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Democracia consolidada e tamanho do Estado

Consolidated democracy and size of the State

Resumo

Consolidated democracy and size of the State. Common sense suggests that the more consolidated democracies and advanced economies tend to be more efficient and produce smaller States. What is observed in practice, however, is a positive correlation between "democratic consolidation" and "tax burden" (as a proxy for"size of Government"). This finding, while not expressing any causal relationship between the two variables, is an evidence that a more republican and democratic State, as defined in Bresser-Pereira, must be able to provide, effectively and efficiently, broader public services with better quality. This is, in consolidated democracies, the State should not be small.

demcraotic consolidation; nation-state; economic development; capitalist revolution; politics; size of Government; tax burden


demcraotic consolidation; nation-state; economic development; capitalist revolution; politics; size of Government; tax burden

Democracia consolidada e tamanho do Estado

Consolidated democracy and size of the State

Felipe Scudeler Salto

Bacharel em Economia pela Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EESP/ FGV-SP) e mestre em Administração Pública e Governo pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV-SP)

ABSTRACT

Consolidated democracy and size of the State. Common sense suggests that the more consolidated democracies and advanced economies tend to be more efficient and produce smaller States. What is observed in practice, however, is a positive correlation between "democratic consolidation" and "tax burden" (as a proxy for"size of Government"). This finding, while not expressing any causal relationship between the two variables, is an evidence that a more republican and democratic State, as defined in Bresser-Pereira, must be able to provide, effectively and efficiently, broader public services with better quality. This is, in consolidated democracies, the State should not be small.

Keywords: democratic consolidation; nation-state; economic development; capitalist revolution; politics; size of Government; tax burden.

JEL Classification: H10; H11; O43.

Democracias consolidadas tendem a ter Estados "fortes". A relação positiva encontrada entre "democracia" e "carga tributária" corrobora esta tese.

Por que a política é a mais nobre das profissões? Ora, porque é através dela que a sociedade constrói perma nentemente o Estado, instrumento por excelência de ação da sociedade civil, isto é, da nação. Luiz Carlos Bresser-Pereira, em aula proferida na FGV-SP, 2011.

Ideal e teoricamente, a nação e o Estado são entidades que compõem o mesmo organismo - o Estado-nação -, como um binômio a funcionar de forma inseparável, bem coordenada, cujo fim último é concretizar os sonhos pensados pela nação. Trata-se de instituições (em sentido, aqui, bastante amplo) que se organizam, conjuntamente, em um processo de construção e reconstrução contínuo e em busca de um objetivo claro, conforme mostraremos. Tal dinâmica só é possível através da política, isto é, dos processos políticos de construção do Estado, que permitem amalgamar os interesses coletivos e conduzi-los para o seio de uma estrutura capaz de torná-los concretos, reais, através de políticas públicas formuladas e executadas pelo Estado.

O Estado existe para que se atinjam objetivos distintos da rudimentar soma dos interesses individuais, para que se possam buscar objetivos que ultrapassam o resultado distorcido gerado pelos conhecidos "modelos de equilíbrio geral" da ortodoxia convencional. Tais modelos, de maneira pretensiosa, a partir da consolidação de problemas de otimização individual, dadas as respectivas funções-objetivos, alegam para si a resposta ao problema do interesse coletivo. Ora, se a soma dos interesses individuais fosse a interpretação correta para o desejo de uma comunidade, de uma sociedade, de uma nação, qual seria a função do Estado? Restaria ao Estado pouco mais do que o papel reduzido de coordenar conflitos e garantir direitos mínimos (e/ou direitos individuais).

Neste artigo, entendo que a coletividade busca, com o Estado, o atingimento de objetivos maiores. Maiores, porque são guiados por valores e condicionantes superiores a uma simples restrição orçamentária ou a qualquer outra que se possa imaginar para a formulação de problemas de otimização. Claro que o Estado atuasujeito a restrições, inclusive as de recursos financeiros, naturais, humanos, físicos, políticos etc., mas a coletividade tem como norte atingir metas muito maiores do que o resultado de um problema deste tipo. A coletividade busca, dentre outros objetivos, reduzir a pobreza, dirimir a desigualdade, promover a justiça social, melhorar a igualdade entre os cidadãos, ampliar a liberdade e a igualdade de oportunidades, ampliar a renda e o emprego, isto é, crescer economicamente. É isso que a história evidencia. O processo de redução das desigualdades que se dá através da construção política e democrática do Estado faz parte da própria definição de Estado. Mais do que isso, a possibilidade de o Estado existir é o que motiva a sociedade a organizar-se para buscar organizar uma instituição nestes moldes, que seja capaz de conduzir uma nação à realização de sua própria razão.

