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Identidade e Formação Profissional dos Médicos

Identity and Professional Training of Physicians

Resumo:

Fundamentado na teoria da identidade social, este artigo apresenta uma revisão teórica e discute o processo de formação profissional dos médicos em determinado contexto sócio-histórico. A partir de tal contexto, pós-flexneriano, faz-se uma avaliação deste processo e de sua interface com as novas demandas relativas à prática dos médicos, principalmente no que diz respeito à reforma curricular e no Programa de Saúde da Família (PSF). O artigo aponta ainda para as óticas dicotômicas e excludentes na discussão dos aspectos multifatoriais relativos ao processo saúde-doença, sugerindo uma reavaliação crítica dos pressupostos da reforma curricular e do PSF, em especial para a necessidade de superação dos obstáculos ético-epistemológicos para a efetivação de uma prática médica verdadeiramente renovada.

Palavras-chave:
Papel Profissional; Educação Médica; Currículo

Abstract:

Based on the Theory of Social Identity, this paper presents a theoretical review and discusses the process of physicians' professional training in a specific social and historical context. Departing from the post-Flexnerian context, the authors present an evaluation of this process and its interface with new demands on medical practice, particularly with respect to curricular reform and the Brazilian Family Health Program. The paper also identifies the dichotomous and exclusionary perspectives in the discussion of the multiple factors related to the health-disease process, suggesting a critical reevaluation of the premises of curricular reform and the Family Health Program, namely the need to overcome the critical and epistemological obstacles to the accomplishment of an effectively renewed medical practice.

Key-words:
Professional Role; Education, Medical; Curriculum

A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DE IDENTIDADES NA ÁREA DA SAÚDE

Ao abordarmos o tema identidade, observamos um grande número de estudos e discussões a respeito do assunto. Não obstante, sua definição e referencial teórico variam na mesma proporção, sendo difícil uma única definição ou abordagem sobre o tema. Podemos observar que o emprego popular do termo, da mesma forma, apresenta grande variação. Por isso, enquanto o conceito se apresenta quase sem necessidade de definição, ao mesmo tempo demanda explicação11. Brewer MB. The Many Faces of social identity: implications for political psychology. Political Psychology 2001; 22 (1): 115-126.)-(55. Sigel R. An introducion to the symposium on social identity. Political Psychology . 2001; 22 (1):111-114.. Por esta razão, introduziremos nossa discussão com uma breve abordagem de aspectos conceituais relativos à temática da identidade.

Primeiramente, é importante ressaltarmos que a identidade é o que possibilita ao indivíduo sentir-se existir enquanto pessoa, em todos os seus papéis e suas funções, sentir-se aceito e reconhecido como tal pelo outro, por seu grupo ou sua cultura66. Santos BRL, Moraes EP, Piccinini GC, Sagebin HC, Eidt OR, Witt RR. Formando o enfermeiro para o cuidado à saúde da família: um olhar sobre o ensino de graduação. Rev Bras Enferm. 2000; 53: 49-59.. Portanto, o processo de identidade se apresenta como uma relação de unicidade e ao mesmo tempo de publicidade, na medida em que se compartilham valores e crenças com o grupo e a cultura a que o indivíduo pertence. A identidade, dessa forma, apresenta uma relação entre diferença e igualdade. Porém, tal relação só é possível no encontro com o outro ou como grupo55. Sigel R. An introducion to the symposium on social identity. Political Psychology . 2001; 22 (1):111-114.),(77. Baptista MTDS. O estudo de identidades individuais coletivas na constituição da história da Psicologia. 2002; http://www.fafich.ufmg.br/-memorandum/artigos02.htm.
http://www.fafich.ufmg.br/-memorandum/ar...
),(88. Ciampa AC. Identidade. In: Lane STM, Codo W (Org.). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense; 1984, p.58-75.. Sendo assim, o compartilhar de crenças e valores faz parte de um processo de formação de identidades. Se não fosse dessa forma, o convívio social seria quase impossível, e ficaríamos sem um norteamento e um posicionamento perante a cultura. Isto porque nós nos situamos na sociedade e temos uma identidade a partir do que os outros nos situam e como eu, enquanto ator social, coloco-me perante o outro88. Ciampa AC. Identidade. In: Lane STM, Codo W (Org.). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense; 1984, p.58-75..

