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Aflatoxicose em cães na região Sul do Rio Grande do Sul

Aflatoxicosis in dogs in Southern Rio Grande do Sul

Resumos

Descrevem-se os aspectos clinicopatológicos de casos de aflatoxicose em cães no Sul do Rio Grande do Sul. Foi realizado um estudo retrospectivo dos casos diagnosticados como aflatoxicose em cães necropsiados no Laboratório Regional de Diagnóstico (LRD) da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) no período de 1978 a 2012. Em quatro casos o diagnóstico foi confirmado pela detecção de níveis de 89 a 191 ppb de aflatoxinas B1 e G1 no alimento dos cães. De um total de 27 cães com cirrose hepática, em seis havia suspeita de aflatoxicose pelas lesões macro e microscópicas e pelo tipo de alimentação que os cães recebiam. Os sinais clínicos nos casos confirmados e nos suspeitos caracterizaram-se por apatia, diarreia, icterícia e ascite, com evolução para morte em 8 a 30 dias nos casos confirmados e em 15 a 60 dias nos casos suspeitos. A dieta era à base de derivados de milho ou arroz, farelo de amendoim e, em um caso suspeito, a dieta era ração comercial. As alterações macroscópicas caracterizaram-se por ascite, icterícia, fígado aumentado de tamanho, com ou sem nódulos, hemorragia nas serosas, conteúdo intestinal hemorrágico. Os casos foram classificados de acordo com o padrão histológico principal, caracterizado por vacuolização difusa no citoplasma de hepatócitos nos casos agudos, por proliferação de ductos biliares e discreta fibroplasia nos casos subagudos e por fibrose acentuada nos casos crônicos. Aparentemente, a enfermidade não é importante como causa de morte em cães na região, no entanto, alerta-se para a possibilidade de casos com diagnóstico de cirrose hepática sem causa determinada serem causados por aflatoxicose.

Micotoxinas; aflatoxinas; aflatoxicose; cães; epidemiologia; histopatologia


Clinical pathological aflatoxicosis in dogs is described in southern Rio Grande do Sul. It was conducted a retrospective study of cases diagnosed as aflatoxicosis in dogs necropsied at the Regional Diagnostic Laboratory (LRD) of the Veterinary School of the Federal University of Pelotas (UFPel) in the period 1978-2012. In four cases the diagnosis was confirmed by detection of levels of aflatoxins B1 and G1, with the finding of 89-191ppb in the feed. The macroscopic and histologic lesions and the diet observed in six of 27 dogs with liver cirrhosis led to suspicion of aflatoxicosis. Clinical signs evidenced in confirmed or suspected cases were lethargy, diarrhea, jaundice and ascites, progressing to death within 8 to 30 days in confirmed cases, and within 15 to 60 days in suspected cases. The diet was corn and rice byproducts and peanut meal, and one of the dogs received commercial ration. Gross changes were characterized by ascites, jaundice, enlarged liver, with or without regenerative nodules, hemorrhages in serous membranes and bloody intestinal content. The cases were classified according to the main histological pattern, characterized by diffuse vacuolation of the cytoplasm of hepatocytes in acute cases, by proliferation of bile ducts, and mild fibrosis in subacute cases, and by severe fibrosis in chronic cases. Apparently the disease is not important as a cause of death in dogs in the region, nevertheless the possibility of cases of cirrhosis of unknown etiology would be caused by aflatoxicosis.

Mycotoxins; aflatoxins; aflatoxicosis; dogs; epidemiology; histopathology


PEQUENOS ANIMAIS

Aflatoxicose em cães na região Sul do Rio Grande do Sul

Aflatoxicosis in dogs in Southern Rio Grande do Sul

Angelita dos Reis GomesI; Clairton Marcolongo-PereiraI; Eliza S.V. SallisII; Daniela I. Brayer PereiraIII; Ana Lucia SchildIV,* * Autor para correspondência: alschild@terra.com.br ; Renata Osório de FariaV; Mario C.A. MeirelesV

IPrograma de Pós-Graduação em Veterinária, Faculdade de Veterinária (FV), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Campus Universitário s/n, Pelotas, RS 96010-900, Brasil

IIDocente do Departamento de Patologia Animal, FV-UFPel, Pelotas, RS

IIIDocente do Departamento de Microbiologia e Parasitologia, Instituto de Biologia, UFPel, Campus Universitário s/n, Pelotas, RS

IVLaboratório Regional de Diagnóstico, FV-UFPel, Campus Universitário do Capão do Leão s/n, Pelotas, RS