Este ensaio pretende, a partir da definição presente em boa parte da obra de Bresser-Pereira e de sua ideia de Estado republicano, discutir: o conceito e o tamanho do Estado e sua correlação com a consolidação da democracia. A partir destas premissas, concluirei com um debate suscitado por Bresser-Pereira (2010), em Construindo o Estado Republicano. Assim, abordarei o que é um objetivo por excelência a ser perseguido pelo Estado - o seu fortalecimento para que possa garantir os "direitos republicanos", ou, em outras palavras, para que possa fazer a defesa do patrimônio público. A demanda da sociedade é a de que o Estado não apenas lhe garanta direitos civis, políticos e sociais, mas que, através da criação de mecanismos que permitam ao Estado defender-se dos interesses corporativistas, privados ou dos chamados "rent seekers", garanta a preservação da "res publica". Como atingir esse objetivo? Será reduzindo este Estado, ou será preservando suas atribuições, garantindo seu espaço, legitimando suas funções, definindo sua essência e, constantemente, construindo-o?

DEFINIÇÃO DE ESTADO

Em artigo recente, Bresser-Pereira (2012, p. 6) pontua: "Para alguns o Estado é apenas uma organização com poder de legislar e tributar, para outros inclui também o sistema constitucional-legal, e para muitos se confunde com o Estado-nação ou país." Na verdade, para o autor, o Estado é a "ordem jurídica e a organização a garante" (2012, p. 7). É a principal instituição a definir e a conduzir a vida dos cidadãos, da sociedade civil e da nação, que é o resultado prático da construção política engendrada pela sociedade.

Trata-se, portanto, de uma visão política sobre o Estado, que o concebe como o resultado de uma relação permanente de forças políticas que precisam garantir (democraticamente, no modelo moderno de Estado), constantemente, a continuidade da vigência de compromissos, a efetividade de leis acordadas com a sociedade e de regras e normas socialmente aceitas. Segundo Bresser-Pereira (2010):

Assim, Estado é a ordem jurídica que detém o monopólio da violência legítima e o aparelho que o garante. O Estado deixa de ser antigo e passa a ser moderno em consequência de três transformações: a ordem jurídica passa a ser

constitucional

, ou seja, um sistema de direito baseado no império da lei ou no Estado de direito, os súditos se transformam em cidadãos, e o aparelho do Estado se separa do patrimônio privado dos soberanos e se transforma em

administração pública.

(Bresser-Pereira, 2010, p. 5)

É assim que o Estado Democrático de Direito deve ser compreendido como a lei, a Constituição, o conjunto de normas e regras aceitas, aprovadas e instituídas pela sociedade, mas não apenas isso. O Estado é a junção da lei ao aparato que a garante, que a torna efetiva, que a faz ser cumprida, executada, levada ao campo do concreto, através da execução dos anseios manifestos pela sociedade nestas regras, normas e leis, isto é, através da ação do Estado, que executa a lei formulando políticas públicas.

Antes disso, à luz de Max Weber, Bresser-Pereira (2010 e 2012) resgata, evidentemente, um conceito mais basilar (e essencial, portanto), que é a compreensão do Estado como a instituição soberana que detém o monopólio da força: "Quando digo ordem jurídica, estou falando em soberania e, nos termos de Max Weber, em monopólio da violência legítima" (Bresser-Pereira, 2012, p. 7). Esta garantia da lei e da ordem se dá através da "organização", que deve ser entendida como o con-junto formado por políticos eleitos, através de regras acordadas entre todos os cidadãos, e de políticos não eleitos, ou seja, burocratas e suas instituições, organismos, autarquias e outros organismos que compõem o Estado. A "organização", em democracias consolidadas (ou em processo de consolidação), pode ser interpretada como o ambiente que dá vida ao Estado, o que dá "movimento ao papel" ou "a força que tira do papel e garante a realização dos desejos, acordos e compromissos feitos na/com a sociedade".

