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Aspectos políticos e econômicos da circulação do livro didático de História e suas implicações curriculares

The political and economical aspects of the History textbook circulation and its implications with the curriculum

Resumos

O texto aborda aspectos da circulação do livro didático, que antecedem sua entrada na escola, mas deixam marcas nos saberes que circulam na sala de aula. Para isto, apresenta um panorama das políticas públicas para o livro didático no Brasil, em 2004, e traz um estudo sobre como esses processos interferem, tacitamente, no currículo em ação, por meio dos livros didáticos de História recebidos pelas escolas públicas da cidade de São Paulo, em 2002.

Livro didático; Políticas públicas; Ensino de História


The article considers some aspects of the textbook circulation that precedes its ingress into the school, but interferes directly with the knowledge present at the classroom. It reveals the Brazilian public policies for the textbooks, in 2004, and analyses the interference of this policies on the curriculum through the History textbooks, adopted in the public school system of the city of Sao Paulo, during 2002.

Textbooks; public policies; History education


ENSINO DE HISTÓRIA

Aspectos políticos e econômicos da circulação do livro didático de História e suas implicações curriculares

The political and economical aspects of the History textbook circulation and its implications with the curriculum

Célia Cristina de Figueiredo Cassiano1 1 Doutoranda da Pontifícia Universidade Católica de Santos ­ PUC-SP ­ CEP 05014-001. f.cassiano@uol.com.br

RESUMO

O texto aborda aspectos da circulação do livro didático, que antecedem sua entrada na escola, mas deixam marcas nos saberes que circulam na sala de aula. Para isto, apresenta um panorama das políticas públicas para o livro didático no Brasil, em 2004, e traz um estudo sobre como esses processos interferem, tacitamente, no currículo em ação, por meio dos livros didáticos de História recebidos pelas escolas públicas da cidade de São Paulo, em 2002.

Palavras-chave: Livro didático; Políticas públicas; Ensino de História.

ABSTRACT

The article considers some aspects of the textbook circulation that precedes its ingress into the school, but interferes directly with the knowledge present at the classroom. It reveals the Brazilian public policies for the textbooks, in 2004, and analyses the interference of this policies on the curriculum through the History textbooks, adopted in the public school system of the city of Sao Paulo, during 2002.

Keywords: Textbooks; public policies; History education.

O objetivo do presente artigo é apresentar um estudo sobre a circulação do livro didático no Brasil, na história recente do País. Tal abordagem do livro didático pressupõe levar em conta a condição de mercadoria deste produto, que contém tanto elementos da sua materialidade, ou seja, das leis de mercado, como também do seu uso, portanto, da Educação.

No campo da Educação, entender o livro didático na sua completude justifica-se, principalmente, em função do papel que este adquire no contexto escolar. Apple observa que "são os livros didáticos que estabelecem grande parte das condições materiais para o ensino e a aprendizagem nas salas de aula de muitos países através do mundo".2 2 APPLE, Michael W. Trabalho docente e textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p.85. Gimeno Sacristán aponta que entre a prescrição curricular e o currículo real, que se desenvolve na prática, existe uma "elaboração intermediária do mesmo, que é a que aparece nos materiais pedagógicos e, particularmente, nos livros didáticos".3 3 GIMENO-SACRISTÁN, J. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3.ed. Porto Alegre:Artmed, 2000, p.89.

Lajolo4 4 LAJOLO, Marisa (org). 1996. Livro didático: um (quase) manual de usuário. In: Em aberto. INEP. v.16. n 69, pp. 3-7[ STANDARDIZEDENDPARAG] caracteriza o livro didático como o que vai ser utilizado em aulas e cursos, na situação específica da escola, isto é, de aprendizado coletivo e orientado por um professor. Provavelmente foi escrito, editado, vendido e comprado em função da escola, sendo que esse tipo de recurso didático vai ter sua importância ampliada em países como o Brasil, nos quais as condições precárias da educação fazem com que ele acabe determinando conteúdos e decidindo estratégias de ensino. Diz ainda que o livro didático é instrumento importante de ensino e aprendizagem formal que, apesar de não ser o único, pode ser decisivo para a qualidade do aprendizado resultante das atividades escolares. E, finalmente, para ser considerado didático, um livro precisa ser usado de forma sistemática no ensino-aprendizagem de um determinado objeto do conhecimento humano, normalmente caracterizado como disciplina escolar.