VDocente do Setor de Micologia, Departamento de Medicina Veterinária Preventiva, FV-UFPel, Campus Universitário s/n, Pelotas, RS

RESUMO

Descrevem-se os aspectos clinicopatológicos de casos de aflatoxicose em cães no Sul do Rio Grande do Sul. Foi realizado um estudo retrospectivo dos casos diagnosticados como aflatoxicose em cães necropsiados no Laboratório Regional de Diagnóstico (LRD) da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) no período de 1978 a 2012. Em quatro casos o diagnóstico foi confirmado pela detecção de níveis de 89 a 191 ppb de aflatoxinas B1 e G1 no alimento dos cães. De um total de 27 cães com cirrose hepática, em seis havia suspeita de aflatoxicose pelas lesões macro e microscópicas e pelo tipo de alimentação que os cães recebiam. Os sinais clínicos nos casos confirmados e nos suspeitos caracterizaram-se por apatia, diarreia, icterícia e ascite, com evolução para morte em 8 a 30 dias nos casos confirmados e em 15 a 60 dias nos casos suspeitos. A dieta era à base de derivados de milho ou arroz, farelo de amendoim e, em um caso suspeito, a dieta era ração comercial. As alterações macroscópicas caracterizaram-se por ascite, icterícia, fígado aumentado de tamanho, com ou sem nódulos, hemorragia nas serosas, conteúdo intestinal hemorrágico. Os casos foram classificados de acordo com o padrão histológico principal, caracterizado por vacuolização difusa no citoplasma de hepatócitos nos casos agudos, por proliferação de ductos biliares e discreta fibroplasia nos casos subagudos e por fibrose acentuada nos casos crônicos. Aparentemente, a enfermidade não é importante como causa de morte em cães na região, no entanto, alerta-se para a possibilidade de casos com diagnóstico de cirrose hepática sem causa determinada serem causados por aflatoxicose.

Termos de indexação: Micotoxinas, aflatoxinas, aflatoxicose, cães, epidemiologia, histopatologia.

ABSTRACT

Clinical pathological aflatoxicosis in dogs is described in southern Rio Grande do Sul. It was conducted a retrospective study of cases diagnosed as aflatoxicosis in dogs necropsied at the Regional Diagnostic Laboratory (LRD) of the Veterinary School of the Federal University of Pelotas (UFPel) in the period 1978-2012. In four cases the diagnosis was confirmed by detection of levels of aflatoxins B1 and G1, with the finding of 89-191ppb in the feed. The macroscopic and histologic lesions and the diet observed in six of 27 dogs with liver cirrhosis led to suspicion of aflatoxicosis. Clinical signs evidenced in confirmed or suspected cases were lethargy, diarrhea, jaundice and ascites, progressing to death within 8 to 30 days in confirmed cases, and within 15 to 60 days in suspected cases. The diet was corn and rice byproducts and peanut meal, and one of the dogs received commercial ration. Gross changes were characterized by ascites, jaundice, enlarged liver, with or without regenerative nodules, hemorrhages in serous membranes and bloody intestinal content. The cases were classified according to the main histological pattern, characterized by diffuse vacuolation of the cytoplasm of hepatocytes in acute cases, by proliferation of bile ducts, and mild fibrosis in subacute cases, and by severe fibrosis in chronic cases. Apparently the disease is not important as a cause of death in dogs in the region, nevertheless the possibility of cases of cirrhosis of unknown etiology would be caused by aflatoxicosis.

Index terms: Mycotoxins, aflatoxins, aflatoxicosis, dogs, epidemiology, histopathology.

INTRODUÇÃO

A aflatoxicose é uma intoxicação causada por micotoxinas produzidas por fungos do gênero Aspergillus, principalmente Aspergillus flavus e A. parasiticus (Bennett & Klich 2003). O termo aflatoxina designa um grupo de micotoxinas, cujos principais tipos são aflatoxina B1, mais tóxica e mais abundante nos substratos; aflatoxinas B2, G1, G2, M1 e M2, sendo as duas últimas produtos metabólitos de B1 e B2 (Puschner 2002, CAST 2003). No Brasil e em outros países, níveis significativos de aflatoxinas têm sido detectados em amostras de ração comercial para cães (Maia & Siqueira 2002, Boermans & Leung 2007). Seus efeitos nos animais variam de acordo com a dose, o tempo de exposição, a espécie, a raça e o estado nutricional, podendo ser letais quando as aflatoxinas são ingeridas em grandes quantidades. Doses baixas por longo período de exposição podem ser carcinogênicas (Bennett & Klich 2003). Peixes, aves, gatos, cães e suínos são mais suscetíveis que ruminantes, sendo os animais jovens normalmente os mais afetados pela aflatoxicose (Coppock & Jacobsen 2009).

