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A ESQUERDA NO NEVOEIRO: Trajetórias, desafios e possibilidades

The Left in the Fog: Trajectory, Challenges and Possibilities

RESUMO

Três ciclos se completam neste momento histórico e emprestam à situação política instabilidade e grande opacidade. São o objeto deste artigo. Trata-se do ciclo democratizador iniciado nos anos 1970, daquele relativo ao PT como tendo absoluta hegemonia na esquerda e, por fim, um mais curto, relativo aos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Seus fechamentos implicam também a passagem a um novo ciclo, ainda indefinido, e uma possível reorganização ampla da esquerda ao mesmo tempo que claramente se mostra o esgotamento do sistema político construído nesse período.

PALAVRAS-CHAVE:
esquerda; ciclos políticos; crise; PT; PSOL; Rede

ABSTRACT

Three cycles close at this historical juncture and lend the political situation instability and great opacity. They are the object of this article. They are the democratizing cycle begun in the 1970s, the cycle that had the Workers’ Party as absolutely hegemonic in the left and, finally, a shorter one, relative to the Luiz Inácio Lula da Silva and Dilma Rousseff governments. Their ends imply also the passage to a new cycle, still undefined, and a possible broad reorganization of the left at the same time that exhaustion of the political system built during this period becomes clear.

KEYWORDS:
left; political cycles; crisis; PT; PSOL; Rede

EM MEIO AO NEVOEIRO

A esquerda vive momento complicado no Brasil de 2016. Não está claro para onde irá, que lhe acontecerá. Parte significativa da até agora majoritária ala da esquerda patinava até há pouco, tendo à frente um governo Dilma Rousseff que a alguns mais parecia um pesadelo que os oprimia e manietava, uma vez que se viam na obrigação de apoiá-lo, ainda que em muitos casos criticamente, ao passo que para outros a situação apenas confirmava a necessidade de oposição. Novas linhas de força também vêm se delineando, que tendem a levá-la em direções ainda pouco claras. O nevoeiro é forte, e navegar em meio a ele não é simples, mas, se navegar é preciso, cumpre olhar as estrelas e tentar identificar onde fica o norte dessa história - ou, mais precisamente, onde ele pode ser firmado.

Sem dúvida há questões de curto prazo, que o golpe parlamentar-midiático realizado pelo impeachment de Rousseff suscita, em si, bem como em termos da resistência ao ajuste neoliberal que o governo de Michel Temer promete implantar (embora seja duvidoso até que ponto isso efetivamente irá ocorrer). Isso é verdadeiro, sobretudo, na medida em que a resistência a seu governo e às políticas que visa a implantar ao que tudo indica será acirrada. Mas é preciso remeter essa situação e as respostas a ela a questões mais profundas, tentando localizar, através do nevoeiro em que a política brasileira se encontra envolta, alguns temas de trajetória histórica, diagnóstico da conjuntura presente e linhas de força possíveis para o futuro, em relação especificamente à situação da esquerda e da centro-esquerda, definidas de forma ampla. Destaque será dado à política em sua autonomia de fato. Sem prejuízo da identificação de “interesses de classe” calcados nas lutas pela retenção do excedente econômico, é preciso ir além do marxismo nesse sentido, especialmente de variantes suas que não conseguem se libertar de uma visão mais estreita de como aqueles “interesses” supostamente se traduzem na política, o que se replica na também bastante difundida ideia utilitário-liberal do “voto econômico”.

Na modernidade as identidades políticas se constroem politicamente.1 1 Ver Urbinati, 2006, p. 49, para um argumento nessa direção. Isso pode soar como um truísmo, mas se opõe à ideia de que é possível derivar, não importa com quantas mediações se conte, essas identidades das “bases” materiais da vida social.É claro que questões materiais são importantes, fornecendo motivos e “interesses” aos agentes. Mas, sobretudo em sociedades cada vez mais complexas e plurais, com um debate público aberto, como é a brasileira hoje, é a dinâmica da política que define essa dimensão imaginária e institucional em que nos movemos há alguns séculos. Nenhuma coletividade está assim sem mais na esquerda, na direita ou no centro:é o processo político ele próprio que tece essas identidades, embora aqueles motivos e “interesses” sejam cruciais para sua constituição. Ao fim e ao cabo, isso implica que os agentes sociais se moldam mutuamente no curso de suas interações sociais, no caso especificamente políticas.

FINS DE CICLOS

O Brasil vive conjuntura particularmente complexa por se encontrar em um momento em que os finais de vários ciclos se cruzam e sobredeterminam. A potência destituinte da crise atual daí adveio.2 2 Domingues, 2015.

O primeiro deles diz respeito a um processo de longo prazo.3 3 Isso está ausente e limita boa parte das análises sobre o Brasil con­ temporâneo, mesmo as mais argutas, como a de Singer, 2012. Nobre, 2013, sublinha apenas os aspectos negativos do processo. Se de 1930 a 1970-80 realizou-se o que se pode denominar de “modernização conservadora” do Brasil - industrialização e urbanização com manutenção do latifúndio -, sua conclusão coincidiu com a irresistível ascensão do movimento democrático.Este, vindo de fato do período anterior, encontrou na luta contra o regime militar, que completava a modernização do país, seu momento de consolidação, ampliação e, por fim, triunfo. Evidentemente, este não foi absoluto. Como em quase todas as transições de regimes ditatoriais para democrático-liberais - salvo as de cunho revolucionário, que se contam nos dedos, ou por conta de derrotas militares -, foi mediante negociação com o regime que se retirava que o processo de democratização institucional se concretizou.

Todavia, nem se realizou a transição simplesmente pelo alto - pois a participação popular foi enorme, seja eleitoralmente, seja nos movimentos sociais, nos partidos ou nas ruas -, nem se resumiu a democratização ao aspecto institucional. O imaginário nacional abraçou com vigor concepções e práticas mais igualitárias, ainda que sem eliminar, de modo algum, perspectivas autoritárias e excludentes. Foi precisamente esse longo ciclo de democratização que se esgotou. As energias mobilizadas naqueles tempos já não existem, os quadros que os teceram envelheceram, algumas de suas ideias se concretizaram, muitas foram abandonadas, as formas de organização que engendraram se encarquilharam ou se mancharam.