Apesar de acreditarmos ser o livro didático um elemento prescritivo-chave do currículo, e daí a importância de estudá-lo, vale lembrar que o seu uso, que se concretiza na prática da sala de aula, dá-se com sujeitos específicos, em dadas condições sócio-históricas e ao lado de outros recursos (a lousa e o giz, por exemplo), tendo então esse uso a potência de subverter o prescrito, mas o faz valendo-se do próprio material, isto é, de uma condição objetiva que está dada.

Ademais, estudar as relações concretizadas no processo de circulação do livro didático nos possibilita o desvelamento das relações organizacionais e interpessoais entre indústria editorial, políticas públicas e instituição escolar, que deixam marcas no uso desse produto. Vistas, então, as especificidades desse produto, nosso intuito é verificar as relações extra-escolares inerentes ao produto, que adentram os muros escolares, mas que não ficam explícitas.

Nossa intenção de abordá-lo pela sua circulação toma-o no momento posterior à sua produção, e anterior ao seu uso, que é o momento em que este produto circula, em que será comercializado. Tomamos como ponto de partida a seleção de livros didáticos que é feita na escola, porém não entramos no mérito da qualidade da escolha desse material, e sim focamos, primeiramente, questões que a antecedem, procurando entender como ela se dá, ou melhor, investigar como esse processo se materializa, assim como quem são e como atuam os sujeitos envolvidos na seleção do livro escolar. A partir disto, nossa perspectiva analítica é entender como esses processos interferem no currículo, mas tacitamente. Por conta deste objetivo, consideramos que três são as instâncias fundamentais nesse processo: a área comercial das grandes editoras; o Estado, especificadamente as políticas públicas para o livro didático e a escola.

Neste texto, vamos enfatizar prioritariamente as ações governamentais e apresentaremos os dados referentes aos livros de História.

Atualmente, em 2004, no Brasil, as políticas públicas para o livro didático são representadas pelo ­ PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). Este programa foi criado em 1985, tendo como objetivo a aquisição e distribuição universal e gratuita de livros didáticos para os alunos da rede pública do ensino fundamental, sendo que a política de planejamento, compra, avaliação e distribuição do livro escolar é centralizada no governo federal. Realiza-se por meio do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), autarquia federal vinculada ao MEC (Ministério da Educação) e responsável pela captação de recursos para o financiamento de programas voltados ao ensino fundamental.

Quando direcionamos o estudo para a circulação de livros didáticos no Brasil, um dos pontos que sobressaem é o gigantismo do volume de vendas.

Isto se dá porque a educação escolar é um sistema que acontece de forma simultânea, gradual e universal, sendo o livro didático parte integrante deste processo. Pensemos que, salvo exceções, cada aluno brasileiro que está na escola utiliza um livro didático para cada disciplina, livro este que é trocado anualmente (gradualidade), sendo que todos (universalidade) o usam ao mesmo tempo (simultaneidade). Convém observar que o governo só compra livros para as áreas de Português, Matemática, História, Geografia e Ciências.

Tendo em mente esse processo, podemos ter um dimensionamento do volume de livros didáticos que circulam no Brasil.

O PNLD não só é o maior programa de fornecimento de material didático do Brasil. Juntamente com os outros programas de distribuição de livro (para bibliotecas, por exemplo) em 2001, conforme afirmou Maria Helena Guimarães de Castro (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais-INEP/ MEC) na mesa redonda sobre questões educacionais da atualidade, promovida pela publicação Estudos Avançados em 27/4/2001, o Brasil está situado como "o país que tem o maior programa de fornecimento de livro do mundo".

Partindo dessas considerações, e como o estudo aqui apresentado foi delimitado espaço-temporalmente na cidade de São Paulo, tendo como fonte dados do PNLD/2002, é necessário que delimitemos a participação do Estado de São Paulo no PNLD federal.