Em contraposição ao Estado Antigo, o Estado Democrático de Direito substitui os direitos dos soberanos, seus privilégios e sua força, pela força da lei, garantida não mais pelo poder imperial, mas pelo poder democrático, que emana do povo, da sociedade, da política. Por isso, Bresser-Pereira insiste que a política é "a arte do compromisso". Em artigo para a Lua Nova, Bresser-Pereira (2010) mostra de forma muito clara a relação entre a sociedade e o Estado nas democracias. O Estado é o instrumento de ação da sua sociedade, o que está implícito quando se diz que ele é a lei e a organização que a garante, isto é, que garante o exercício desta lei:

Nas sociedades antigas, o Estado era o instrumento de dominação de uma oligarquia; na sociedade liberal do século XIX, ainda era um instrumento de dominação de uma grande classe burguesa; já nas sociedades democráticas, apesar de não se poder descartar o conceito de classe dominante, o Estado é o instrumento por excelência de ação coletiva da nação e da sociedade civil. (Bresser-Pereira, 2010, p. 117)

A atual conjuntura global requer uma reflexão pautada nestes termos. É preciso que se reflita a respeito do Estado deste ponto de vista. Vive-se o resultado de um modelo que reduziu a importância de compreender politicamente as funções do Estado e da sociedade e a relação de construção conjunta entre estas duas entidades ou instituições (novamente utilizando o termo em sentido mais amplo). Vive-se a tentativa de retomar o poder do Estado. Estamos falando da superação de um período em que predominou o modelo neoliberal, fruto das recomendações concebidas no "Consenso de Washington", como principal referência para "promover o desenvolvimento", supostamente, através do livre mercado e da maximização, pelos indivíduos, de suas respectivas utilidades, como mecanismo central para conceber esta dinâmica dita vencedora. Trata-se da visão expressa por Buchanan e Tullock (1962) e pelos demais teóricos da escolha pública:

The individual enters into an exchange relationship in which he furthers his own interest by providing some product or service that is of direct benefit to the individual on the other side of the transaction. At base, political or collective action under the individualistic view of the State is much the same. Two or more individuals find it mutually advantageous to join forces to accomplish certain common purposes. In a very real sen-se, they 'exchange' inputs in the securing of the commonly shared output. (Buchanan, 1962, p. 22)

A opção por este modelo significou a preservação dos anseios individuais como superiores ao combate à desigualdade, à garantia da promoção da justiça social, da redução da miséria, da promoção do desenvolvimento econômico integrado e inclusivo. Objetivos que só podem ser atingidos com a junção de Estado, Sociedade e Mercado, na presença de um Estado forte e capaz de promover a ordem e a lei, garantir que seja executada e cumprida, à luz do interesse público, de forma eficiente e preservando-se dos interesses corporativistas ou dos chamados "rent seekers".

A resposta que o fracasso do modelo neoliberal recebeu das sociedades democráticas e se refletiu nos Estados foi peremptória (está sendo, na verdade). Recupera-se, a partir de 2009, a capacidade de planejamento e de execução, de construção política e enfrentamento dos problemas econômicos, pelas mãos do Estado e do Mercado, isto é, de duas instituições centrais de um modelo capitalista que se pretenda sustentável, e não da destruição e redução do Estado em prol de uma liberdade e de uma igualdade que nunca se verificaram. Esta está sendo a essência da tentativa de resposta ao erro de excluir o Estado e elevar o Mercado à máxima participação em atividades que não lhe cabiam. Passa-se, agora, a incentivar, no lugar da ação individualista, a formulação de objetivos coletivos, a construção da ação pública, através do Estado. Poderá ser o início de um movimento de reconstrução política dos Estados modernos, democráticos e republicanos. Fortalecê-los parece ter-se transformado em palavra de ordem e, nesse sentido, torna-se crucial a reflexão posta nos estudos mais recentes de Bresser-Pereira.

TAMANHO DO ESTADO E DEMOCRACIA CONSOLIDADA

De que maneira os Estados preservaram sua capacidade de manterem-se fortes e conseguiram levar suas sociedades e economias a resultados mais ou menos positivos ao longo dos últimos anos? O conceito de "forte" deve ser entendido como: dotado de instrumentos para responder à demanda da sociedade por uma ação coordenada e para exercer, assim, sua função por excelência, conforme definição exposta acima, de garantir o exercício pleno da lei ou da "ordem jurídica", de maneira mais ampla. De que maneira se dá a relação entre democracias mais avançadas ou consolidadas e o nível de gastos ou carga tributária desses países? A ideia é conceber uma análise que permita ratificar a tese de que o Estado é uma construção contínua da sociedade, sendo seu tamanho nada mais do que o reflexo direto de quão democráticas e republicanas são as nações.