Se isso é verdade hoje, não há como nem por que desconhecer que a esquerda teve papel destacado naquele processo, impulsionando os movimentos sociais e aliando-se aos políticos liberais, muitos dos quais, como Ulysses Guimarães, descobriram uma vocação democrática que por vezes mesmo desconheciam na densidade em que a vieram a abraçar. Da vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) em 1974, passando pelas manifestações estudantis e as grandes greves operárias de fins dos anos 1970, pela eleição de governadores em 1982, a campanha das Diretas Já em 1984 e a eleição indireta de Tancredo Neves em 1985, à Constituição de 1988 - hoje por todos celebrada -, essas lutas e vitórias seriam inimagináveis sem a presença da esquerda e a mobilização de largas parcelas das classes médias e das camadas populares.

A esquerda armada, a despeito do desassombro de seus combatentes, mostrou-se um enorme equívoco político, sendo rapidamente derrotada e destroçada pela ditadura em inícios dos anos 1970, pagando alto preço por seu voluntarismo e análise equivocada da conjuntura.4 4 Gorender, 1999. A política que acabou por se mostrar correta implicou aquela frente democrática, na esquerda capitaneada pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), 5 5 Segatto, 1981; Vianna, 1988. o qual não foi, porém, capaz de recolher os frutos de seu acerto estratégico. Isso se explica por vários fatores. Dentre eles, destacam-se sua desestruturação pela repressão da ditadura (sobretudo entre 1975 e 1976), sua dificuldade de enraizar-se na nova e ampliada classe operária (embora o partido houvesse, antes de aquela se abater sobre ele, avançado no abc Paulista) e seus vínculos excessivos com o comunismo soviético.Além disso, cumpre sublinhar sua perda de identidade em seu envolvimento com o MDB e no fim das contas relativamente baixa valorização dos elementos de mobilização popular dentro da frente democrática.Finalmente, pouco ajudou a volta de quadros de direção desconectados da realidade do país, bem como as brutais lutas internas que se encontravam então em curso em seu seio, em particular envolvendo sua direção “centrista”, os chamados “eurocomunistas” e os “prestistas”, com a vitória dos primeiros, que nada tinham de fato a propor de inovador frente à conjuntura e a quem faltava ousadia àquela altura.

Naquele momento nascia o Partido dos Trabalhadores (PT), de modo fulgurante e renovador, vinculado às grandes mobilizações populares, 6 6 Keck, 1991; Sarti, 2006; Secco, 2011. impulsionado pelas lideranças sindicais emergentes e recolhendo os quadros oriundos da luta armada e do trotskismo, bem como o vasto movimento de um catolicismo que girara à esquerda. O partido captou os principais militantes de muitos outros movimentos sociais, plurais, que se engajavam com variados temas, e organizou vastas parcelas das camadas médias, das classes populares e da intelectualidade. Afirmou-se assim como fator crucial nos momentos finais daquele ciclo democratizador e, à sua maneira, da frente democrática, embora tivesse dificuldades para reconhecer seu papel dentro desse amplo processo (como quando expulsou parlamentares seus por votarem em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e se recusou, inicialmente, a assinar a Constituição de 1988).

Por sua vez, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) começava sua longa marcha rumo a uma postura sóbria, que o levou a se posicionar como aliado preferencial do PT. O Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Leonel Brizola, poderia ter decolado para além do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, caso tivesse ganhado a eleição de 1989 mas, não tendo sido esse o caso, nunca voou alto.

Até a luta pelo impeachment de Fernando Collor, após uma dura derrota eleitoral da esquerda, a mobilização popular e o processo de democratização seguiram firmes.7 7 Ver Sallum Jr., 2016. Mesmo apesar da eleição e da reeleição de Fernando Henrique Cardoso, havia sempre a esperança de avanços, em especial porque o PT aparecia como uma reserva moral e política da esquerda.Os anos 1990 viram, porém, aquela mobilização declinar irremediavelmente.8 8 Isso se deu em parte pelos limites que os ciclos de mobilização tendem a manifestar, uma vez que não é possível mantê­los indefinidamente. Mas derivou provavelmente também da crescente privatização da vida e de uma espécie de individualismo utilitário e defensivo devido ao menos em parte à influência do neoliberalismo. Ambos marcaram os anos 1990 no Brasil, perdurando até nossos dias.

O Sindicato dos Petroleiros foi, logo no início do governo neoliberal de Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e do Partido da Frente Liberal (PFL), atropelado pela máquina estatal repressiva, inclusive por meios legais (por não entender que, embora suas demandas de cumprimento de um acordo definido com Itamar Franco fossem justas, era erro grave enfrentar com uma greve e de peito aberto um governo eleito no primeiro turno). Assim, ao lado do declínio da mobilização popular que caracterizara a década de 1990, com a desmobilização das associações de moradores e o recuo das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), entre outros fenômenos, a ameaça ao sindicalismo foi compreendida, com a adoção, por este, de atitude mais prudente, além do mais tendo de mover-se em meio a um cenário de economia deprimida e privatizações, em que a mobilização dos trabalhadores era difícil e muitas vezes arriscada. Durante esses anos, o único movimento social forte de enfrentamento ao neo liberalismo, e que perseverou em sua luta pela reforma agrária, foi o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), após a espetacular Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, campanha capitaneada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), cujos efeitos perduraram por bastante tempo.

O esgotamento do programa neoliberal de Cardoso (mais puro, ainda que relativamente moderado e já com traços de políticas sociais liberais referentes à pobreza e outras questões setoriais), inclusive em função das crises econômicas que enfrentou, tinha como corolário quase inevitável a ascensão de Lula e do PT ao governo federal. Além disso, uma moderação crescente e seu deslocamento progressivo para a centro-esquerda, favorecido ademais pelo deslizamento do PSDB rumo à direita, permitiam-lhes sonhar com governar o país sem choques mais duros com os setores conservadores e, supunham, as classes dominantes.

Montou-se assim programa comedido (“social-desenvolvimentista”, visando ampliar o mercado interno, aumentar salários e consumo, combater a miséria e a pobreza), que desaguou em larga medida em uma forma de social-liberalismo que manteve muitos dos pilares dos governos do PSDB, com um “reformismo fraco”, no dizer de Singer.9 9 Singer, 2012. Os dois mandatos de Lula, emprestando centralidade a essa agenda, mas sacrificando outros elementos fundamentais do imaginário e da plataforma petistas - da reforma urbana às políticas sociais universais, do neodesenvolvimentismo à reforma eleitoral e à democratização dos meios de comunicação -, foram a concretização institucional máxima daqueles movimentos da cidadania, que já não existiam como força mobilizadora no contexto mesmo da ascensão dessa esquerda ao governo. Ou seja, tratava-se da passagem de uma “cidadania instituinte”, mobilizada, a uma “cidadania instituída”, corporificada em leis, regras, mudança de pessoal e, nesse caso, módica mudança do aparelho estatal.10 10 Ver Domingues, 2009. Verdade também que não apostaram na mobilização, que de todo modo não se pode realmente deslanchar de cima para baixo.

