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Violência e intimidação na recepção aos calouros nas faculdades de medicina: ato que persiste ao longo do ano

Violence and hazing during the reception for first-year medical students: a problem that persists throughout the school year

CARTA AO EDITOR

Violência e intimidação na recepção aos calouros nas faculdades de medicina: ato que persiste ao longo do ano

Violence and hazing during the reception for first-year medical students: a problem that persists throughout the school year

Marco Akerman; Silmara Conchão; Sonia Hotimsky; Roberta Boaretto

Faculdade de Medicina do ABC, Santo André, SP, Brasil

Palavras-chave: - Trote - Violência - Estudantes de Medicina

Keywords: - Hazing - Violence - Medical Students

Sr. Editor

Esta carta busca resgatar o tema levantado pela RBEM em 2006 por Palácios e Rego1 no editorial "Bullying: mais uma epidemia invisível?" e recolocá-lo na agenda, como muito bem clama o referido texto.

Há violência e intimidação na recepção aos calouros nas faculdades de Medicina e temos identificado em nosso meio que este fato persiste ao longo do ano.

Este fenômeno social clama por uma profunda reflexão acerca do seu real dimensionamento, suas raízes, motivações e por que vem se perpetuando, a fim de que se tomem medidas urgentes e eficazes para sua resolução.

Em muitos anos de prática acadêmica na área da Medicina, em constante observação e diálogo com alunos e professores, e a partir de denúncias que nos chegam, muitas vezes anônimas, gostaríamos de levantar alguns pontos a considerar neste exercício reflexivo:

1. A recepção ao calouro tem como meta principal entre os estudantes que o recebem fortalecer o "espírito de corpo", fazendo-o a aceitar as regras vigentes, predominando aquela relativa à hierarquia entre calouro e veterano;

2. Este intuito, muitas vezes, é relacionado pelos estudantes à mesma hierarquia existente entre os médicos, e entre professores e alunos;

3. Para ser parte, o calouro "tem que baixar a bola", uma vez que ele "se acha" por ter passado num curso tão difícil. Manter-se de cabeça baixa e ser chamado de calouro é parte deste ritual;

4. Passar por algumas provações, como, por exemplo, fazer inúmeras flexões comandadas por veteranos, é justificado como necessário, pois o médico tem que ter "couro duro";

5. Nem todos os calouros se submetem, mas isso tem um preço: não conseguem ser parte do "corpo";

6. Não são muitos os estudantes que cometem atos violentos e abusos verbais, físicos e psicológicos, mas são muitos os estudantes que se omitem, num silêncio cúmplice e numa atmosfera de "reino do medo";

7. Alguns professores consideram naturais estes episódios, recordando sua época de estudantes;

8. Intimidações, abusos e assimetrias de poder entre estudantes não se restringem ao período de recepção ao calouro, conhecido como "trote"; são atos que persistem ao longo do ano, nos fazendo imaginar que o bullying - atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação evidente e adotadas por um ou mais estudantes contra outro(s), causando dor e angústia, e executadas numa relação desigual de poder - descrito e relatado no ensino fundamental e médio está presente também no ensino universitário.

Um depoimento de um aluno é emblemático: "agressões físicas e morais são constantes no dia a dia dos meninos calouros; socos na região do peito, cabeçadas, socos na região das costas são atos tão frequentes que os meninos da turma não se queixam mais, se submetendo cada dia a novas agressões físicas". Prossegue o aluno: "a questão é que esta submissão desenvolve uma série de submissões subsequentes, como sair durante as aulas para ajudar veterano, gastar elevadas quantias de dinheiro para churrascos, festas de veteranos e também se submeter ao trote AO LONGO DO ANO".

Muitas são as histórias de enfrentamento por parte das faculdades de Medicina, com resultados variados. Algumas histórias de sucesso, infelizmente, estão conectadas com tragédias ou com necessárias expulsões de alunos que cometem crimes.

Entretanto - e daí a afirmação da dificuldade no início deste texto -, um enfrentamento sustentável e duradouro desta problemática passa pela discussão do poder: do poder dos mais fortes sobre os mais fracos, dos homens sobre as mulheres, dos mais ricos sobre os mais pobres, dos esportistas sobre os não esportistas, dos professores sobre os alunos, dos veteranos sobre os calouros, etc. Em nenhum lugar estamos totalmente livres de relações de poder, mas seremos livres sempre que reagirmos ao ver o abuso de poder afetar a dignidade do outro.

Trata-se de um incômodo debate que precisa ser enfrentado para, aí sim, erradicarmos a violência e a intimidação em nossas instituições de ensino. Além das marcas emocionais e psicológicas, por vezes indeléveis, que resultam dessas interações violentas para os sujeitos que delas participam, também precisamos nos preocupar com suas repercussões no exercício de sua futura profissão.

Há que se intervir nessa "cultura" de recepção ao calouro, que está bem estruturada, que domina e se mantém organizada, e muitas vezes justificada como "brincadeira", "zoação" ou "ritual de passagem dos calouros". Uma linha muito tênue entre a diversão e a violência, retratando relações sociais desiguais e injustas dentro das faculdades de Medicina e cujas repercussões certamente se estendem para fora de nossas instituições, na vida profissional dos médicos que formamos.

Recebido em: 16/08/2010

Aprovado em: 27/10/2010

  • 1. Palácios M, Rego S. Bullying: mais uma epidemia invisível? Rev Bras Educ Med. 2006;30(1):1-5.
  • 2. Almeida Júnior AR, Queda O. Universidade, preconceito e trote. São Paulo: Hucitec; 2006.
  • Endereço para correspondência:

    Marco Akerman
    Faculdade de Medicina do ABC
    Av. Príncipe de Gales, 821 Vila Príncipe de Gales
    Santo André CEP. 09060-650 SP
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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