Segundo Batista,5 5 BATISTA. Antonio Augusto Gomes. Recomendações para uma política pública de livros didáticos. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental, 2001[ STANDARDIZEDENDPARAG] devido à abrangência do Programa Nacional do Livro Didático-PNLD, da dificuldade para fazer a distribuição do material para todos os Estados brasileiros e com base na diretriz formulada pelo Plano Decenal de Educação para Todos (MEC/1993), o governo federal apresentou em 1995, ao Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação-CONSED, proposta de descentralização do planejamento e execução do PNLD e da participação financeira dos Estados quando a compra realizada excedesse o montante repassado pelo Ministério. Vários Estados aderiram à proposta: Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

Porém, a maioria destes Estados encontrou dificuldades para operacionalizar o PNLD, principalmente em relação ao aumento de custos em função da compra descentralizada e, conseqüentemente, à necessidade de complementação financeira com verbas estaduais. Por isso, São Paulo passou a ser o único Estado no Brasil que manteve a operacionalização do PNLD de forma descentralizada do governo federal, desde 1995.

De acordo com dados do Centro de Informações Educacionais da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo ­ CIE/SEE -SP (1998), a rede pública de ensino de São Paulo é uma das maiores do mundo: em 1998 seus números abarcavam 6.086.947 alunos, 223.288 professores, 6.074 escolas urbanas e 1.352 escolas rurais, sendo que, pelo número de funcionários, de acordo com a Organização das Nações Unidas ­ ONU, é a quarta maior empresa do mundo.

Como procedimentos de pesquisa fizemos um levantamento estatístico de todos os livros recebidos pela totalidade das escolas públicas da cidade de São Paulo, em 2002, de 5 à 8 série das disciplinas de História, Matemática, Geografia, Português e Ciências. Valemo-nos, como fonte, das listas de livros de 5 à 8 série entregues por ocasião do PNLD/2002. Além disso, entrevistamos docentes e consultamos documentos governamentais.


Segundo os dados apresentados pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo ­ SEE-SP, no 6 encontro técnico nacional dos programas do livro PNLD e PNBE, o total de investimentos no PNLD/2002, de São Paulo, foi de R$ 83,6 milhões, sendo que R$ 82,7 milhões foram recursos provenientes do MEC e R$ 0,9 milhões financiados pela SEE-SP, devido à complementação financeira pressuposta no processo de escolha descentralizada.

Contudo, antes de apresentarmos os resultados de nosso estudo é necessário que definamos quais foram as diretrizes para a escolha do livro didático no período estudado.

Em 1993 o Brasil traçou o Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003), fruto de compromisso assumido internacionalmente na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia. Neste evento, os países participantes se comprometeram a criar um plano que atendesse às necessidades específicas básicas da educação de cada um.

O plano do Brasil, entre outras considerações, apontou estratégias para o livro didático; dentre elas, deu prioridade às medidas para assegurar tanto a qualidade física do livro, quanto a qualidade de seu conteúdo, visto que o princípio de livre escolha pelo professor esbarra em sua insuficiente habilitação para avaliar e selecionar.6 6 MEC. 1993. Plano decenal de Educação para Todos/ 1993 ­ 2003. Brasília: MEC. grifo meu.

No mesmo ano da publicação do Plano Decenal de Educação para Todos, o MEC constituiu uma comissão para analisar a qualidade dos conteúdos programáticos e dos aspectos pedagógico-metodológicos dos livros que vinham sendo comprados por este ministério para as séries iniciais do ensino fundamental. Tal comissão analisou os dez livros de cada disciplina mais solicitados pelos professores das escolas públicas. Este estudo demonstrou que o MEC vinha comprando e distribuindo para a rede pública de ensino livros didáticos com erros conceituais, preconceituosos e desatualizados no tocante aos conteúdos. Como conseqüência, a partir de 1996 o MEC passou a submeter os livros didáticos a uma avaliação, cujos resultados são divulgados nos Guias de Livros Didáticos, distribuídos nacionalmente para as escolas, com o objetivo de orientar os professores na escolha do livro didático.

O governo federal, que até então se mantivera como comprador e distribuidor de livros didáticos, instituiu, dessa forma, um processo de avaliação destes livros, redefinindo o papel do MEC no PNLD. Sendo assim, as obras inscritas pelas editoras e que não fossem aprovadas seriam excluídas da compra pelo PNLD.

