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Integralidade como Eixo da Formação dos Profissionais de Saúde

Comprehensiveness as the Focus of Training for Health Professionals

Recentemente, o Ministério da Saúde divulgou sua nova política para o ensino superior na saúde, o AprenderSUS. Nela, o princípio da integralidade aparece como um eixo para a transformação das graduações em saúde. Ao fazê-lo, o governo federal nos convida a refletir sobre uma questão: o que significa colocar a integralidade como um eixo central do processo de mudança nas graduações na saúde?

Por que integralidade? Pelo menos três argumentos podem ser usados para justificar essa opção política. Primeiro, é a tese de que as graduações devem se voltar para a formação de profissionais adequados ao Sistema Único de Saúde. Sendo a integralidade um dos princípios constitucionais do SUS, decorre daí o segundo argumento: os egressos dos cursos devem ter práticas pautadas pela integralidade. Mas alguém pode argumentar que a universidade tem o compromisso de formar bons profissionais, e não apenas bons profissionais para o SUS. Se assim fosse, não seria óbvia a necessidade de estender um princípio do SUS ao estatuto de eixo norteador das mudanças no ensino. Um terceiro argumento, porém, recoloca a questão: a integralidade, que constitucionalmente é um princípio do SUS, reflete valores que caracterizam a boa prática dos profissionais de saúde, qualquer que seja seu local de atuação. Integralidade, assim, seria, para além do âmbito do SUS, um princípio desejável de todas as práticas de saúde.

Integralidade é um termo polissêmico. Na maioria de seus usos, ele designa um aspecto desejável nas práticas de saúde, nas formas de organizar os serviços de saúde ou mesmo nas respostas governamentais dadas a certos problemas de saúde. A polissemia resulta exatamente da aplicação de um termo a diversas situações concretas. Ou seja, é exatamente diante de uma situação concreta que diversos sujeitos reconhecem os sinais da integralidade ou de sua negação.

Entre os diversos sentidos da integralidade, podemos reconhecer alguns traços comuns. Talvez o mais importante deles seja uma recusa ao reducionismo. Um sujeito diante de um profissional de saúde não se reduz à lesão que eventualmente lhe provoca um sofrimento. Tampouco se reduz a um corpo com lesões ainda silenciosas à espera de um olhar astuto que as descubra. Tampouco se reduz a um conjunto de situações ou fatores de risco. Um profissional que paute suas práticas pela integralidade busca no seu cotidiano escapar desses reducionismos. Analogamente, podemos dizer que as necessidades de serviços assistenciais de urna população não se reduzem às necessidades de atendimento oportuno de seus sofrimentos, nem à necessidade de informações e intervenções voltadas a evitar o sofrimento futuro. Integralidade fala contra o assistencialismo e contra o preventivismo. Fala de um esforço de apreensão ampliada das necessidades. Mas fala também de um esforço de contextualização do sofrimento, da doença e das propostaas de intervenção na vida de cada um.

É possível formar profissionais para a integralidade? Como fazê-lo? Tomo, como convite à reflexão, esta última idéia: a integralidade exige profissionais capazes de compreender o significado do sofrimento, da doença e das propostas de intervenção no modo de andar a vida. Isso talvez implique uma habilidade de situar o outro no contexto do modo de andar a vida da comunidade à qual pertence e no seu modo singular de andar a vida. Mas também uma habilidade de compreender o significado da demanda pelo serviço de saúde e o significado da nossa oferta de propostas terapêuticas no contexto mais específico de cada encontro com as pessoas. No fundo, integralidade exige profissionais que entrem em contato com os sujeitos com quem nos encontramos em nossas práticas de saúde. No mínimo.

Como desenvolver essas habilidades? Não temos respostas, mas já temos vários acúmulos: conhecemos e temos um pouco por toda parte experimentado currículos alternativos, práticas pedagógicas inovadoras, etc. Gostaria, contudo, de ressaltar, seguindo na perspectiva de um convite à reflexão, que, da mesma fom1a que só se ensina e só se aprende a cuidar cuidando, só se aprende e só se ensina integralidade exercendo-a. Isso alcança o cotidiano das nossas práticas de cuidado e de ensino: o jeito como perguntamos ao paciente com um fígado palpável doloroso se ele nos permite utilizar a sua dor para que aprendamos a palpar o fígado; o jeito como conversamos sobre nossos envolvimentos e nosso vínculo com os pacientes que atendemos; a forma como discutimos com aquele motorista de ônibus sobre o melhor horário para ele tomar o diurético; como paramos para conversar com o familiar de uma pessoa internada. Aqui também encontramos a polissemia da integralidade, mas, em cada situação, quando a encontramos, a reconhecemos. E, se a reconhecemos, ao fazê-lo estamos aprendendo e ensinando.

Ao lado das reflexões sobre o currículo e as técnicas pedagógicas, talvez devêssemos ampliar nosso olhar para examinar detalhadamente nossas práticas, para identificar no cotidiano os sinais da integralidade que almejamos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2004
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