A questão social, a despeito desses limites, veio para o centro da agenda nacional. Seja como for, desde os anos de Vargas, que a tratou de forma limitada e corporativa, ela não estivera tão no cerne da política governamental, não obstante os enormes avanços implicados pela Constituição de 1988 em si, cuja concretização ainda se colocava - e se coloca - como tarefa política.

Não é fácil definir o que, de maneira ampla, pode se seguir a esse ciclo democratizador. O que além do mais complica a situação é que outro ciclo coincidentemente com ele se esgotou. Trata-se do ciclo da absoluta e inconteste hegemonia do PT na esquerda brasileira.

O PT surgiu buscando centralidade a cada passo.Pensou-se assim: para importar ao partido era preciso estar dentro dele e não admitia negociar de fato fora dessa posição de superioridade.Olhava para trás e via, espelhando de maneira curiosa e aparentemente a confirmando, a tese de Weffort11 11 Weffort, 1978. de que a esquerda brasileira - quer dizer, o PCB fora conivente com o populismo e, portanto, incapaz de realmente representar o interesse dos trabalhadores. O PT começaria, ao contrário, daí, pondo os interesses das massas assalariadas em primeiro lugar.Afora isso, estratégia e sobretudo metas mais ambiciosas, como o socialismo, seriam construídas pela própria classe trabalhadora em sua experiência de luta. Se o PT nunca abandonou, até hoje ao menos, essa visão hegemonista (para além da hegemonia real que foi logrando ao longo do tempo), 12 12 Isso também é distinto de uma visão de hegemonia no sentido gramsciano, em que ganhar influência e apoio social externo é parte fundamental da política transformadora, o que de resto é tarefa urgente para uma renovação da esquerda. foram se fortalecendo o pragmatismo - sindical, em larga medida - e o aparelhismo - com predominância na visão daqueles oriundos da luta armada. Eles se ocultavam sob o “basismo” que aquele apelo aos interesses e à experiência concreta supunha, sem que a intensa mobilização dos movimentos sociais ligados ao partido, muitas vezes bastante radicalizados, e o participacionismo13 13 Os Orçamentos Participativos e mesmo os Conselhos da Constituição de 1988, criados em larga medida sob a influência do partido, foram a principal expressão dessa visão de participação popular direta. Aqueles foram fundamentalmente abandonados, estes foram acolhidos e promovidos somente com grande ambiguidade. que o tinham acompanhado sobrevivessem. A organização por tendências, por seu turno, foi tornando rígida a vida interna do partido, bloqueando a livre circulação dos militantes e cada vez mais subordinando-a a suas lideranças parlamentares e ao aparelho burocrático dirigente.

Após a derrota para Collor e duas outras seguidas e duras para Cardoso e o PSBD, o PT, como já dito acima, resolveu inclinar-se à centro-esquerda. Aí encontrou a grande tradição latino-americana que tanto combateu - os partidos populares pluriclassistas e a necessidade de buscar alianças com a burguesia “nacional” (ou talvez apenas “interna”, para mobilizar distinção cara a Poulantzas e aos críticos do “etapismo” anti-imperialista do PCB). No entanto, ao perceber, após sobretudo o escândalo do chamado “mensalão”, que perderia o apoio da classe média - que outrora fora crucial para seu desempenho eleitoral, fato estranhamente silenciado hoje em dia -, o PT aprofundou a ideia de que governava para os “pobres”, contra os “ricos” e, finalmente, a classe média supostamente “coxinha” - agora taxada de conservadora. Na verdade, retomava em parte, mais democrática e generosamente, a estratégia de Cardoso e do PSDB, nos quadros do Plano Real: mantinham-se os ricos - em particular o capital financeiro - protegidos e auferindo altos lucros e redistribuía-se parcela da renda das classes médias para os pobres, aproveitando-se ainda a bonança das commodities. Ao mesmo tempo, o PT foi se embolando cada vez mais profundamente com os partidos tradicionais, setores da burguesia, sobretudo as empreiteiras sedentas de obras públicas e que buscavam a internacionalização, e em todo tipo de esquemas que, de mal necessário devido aos altíssimos custos das campanhas eleitorais, começaram a contaminar muito do aparelho do partido.Assim Lula se reelegeu e conseguiu eleger e reeleger Dilma Rousseff.14 14 A narrativa desse processo é detalhada em Singer, 2015b.

Mas a trajetória do partido marcou-se também pela passagem de alguns de seus melhores quadros ao Estado. Os movimentos sociais em particular cederam muitos dirigentes à administração (como já haviam feito com os fundos de pensão). Não parece de modo algum crível falar de uma “nova classe”, como quis Oliveira, 15 15 Oliveira, 2010. mas de fato um setor dos trabalhadores encontrou na política uma maneira de melhorar de vida. Por outro lado, o programa social do PT se esgotou com o aumento do salário mínimo e do salário e do emprego em geral, o crédito barato, sobretudo via consignação no salário, as políticas focalizadas, em especial o Programa Bolsa Família, assim como se fez muito dependente de um crescente entrelaçamento entre os setores público e privado, na saúde e na educação superior expandidos, altamente favorável ao segundo.

Dilma completou aquele programa com o Brasil Carinhoso, avançou por conta própria com o Minha Casa Minha Vida, buscou a famosa “porta de saída” de uma suposta dependência da transferência de renda no Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), inventou o Mais Médicos (em parte por fora do Sistema Único de Saúde - SUS), mas não alterou significativamente sua lógica. A universalização da saúde e uma educação de qualidade, assim como o crescente e gritante gargalo dos transportes públicos, em uma economia dominada pelo automóvel, ficaram de lado, ao passo que a tentativa, extremamente voluntarista e tecnocrática (que não podem senão lembrar-nos de sua trajetória pregressa), de criar uma “nova matriz econômica” fracassava. Isso levou a taxas medíocres de crescimento e ao aprofundamento da reprimarização da economia brasileira (via agroindústria e mineração, com suas consequências sociais altamente negativas, em particular no campo e em relação às populações indígenas). O mal-estar social aumentava surdamente e de súbito atingiu ponto de ebulição em junho de 2013, transbordando nas massivas manifestações daquele mês, às quais o PT reagiu muito mal, ainda hoje de fato vendo-as como de direita e responsáveis por suas agruras eleitorais e políticas posteriores.