O que causou grande desconforto em relação à avaliação dos livros didáticos, em 1996, foi a extensa lista de livros inscritos e excluídos, principalmente por erros conceituais. Além do impacto da própria avaliação, até então inédita no PNLD, o fato de o MEC ter divulgado a existência da tal lista, porém adiado a sua publicação várias vezes, ocasionou um gradativo mal-estar nos interessados no resultado da avaliação, gerando manifestações de entidades diversas, tais como a Associação Brasileira de Editores de Livros ­ Abrelivros; a Associação Brasileira de Autores de Livros Educativos ­ Abrale; a Associação de Pais e Alunos do Estado de São Paulo - Apaesp; a Associação Intermunicipal de Pais e Alunos de São Paulo - Aipa; a Câmara Brasileira do Livro ­ CBL e o Sindicato Nacional de Editores de Livros ­ Snel, entre outros.

No entender de Batista, os critérios comuns de análise dos livros das diferentes disciplinas foram: a adequação didática e pedagógica; a qualidade editorial e gráfica; a pertinência do manual do professor para uma correta utilização do livro didático e para atualização do docente.7 7 BATISTA, Antonio Augusto Gomes. Op. cit.

Como critérios eliminatórios foram definidos que os livros: não poderiam expressar preconceito de qualquer origem; não poderiam apresentar erros conceituais.

No Guia de Livros didáticos para o PNLD/2002, cuja análise incidiu sobre os livros de 5 à 8 série, pela primeira vez um dos critérios impostos às editoras para a inscrição dos livros foi o da coleção, isto é, só puderam ser inscritas coleções completas para as quatro séries do ciclo II. Para o MEC, alterações importantes foram feitas no PNLD/2002, sendo que:

Uma delas foi a decisão de que os livros não seriam mais avaliados por série, mas por coleção, para o conjunto das quatro séries. O objetivo dessa modificação foi proporcionar a articulação pedagógica dos volumes que integram uma coleção didática, possibilitando, assim, o desenvolvimento curricular na escola.8 8 MEC. 2001. Guia de livros didáticos. 5 a 8 séries. Brasília: MEC.

Até então, de 1996 até 1999 (em 2000 o Guia não foi editado), os livros eram avaliados isoladamente, chegando ao extremo de dentro de uma coleção para o mesmo componente curricular, alguns livros serem mal avaliados e, por conseguinte, excluídos do programa, e os outros dessa mesma coleção, bem avaliados e mantidos.

Excetuando-se esse, os outros critérios comuns de avaliação e classificação dos livros dos anos anteriores foram mantidos: correção dos conceitos e informações; correção e pertinência metodológica; contribuição para a construção de cidadania; manual do professor; e aspectos gráficos editoriais.

Quando finalizamos o levantamento dos livros recebidos pelas escolas paulistanas no PNLD/2002, alguns fatores nos chamaram a atenção, entre eles o descompasso entre a escolha dos docentes e a avaliação do Guia dos Livros Didáticos para boa parte das disciplinas; a concentração das vendas em poucas editoras e o recebimento das coleções de 5 à 8 série de forma fragmentada, inclusive de coleções que possuíam propostas metodológicas bastante diversificadas.

Em relação ao recebimento das coleções de forma fragmentada, verificamos que a SEE de SP, diferentemente das orientações do MEC, possibilitava esta alternativa para os docentes, porém como escolha, e não como imposição:

No caminho de ampliação de opções, salientamos que, embora o Guia de Livros Didáticos do PNLD 2002 do MEC organize as obras em coleções, isso não significa que a escolha deva incidir sobre toda a coleção, pois a SEE-SP optou por permitir à escola a possibilidade de adoção da coleção inteira ou a escolha de diferentes obras da mesma coleção, de acordo com seu interesse. Ao analisarmos as escolhas feitas nos dois últimos anos constatamos que as mesmas têm sido diversificadas, não privilegiando a adoção de coleções, escolhendo o livro que melhor atende ao desenvolvimento do trabalho com a sua clientela. Fica, portanto, mais esta decisão para a escola: aquela em que ela própria monta sua coletânea e o acervo que melhor apoio oferece ao seu projeto.9 9 SEE SP/CENP. Lendo e aprendendo. manual de orientação para a escolha de livros: PNLD 2001/2002. São Paulo: SEE/CENP, 2001, p. 7-8 (grifo do autor).

