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A responsabilidade do obstetra sobre o diagnóstico e o tratamento do diabete melito gestacional

The obstetrician ethical responsibility in the diagnosis and treatment of gestational diabetes mellitus (GDM)

EDITORIAL

A responsabilidade do obstetra sobre o diagnóstico e o tratamento do diabete melito gestacional

The obstetrician ethical responsibility in the diagnosis and treatment of gestational diabetes mellitus (GDM)

Marilza Vieira Cunha RudgeI; Iracema de Mattos Paranhos CalderonII

IProfessora Titular do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Universidade Estadual Paulista "Júlio Mesquita Filho"– UNESP – Botucatu (SP), Brasil

IIProfessora Livre-docente do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Universidade Estadual Paulista "Júlio Mesquita Filho"– UNESP – Botucatu (SP), Brasil

Correspondência Correspondência: Marilza Vieira Cunha Rudge Rua General Telles, 1396 – Centro 18602-120 – Botucatu – SP e-mail: mrudge@fmb.unesp.br

A prevalência do diabete está aumentando no mundo, tornando-se uma das doenças mais importantes deste século, portanto, a associação diabete-gravidez será cada vez mais freqüente. O diabete melito gestacional (DMG) está associado a um risco aumentado de resultado perinatal indesejável e, após a gestação, esta mulher terá risco aumentado para desenvolver o diabete tipo 2. Entretanto, há controvérsia quanto a esse risco nos casos de intolerância materna à glicose em graus menos severos que os observados no diabete melito1. Esta dúvida tem contribuído para a polêmica sobre o rastreamento e o diagnóstico do diabete na gestação, e, nesse contexto, o papel do obstetra é de vital relevância. Ele tem responsabilidade ética e moral sobre o diagnóstico e o tratamento dessa doença na gestação atual, sobre as suas implicações em relação ao feto e ao recém-nascido e sobre a vida futura da portadora do diabete gestacional.

A responsabilidade do obstetra com o diagnóstico do DMG

Há duas questões a responder: – por que fazer e como fazer o rastreamento e o diagnóstico do diabete durante a gestação?

Por que fazer? A hiperglicemia materna é responsável pelas repercussões perinatais, como macrossomia, risco aumentado para tocotraumatismo e cesárea, atraso no amadurecimento pulmonar (e conseqüente síndrome do desconforto respiratório) e os distúrbios metabólicos ao nascimento (hipoglicemia, hipocalcemia, hipomagnesemia)2. O obstetra deve ter em mente que é sua responsabilidade diagnosticar e tratar a hiperglicemia materna, para impedir esses eventos deletérios sobre o feto e recém-nascido.

Como fazer? O rastreamento pode ser feito pela glicemia de jejum associada aos fatores de risco (FR) ou pelo teste de tolerância à glicose (TTG 50 g). O rastreamento é considerado positivo para as gestantes com glicemia de jejum > 85 ou 90 mg/dL com ou sem FR e para as portadoras de FR, bem como para as que apresentam TTG 50 g > 140 mg/dL3,4.

Os casos detectados pelo rastreamento devem ir para a fase de confirmação diagnóstica, realizada por um teste de sobrecarga com 75 ou 100 g de glicose4. A Associação Americana de Diabetes (ADA) define como limites de normalidade para TTG 100 g os valores de 95, 180, 155 e 140 mg/dL para jejum e os tempos de 1, 2 e 3 h após a ingestão de glicose, respectivamente. Dois valores iguais ou superiores a esses limites confirmam o DMG. A ADA admite a alternativa de sobrecarga com 75 g de glicose (TTG 75 g), à semelhança do diagnóstico realizado fora do período gestacional. Entretanto, considera os mesmos critérios para analisar o resultado, ou seja, dois valores iguais ou superiores a 95, 180 e 155, respectivamente para jejum, 1 e 2 h pós-sobrecarga4.

A associação de TTG 100 g com perfil glicêmico (PG) permite diferenciar quatro grupos de gestantes: IA, euglicêmico (TTG 100 g e PG normais); IB (hiperglicemia diária); IIA (DMG) para (TTG 100 g normal e PG alterado) e IIB (DMG ou clínico) para (TTG 100 g e PG alterados)3.

Além dos grupos IIA e IIB, o grupo IB desta classificação deve ser incluído no protocolo de diagnóstico e tratamento das gestações complicadas pelo diabete. Esse grupo apresenta repercussões fetais e neonatais comparáveis às dos filhos de mães diabéticas, relacionadas com macrossomia, mortalidade perinatal e maior tempo de internação no berçário. Além disso, o risco atribuível de morte perinatal neste grupo é de 4,16%, semelhante ao identificado nos grupos diabéticos IIA e IIB (6,1%)5.

