprios interesses, na qual a independência restringia-se a uma luta das elites visando seus próprios interesses, onde "a política limitar-se-ia à disputa de ingressos para esse círculo privado em que se tomavam as decisões, restando aos excluídos do momento o manejo da retórica liberal, sob a forma de investidas contra o despotismo ministerial e a influência dos áulicos".

Nesse jogo de interesses a figura de D. Pedro é vista como a de um grande articulador que, jogando com as elites brasileira, soube sair de uma situação de hostilidade à sua regência e se fortaleceu a ponto de se criar um culto em torno de sua imagem. Há uma preocupação da autora em buscar traços da personalidade autoritária do príncipe para justificar a ausência de um ambiente de fato liberal. Se de fato D. Pedro se posiciona como um articulador, a questão que fica é saber até que ponto ele também não era manipulado pela elite que o cercava e que não abria mão de seus interesses.

Não tendo como negar as contribuições do liberalismo, uma vez que práticas e idéias novas passaram a fazer parte do mundo luso-brasileiro, como: Cortes, eleição, voto e deputados, a autora as aceita; no entanto, esse liberalismo para ela é limitado e reduzido, e isto se evidenciaria nos atos que se sucederam no Brasil e em Portugal: o fechamento do Congresso português em 3 de junho de 1823 e a dissolução da Assembléia Constituinte brasileira em 25 de março de 1824.

Ocorre que Neve não analisa o período posterior a 25 de março de 1824, em que os desentendimentos entre D. Pedro e as elites brasileiras passaram a ser latentes e levaram aos acontecimentos de 1831; nesse período (1824-1831) houve uma reorganização das estruturas de governo, reordenando o Judiciário e as forças militares: é dessa época a criação do Superior Tribunal de Justiça, a elaboração do Código Criminal, a extinção da Mesa de Consciência e Ordens, entre outras mudanças que limitavam o poder do imperador e davam novos rumos à política brasileira, o que sugere que as idéias liberais discutidas a partir de 1820 deixaram marcas mais profundas na sociedade brasileira, não sendo tão superficiais como sugere a autora, caindo por terra o poder articulador de D. Pedro, uma vez que a elite se posicionou em cena.

Em sua crítica às teorias economicistas — que apresentavam a independência como um movimento contra a volta do sistema colonial, e às teorias nacionalistas — que viam na Independência um movimento de cunho nacional, acaba Lúcia Neves caindo em uma análise reducionista, em que a Independência tornou-se um jogo de interesses, conclusão simplista diante da tarefa a que a autora se propôs — estabelecer a cultura política da Independência, e que no fundo não respondeu.

Por fim, faz-se necessário ressaltar a importância do livro, em especial da segunda parte A mise-en scène: as palavras e as idéias nos folhetos e jornais da época da Independência, quando Neves traz à tona o ideário político da Independência em um trabalho minucioso de análise dos panfletos e periódicos da época, mostrando a riqueza do material e a complexidade do período.

NOTAS

Resenha recebida em 01/2005. Aprovada em 02/2005.

  • 1
    Mestranda pelo Programa Pós-Graduação em História da UNESP/Franca, bolsista Capes. CEP 14400-690. e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Set 2010
    • Data do Fascículo
      2005
    Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
    E-mail: revistahistoria@unesp.br