O levantamento dos livros recebidos pelas 1.443 escolas públicas paulistanas nos apontou um grande número de escolas que receberam coleções fragmentadas (dois livros de uma coleção e dois de outra, por exemplo). Procuramos, então, aleatoriamente, estabelecer comunicação com algumas destas escolas, sendo que todas as escolas contatadas foram unânimes em dizer que haviam escolhido coleções inteiras nas duas opções e que ficaram decepcionadas em receber coleções mescladas entre suas primeiras e segundas opções.

Isso pode ocorrer porque as escolhas devem ser feitas em duas opções, isto é, devem ser escolhidos quatro livros como primeira opção e quatro livros como segunda opção. No caso do PNLD/2002 centralizado no governo federal, tais escolhas devem incidir obrigatoriamente em duas coleções. No caso do PNLD descentralizado do Estado de São Paulo, o critério das duas opções se mantém, porém não se obriga a escolha por coleções, conforme já foi exposto. Com referência ao que consta no Guia de Livros Didáticos 2001/2002, a segunda opção é importante porque a negociação com autores e editores é feita por meio de variáveis como preço, tiragem mínima e prazo de entrega. Por este motivo, a segunda opção também tem de ser obrigatoriamente de uma editora diferente da primeira.

E é justamente neste contexto que encontramos um descompasso considerável entre os livros solicitados por grande parte dos docentes e os efetivamente recebidos nas escolas, desmanchando todo o discurso que apregoa a liberdade de escolha dos docentes e as prioridades pedagógicas na compra dos livros.

Para que os dados referentes às informações acima possam ser visualizados, optamos por apresentar os dados relativos à disciplina de História, porque tal constatação chama a atenção pela discrepância das propostas metodológicas dos livros recebidos pelas escolas.

Os indicadores obtidos na tabulação dos livros de História recebidos pelas instituições escolares públicas de São Paulo apontam os livros História Temática (162.387) e História e Vida Integrada (129.049) como os mais escolhidos pelos docentes paulistanos, sendo que estes livros são igualmente os mais bem recomendados no Guia de Livros Didáticos, com duas e três estrelas respectivamente, como pode ser visto no Quadro 2.


Porém, ao tabularmos os dados das 1.443 escolas públicas paulistanas, deparamos com um fator bastante intrigante: a maioria das escolas que recebeu os livros das coleções citadas não as recebeu completas, isto é, recebeu dois ou três livros das coleções citadas, e o(s) outro(s) de outra coleção, dentre as possíveis opções que podem ser vistas no Quadro 2.

Tal fato nos chamou a atenção, principalmente por conta da abordagem metodológica diferenciada proposta no livro História Temática, única coleção que, no PNLD/2003, ofertou livros formados por quatro grandes eixos temáticos: Tempos e Culturas; Diversidade Cultural e Conflitos; Terra e Propriedade e O mundo dos cidadãos.

Devido à sua proposta metodológica, os livros da Coleção História Temática dificilmente seriam bem articulados com os livros de outras coleções, a não ser que fossem intencionalmente escolhidos pelo docente, isto porque as outras coleções, apesar de possuírem diferenças entre si, têm mais possibilidade de interação entre elas, visto que a maioria aborda o ensino de História cronologicamente.

Do ponto de vista pedagógico, esta seleção, aparentemente feita pelos docentes, fica mais comprometida se pensarmos que tais livros foram os que obtiveram maior vendagem.

Procuramos, então, estabelecer uma correspondência entre o descompasso das escolhas das escolas que, apesar de escolherem os livros mais estrelados, não foram ao encontro das expectativas do MEC10 10 MEC. 2001. Guia de livros didáticos. 5 a 8 séries. Brasília: MEC. no tocante à escolha ser feita por coleções, que, como já mencionamos, queria "preservar a unidade e a articulação didático-pedagógica da escola, possibilitando, assim, o desenvolvimento curricular de forma integrada". Lembramos, também, que no caso específico das escolas do Estado de São Paulo, além das orientações do MEC (pois o Guia de Livros Didáticos era fonte de consulta), a SEE ­ CENP possibilitou a escolha por coleções inteiras ou por obras de diferentes coleções. Porém, foi enfatizado que se a escolha recaísse sobre a coleção completa seria respeitada, pois o intuito era de que a escola escolhesse os livros que atendessem adequadamente ao desenvolvimento do trabalho da escola com a sua clientela.