Um exemplo simples permite intuir a importância desse tipo de exercício. Imagine uma política de saúde, no Brasil, que tenha surtido bons resultados. A boa execução desta política atrairá mais e mais usuários e exigirá mais gastos para comportar o atendimento pleno aos brasileiros beneficiários do serviço. Em outras palavras, uma política democraticamente eleita como prioritária e bem executada levará a maiores gastos e, portanto, a um Estado maior (e não mais ineficiente, como advogaria o neoliberalismo).

Consideraremos, como referência para o exercício empírico que vamos apresentar, duas variáveis: o tamanho do Estado, medido pela carga tributária, e a variável de consolidação democrática, medida pelo índice "Polity IV". Quanto ao tamanho do Estado, o medirei nos termos proposto por Bresser-Pereira através da variável carga tributária, isto é, a soma de tudo aquilo que um país arrecada, de sua sociedade. Também poderíamos medir pelo tamanho da despesa total, o que, para fins práticos deste exercício, seria bastante similar. O lado das despesas ou gastos públicos nada mais é do que o lado da ação, execução e implementação dos bens e serviços, de acordo com a "ordem", a "lei" e a "Carta Constitucional", que são refletidas, por sua vez, em gastos direcionados para Saúde, Transportes, Defesa Nacional, Justiça, Educação, Previdência, Seguridade Social etc.

Para a carga tributária, utilizarei os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), publicados na base do World Economic Outlook (WEO).1 1 World Economic Outlook (WEO), abril de 2011. No caso brasileiro, utilizaremos, para 1988, os dados de carga tributária divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma vez que o FMI não publica informações mais antigas para nosso país. Já a variável "Polity IV"2 2 Polity IV é um índice calculado e divulgado para uma série de países, que pode ser encontrado neste endereço - http://www.systemicpeace.org/inscr/inscr.htm. Trata-se da variável mais utilizada pelos cientistas políticos e estudiosos do tema na comparação entre países. é calculada pelo Center for Systemic Peace, no âmbito do "Projeto Polity IV". A ideia do indicador é permitir que se façam comparações entre um grupo de países, analisando seu estágio de consolidação democrática. De outra forma, é uma variável que indica qualidade da democracia em diferentes países, variando de "-10 a +10", com "+10" representando os países mais democráticos e "-10" os menos democráticos.

Nosso exercício, assim, foi regredir a carga tributária (em % do PIB) contra a qualidade da democracia (Polity IV). Minha expectativa é que os países mais avançados, em termos democráticos, tendem a apresentar maiores níveis de gastos ou carga tributária, isto é, Estados maiores, capazes de atender de forma mais plena à suas comunidades. Os resultados da regressão podem ser vistos na página seguinte, no Gráfico 1.


Os dados são muito interessantes, na medida em que sugerem uma confirmação da teoria "bresseriana", que coloca o Estado democrático e republicano - o Estado que tem uma democracia consolidada e é capaz de se defender contra as tentativas de captura - como correlacionado com o desenvolvimento econômico e social. Evidentemente, não há relações de causalidade aqui comprovadas, mas dados que indicam fortemente uma importante relação entre "consolidação da democracia" e "tamanho do Estado". Isto contraria diretamente a visão neoliberal de que um Estado reduzido seria um Estado mais democrático e garantidor de liberdades individuais. Em verdade, Estados fortalecidos, fiscal e politicamente, são aqueles que sustentam maiores níveis de carga tributária.

No caso brasileiro, a julgar pelo exercício acima, vemos uma situação bastante agradável, quando comparamos às críticas recorrentes presentes na imprensa doméstica, no sentido de destruir qualquer esperança em relação à ação do Estado. Vemos, na realidade, uma democracia consolidada, com uma carga tributária que não é explosiva. É correto, sim, criticar a eficiência da destinação destes recursos e a dificuldade em avançar em áreas essenciais, como saúde e educação. Não podemos, entretanto, defender que a carga tributária elevada seria reflexo de um Estado oneroso e contrário aos objetivos de liberdade e de igualdade de oportunidades e que, por isso, deveríamos buscar reduzi-lo. Temos, sim, de buscar seu fortalecimento, sua atuação transparente e eficaz, pautada nos novos padrões da administração pública moderna. Já avançamos muito, é verdade, mas há muito por ser feito.