A verdade é que o partido enfrentava enormes problemas, geracionais, de quadros, de autismo político, falta de projeto e programa o que compartilhava com alguns dos principais movimentos sociais tradicionalmente vinculados a sua trajetória. Os escândalos de corrupção complicaram ainda mais a situação, bem como sua reação, vitimizadora e problemática, às investigações. O hegemonismo do partido já cobrara ademais alto custo com a defecção do Partido Socialista Brasileiro (PSB) da base do governo, devido à recusa a considerar a sério a candidatura de Eduardo Campos, governador consagrado de Pernambuco e político talentoso, à Presidência da República. O ciclo se fechava, embora tivesse ainda certa viabilidade eleitoral, com a própria Dilma e eventualmente com Lula, conquanto os problemas fossem mais fundos e viessem, mais cedo ou mais trade, a eclodir. Aí, no entanto, a incapacidade política e mesmo econômica da presidenta escolhida, de modo autocrático, por Lula - que visava através dela também manter seu poder - mostrou-se catastrófica.

Aí temos como que um terceiro ciclo, o mais curto, eleitoral e de governo, que podemos datar da ascensão de Lula à Presidência - ao mesmo tempo coroando aquele ciclo democratizador - e com Dilma Rousseff.Ela concluiu, ao estendê-lo, o ciclo petista hegemônico, com suas políticas sociais, junto à novidade do chamado “ensaio desenvolvimentista”. Pode ser que Lula venha a de fato se candidatar e eventualmente vencer as próximas eleições presidenciais.Contudo, isso, em si, oferece mera sobrevida ao ciclo original, se tanto, uma vez que a situação é já muito distinta e não se tem ideia de como seria possível - com que programa e com que coalizão - Lula governar.

Está claro que grande parte das medidas que Dilma ensaiou em seu desenvolvimentismo buscava dar respostas às demandas dos empresários industriais. Adotou-as e no entanto lhes desagradou. Enfrentou o capital financeiro, mas foi obrigada a recuar, encontrando ao fim uma frente burguesa unida contra ela.16 16 Singer, 2015a. Nesse ponto, fica claro que reduzir sem mais os problemas da política econômica a interesses de classe incorre em erro, sobretudo ao dar pouca relevância a como isso se articulou politicamente. Dilma em especial implementou as medidas como se tivesse em mãos um receituário mecânico e, desativando na prática o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), criado por Lula, e ademais sem jogo de cintura para conversar com os capitães da indústria, portou-se tecnocraticamente, sem buscar perscrutar o resultado das medidas que implantava junto a exatamente seus principais beneficiários diretos. Além disso, parece ter, pela mão dura e falta de ouvidos, além de erros reais na condução econômica, unificado a burguesia contra ela ao abrir demasiadas frentes, do que se aproveitou o capital financeiro, afinal aquele que deveria ter sido seu alvo decisivo. O voluntarismo de sua juventude reafirmou-se e parece ter mais uma vez cobrado seu preço.

Assim, tentando reequilibrar-se, Dilma recuava e girava à direita quando vieram as manifestações de 2013.17 17 Domingues, 2015, cap. 5. Dado seu estilo, até reagiu mais ou menos bem à crise, mas não tinha propostas nem recursos para efetivamente responder à altura às demandas populares. A insatisfação não deixou de se fazer sentir, a despeito de pequena recuperação durante o processo eleitoral de 2014.Podia certamente ter dado um cavalo de pau à esquerda naquele momento, mas preferiu fazê-lo depois à direita, na sequência de uma eleição que agressivamente definiu, aí, sim, mas já sem bases para tanto, pela esquerda.Isso matou sua popularidade e minou ainda mais profundamente a confiança popular no PT, que esperneou, mas assimilou suas políticas de corte de gastos e aumento de impostos regressivos, tangido por Lula, que jogou desde o começo, entretanto, tanto a favor como contra o ajuste.Obviamente, isso dificultou os esforços do partido para se reconectar com a sociedade e manter seus vínculos com os movimentos sociais.Nesse sentido o impeachment foi uma bênção para o partido, que agora pode tentar se reencontrar no papel de oposição.

CENTRO-ESQUERDA(S) E ESQUERDA(S)

É a partir desse quadro geral que se deve compreender o presente. O sistema partidário como um todo evidencia enorme e visível distância da população. Aos partidos da centro-direita e da direita isso pouco importa, bastou-lhes por ora buscar manipular os descontentamentos de setores expressivos das classes médias e inclusive das classes populares, ao passo que projetam uma reforma que bloqueie a renovação do sistema político (com cláusula de barreira e sonhando com o retorno do financiamento empresarial de campanha). Mas para a esquerda se trata de situação dramática. O PT em especial se tornou partido estreitamente vinculado ao aparelho de Estado, e o projeto de mantê-lo absorveu suas energias.Não se deve desconhecer que a Central Única dos Trabalhadores (CUT) tem reservas de força, sobretudo institucional, e que o MST e seu braço jovem, o Levante Popular da Juventude, têm certa capacidade de mobilização. Isso se demonstrou com as manifestações contra o impeachment. Mas as movimentações principais vêm sendo articuladas de outras maneiras, por vezes, e por outras forças políticas, com muita frequência.18 18 Ver Bringel; Pleyers, 2015.

Ao ver o giro à direita realizado por Campos e o PSB nas eleições de 2014, o próprio Lula se perguntava, intrigado, o que levava a esse comportamento. Logo depois ele mesmo respondeu a sua indagação: isso ocorria porque o PT não deixava espaço para ninguém à esquerda.19 19 “Lula diz não entender posição de Campos”, 2014. Isso, porém, mudou, e as alterações em curso no sistema político-partidário expressam essa nova configuração.