Apesar das considerações feitas pela SEE-CENP no sentido de que as escolhas não precisariam recair obrigatoriamente numa coleção completa, causou espanto constatar que grande parte das escolas paulistas optou por escolher parcialmente os livros da coleção História Temática, graças às especificidades metodológicas desta coleção. Este foi o motivo que nos levou a entrevistar docentes com as seguintes características: os que participaram da escolha em 2001, que atuassem em escolas localizadas em bairros diferenciados e que fossem professores de História de escolas que receberam a coleção História Temática de forma fragmentada. Nosso interesse primordial foi averiguar se realmente esta havia sido a opção da escola, isto é, receber a coleção fragmentada.

As primeiras entrevistas foram realizadas com professores que, em 2001, atuavam na EMEF Senador Milton Campos, de Brasilândia. Nesta escola foram recebidos os livros de História apresentados no Quadro 3:


Ao ser questionada sobre a procedência de tal escolha, a professora Silmar, docente de História dessa escola em 2002, disse que "levou um choque" com o livro de 8 série que a escola havia recebido, ou seja, Brasil: Uma História em construção:

Havíamos pedido a coleção completa de História Temática como primeira opção, sendo que a segunda opção, acho que foi História crítica. Quando eu entrei na sala da coordenadora, no ano seguinte, 2002, para pegar a coleção, ela não veio completa. Eu abri e vi que vieram os livros de História Temática de todas as séries, porém, quando abri o pacote da 8 série, apareceu Brasil, uma história em construção. Que não tinha nada a ver.11 11 Profa. Silmar, entrevista realizada em 10/1/2003.

A professora enfatizou a escolha da coleção completa para as duas opções, como pôde ser confirmado posteriormente nos registros da escola. Ressaltou que essa coleção, por ser temática, tem uma seqüência, e que o ideal seria, inclusive, trabalhar com os alunos das 8 séries de forma articulada com o trabalho que já vinha fazendo nas outras séries.

Temos, então, que a decisão da SEE ­ CENP de possibilitar a escolha parcial ou total das coleções, aparentemente bastante democrática e com objetivo de privilegiar a prática pedagógica, na verdade possibilita um subterfúgio para que a própria Secretaria da Educação negocie de forma bastante flexível com as editoras, pois não se justifica que a EMEF Milton Campos tenha sido prejudicada na sua opção de receber a coleção inteira, visto que as condições objetivas para o atendimento de tal solicitação existiam. Esta afirmação pode ser verificada levando-se em conta que algumas escolas receberam a coleção História Temática completa.

Dentre as 1.443 escolas públicas da cidade de São Paulo, 316 instituições receberam os livros da coleção História Temática, porém apenas 129 receberam a coleção na íntegra, sendo que as 187 restantes receberam somente dois ou três livros da coleção.

Observamos na Tabela 1 a disparidade entre os volumes recebidos pela 7 e 8 séries. Por mais que na 8 série houvesse menos alunos, o contraste não se justifica, sendo que no caso de algumas coleções houve uma venda expressiva justamente na 8 série, como é o caso da coleção Brasil: Uma História em construção, alvo das nossas observações anteriores.

Outra constatação interessante pode ser feita na comparação das duas coleções que obtiveram o maior número de vendas.

Notamos que, no caso das coleções especificadas na Tabela 2 ­ justamente as mais vendidas de História ­ há alternância de livros mais vendidos em séries diferenciadas. Ou seja, também aqui conseguimos visualizar que as escolas não receberam as coleções completas.

Opção ou imposição? Esta foi a pergunta que nos fizemos ao deparar com tais dados.