A aflatoxicose é pouco relatada em cães, embora essa espécie seja extremamente sensível (Newmann et al. 2007, Dereszynski et al. 2008) em função de características intrínsecas dos cães que determinam a baixa concentração da glutationa S-transferase (GST) nos hepatócitos, principal enzima detoxificante, que se conjuga às aflatoxinas (Watanabe et al. 2004, Tulayakul et al. 2005, Bruchim et al. 2012).

Os sinais clínicos relacionam-se com o grau de contaminação do alimento, o tempo e a quantidade de toxinas ingeridas pelo animal. Em cães, as intoxicações aguda e subaguda são mais frequentes e geralmente fatais, principalmente em animais jovens que ingeriram alimentos com altos níveis de aflatoxinas. Na forma aguda os sinais clínicos incluem anorexia, desidratação, icterícia, ascite, hematemese, hematoquesia e hemorragias difusas nas serosas (Edds 1973, Greene et al. 1977). Nas formas subaguda e crônica há, também, retardo no crescimento e imunossupressão (Bailly et al. 1997). Os efeitos agudos são primeiramente observados no fígado, caracterizados por necrose de hepatócitos e hemorragia, podendo evoluir para a forma crônica, com fibrose e carcinogênese (Newberne & Butler 1969, Dereszynski et al. 2008). As lesões histológicas predominantes permitem a classificação da aflatoxicose em aguda, quando há intensa degeneração vacuolar dos hepatócitos; subaguda, quando há proliferação acentuada de ductos biliares; ou crônica quando há intensa fibroplasia (Bastianello et al. 1987).

O diagnóstico é feito pelo histórico clínico, pelas alterações macroscópicas e microscópicas observadas no fígado, associados a identificação e quantificação de micotoxinas no alimento, ou detecção de metabólitos das micotoxinas em tecidos, secreções e excreções (Coppock & Jacobsen 2009).

No Brasil a aflatoxicose foi diagnosticada em 28 cães alimentados com ração comercial contendo 12,2 a 321ppb de aflatoxina B1 e B2 (Rosa et al. 2002). No Rio Grande do Sul foi relatada aflatoxicose aguda e subaguda como causa da morte de 60 cães, os quais eram alimentados basicamente por farelo de milho. Neste surto apenas um dos casos descritos teve evolução crônica (Wouters et al. 2013).

Os objetivos deste trabalho foram determinar os aspectos clinicopatológicos e epidemiológicos de casos de aflatoxicose diagnosticados em cães na região sul do Rio Grande do Sul de 1978 a 2012, estabelecendo sua importância como causa de morte em cães na região.

MATERIAL E MÉTODOS

Foi realizado um estudo retrospectivo dos casos confirmados de aflatoxicose em cães diagnosticados no Laboratório Regional de Diagnóstico (LRD) da Faculdade de Veterinária da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) no período de 1978 a 2012. Foram revisados também os protocolos de 27 casos com diagnóstico morfológico de cirrose hepática. O estudo foi baseado em consulta e avaliação dos protocolos de necropsia arquivados no LRD/UFPel. Foram coletadas informações referentes à idade, à raça, ao sexo, à história clínica e ao tipo de alimentação de cada cão, bem como às descrições macroscópicas e histopatológicas de cada caso. Foram resgatados, também, nos casos com diagnóstico confirmado, os resultados da análise de amostras do alimento oferecido aos cães afetados para a presença de aflatoxinas, realizada por cromatografia em camada delgada no Laboratório de Fungos Toxigênicos e Micotoxinas do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de São Paulo (ICB/USP).

RESULTADOS

De janeiro de 1978 a dezembro de 2012 foram diagnosticados no LRD/UFPel quatro casos de aflatoxicose em caninos com dosagem de aflatoxinas, de um total de 3.393 necropsias e/ou órgãos de cães recebidos no laboratório no período. Um desses quatro casos correspondia a um surto no qual morreram três animais com intoxicação aguda. Estes três caninos pertenciam a um canil de cães da raça Pointer. Os animais eram alimentados com quirela, canjica e torresmo. No mesmo local uma caturrita de estimação, que recebeu o mesmo alimento, também morreu. Os dados referentes à raça, ao sexo, à idade, ao tipo de alimentação e os resultados da detecção de aflatoxinas no alimento são apresentados no Quadro 1.