Podia-se esperar que nas eleições de 2014 o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) crescesse expressivamente. Não foi o caso, com a exceção do Rio de Janeiro, embora a polarização que o PT conseguiu impor ao pleito explique em parte as dificuldades do PSOL.Estas não são, contudo, triviais. Advêm em parte da perspectiva e do discurso do partido, que por ora ainda não se mostrou capaz de reunir uma esquerda de cunho mais radical sem ser sectário - ainda que estivesse mesmo isolado na conjuntura até aqui -, apresentando-se inclusive como efetivamente socialista - o que não implicaria necessariamente um compromisso fechado com o marxismo a essa altura.Tem ainda dificuldade de desligar-se da tentativa de apresentar-se como a reencarnação do antigo PT, como se pudesse recuperar o manto de pureza e autenticidade que aquele gostava de ostentar em seus primeiros anos. Seus laços mais limitados com os movimentos sociais e a intelectualidade mais expressiva vêm criando também limites para o crescimento do partido.Tampouco ajuda sua forma de organização por tendências. Além disso, o PSOL tem tido muitas dificuldades para dialogar e fazer alianças com outras forças, preso a uma política da identidade que supre a falta de programa definido, de estratégia e tática claras, até porque suas divisões internas o impedem de precisá-las.

Apesar disso, o PSOL deve avançar daqui para a frente. Na verdade, na luta contra o impeachment o partido mostrou-se mais aberto e em algumas candidaturas às eleições municipais de 2016 conseguiu ampliar seu arco de alianças, adespeito de resistências internas, crescendo também nesse período na juventude e nos movimentos sociais. E, se superar realmente ao menos parte dessas debilidades, poderá ocupar um espaço à esquerda que o PT vem deixando vazio, em sua movimentação ao centro e, na prática do governo Dilma, até bem mais à direita, embora agora na oposição ao menos parcialmente isso possa se alterar. O PCdoB curiosamente se mantém como linha responsável voltada à preservação do Estado, agora novamente como resistência e projeção de futuro, e em grande medida auxiliar ao PT, também sem marcar um espaço mais à esquerda, destino estranho para uma agremiação comunista. Os outros grupos tradicionais marxistas (-leninistas) não têm expressão, cativos de um passado bolchevique encantado.

A novidade mais recente no novo quadro da centro-esquerda é a Rede Sustentabilidade. Paralelamente, seguem em curso certa reorganização dos movimentos sociais e mudanças nas perspectivas da juventude de modo geral.

Marina Silva foi candidata em 2010, abrindo um espaço próprio, de um centro indefinido naquele momento e em particular cativando a juventude, que em 2013 sairia às ruas. Sem conseguir viabilizar a Rede, seu partido, para as eleições de 2014, acabou, por obra e (des) graça do destino, candidata do PSB após a morte de Campos. Veio dessa vez pela centro-direita e terminou por apoiar Aécio Neves, candidato do PSDB, no segundo turno. Perdeu bastante de sua aura, muitos deixaram a legenda. Mas tudo indica que uma negociação os trouxe de volta, com outros tantos se somando à agremiação. Além disso, outros deslocamentos, sobretudo pela base, inclinam a Rede à centro-esquerda (conquanto Marina Silva ela mesma tenda a mover-se em direção contrária, a começar pelo provável passo em falso dado ao apoiar o impeachment de Rousseff). Se não tem movimentos sociais fortes em sua base, o novo partido recolhe com certeza o descontentamento de muitos na esquerda, no PT, no PSOL e em outras paragens, tendo como trunfos o ambientalismo, que galvaniza a juventude, e a ideia de que é possível fazer política de modo distinto do que se faz hoje, nas negociações espúrias e na corrupção em que a República mais que abertamente se conspurcou. Mas seu destino é a esta altura pouco claro.

O PDT não tem nem cara nem vocação hegemônica, mas pode retomar certo protagonismo caso Ciro Gomes seja de fato candidato à Presidência, representando, até certo ponto e talvez de modo passageiro, outro elemento de pluralização da centro-esquerda. Isso parece, afirmações em sentido contrário não obstante, extremamente improvável no caso do PSB, ainda que não se deva descartar de maneira absoluta sua participação em uma frente progressista reorganizada, o que somente terá lugar caso a esquerda consiga empurrar a sociedade mais geralmente de novo nessa direção.

Essa reorganização da centro-esquerda pode ser decisiva, no sentido de que é preciso seduzir - pela política, com propostas avançadas de direitos sociais universais e uma atenção redobrada à questão ambiental - vastos setores da classe média - a real, ainda que ampliada, não a que uma curiosa engenharia social neoliberal petista quis inventar.Isso incluiu ademais corporações importantes, como médicos, Judiciário, pesquisadores universitários, artistas. O PT não contará mais de modo geral com seu apoio, mas muitos dentre eles possuem perspectiva progressista, de enorme importância para o avanço de uma pauta emancipatória no Brasil contemporâneo. Como se definirão internamente os rumos da Rede, além dos do próprio PSOL, será nesse sentido de grande importância para a política brasileira nos próximos anos.

Como a encarnação da esquerda naquele momento, o PT ganhou, sem precisar disputá-los, a classe média e vastos setores das profissões que caracterizam essa heterogênea coletividade, nos anos 1980. O jogo político e a disputa pela hegemonia, com perspectivas de imaginário e opções civilizatórias, disputas dentro da concepção contemporânea de modernidade, demandam uma política a esta altura muito mais fina e complexa. Um discurso voltado apenas para a esquerda não dará conta dessa tarefa. Por isso, simplesmente voltar ao PT de suas décadas de fundação não é a solução. Mais é preciso.

Outra incógnita, isto posto, é mesmo o PT e suas opções de futuro. Será o partido capaz de se renovar? Manterá sua unidade? Será capaz, ao tentar se reencontrar, de superar o pragmatismo, mas igualmente a ideia equívoca de que basta voltar a suas feições nos anos 1980 para encontrar seu rumo? Que política de alianças quererá fazer? Tentará negociar uma ampla frente na esquerda e na centro-esquerda ou buscará - juntamente com o PCdoB -, mais uma vez e ao fim e ao cabo, retomar sua coalizão com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e outros partidos de centro-direita? Sobretudo, será capaz o partido de livrar-se de uma direção estreita, que se recusa a discutir, admitir erros e abrir espaço para a renovação, depois de ter alijado todos que tinham posições diferentes? É evidente que muito do que ocorrerá nas próximas décadas dependerá desses desdobramentos, que não estão de modo algum claros, embora os movimentos internos que neste momento estão em curso, conservadores e que fogem da responsabilidade própria, não sejam de bom augúrio para o futuro desse partido.