Poderíamos considerar a hipótese de as escolas realmente terem optado pela coleção fragmentada; sendo assim, ou a maioria das escolas tenderia a estar com projetos diferenciados, ou ainda poderíamos pressupor a incapacidade do docente de escolher adequadamente o livro didático, sendo esta alternativa a mais apresentada no discurso governamental, tal como consta no MEC (1993), Batista, e até em análises internacionais, como a de Choppin.12 12 MEC, 1993. Op. Cit, BATISTA, Antonio Augusto Gomes. Op. cit.; CHOPPIN, Alain. Las políticas de libros escolares en el mundo: perspectiva comparativa e histórica. In: PÉREZ SILLER, J. y RADKAU GARCÍA, V. (coords.): Identidad en el imaginario nacional. reescritura y enseñanza de la historia. México: Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades de la Universidad Autónoma de Puebla/El Colegio de San Luis y Georg Eckert Institut, 1998, p.169-180.

Porém, o que concluímos dos indicadores apresentados em relação ao recebimento das coleções fragmentadas é que na compra dos livros as considerações mercadológicas superaram as considerações educacionais, visto que todos os docentes entrevistados (de todas as disciplinas) afirmaram que as coleções foram solicitadas completas, tanto na primeira quanto na segunda opção. Enfatizamos que esta parte de nosso estudo se deu predominantemente de forma qualitativa, sendo que entrevistamos nove docentes ao todo, que confirmaram a escolha por coleção, mas consideramos que estes profissionais representam, pelo menos, os valores do grupo ao qual pertencem.

O depoimento da diretora do Milton Campos, em relação ao recebimento das coleções de forma fragmentada, reflete o discurso dos outros docentes entrevistados. Na época da escolha dos livros em questão, 2001, ela era coordenadora pedagógica:

Lembro de ter recebido as coleções fragmentadas. É terrível, porque o trabalho fica sem continuidade. Inclusive, você escolheu a coleção porque gostaria que houvesse a continuidade, e essa foi cortada. Seria melhor vir a 2 opção desde que inteira, justamente por causa da continuidade.13 13 Profa. Daise em entrevista concedida em 23/01/2003 para Célia Cassiano.

O professor paulistano, foco do nosso estudo, subverte a prescrição na sua prática, utilizando o livro didático recebido de modo a reinventá-lo criativamente, ou mesmo recusando-se a utilizá-lo.

O despreparo do professor é alardeado pelo discurso oficial, pelos órgãos internacionais e pela mídia, que lhe atribuem toda a responsabilidade pela escolha inadequada do livro didático. Todavia, no caso apresentado, as conseqüências de uma negociação que se estabeleceu em parte por objetivos de mercado, os quais, em vez de prioritariamente educacionais, ficaram velados. Aos docentes coube administrar na sua prática cotidiana a organização dos saberes com os livros recebidos. Voltemos ao depoimento da Prof. Silmar:

Em 2002 eu dei aula para todas as 6as séries e para uma sala de 8ª série. Senti muito ter recebido o livro Brasil: uma história em construção, pois eu já vinha trabalhando com a História Temática e ela se desprende um pouco da questão cronológica. Ela vai à direção de você levantar um questionamento, de você pegar um tema e ver como ele permeia toda a História. Independentemente de século, de datas, enfim... porque o tema está presente em nossas vidas. Agora, no caso do Brasil, uma história em construção, ele foca o Brasil. Que é interessante? É. Mas para uma 8 série eu preferia estar trabalhando com História Temática e, principalmente, focando em coisas do mundo contemporâneo. Coisa que infelizmente o livro didático não ajudou. Apesar disso, eu ainda consegui trabalhar com o livro, mesclando com outros materiais. Agora, professores outros, que pegaram as outras salas de 8 série, simplesmente não usaram os livros. Eu usava com textos complementares, e até com outros livros, porque a escola normalmente tem uma reserva de anos anteriores, e a gente trabalhava um pouco com cada um.14 14 Prof. Silmar, entrevista concedida em 10/1/2003 para Célia Cassiano.

Podemos concluir, pelos dados apresentados e pela fala dos docentes que, muitas vezes, aspectos da materialidade dos livros didáticos interferem diretamente na sua prática pedagógica, atuando como um constrangimento que obriga o professor a reelaborar o desenvolvimento de sua prática em função do material recebido e, por vezes, alterando os saberes pedagógicos que circularão na sala de aula.