Por esta razão, não é possível dissociar o estudo da identidade do indivíduo, sem levar em consideração o contexto social em que ele se encontra. As alternativas de formação de diferentes configurações de identidades estão diretamente relacionadas às diferentes configurações de ordem social. Ou seja, é do contexto histórico e social no qual estamos inseridos que formamos nossas crenças e, conseqüentemente, "emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e alternativas de identidade"88. Ciampa AC. Identidade. In: Lane STM, Codo W (Org.). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense; 1984, p.58-75. (p. 72).

Em virtude de sua importância no estudo do comportamento humano, o tema identidade tem sido estudado em diversas áreas, e a saúde é um campo fértil para esse estudo. Para entendermos de forma mais clara as atuais características e peculiaridades das práticas em saúde, é necessário fazer uma avaliação sócio-histórica sobre como tal atividade foi formada ao longo dos anos e como o substrato cultural influenciou a formação da identidade profissional dos profissionais de saúde.

Especificando um pouco mais nossa discussão e já a direcionando ao tema abordado, poderíamos, então, dividir a identidade em dois níveis: o primeiro seria a identidade pessoal (atributos específicos do indivíduo), onde a identidade se apresenta como a "articulação de vários personagens, constituindo, e constituída por, uma história pessoal"99. Ciampa AC. A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense;1994. (p. 157); o segundo nível seria a identidade social (atributos que assinalam a pertença a grupos ou categorias); este último pode ser mais especificado como a identidade étnica, religiosa, profissional, etc.33. Jacques MGC. Identidade. In: Jacques MGC, Strey MN, Bernardes NMG, Guareschi PA, Carlos SA, Fonseca TMG(Orgs). Psicologia social contemporânea. Livro-texto. Petrópolis, (RJ): Vozes;1998. p. 159-167.. A identidade social, então, é a forma de ligação entre características individuais e a estrutura e processos sociais de grupos aos quais o indivíduo pertence11. Brewer MB. The Many Faces of social identity: implications for political psychology. Political Psychology 2001; 22 (1): 115-126..

Alguns pressupostos básicos da identidade social, de acordo com Sigel55. Sigel R. An introducion to the symposium on social identity. Political Psychology . 2001; 22 (1):111-114., são: 1) ela é socialmente construída, mas não é imutável; 2) implica uma relação entre indivíduo e grupo; 3) a identificação grupal não implica somente as semelhanças, mas também as diferenças entre os membros; 4) indivíduos tendem a ter múltiplos grupos de identidades, mas a importância dada ao grupo de identidade depende do grau de envolvimento com determinado grupo; e 5) a identidade social e suas manifestações refletem a estrutura social e cultura da qual elas fazem parte. Seria principalmente a partir deste último pressuposto que defendemos que profissionais apresentam dificuldades de adaptação a novas realidades no campo da saúde, uma vez que a estrutura social ou grupal não está de acordo com este contexto.

Sendo assim, a identidade social envolveria representações compartilhadas com o grupo que apresenta interesses em comum, mas também como outros grupos o percebem, havendo aí um envolvimento de esforços extemos1. A justificativa para tal fato seria que a estrutura social mais ampla oferece padrões de identidade mais ou menos definidos. O posicionamento, ou formação de identidade, dá-se a partir de uma relação entre objetos, considerando-se que um desses objetos é colocado como padrão que deve ser seguido pelo outro99. Ciampa AC. A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense;1994..