Além disso, as alterações placentárias observadas no grupo IB são comparáveis àquelas de gestação complicada pelo diabete materno, identificadas por características histopatológicas, morfométricas e funcionais. As gestantes do grupo IB correspondem a 13,8% da população com rastreamento positivo para diabete, têm risco aumentado para hipertensão e obesidade, e desenvolvem o mesmo percentual do diabete tipo 2 apresentado por diabéticas gestacionais após 10 a 12 anos da gravidez-índice5. A curto e longo prazo essas repercussões perinatais e maternas evidenciam a responsabilidade do obstetra em diagnosticar durante o pré-natal as gestantes com hiperglicemia.

A responsabilidade do obstetra com o tratamento do diabete na gestação

A literatura tem evidenciado que não só as portadoras de DMG, mas também as portadoras de graus mais leves de hiperglicemia (como os do grupo IB) devem ser tratadas na gestação. Como tratar a hiperglicemia materna ou o diabete associado à gestação? É importante distinguir entre diabete clínico pré-gestacional e diabete diagnosticado na gestação (DMG/hiperglicemia diária).

No diabete pré-gestacional a ação principal deve preceder a concepção, pois o controle glicêmico materno adequado, nesse momento e durante toda a gestação, evita a maioria das complicações fetais, neonatais e maternas. Está claramente demonstrado que um controle glicêmico inadequado, antes e durante a gestação, aumenta os riscos para malformação congênita e de morbidade e mortalidade perinatal2,6. No diabete diagnosticado durante a gestação é importante que o rastreamento e a confirmação diagnóstica sejam realizados em época oportuna e o mais precocemente possível. Assim, o controle da hiperglicemia materna poderá ser efetivo e eficaz para prevenir as repercussões perinatais.

Independentemente do tipo de diabete (prévio à gestação ou gestacional), a conduta clínica tem como objetivo a euglicemia materna, ou seja, manter média glicêmica materna < 100 mg/dL, para que o resultado da gestação seja um recém-nascido vivo, de termo, com peso adequado para idade gestacional e livre de malformação. A equipe envolvida deve ser multidisciplinar, incluindo diabetólogo, obstetra, enfermeira, nutricionista, fisioterapeuta e neonatologista; porém a gestante deve ser o protagonista principal. Vários guidelines são apresentados na literatura, padronizando e orientando ajustes na dieta (sempre associada à atividade física) e na dose de insulina. A necessidade de aumento progressivo na dose de insulina na segunda metade da gestação guarda relação com uma boa função placentária e melhor prognóstico perinatal2,3,7.

A ultra-sonografia é indicada para datar a gestação, detectar malformações fetais e monitorar o crescimento e o bem estar fetal. Apesar de todos os esforços para obter euglicemia, cerca de 30% dos recém-nascidos são classificados como grandes para a idade gestacional. A combinação de um possível parto obstruído associado à falha na indução resulta em mais de 60% de cesárea. É importante que durante o trabalho de parto sejam evitados tanto hipoglicemia como hiperglicemia maternas, pelo risco de hipoglicemia neonatal, agravada pelo estímulo da hiperglicemia à hiperinsulinemia fetal e neonatal2,3,8.

A responsabilidade com o feto e recém-nascido

Os fetos de gestantes diabéticas têm crescimento intra-uterino excessivo; portanto, ao nascer, seu peso excede a curva de normalidade. Denomina-se macrossômico o recém-nascido, cujo peso, ao nascer, é > 4.000 g e grande para idade gestacional (peso > percentil 90 da curva padronizada no Serviço).

O diagnóstico ultra-sonográfico de macrossomia fetal é feito medindo-se a circunferência abdominal. Essa variável permite estimar o incremento no tecido fetal dependente de insulina, cujo crescimento é mais acentuado que o do crânio fetal9. O obstetra deve fazer o diagnóstico de um peso fetal excessivo nas gestações complicadas pelo diabete porque estes fetos têm risco maior para complicações perinatais. Os tocotraumatismos são comuns, não só pelo peso maior, mas também pelo crescimento desproporcional do corpo em relação ao pólo cefálico10.

A literatura descreve dois tipos distintos de crescimento fetal exagerado: o proporcional (em que todas as medidas fetais estão aumentadas) e o desproporcional (em que a circunferência abdominal fetal é o parâmetro que mais se desenvolve). Esse último é característico do filho de mãe diabética, favorecendo à distocia bisacromial (pela maior deposição de gordura na parte superior do corpo e no abdome), lesão de plexo braquial e fratura de clavícula10. Portanto, diagnosticar a macrossomia e diferenciá-la quanto ao tipo proporcional ou desproporcional é responsabilidade do obstetra.