Os sinais clínicos descritos em todos os casos caracterizaram-se por anorexia, apatia, diarreia escura ou avermelhada e icterícia. Outros sinais incluíam hipotermia, dor abdominal, ascite, anasarca e desidratação. A evolução da enfermidade variou de 8 a 30 dias.

Na necropsia havia icterícia e ascite em todos os casos. Os fígados eram firmes e amarelados e, em dois casos, a superfície capsular era irregular e apresentava nódulos firmes de tamanhos variados . Em dois casos havia hemorragia nas serosas, conteúdo intestinal hemorrágico, com coágulos em todo o seu trajeto, além de edema pulmonar.

Os casos do surto nos cães Pointer foram classificados como agudos, um caso foi subagudo e dois casos foram crônicos, de acordo com as lesões histológicas observadas. No cão do surto de intoxicação aguda havia vacuolização difusa dos hepatócitos, em forma de grandes vacúolos que deslocavam o núcleo para a periferia da célula, ou vacúolos pequenos e múltiplos, dando à célula um aspecto esponjoso (Fig.1); necrose de hepatócitos e infiltrado inflamatório linfoplasmocitário discreto, principalmente nos espaços porta. No caso subagudo as lesões caracterizaram-se por proliferação acentuada de ductos biliares, discreta a moderada vacuolização dos hepatócitos e discreta fibrose (Fig.2). Nos casos crônicos havia fibrose acentuada nos espaços porta, que se estendia pelo parênquima hepático com sequestro de grupos de hepatócitos formando nódulos regenerativos (Fig.3). Nestas áreas havia, também, proliferação acentuada de ductos biliares, colestase e infiltrado inflamatório linfoplasmocitário (Fig.3).




Nesses quatro casos a análise do alimento por cromatografia de camada delgada revelou concentrações de aflatoxina B1 e G1 que variaram de 89 a 191 ppb.

De um total de 27 caninos com diagnóstico de cirrose hepática sem determinação da causa, seis foram classificados como suspeitos de aflatoxicose, uma vez que, além dos sinais clínicos semelhantes aos descritos nos casos confirmados, todos os animais eram alimentados com subprodutos de milho e/ou de arroz ou com farelo de amendoim e, em um caso, o cão recebia ração comercial. A evolução variou de 15 a 60 dias. Destes seis casos, em três casos diagnosticados em cães da raça Pastor Alemão e três em animais sem raça definida, com idade de 1 ano e meio a 7 anos, os sinais clínicos caracterizaram-se por icterícia e ascite e, ainda, edema subcutâneo nos membros e hematoquesia em um caso. Um caso foi diagnosticado em uma fêmea que apresentou sinais clínicos dois meses após o parto, sendo que todos os filhotes haviam morrido. As lesões macroscópicas nestes seis casos eram similares aos casos de aflatoxicose crônica confirmada, sendo que, em três, foram observadas nodulações de diferentes tamanhos na superfície capsular (Fig.4) e no parênquima hepático. Histologicamente, as lesões nos casos suspeitos foram classificadas como crônicas devido a marcada fibrose e proliferação de ductos em três casos; e os outros três casos apresentavam lesões subagudas com discreta fibrose, vacuolização fina de hepatócitos e marcada proliferação de ductos biliares.


DISCUSSÃO E CONCLUSÃO

O diagnóstico de aflatoxicose em quatro casos foi baseado na epidemiologia, nos sinais clínicos, nos achados de necropsia, nas lesões histológicas características no fígado e nos níveis elevados de aflatoxina B1 e G1 encontrados no alimento consumido pelos cães afetados. Apesar de não ter sido confirmada a aflatoxicose em seis casos, as lesões semelhantes e o tipo de alimento oferecido aos animais permitiu o diagnóstico presuntivo da mesma. Aflatoxicose tem sido descrita em cães alimentados com subprodutos de milho (Wouters et al. 2013), com rações comerciais (Rosa et al. 2002, Stenske et al. 2006) e, também, com farelo de amendoim (Newberne 1973), que era o principal alimento em um dos casos aqui descritos.

A aflatoxicose confirmada pela análise do alimento oferecido aos cães representou 0,12% dos diagnósticos realizados em cães enviados para necropsia ou em órgãos de cães mortos enviados para exame histológico no LRD/UFPel de 1978 a 2012. Se forem considerados os casos suspeitos de aflatoxicose, o percentual de caninos com aflatoxicose foi de 0,27%.