A garantia de direitos sociais importantes, como a universalização do sistema de saúde, pela Constituição de 1988, concretizada na década posterior, no "governo Fernando Henrique Cardoso", elevou o padrão de gastos e a necessidade de tributação. Isto garantiu a melhoria das condições de vida da população, a qualidade e a quantidade, principalmente, dos serviços e bens públicos ofertados.

É nesse âmbito que se faz necessária uma breve explanação sobre a questão da consolidação democrática. Em Bresser-Pereira (2011), encontramos uma definição basilar para este conceito:

Podemos encontrar muitas características que são comuns às democracias consolidadas, mas elas não explicam a consolidação democrática - apenas definem uma democracia estável. Por outro lado, quando um país faz sua transição para a democracia depois de ter completado sua revolução capitalista e industrial, podemos prever que ele provavelmente continuará sendo democrático. Somente um país que tenha completado essa revolução terá a estrutura social, a cultura política e as instituições que são exigidas por uma democracia consolidada. (Bresser-Pereira, 2011, p. 244)

A consolidação democrática pode ser vista, destarte, como um estágio da democracia em que a franquia de direitos políticos, sociais e civis se torna ampla, a ponto de garantir o acesso crescente aos serviços públicos e a possibilidade de alternância de poder e manutenção da ordem, simultaneamente. É a revolução capitalista (um processo dinâmico, e não estanque) que permite à nação atingir um estágio suficientemente elevado, em termos de desenvolvimento econômico, garantindo a solidez da democracia, isto é:

[...] à medida que os direitos de voto vão sendo estendidos para os pobres, as elites capitalistas percebem que essa mudança realmente não ameaça os direitos de propriedade e os contratos. Os trabalhadores, por sua vez, aumentam suas demandas de participação política, mas fazem isso de modo moderado. Por fim, as elites acabam percebendo, com base em suas próprias experiências e nas de outros países, que a democracia promove melhor seus interesses do que os regimes autoritários: é mais estável e prevê normas para que seus muitos membros repartam o poder e nele se alternem. (Bresser-Pereira, 2011, pp. 251-252)

Trata-se, portanto, de algo que ultrapassa a obtenção e a preservação dos diversos conjuntos de direitos e, em particular, dos direitos políticos. A consolidação democrática vai além da preservação do sufrágio universal e da existência de um sistema legal capaz de permitir que qualquer cidadão possa votar e ser votado. Nações desenvolvidas e consolidadas, democraticamente, são aquelas em que o desenvolvimento ocorre como um processo redutor de desigualdades, promotor da inclusão das classes mais pobres ao processo político e à dinâmica econômica, isto é, do consumo, da renda, do emprego e do crédito. Consolidação democrática é, portanto, o estágio posterior à conquista de direitos políticos e resultante (ainda que a causalidade não possa ser comprovada) do processo econômico de apropriação do excedente econômico através de lucros e salários (Bresser-Pereira, 2011, p. 251). É o estágio de desenvolvimento político, social e econômico em que uma nação consegue, por meio do fortalecimento de suas instituições democráticas, prover aos seus a expansão de bem-estar.

ESTADO "FORTE", "DEMOCRáTICO" E "REPUBLICANO"

Ainda há, no entanto, um passo importante a ser galgado - mesmo depois da continuidade da concepção de políticas sociais ampliadas fortemente no governo Luiz Inácio Lula da Silva - que provavelmente não se concretizará no curtíssimo prazo. É um processo que, sob regimes democráticos, continuará a ser gradual, porém sistemático, consistente e sólido. O importante e mais relevante a destacar é que esta dinâmica vem ocorrendo, o que se reflete na consolidação da democracia brasileira e na evolução do PIB per capita, que mais do que dobrou nas duas últimas décadas.

É preciso que convivamos, ainda, por bom tempo, com o atual patamar de 35% a 40% de carga tributária, em pontos percentuais do PIB, para que se consiga atingir, provavelmente, níveis mais elevados, socialmente justos e desejáveis de renda e de PIB per capita. A defesa da "redução do patamar da carga tributária/ PIB" não está correta, dessa forma, essencialmente em sociedades com níveis de desigualdade ainda tão significativos quanto os do Brasil. Evidentemente, o sistema tributário tem de ser mais eficiente, para que se arrecade o máximo possível gerando o mínimo de distorções sobre o sistema produtivo. Mas, mais do que isso, o sistema tributário precisa ser o menos regressivo possível. Impostos que incidem de forma isonômica sobre ricos e pobres não são bem-vindos e só fazem reforçar as condições de subdesenvolvimento de uma nação.