Apesar disso, faltam evidências na literatura para sustentar que a estimativa do peso fetal deve orientar o planejamento da via de parto. Ainda não está estabelecido o ponto de corte do peso fetal estimado, acima do qual a cesárea deve ser indicada, restando muito a investigar. Enquanto estas questões não se definem, a meta do obstetra deve ser a prevenção da macrossomia fetal.

A responsabilidade do obstetra com a vida futura da mãe

Na maioria das diabéticas gestacionais, a tolerância à glicose se normaliza após a gestação. Entretanto, está bem estabelecido que essas mulheres têm alto risco para desenvolver o diabete tipo 2 na vida futura. No trabalho clássico de Sullivan11, o diabete foi diagnosticado em 36% das mulheres, 22 a 28 anos após a gravidez complicada por DMG (gravidez-índice). Estas mulheres apresentavam outras características que atualmente configuram a síndrome da resistência à insulina-obesidade central, dislipidemia e hipertensão, todas associadas ao maior risco de morbidade.

Em nosso serviço, o risco para desenvolver diabete clínico 12 anos após a gravidez-índice foi de 23,6 e 16,7% para as portadoras de DMG e hiperglicemia diária na gestação, respectivamente5. Essas mulheres devem ser orientadas a manter um peso corporal adequado, controlar a pressão arterial e o perfil lipídico, e praticar atividade física12. Algumas sugestões começam a ser apontadas na literatura, embora careçam de maior investigação. Para prevenir a morbidade materna em portadoras de DMG após a gestação recomenda-se mudança no estilo de vida e intervenção farmacológica com troglitazone13.

Pesquisas experimentais evidenciam que determinados distúrbios metabólicos maternos prejudicam o suprimento de nutrientes ao feto e induzem a alterações estruturais intra-útero, com conseqüências para a vida futura. O diabete moderado é modelo de macrossomia e hiperinsulinemia fetal, enquanto o diabete grave é modelo de restrição ao crescimento e exaustão das reservas pancreáticas fetais, caracterizando uma lesão funcional pancreática incipiente. Esses fetos resultam em adultos que desenvolvem distúrbios no perfil lipídico e risco aumentado para hiperglicemia ou DMG durante a prenhez. Os resultados experimentais, comparáveis aos de estudos epidemiológicos, relacionam crescimento restrito intra-útero ao risco cardiovascular, destacando a síndrome metabólica e suas repercussões: dislipidemia, disglicemia e hipertensão arterial na vida adulta15.

Considerações finais

O aspecto ético no atendimento à gestante diabética é um grande quebra-cabeças que envolve obstetra, gestante, feto e o sistema de saúde16. O interesse da gestante, o direito de autonomia e de beneficência (baseada na conduta obstétrica) e o interesse do feto como paciente (que depende da atitude materna e da conduta obstétrica) evidenciam o grande conflito ético envolvido no atendimento à mãe diabética e seu feto.

Devem ser considerados também outros aspectos éticos da beneficência, relacionados com o conhecimento específico. Os médicos participam de congressos especializados, atualizam-se e aprendem que é preciso rastrear o diabete na gestação. Aí começa a primeira dúvida: adotar o rastreamento universal, ou seja, rastrear todas as mulheres grávidas ou apenas as gestantes de risco?

Admitindo-se que apenas as gestantes de risco sejam rastreadas e que o sistema de saúde e/ou os planos de saúde concordem com a idéia de que isto é investimento e não gasto, aquelas com rastreamento positivo vão para a fase de diagnóstico e, apesar das dúvidas na literatura, são encaminhadas para a fase de tratamento. O acompanhamento ideal dessas gestantes deveria ser feito no nível terciário, mas o sistema de saúde em nosso país não está organizado e hierarquizado por níveis de complexidade.

Aí vem a segunda dúvida: o que o obstetra faz? Inicia o tratamento, apesar da pouca experiência e do risco de resultado perinatal adverso? Assim, para responder a esta pergunta, é imprescindível (1) o envolvimento das sociedades médicas para organizar o sistema público e privado de assistência à gestante diabética e (2) a conscientização dos gestores, do SUS e dos planos de saúde de que investir recursos nesse atendimento resultará em benefícios à população, a curto e longo prazo. E essa tem sido nossa maior luta! Entretanto, aí vem a grande dúvida: esta realidade ideal seria sonho ou utopia?

Referências

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Recebido em: 05/09/2006

Aceito com modificações em: 26/09/2006

Faculdade de Medicina de Botucatu, Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, Universidade Estadual Paulista "Júlio Mesquita Filho"– Unesp – Botucatu (SP), Brasil.

  • Correspondência:
    Marilza Vieira Cunha Rudge
    Rua General Telles, 1396 – Centro
    18602-120 – Botucatu – SP
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2006
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