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Alfabetização ecológica

Ecological alphabetization

RESENHA

Alfabetização ecológica

Ecological alphabetization

Rodrigo Siqueira-BatistaI; Giselle RôçasII

ICentro Universitário Serra Órgãos, Rio de Janeiro, Brasil; Centro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis, Rio de Janeiro, Brasil

IICentro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Rodrigo Siqueira-Batista Av. Alberto Torres, 111 – Alto CEP. 25964-000 – Teresópolis – RJ E-mail: rsiqueirabatista@terra.com.br

Todos somos membros plenos e cidadãos da mesma comunidade biótica.

Aldo Leopold

Resenha da obra de: Capra F et al. Alfabetização ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. São Paulo: Cultrix; 2006.

Ao longo dos séculos XX (segunda metade) e XXI, a ecologia – compreendida como o estudo das relações entre o ambiente natural e os seres vivos, considerando os aspectos físicos, químicos e biológicos nesse processo de entendimento e de interrrelações1 – tem alcançado importante espaço nas discussões acadêmicas atinentes a diferentes áreas do conhecimento, como economia, política, educação e saúde. De fato, à medida que tem crescido a preocupação em relação à atuação antrópica sobre o meio ambiente, têm sido debatidas alternativas para minimizar o risco de desequilíbrio ambiental e de ocorrência de catástrofes naturais, âmbito com particular interesse para os profissionais da área de saúde, ao se reconhecer a profunda interconexão entre saúde e ambiente.

Com efeito, ato contínuo à tomada de consciência de que a educação é um dos pilares para a construção de uma nova relação da sociedade com o meio ambiente, merecem destaque as discussões desenvolvidas no livro Alfabetização ecológica2, assinado por Fritjof Capra, sob a organização de Michael K. Stone e Zenobia Barlow. Trata-se da primeira obra oficial, publicada em língua portuguesa, pelo Centro de Eco-Alfabetização, localizado em Berkeley, Califórnia, Estados Unidos, instituição na qual têm sido desenvolvidos vários projetos de vanguarda, voltados para a formação de sujeitos ecologicamente alfabetizados, cujo cerne depende do reconhecimento de que:

  • O desequilíbrio dos ecossistemas reflete um desequilíbrio anterior da mente, tornando-o uma questão fundamental nas instituições voltadas para o aperfeiçoamento da mente. Em outras palavras, a crise ecológica é, em todos os sentidos, uma crise de educação.

  • O problema [...] é de educação; não está meramente na educação.

  • Toda educação é educação ambiental [...] com a qual por inclusão ou exclusão ensinamos aos jovens que somos parte integral ou separada do mundo natural.

  • A meta não é o mero domínio de matérias específicas, mas estabelecer ligações entre a cabeça, a mão, o coração e a capacidade de reconhecer diferentes sistemas — [...] o "padrão que interliga".(Capra2 2006:11; grifo do original)

O livro, organizado em quatro partes interdependentes – Visão, Tradição/Lugar, Relação e Ação, inspiradas na sabedoria do povo okanagan, indígenas residentes no Canadá –, traz, ao longo de seus 25 capítulos, uma profunda discussão pedagógica voltada para a sustentabilidade das relações entre sociedade e ambiente.

A Parte I, Visão, apresenta olhares para a construção, a longo prazo, da sustentabilidade. É composta por sete capítulos: Em'owkin: a tomada de decisões que leva em conta a sustentabilidade; Falando a linguagem da natureza: princípios da sustentabilidade; A solução pelo padrão; O poder das palavras; Valores; Os valores da fast food e os valores da slow food; A idéia da slow school: é hora de desacelerar a educação.

Na Parte II, Tradição/Lugar, a discussão é prioritariamente centrada nas relações entre os conceitos de progresso e desenvolvimento, tendo em conta a preservação dos modos de vida tradicionais – incluindo-se os partícipes humanos e não-humanos dos sistemas. É composta também por sete capítulos: Pedagogia indígena: um olhar sobre as técnicas tradicionais de educação dos índios californianos; Educação okanagan para uma vida sustentável: tão natural quanto aprender a andar ou falar; Lugar e pedagogia; reminiscências; Aprendendo a conhecer uma bacia fluvial; Ajudando as crianças a se apaixonar pelo planeta Terra: educação ambiental e artística; Como mapear a sua própria biorregião.

Na Parte III, Relação, discute-se a interrelação entre os diferentes compartes de uma comunidade, especialmente nos aspectos relativos à saúde, colocando em pauta os impactos das decisões tomadas sobre os sistemas em questão. É composta por cinco capítulos: Revolução passo a passo: como criar o ambiente propício para a mudança; Liderança e a comunidade de aprendizes; "Ele mudou tudo o que pensávamos que éramos capazes de fazer: O projeto Straw"; Criar filhos íntegros é como cultivar alimentos saudáveis: além da agricultura industrial e da educação massificada; meditações sobre uma maçã.