O processo de compartilhamento de crenças se deve ao que Rokeach1010. Rokeach M. Crenças, atitudes e valores: teoria de organização e mudança. Rio de Janeiro: Interciência, 1981. denominou produção de Crenças Derivadas, caracterizadas por serem crenças ideológicas, originadas de instituições religiosas, políticas, decorrentes do processo de identificação com a autoridade mais do que pelo encontro direto com o objeto de crença. Estas crenças derivadas formam o que geralmente se refere como uma ideologia institucionalizada; junto com as identificações de pessoas ou grupos de referência sobre as quais tais ideologias estão baseadas, fornecem uma crença com um sentido de identidade de grupo1010. Rokeach M. Crenças, atitudes e valores: teoria de organização e mudança. Rio de Janeiro: Interciência, 1981.. Sendo assim, como discutido anteriormente, tais crenças servem ao embasamento de determinada ideologia compartilhada por determinados grupos que apresentam uma identificação entre si. Elas servem, de forma geral, para a manutenção ou estagnação de processos de formação de identidades a partir de objetivos ideológicos.

Este processo se organiza em sistemas ou conjuntos logicamente estruturados, sendo capazes de ativar ações, comportamentos ou condutas sociais, influenciando assim em comportamentos ou ambientes coletivos, propiciando uma identificação, estabilidade ou segurança em relação à realidade física, social e cultural. Tais sistemas podem assumir a forma e a estrutura de argumentos dedutivos e indutivos, como fonte principal de identificação social1111. Krüger H. Psicologia das crenças: perspectivas teóricas. [Tese de concurso para professor], Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1995.. A partir daí surge a expectativa generalizada de ações condicionadas a determinadas características. Estas identidades pressupostas se reatualizam através de rituais sociais: definindo-se como cumprimento de condutas corretas, reproduzem o social enquanto se mantêm a si mesmas99. Ciampa AC. A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense;1994.. A partir desse processo de manutenção e normalização de crenças é que procuramos justificar a formação e manutenção de identidades profissionais - no nosso caso, a identidade profissional do médico.

Dessa forma, articulando-se no plano subjetivo a valores e a atitudes, constituindo, na esfera social, ideologias, utopias, sistemas morais e teorias científicas, entre outros sistemas de proposições, é que as identidades sociais são mantidas. Observamos, então, que a identidade coletiva se apresenta como algo enraizado nas condições formais e pressuposições sócio-históricas, sob as quais são produzidas e intercambiadas as projeções de identidade44. Reicher S, Hopkins N. Psychology and the end of history: a critique and a proposal for the psychology of social categorization. Political Psychology , 2001; 22 (2): 383-407.),(99. Ciampa AC. A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense;1994.. Nessa articulação entre normalização, institucionalização e compartilhamento de determinadas crenças é que determinados objetivos procuram ser alcançados ou Identidades são mantidas. Como afirma Ciampa99. Ciampa AC. A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense;1994.: "A identidade concretiza uma política, dá corpo a uma ideologia" (p. 127). Sendo assim, a formação de identidades é dada pelo reconhecimento mútuo de atores identificados através de determinado grupo social que existe objetivamente, com uma história, suas tradições, suas normas, seus interesses, mais especificamente por ideologias próprias e crenças88. Ciampa AC. Identidade. In: Lane STM, Codo W (Org.). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense; 1984, p.58-75.. Por essa razão, as pessoas tendem a ter determinadas crenças, independentemente de seu valor de plausibilidade1212. Gilbert DT. How mental systems believe. Am Psychologist, 1991; 46(2): 107-119., acarretando efeitos socioculturais diversos, mobilizando coletividades, partidos e instituições sociais, que podem ser contraditos por algumas críticas, mas que sobrevivem, pois cumprem sua função de atendimento a interesses econômicos, culturais e políticos dos setores das sociedades que as adotem. Assim, tais identidades sobrevivem às argumentações lógicas, pois apresentam funções específicas para determinadas culturas1111. Krüger H. Psicologia das crenças: perspectivas teóricas. [Tese de concurso para professor], Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1995..

FORMAÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DO MÉDICO

Uma vez que os grupos e instituições, formados a partir de um substrato sócio-histórico, são importantes para a formação da identidade social e a prática do dia-a-dia dos indivíduos, cabe-nos no momento discutir brevemente o histórico de formação do médico na atualidade. Vamos nos deter na discussão das mudanças na formação médica no início do século 20, por julgarmos ser esta uma fase fundamental para entender a formação da identidade profissional atual do médico.

Iniciaremos fazendo uma análise sobre como surgiu a característica atual da superespecialização médica - fato que influenciou várias outras profissões de saúde. De forma geral, a ampliação da prática institucionalizada da ciência produziu campos e saberes cada vez mais referenciados a determinados grupos, como academias e escolas, que demarcaram e se apropriaram de determinados campos do saber. Sendo assim, a prática científica, mais e mais, valorizou a especialização, no sentido tanto da criação de disciplinas científicas, quanto das subdivisões internas nos próprios campos disciplinares, como forma de apropriação de sua prática. No campo das práticas sociais, novas profissões foram criadas, e necessitava-se de uma nova forma de ensino de tais saberes no sentido de um reconhecimento formal de pertencimento a um seleto grupo de especialistas. Este novo sistema de ensino e formação estruturava-se com base nesta estratégia "minimalista" de recomposição histórica da ciência e da técnica. Assim, poderíamos dizer que se iniciou a estratégia de organização histórico-institucional da ciência, baseada na fragmentação do objeto e especialização cada vez mais crescente do chamado sujeito científico1313. Almeida Filho N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciência e Saúde Coletiva,1997; 2 (1/2):5-20..

Especificamente e em decorrência deste fenômeno, o ensino médico, no início do século 20, foi marcado em âmbito internacional por propostas de Abraham Flexner, conhecidas como Relatório Flexner. Fruto de detalhada avaliação das escolas médicas americanas em 1910, esse relatório fez contundentes críticas ao ensino e, por conseqüência, à prática médica, por estarem totalmente dissociados do "pensar e fazer ciência", realizando uma profunda reavaliação das bases científicas da medicina. As principais características eram a ênfase no conhecimento experimental de base subindividual, proveniente da pesquisa básica realizada geralmente sobre doenças infecciosas, reforçando assim, como aponta Almeida Pilho1313. Almeida Filho N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciência e Saúde Coletiva,1997; 2 (1/2):5-20., "a separação entre individual e coletivo, público e privado biológico e social, curativo e preventivo" (p. 10)1 1 É importante ressaltar que o Relatório Flexner representou um grande salto de qualidade para a medicina na época, porém o que procuramos discutir no momento é sua incompatibilidade com as novas preocupações e propostas de ação em saúde de forma mais ampla, levando, inclusive, a uma reforma curricular das faculdades de medicina. . Inicia-se, então uma especialização excessiva, por meio da busca desordenada do avanço tecnológico, e uma conseqüente desumanização do ensino e da prática profissional1414. Costa Neto MM. O currículo médico e o sistema de saúde em construção. Rev Bras Saúde Família. 2000; 1(2): 46-51..

Nos dias atuais, este paradigma ainda é dominante, sendo fonte de referência para a formação de identidades profissionais. Observamos ainda a preconização da segmentação e a superespecialização do profissional de saúde1515. Campos GWS. Reforma da reforma. São Paulo: Hucitec;1992.)-(1818. Souza AS. A interdisciplinaridade e o trabalho coletivo em saúde. Revista de Atenção Primária à Saúde. 1999; 2(2): 10-14., tornando-se uma mera reprodução formal do conhecimento, sem uma comunicação satisfatória entre os profissionais e acentuado formalismo e a hierarquização por discursos ditos "científicos" de determinadas profissões, sendo a medicina colocada no topo delas em detrimento de todas as outras1818. Souza AS. A interdisciplinaridade e o trabalho coletivo em saúde. Revista de Atenção Primária à Saúde. 1999; 2(2): 10-14..