Além disso, novos movimentos sociais e certa renovação de alguns dos mais tradicionais se apresentam. A ideia de horizontalidade tem destaque nesse processo, embora seja ainda cedo para ver como efetivamente e em que medida se concretizará. Eles se vinculam a mudanças moleculares, sociais e políticas, anteriores às manifestações de 2013, mas delas herdam, no que tiveram de melhor e mais progressista, também militantes e um espírito mais fluido e aberto. Seu impacto no médio e no longo prazo pode ser decisivo, embora ainda seja preciso ver como será seu enlace com os partidos políticos. Por outro lado, organizações mais heterogêneas e em princípio mais verticalizadas, em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), vêm conseguindo abrir espaços próprios, com uma visão que porém lembra a do PT original, o que de modo algum é suficiente neste momento, de resto muito diferente, como já observado acima, daquele dos anos 1980.

Essas modificações do cenário político e no seio da esquerda e da centro-esquerda vieram para ficar. As eleições de 2016 trarão elementos concretos dessa nova configuração. Se uma possível candidatura de Lula, que não está de modo algum garantida, poderia dar alguma sobrevida ao projeto de hegemonia petista, depois de 2018 definitivamente nada restará daquele projeto original e um novo desenho deverá se consolidar. Nele o PT pode seguir tendo força e protagonismo, mas, mesmo se isso ocorrer, dificilmente poderá reivindicar posição de absoluta preeminência, muito menos de quase exclusividade, se conseguir, é claro, pelo menos parcialmente se renovar. Isso caracterizará um quadro em que muito mais inteligência e generosidade serão necessárias dentro da esquerda, o que nem sempre é fácil. Sobretudo o rancor tem de estar ausente desse novo cenário, pois favorecerá somente as forças conservadoras que mantêm, de formas variadas e muito mais fáticas que eleitorais, enorme poder na sociedade e no Estado brasileiros. Obviamente, o apoio ao impeachment por vários atores desse campo de centro-esquerda é problemático - parte da herança traumática do golpe parlamentar-midiático - em suas consequências, como foi o de vários liberais ao golpe de 1964, mas isso terá de ser digerido e superado em algum momento do futuro, pois em política não se pode ficar pendente do passado, e o isolamento em que se encontra a esquerda somente será superado se ela conseguir atrair o centro - principalmente seus setores em princípio de centro-esquerda - para um projeto compartilhado.

Seja como for, a proibição do financiamento empresarial de campanha pelo Supremo Tribunal Federal (STF) é extremamente importante na atual conjuntura (esperando-se que seja mantida para pleitos futuros). Ela pode mesmo possibilitar que a esquerda cresça de novo, avançando sobre redutos que já não poderão ser tão bem defendidos à base de recursos “doados” por empresas, em vez de simplesmente lutar por votos em seu interior, a despeito dos mecanismos clientelistas que setores seus adversários podem mobilizar em muitos casos. Isso pode compensar em parte o fato de que a esquerda se encontra na defensiva neste momento, em função da profunda crise do PT e da debacle final de seu projeto.Afinal, mal ou bem a esquerda tem muito mais capacidade de mobilização cidadã que a direita (embora esta tenha demonstrado capacidade de mobilização recentemente).20 20 Ver Velasco e Cruz; Kaysel; Codas, 2015.

Agregue-se a isso que na centro-direita as coisas estão também complicadas e em mudança. O PT perde assim a referência de seu principal e sempre repisado adversário, o PSDB, com cada vez mais violentas disputas internas, falta de projeto convincente e desnutrido talvez eventualmente pela saída de alguns de seus caciques paulistas rumo ao PMDB e ao PSB, e de todo modo bastante desgastado publicamente. A situação faz-se ainda mais fluida e os sistemas de aliança ampliam a sua complexidade, em uma situação em que nos próximos anos estarão todos disputando espaço. Obviamente, uma candidatura do pMDB em 2018 à Presidência seria também uma novidade, mas há que se ver como se desdobrará o governo Temer e o ajuste que pretende - ou diz pretender - impor ao país.

PARA ALÉM DO NEVOEIRO

Previsões sobre o desdobramento de ciclos históricos são arriscadas, fadadas ao erro, se buscam definir detalhes que somente a vontade dos indivíduos e coletividades, além de seus resultados não intencionais, produz.Os elementos aqui delineados parecem ter peso bastante, contudo, para definir em larga medida o que pode ocorrer nos próximos anos. Uma pluralização da centro-esquerda é clara e bem-vinda na verdade, ainda que não se possa dizer com precisão o destino da Rede, nem sequer o do PT, o primeiro por suas flutuações, o segundo pelo controle exercido por sua burocracia - e pelo próprio Lula.O mesmo se aplica ao PSOL no que tange a setores mais à esquerda. Será capaz de pôr-se à altura, organizacional, intelectual e politicamente, das tarefas que uma força socialista, mas não sectária, isto é, aberta a uma política de alianças que pudesse levar adiante seu projeto e estratégia, terá de cumprir? O PCdoB não parece se candidatar a isso, preocupado que se encontra em reforçar sua coalizão com o PT e retomar seu projeto nacional/nacionalista, ainda que em princípio essa permaneça uma questão que pode vir a ser enfrentada mais adiante.

Qual será o desenho preciso da esquerda e da centro-esquerda no futuro é prematuro dizer, até porque uma reorganização mais ampla desse lado do espectro político pode vir a se realizar de maneira mais sinuosa e completa.O fato de que junto ao PT permanecem movimentos sociais consistentes como a CUT e o MST (ainda que seja bem menor hoje a capacidade de mobilização de ambos) dá certo fôlego ao partido, assim como o faz sua estrutura por todo o território nacional. Isso, por outro lado, não consiste em si em garantia de futuro, muito menos promissor; e, mesmo se fosse, vale perguntar se manter em um só partido, hegemônico, da esquerda mais radical ao centro (mais além da centro-esquerda, na verdade) tem sido e será bom para o PT, para a esquerda e para a democracia. Apossibilidade de um“racha”definitivo desse partido tampouco deve ser desconsiderada.Em todo caso, certamente uma suposta frente de esquerda que meramente dê cobertura à candidatura de Lula (ou à de qualquer outro) será ilusória se não implicar mudanças e rearticulações muito mais profundas. Pendentes do passado é que não podemos ficar.