Na Parte IV, Ação, pondera-se sobre a importância da consideração dos diferentes envolvidos nas decisões, visando ao alcance de soluções sistêmicas globais para o desenvolvimento de melhores relações, em prol de sociedades sustentáveis. É composta por seis capítulos: Dançando com sistemas; O segredo da lupa: olhar de perto, mudar a escala; Tirando partido do ativismo juvenil urbano: alfabetização para a justiça social; Sustentabilidade – um novo prato no cardápio do almoço; Repensando o almoço escolar; O processo de mudança na escola: uma visão sistêmica.

Uma das grandes virtudes da obra, além da relevância do tema e da consistência conceitual dos ensaios – os quais albergam um grande número de assuntos interligados, incluindo agricultura, antropologia, arte, axiologia, direito, ecologia, ética, filosofia, nutrição, política, saúde (todo o tempo os ensaios resvalam, tocam e perpassam as discussões sobre saúde), teoria dos sistemas e, sobretudo, pedagogia –, é discutir a educação no âmago de uma compreensão sistêmica da vida, compondo, de modo bastante satisfatório, teoria e práxis, como pressupostos para o reconhecimento da interconexão entre os díspares sistemas envolvidos nos processos de sustentabilidade, tão necessários à existência saudável.

É neste sentido que a obra, ainda que dirigida originariamente à educação de crianças, torna-se extremamente útil aos diferentes docentes, destacando-se os educadores da área de saúde, focando-se, em especial, no presente contexto, o ensino médico. De fato, a contemporânea deterioração das relações homem-natureza e seu respectivo impacto sobre a saúde – humana e ambiental – vêm tornando premente a discussão de tópicos de ecologia nos cursos de graduação em Medicina, questão das mais relevantes nas considerações atuais sobre a formação médica3. O desafio, enfrentado corajosamente por Capra e seus colaboradores, é não transformar a ecologia em mais uma disciplina a ser "ministrada" aos estudantes nos frios bancos das escolas, mas, sim, tornar os diferentes saberes necessários à formação do médico, plenamente inscritos nos contemporâneos debates ecológicos. Os exemplos pululam, podendo-se comentar desde o impacto na transmissão de doenças de veiculação hídrica – em decorrência do aumento da temperatura planetária, devido ao progressivo acúmulo, na atmosfera, de gases do efeito estufa (Figura 1) – até o incremento das neoplasias de pele, como consequência da "agressão" à camada de ozônio.


A despeito da posição vanguardista apresentada em Alfabetização ecológica, a perspectiva de se considerar o ambiente como crucial ao processo saúde-doente está longe de ser nova. No caso da tradição médica ocidental, tal problemática remonta a um momento tão arcaico quanto a constituição da Escola de Hipócrates de Cós, autor que, no célebre tratado Das Águas, Ares e Lugares4, assinala que:

Quem quiser aprender bem a arte de médico deve proceder assim: em primeiro lugar deve ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelos característicos de cada região. Deve-se ter presentes também os efeitos dos diversos gêneros de águas. [...] Quando um médico chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais nada, a posição que ela ocupa em relação às várias correntes de ar e ao curso do Sol... assim como anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos astros... conhecerá antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que alguém julgue isto demasiadamente orientado para a ciência, mas quem pensar assim pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com a mudança do clima.

O excerto hipocrático explicita que a preocupação "ecológica" ou ambiental é aspecto de destacada relevância para o exercício e para o ensino da medicina. Neste sentido, reconhecendo-se, com Capra, que A educação para uma vida sustentável – o tema deste livro – é uma pedagogia que facilita esse entendimento por ensinar os princípios básicos de ecologia e, com eles, um profundo respeito pela natureza viva, por meio de uma abordagem multidisciplinar baseada na experiência e na participação2, torna-se possível ler Alfabetização ecológica como um texto que permite a rediscussão da deferência pela natureza, elo olvidado na medicina contemporânea e inscrito no melhor espírito grego:5 a saúde da Terra é, no fundo, a saúde do homem.

Recebido em: 13/02/2008

Reencaminhado em: 03/08/2008

Aprovado em: 05/08/2008

  • 1. Ricklefs RE. A economia da natureza. 5Ş ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2003.
  • 2. Capra F et al. Alfabetização ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. São Paulo: Cultrix; 2006.
  • 3. Rôças G, Siqueira-Batista R, Gomes AP, Araújo F, Messeder JC, Cotta RMM. Ecologia e saúde: debates atuais na educação médica. 45ş Congresso Brasileiro de Educação Médica, 2007, Uberlândia. Rev Bras Edu Méd 2007; 31:749-50.
  • 4
    Hippocrates. Airs Waters Places. With an english translation by W. H. S. Jones. Cambridge: Harvard University Press; 1992.
  • 5. Siqueira-Batista R. Deuses e homens. Mito, filosofia e medicina na Grécia antiga. São Paulo: Landy; 2003.
  • Endereço para correspondência:

    Rodrigo Siqueira-Batista
    Av. Alberto Torres, 111 – Alto
    CEP. 25964-000 – Teresópolis – RJ
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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