A valorização da especialização fez com que as abordagens dos pacientes ou das doenças também fossem compartimentadas e descontextualizadas, criando, por outro lado, tarefas bem delimitadas e padronizadas. Notamos, assim, que a noção de procedimentos característicos do modelo flexneriano acarretou um distanciamento e a pouca preocupação com a singularidade de cada pessoa atendida. Então, somada à prática excessivamente especializada, a divisão da ação médica por meio de procedimentos terminou por despersonalizar a relação médico-paciente. Esta prática segmentada criou uma noção de mercadoria na área da saúde, sendo um procedimento com determinada terapêutica e, conseqüentemente, determinada remuneração. Dessa forma, a prática tornou-se dividida, não havendo um compromisso ou dimensão mais ampliada do restabelecimento do doente e com a proteção à comunidade1515. Campos GWS. Reforma da reforma. São Paulo: Hucitec;1992.. Através desse fato, existe um olhar limitado sobre o paciente, e o médico ocupa o papel de mero reprodutor de ações estereotipadas e sem liberdade de ação.

Infelizmente, a especialização descontrolada, sem o preparo geral prévio, a corrida desmedida pela sofisticação tecnológica e o encarecimento dos custos no setor de saúde - consequência da utilização indevida dos métodos auxiliares de diagnóstico -, em detrimento dos aspectos humanos e sociais da assistência médica, vêm sendo a característica central da prática médica em quase todo o mundo ocidental ao longo do século vigente1414. Costa Neto MM. O currículo médico e o sistema de saúde em construção. Rev Bras Saúde Família. 2000; 1(2): 46-51..

Segundo Costa Neto1414. Costa Neto MM. O currículo médico e o sistema de saúde em construção. Rev Bras Saúde Família. 2000; 1(2): 46-51. e Santos et al.66. Santos BRL, Moraes EP, Piccinini GC, Sagebin HC, Eidt OR, Witt RR. Formando o enfermeiro para o cuidado à saúde da família: um olhar sobre o ensino de graduação. Rev Bras Enferm. 2000; 53: 49-59., o modelo assistencial prevalecente no Brasil ainda se caracteriza pela prática profissional de natureza predominantemente biológica, individualista e hospitalar, apresentando baixa cobertura e elevado custo, com respostas apenas pontuais de procedimentos curativos individuais e de forma descontextualizada, havendo dificuldade de desenvolver ações de âmbito coletivo.

Desta forma, houve uma afirmação e representação, tanto dos profissionais como dos usuários dos serviços de saúde, de que o atendimento hospitalar é o lugar de ação predominante, representação esta que faz parte da história passada e presente das políticas de saúde no país. Existe, então, a representação por parte desses atores de que o hospital é o lugar que reúne todas as possibilidades de solucionar seu problema de saúde1919. Pinheiro R. As práticas do cotidiano na relação oferta e demanda dos serviços de saúde: um campo de estudo e construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 65-112..

A partir de tais características, pensa-se na questão da formação e nas faculdades que preparam o profissional para a especialização e fragmentação do trabalho. Algumas faculdades procuram reverter o atual modelo de formação por meio de reformas curriculares. Porém, muitas vezes, deparam com a resistência de alguns profissionais em mudar o atual modelo baseado na especialização. Constata-se que o próprio ensino torna-se segmentado, apenas reproduzindo velhas práticas de assistência1616. Campos GWS. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Saúde Pública, 1997; 13(1): 141-144.. Tais atitudes seriam reforçadas nas faculdades de medicina por meio de um currículo tradicional, sistematizado a partir da lógica flexneriana, que privilegia o laboratório e o hospital como lugar privilegiado de aprendizado2020. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser definidos. In: Pinheiro R, Mattos RA (Org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde . Rio de Janeiro, UERJ, IMS, ABRASCO; 2001 p. 39-64..