No fim das contas, essas modificações no cenário político e no seio da esquerda e da centro-esquerda vieram para ficar. De todo modo, é forçoso reconhecer que os partidos brasileiros são heterogêneos e que boa parte das tendências que emergirão à frente do atual processo de reorganização política dificilmente se mostrará totalmente homogênea. Mas é preciso ter claro: há duas possibilidades de pensar a reconstituição de um projeto de esquerda hoje. Uma implica uma aliança dentro do campo da esquerda e da centro-esquerda, tal qual caracterizadas aqui.A outra é voltar a buscar no PMDB e outros partidos ainda mais à direita do que ele os aliados preferenciais.Para além disso, há a possibilidade de Marina Silva, para governar, acabar aliando-se a partidos de centro-direita caso vença as eleições de 2018, gerando mais uma vez uma crise na Rede, com problemas de novo já em função do apoio dela mesma e da executiva do partido ao impeachment de Rousseff. Se esta última seria alternativa péssima, a segunda possibilidade é improvável e na verdade a esta altura em larga medida nefasta e desmoralizadora. A primeira é difícil, demorada e trabalhosa, dado o quadro de fragmentação em que vivemos e as animosidades e divergências que afetam partidos do centro para a esquerda, mas a médio e longo prazo é a única que nos pode levar a um patamar mais elevado.

Mas, além de problemas de organização e alianças, há temas, para a esquerda, também muito complexos e que estão longe de estar bem equacionados. Questões de programa, estratégia e tática, incluindo sistemas de aliança, formação de quadros e democracia interna, limitando o poder das oligarquias dirigentes, e externamente, são temas que merecem ser aprofundados. Para além das questões bastante concretas dos direitos sociais universais, da justiça tributária e da dívida pública, bem como dos direitos individuais, do racismo, da igualdade de gêneros e da questão indígena, substantiva e estrategicamente duas questões são centrais.

Em primeiro lugar, trata-se do chamado “desenvolvimento sustentável”, cujos contornos concretos são fugidios, pois o conceito é essencialmente polissêmico. Seja como for, é questão inescapável. Bem-estar, a relação de poder entre os países e a alteração de nosso modo de vida capitalista, consumista e predatório são temas que se acham nela entrelaçados, assim como nossa inserção na divisão internacional do trabalho e na geopolítica global, com autonomia frente em particular aos Estados Unidos. Não há por que supor de fato a possibilidade de um “capitalismo de Estado” semelhante ao que se desenvolve na China, onde uma verdadeira revolução nacional e antiliberal teve lugar. Nosso caminho emancipatório terá de ser outro, goste-se ou não, privilegiando a questão democrática e o aprofundamento dos direitos, sem por outro lado subordinação aos interesses dos países centrais, espaços de autonomia devendo ser buscados permanentemente. Por outro lado, é preciso proteger-se nesse sentido da mera aplicação do “capitalismo verde”, que vem ganhando força em grandes setores do ambientalismo.

Apesar de ser conceito com décadas já de existência, o desenvolvimento sustentável - ou qualquer coisa que o substitua, preservando porém seu espírito - é conceito de configuração a ser definida, como de resto tudo que pareça mudar os parâmetros do mundo cada vez mais neoliberal e predatório em que vivemos, a começar muito diretamente pelo caso do neoextrativismo no Brasil. Mas ele pode se combinar com certeza com uma reorientação na direção de mobilizar energias societais e econômicas que vão além do modelo dos campeões nacionais que no Brasil não passaram de empreiteiras e empresas ligadas ao agronegócio durante os governos Lula e Dilma.

Se buscar uma nova relação com o meio ambiente é fundamental, por outro lado não há força política que possa abrir mão de buscar o desenvolvimento, desejo da maioria da população.

Por fim, a relação entre sociedade e Estado, em momento em que aquela sofre modificações que aumentam sua complexidade e a autonomia de indivíduos e coletividades, carece ser aprofundada, seja pelos movimentos sociais, que se renovam buscando autonomia e horizontalidade, seja pelos partidos, com sua vocação de poder estatal, os quais precisam ser radicalmente renovados em sua forma de mediar (sem capturar) a política e se reconectar à população.21 21 Nem o autonomismo e o imediatismo inspirados em Negri nem o “populismo” de Laclau solucionam essas questões. Trata­se de perspectivas unilaterais, que não conseguem dar conta cognitiva e politicamente da realidade. É o que os negrianos seguidamente constatam com suas multidões que não avançam ou se mostram crivadas de contradições internas. Por outro lado, o Podemos espanhol parece ter descoberto que em uma sociedade mais complexa uma polarização simplista dificilmente consegue prosperar. Não à toa se abriu a uma aliança com o Partido Socialista Obrero Español (PSOE), que recusava terminantemente. A ideia de que o kirchnerismo foi nesse sentido produtivo, origem das ideias de Laclau,é na verdade também falaz, pois dependeu de articulações muito mais plurais com os movimentos sociais e inclusive com os partidos, através da “transversalidade”, o que abandonou e talvez explique sua derrota recente (sem falar da debacle do chavismo). Mais adequada era a ideia de “democracia radical” que Laclau e Mouffe anteriormente haviam proposto,a qual se aproxima mais da trajetória original do PT e das demandas dos novos movimentos sociais espanhóis. Ver Domingues, 2016. Uma nova maneira de articular esses dois universos precisa ser encontrada, em particular na medida em que o aparelho estatal é crucial para a concretização de direitos, demanda dos movimentos sociais, bem como por se apresentar como elemento decisivo na luta contra o capital financeiro globalizado e na busca de autonomia do Brasil na geopolítica e na economia internacional.

Se há vários ciclos, há várias camadas de nevoeiro também. A outra camada, relativa às dificuldades para projetar uma mudança emancipatória mais profunda da vida social, que rompa significativamente com seus sistemas de dominação e exploração, mantém-se mais densa. O momento é difícil, mas é possível abrir novos ciclos que deem continuidade às lutas e conquistas populares das últimas décadas. É preciso, porém, reconhecer o novo e enfrentar esses desafios.