Procuramos demonstrar, então, que aspectos políticos e econômicos, subjacentes à circulação do livro didático, interferem diretamente na prática do professor, que se concretiza na sala de aula e, portanto, no currículo em ação!

NOTAS

Artigo recebido em 06/2004. Aprovado em 09/2004.

  • 2 APPLE, Michael W. Trabalho docente e textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p.85.
  • 3 GIMENO-SACRISTÁN, J. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3.ed. Porto Alegre:Artmed, 2000, p.89.
  • 4 LAJOLO, Marisa (org). 1996. Livro didático: um (quase) manual de usuário. In: Em aberto. INEP. v.16. n 69, pp. 3-7[
  • STANDARDIZEDENDPARAG]5 BATISTA. Antonio Augusto Gomes. Recomendações para uma política pública de livros didáticos. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental, 2001[
  • STANDARDIZEDENDPARAG] 6 MEC. 1993. Plano decenal de Educação para Todos/ 1993 ­ 2003 Brasília: MEC.
  • 8 MEC. 2001. Guia de livros didáticos. 5 a 8 séries Brasília: MEC.
  • 9 SEE SP/CENP. Lendo e aprendendo manual de orientação para a escolha de livros: PNLD 2001/2002. São Paulo: SEE/CENP, 2001, p. 7-8
  • 10 MEC. 2001. Guia de livros didáticos. 5 a 8 séries Brasília: MEC.
  • 12 MEC, 1993. Op. Cit, BATISTA, Antonio Augusto Gomes. Op. cit.; CHOPPIN, Alain. Las políticas de libros escolares en el mundo: perspectiva comparativa e histórica. In: PÉREZ SILLER, J. y RADKAU GARCÍA, V. (coords.): Identidad en el imaginario nacional. reescritura y enseñanza de la historia. México: Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades de la Universidad Autónoma de Puebla/El Colegio de San Luis y Georg Eckert Institut, 1998, p.169-180.
  • 1
    Doutoranda da Pontifícia Universidade Católica de Santos ­ PUC-SP ­ CEP 05014-001.
  • 2
    APPLE, Michael W.
    Trabalho docente e textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995, p.85.
  • 3
    GIMENO-SACRISTÁN, J.
    O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3.ed. Porto Alegre:Artmed, 2000, p.89.
  • 4
    LAJOLO, Marisa (org). 1996. Livro didático: um (quase) manual de usuário. In:
    Em aberto. INEP. v.16. n 69, pp. 3-7[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • 5
    BATISTA. Antonio Augusto Gomes.
    Recomendações para uma política pública de livros didáticos. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental, 2001[ STANDARDIZEDENDPARAG]
  • 6
    MEC. 1993. Plano
    decenal de Educação para Todos/ 1993 ­ 2003. Brasília: MEC. grifo meu.
  • 7
    BATISTA, Antonio Augusto Gomes.
    Op. cit.
  • 8
    MEC. 2001.
    Guia de livros didáticos. 5 a 8 séries. Brasília: MEC.
  • 9
    SEE SP/CENP.
    Lendo e aprendendo. manual de orientação para a escolha de livros: PNLD 2001/2002. São Paulo: SEE/CENP, 2001, p. 7-8 (grifo do autor).
  • 10
    MEC. 2001.
    Guia de livros didáticos. 5 a 8 séries. Brasília: MEC.
  • 11
    Profa. Silmar, entrevista realizada em 10/1/2003.
  • 12
    MEC, 1993.
    Op. Cit, BATISTA, Antonio Augusto Gomes.
    Op. cit.; CHOPPIN, Alain. Las políticas de libros escolares en el mundo: perspectiva comparativa e histórica. In: PÉREZ SILLER, J. y RADKAU GARCÍA, V. (coords.):
    Identidad en el imaginario nacional. reescritura y enseñanza de la historia. México: Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades de la Universidad Autónoma de Puebla/El Colegio de San Luis y Georg Eckert Institut, 1998, p.169-180.
  • 13
    Profa. Daise em entrevista concedida em 23/01/2003 para Célia Cassiano.
  • 14
    Prof. Silmar, entrevista concedida em 10/1/2003 para Célia Cassiano.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Fev 2006
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      Set 2004
    • Recebido
      Jun 2004
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