Apenas um surto foi constatado, com a morte de três cães de um canil de cães da raça Pointer e o diagnóstico foi de aflatoxicose aguda. Casos coletivos de aflatoxicose são relatados com frequência e chamam atenção principalmente pelo número elevado de animais que morre em consequência da intoxicação, geralmente com evolução aguda ou subaguda (Newman et al. 2007, Dereszynski et al. 2008, Arnot et al. 2012, Wouters et al. 2013). No presente trabalho o caso avaliado do surto apresentou-se, também, com lesões agudas. Tem sido mencionado que a apresentação clínica da aflatoxicose está relacionada à quantidade de toxina na dieta e a quantidade de alimento ingerida para determinar a ocorrência dos casos agudos, subagudos ou crônicos (Wouters et a. 2013). Neste trabalho o alimento ingerido pelos cães que morreram com aflatoxicose aguda apresentou a maior quantidade de aflatoxinas.

Os estados nutricional e hormonal, a idade e as características genéticas podem influenciar na suscetibilidade dos cães à aflatoxicose (Stenske et al. 2006). Dos casos suspeitos de aflatoxicose aqui descritos, um, com evolução crônica, ocorreu em uma fêmea, dois meses após o parto. Aparentemente os hormônios esteroides potencializam a função da oxidase hepática e, portanto, o efeito tóxico da aflatoxina B1 (Swick 1984).

Cirrose hepática de causa indeterminada tem sido observada em cães no Rio Grande do Sul (Silva et al. 2007, Schild 2013). As lesões macroscópicas e histológicas semelhantes às encontradas na aflatoxicose crônica em alguns casos de cirrose hepática observados no LRD/UFPel sugerem a possibilidade de serem causadas pela intoxicação por aflatoxinas, no entanto, seria necessária a detecção destas micotoxinas nos órgãos e/ou no alimento oferecido aos cães afetados para confirmação diagnóstica. Wouters et al. (2013) mencionam que o uso de alimento à base de milho aumenta o risco da ocorrência de aflatoxicose e, portanto, a cirrose hepática pode ser muitas vezes consequência desta micotoxicose, pela prática da alimentação de cães com polenta ou outros derivados de milho. Além disso, os cães são extremamente sensíveis à ação dessas toxinas (Newmann et al. 2007, Dereszynski et al. 2008) e, no Brasil, o limite máximo permitido de micotoxinas para alimentação animal é 50 ppb e, em cães, a dose tóxica é 60 ppb (Newberne & Butler 1969, Stenske et al. 2006, Newman et al. 2007). Estes fatos reforçam a necessidade de análise do alimento sempre que um cão apresentar lesões de cirrose hepática, principalmente se recebe alimentos como quirela, polenta, canjica ou outros derivados de cereais.

Por outro lado, a aflatoxicose deve ser diferenciada de intoxicação por cobre e administração de certos medicamentos (anticonvulsivantes), que causam lesões similares às observadas na aflatoxicose (Haynes & Wade 1995), no entanto, nos casos relatados neste trabalho não havia histórico de doença prévia nos cães afetados que determinassem o uso desses medicamentos, ou fontes de cobre que pudessem sugerir intoxicação por este elemento. Muitas causas de cirrose hepática são raras e, na maioria delas, há predisposição racial nos caninos (Rolfe & Twedt 1995, Watson 2004), como as hepatites dos cães Bedlington Terrier (Twedt et al. 1985), West Highland White Terrier (Thornburg et al. 1986, Thornburg et al. 1996), Doberman Pinscher (Thornburg 1998), Skye Terrier (Haywood et al. 1988) e Cocker Spaniel (Hardy 1993). Nos casos descritos no presente trabalho, nenhum cão suspeito de morte por aflatoxicose era de raça com predisposição para a doença.

Com base nos resultados obtidos neste trabalho, a aflatoxicose aparentemente não é uma enfermidade importante como causa de morte nos cães enviados ao LRD/UFPel, já que o percentual de ocorrência é baixo se comparado a outras enfermidades que afetam cães (Schild 2013). No entanto, essa intoxicação pode estar sendo subdiagnosticada e alerta-se para a necessidade de análise dos alimentos oferecidos aos cães, principalmente para aqueles com alterações de cirrose hepática.

Recebido em 4 de outubro de 2013.

Aceito para publicação em 17 de janeiro de 2014.

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  • *
    Autor para correspondência:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Fev 2014

    Histórico

    • Aceito
      17 Jan 2014
    • Recebido
      04 Out 2013
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