É preciso garantir que o sistema tributário seja pautado no objetivo de arrecadar para redistribuir e motivar a produção e a ampliação da capacidade de oferta da economia. Estas são as metas centrais, quando lembramos que o desenvolvimento é o fim último buscado pelas sociedades e pelo Estado, portanto, o que se dá através do pesado investimento em ciência e tecnologia, educação e infraestrutura - alavancas para motivar a geração de excedente produtivo e, portanto, para acelerar o dinamismo de uma economia que se pretenda efetivamente desenvolvida. Valendo-nos de Celso Furtado (1961):

Cabe, assim, à tecnologia desempenhar o papel de fator dinâmico central na economia industrial. E, como a tecnologia não é outra coisa senão a aplicação ao sistema produtivo do conhecimento científico do mundo físico, pode-se afirmar que a economia industrial só encontra limites de expansão na própria capacidade do homem para penetrar no conhecimento do mundo em que vive. (Furtado, 1961, p. 137)

Não há outra solução, senão o gasto eficiente e a tributação igualmente eficiente e focada nas classes mais altas, para que o processo de desenvolvimento seja propulsor da igualdade e da justiça social. Se pudéssemos completar o trecho acima destacado, poderíamos dizer que o Estado deveria, então, garantir a ampliação da capacitação dos cidadãos através do gasto eficiente em educação e do investimento vultoso em ciência e tecnologia.

Assim, através de um Estado presente e atuante, que também pode ser chama-do de "forte" e "eficiente", e que seja capaz de se precaver contra práticas de corrupção, desvio do dinheiro público e apropriação particular da coisa pública, caminharemos, cada vez mais, em direção à configuração do que se define como o "Estado democrático e republicano". Segundo Bresser-Pereira (2009):

O Estado republicano é suficientemente forte para se proteger do controle privado, defendendo o patrimônio público contra o

rent-seeking

; é um Estado participativo; [...] é um Estado que depende de funcionários governamentais [...] comprometidos com o interesse público; é um Estado com capacidade efetiva de reformar instituições e fazer cumprir a lei; é um Estado da legitimidade necessária para tributar [...]; é um Estado eficiente e eficaz [...]. (Bresser-Pereira, 2009, p. 164)

Assim, para termos um Estado forte, democrático e republicano, ou seja, um instrumento capaz de engendrar a ação coletiva da nação, esse Estado precisa ser social, precisa, além de garantir a ordem, gastar em grandes serviços sociais e científicos que a sociedade demanda e o processo de desenvolvimento econômico-social requer. Precisa, portanto, ser relativamente grande em termos de carga tributária.

Finalmente, Bresser-Pereira (2009) aponta que "A fim de [...] construir o Estado republicano, as sociedades modernas terão que contar com políticos, servidores públicos e cidadãos que estejam prontos a participar [...], dotados de patriotismo [...]." (p. 166). Tal missão é lançada àqueles que enxergam no Estado e na sua construção política a própria vocação; àqueles que enxergam na política o chamado para uma vida inteira, o chamado ao voo alçado pelas duas asas que Max Weber definiu em "A política como vocação": a "ética da responsabilidade" e "a ética dos princípios", isto é, o conjunto bem medido de compromissos e valores.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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World Economic Outlook (WEO). Abril, 2011: http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2011/01/weodata/index.aspx

Submetido: 18/julho/2012

Aprovado: 13/março/2013.

O autor agradece ao Professor Luiz Carlos Bresser-Pereira pelos primorosos e imprescindíveis comentários e sugestões elaborados ao presente artigo.

Agradece, ainda, pela cuidadosa revisão deste texto, cuja versão inicial foi apresentada como trabalho de conclusão de curso na disciplina "Estado e Sociedade", em 2011, no Programa de Pós-Graduação em Administração Pública da FGV-SP.

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  • 1
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  • 2
    Polity IV é um índice calculado e divulgado para uma série de países, que pode ser encontrado neste endereço -
    http://www.systemicpeace.org/inscr/inscr.htm. Trata-se da variável mais utilizada pelos cientistas políticos e estudiosos do tema na comparação entre países.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Mar 2014

    Histórico

    • Recebido
      18 Jul 2012
    • Aceito
      13 Mar 2013
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