Finalmente, é importante salientar a esta altura que a reorganização da esquerda terá de se dar num momento de crise e esgotamento do sistema político, pois, se a representação sempre refrata a vontade popular, no momento presente o divórcio entre ambas é patentemente crescente. Levará tempo para que se solucione essa situação, sejam quais forem as candidaturas nas próximas eleições, em particular a nível presidencial. Um largo processo de acumulação de forças é necessário, o que inclui eleições, mas que obviamente nelas não se esgota, para que a política e a opinião se inclinem à esquerda.Esta precisa, sem conciliação, mas sem sectarismo, ganhando corporações e setores profissionais importantes na classe média enquanto reorganiza os setores populares, começar agora a refazer seu caminho. Se o PT do começo dos 2000 perdeu-se em alianças e negociações complicadas, voltar a sua face dos anos 1980 tampouco resolve o dilema;nem será simplesmente voltar a controlar o Executivo o que resolverá nossos problemas e, sobretudo, os do Brasil. A questão é muito mais complexa do que isso.Trata-se de construir um bloco mais sólido, menos amorfo, mas ao mesmo tempo plural, com propostas de mais longo alcance e de mudanças mais profundas em nossa visão de mundo. É que poderá nos fazer caminhar para a frente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Weffort, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
  • 1
    Ver Urbinati, 2006Urbinati, Nadia. Representative Democracy: Principles and Genealogy. Chicago: University of Chicago Press, 2006., p. 49, para um argumento nessa direção.
  • 2
    Domingues, 2015_____. O Brasil entre o presente e o futuro: conjuntura interna e inserção internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2015..
  • 3
    Isso está ausente e limita boa parte das análises sobre o Brasil con­ temporâneo, mesmo as mais argutas, como a de Singer, 2012Singer, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras , 2012.. Nobre, 2013Nobre, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013., sublinha apenas os aspectos negativos do processo.
  • 4
    Gorender, 1999Gorender, Jacob. Combate nas trevas. 5. ed. São Paulo: Ática, 1999..
  • 5
    Segatto, 1981Segatto, José Antonio. Breve história do PCB. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.; Vianna, 1988Vianna, Luiz Werneck. “Questão nacional e democracia:o Ocidente incompleto do PCB”. Novos Rumos, n.8-9, 1988..
  • 6
    Keck, 1991Keck, Margaret. PT: a lógica da diferença. São Paulo: Ática , 1991.; Sarti, 2006Sarti, Ingrid. Da outra margem do Rio:os partidos políticos em busca da utopia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.; Secco, 2011Secco, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê, 2011..
  • 7
    Ver Sallum Jr., 2016Sallum Jr., Brasilio. “Crise política e impeachment”. Novos Estudos - Cebrap, n. 105, 2016..
  • 8
    Isso se deu em parte pelos limites que os ciclos de mobilização tendem a manifestar, uma vez que não é possível mantê­los indefinidamente. Mas derivou provavelmente também da crescente privatização da vida e de uma espécie de individualismo utilitário e defensivo devido ao menos em parte à influência do neoliberalismo. Ambos marcaram os anos 1990 no Brasil, perdurando até nossos dias.
  • 9
    Singer, 2012Singer, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras , 2012..
  • 10
    Ver Domingues, 2009Domingues, José Maurício. A América Latina e a modernidade contemporânea: uma interpretação sociológica. Belo Horizonte: Ed. UFMG, [2008] 2009..
  • 11
    Weffort, 1978Weffort, Francisco. O populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978..
  • 12
    Isso também é distinto de uma visão de hegemonia no sentido gramsciano, em que ganhar influência e apoio social externo é parte fundamental da política transformadora, o que de resto é tarefa urgente para uma renovação da esquerda.
  • 13
    Os Orçamentos Participativos e mesmo os Conselhos da Constituição de 1988, criados em larga medida sob a influência do partido, foram a principal expressão dessa visão de participação popular direta. Aqueles foram fundamentalmente abandonados, estes foram acolhidos e promovidos somente com grande ambiguidade.
  • 14
    A narrativa desse processo é detalhada em Singer, 2015b_____. “O lulismo nas cordas”. Piauí, n. 111, 2015b..
  • 15
    Oliveira, 2010Oliveira, Francisco; Braga, Rui; Rizek, Cibele (Orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010..
  • 16
    Singer, 2015a_____. “Cutucando onças com varas curtas:o ensaio desenvolvimentista no primeiro mandato de Dilma Rousseff (2011-2014)”. Novos Estudos - Cebrap, n. 102, 2015a..
  • 17
    Domingues, 2015_____. O Brasil entre o presente e o futuro: conjuntura interna e inserção internacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2015., cap. 5.
  • 18
    Ver Bringel; Pleyers, 2015Bringel, Breno; Pleyers, Geoffrey. “Junho de 2013... dois anos depois: polarização, impactos e reconfiguração do ativismo no Brasil”. Nueva Sociedad, n. especial em português, out. 2015..
  • 19
    “Lula diz não entender posição de Campos”, 2014“Lula diz não entender posição de Campos”. Brasil 247, 8 abr. 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.brasil247.com/PT/247/pernambuco247/136064/Lula-diz-n%C3%A3o-entender-posi%C3%A7%C3%A3o-de-Campos.htm . Acesso em: 19 out. 2016.
    http://www.brasil247.com/PT/247/pernambu...
    .
  • 20
    Ver Velasco e Cruz; Kaysel; Codas, 2015Velasco e Cruz, Sebastião; Kaysel, André; Codas, Gustavo (Orgs.). Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015..
  • 21
    Nem o autonomismo e o imediatismo inspirados em Negri nem o “populismo” de Laclau solucionam essas questões. Trata­se de perspectivas unilaterais, que não conseguem dar conta cognitiva e politicamente da realidade. É o que os negrianos seguidamente constatam com suas multidões que não avançam ou se mostram crivadas de contradições internas. Por outro lado, o Podemos espanhol parece ter descoberto que em uma sociedade mais complexa uma polarização simplista dificilmente consegue prosperar. Não à toa se abriu a uma aliança com o Partido Socialista Obrero Español (PSOE), que recusava terminantemente. A ideia de que o kirchnerismo foi nesse sentido produtivo, origem das ideias de Laclau,é na verdade também falaz, pois dependeu de articulações muito mais plurais com os movimentos sociais e inclusive com os partidos, através da “transversalidade”, o que abandonou e talvez explique sua derrota recente (sem falar da debacle do chavismo). Mais adequada era a ideia de “democracia radical” que Laclau e Mouffe anteriormente haviam proposto,a qual se aproxima mais da trajetória original do PT e das demandas dos novos movimentos sociais espanhóis. Ver Domingues, 2016_____. “Teoria social crítica e tendências de desenvolvimento, emancipação e comunismo tardio”. Sociologia & Antropologia, v. 6, n. 1, 2016..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov 2016

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2015
  • Aceito
    20 Maio 2016
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