Essa situação influencia a formação de identidades profissionais já entre os estudantes da graduação, que internalizam algumas crenças ou atitudes a partir de sistemas referenciais fornecidos pela faculdade e pelos professores. Como já apontado, além do problema de formação a partir do currículo e práticas preconizadas na graduação, observa-se uma representação anterior à entrada na universidade por parte dos estudantes sobre a profissão médica que vai ao encontro das idéias hegemônicas nos cursos de maneira geral. Além disso, as relações informais dentro das faculdades são importantes na formação da identidade dos médicos.

A REFORMA CURRICULAR E A REFORMA DE IDENTIDADES

Uma vez que a identidade é formada também a partir de sistemas de referência e instituições através de um processo de compartilhamento de crenças, torna-se relevante avaliar a reforma curricular não como um processo estático, mas como uma forma de mudança cultural, iniciada por uma reavaliação de práticas e crenças dos formadores de opinião (professores), uma vez que a organização informal é uma importante fonte de influência da formação da identidade do aluno.

Sendo assim, a universidade deveria analisar sua formação não só em relação à valorização da prática especializada, mas também quanto aos problemas de saúde pública do nosso país, buscando formas de viabilizar a universalização da saúde para toda a população brasileira. Já se torna evidente que é preciso reavaliar o modelo de saúde vigente para atingir de forma mais efetiva os objetivos de oferta de serviços de saúde com nível de qualidade satisfatório para o conjunto da população brasileira1616. Campos GWS. Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS). Rev Saúde Pública, 1997; 13(1): 141-144.. Por isso, é preciso avaliar efetivamente a verdadeira necessidade de formação de profissionais, analisando as competências e habilidades desejáveis para o profissional atuar nesse novo modelo de saúde2121. Faria EVF. A formação do profissional de saúde. Revista de Atenção Primária à Saúde . 2000; 2(4): 10-11..

A formação deve ser vista de forma contextualizada e mais ampla. O currículo não pode mais ser visto como um conjunto neutro de conhecimentos, como no modelo flexneriano. Ele faz parte de um momento sócio-histórico sendo selecionado a partir de determinadas ideologias1414. Costa Neto MM. O currículo médico e o sistema de saúde em construção. Rev Bras Saúde Família. 2000; 1(2): 46-51.. Minayo2222. Minayo MCS. O Desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo-Rio de Janeiro: HUCITEC­ ABRASCO; 2000. levanta algumas características de trabalho:

“a) pouca valorização conceitual do processo saúde/doença e seus determinantes; b) enfoque pragmático e funcionalista da medicina como se ela fosse uma ciência universal, atemporal e isenta de valeres; c) valorização das ciências sociais como acessório ou complemento na prática e na teoria médicas, considerando-as como ciências normativas e com finalidade adaptativa e funcional” (p. 49)

Ainda a respeito da caracterização da prática médica - o que poderíamos generalizar para os demais profissionais de saúde -, a mesma autora aponta:

"1) Concepção de saúde/doença como fenómeno apenas biológico e individual em que o social entra, compreendido como modo de vida e apenas como variável, ou é desconhecido ou omitido; 2) Valorização excessiva da tecnologia e da capacidade absoluta da medicina de erradicar doenças; 3) Na dominação corporativa dos médicos em relação a outros campos do conhecimento, adotando-os de forma pragmática; no tratamento subalterno dado aos outros profissionais da área; em relação ao senso comum da população, numa tentativa nunca totalmente vitoriosa, de desqualificá-lo e absorvê-lo" (p. 49)

Sendo assim, é fundamental discutir e questionar as práticas em saúde, levando em consideração a necessidade de uma mudança de paradigmas profissionais e de práticos em saúde coletiva2323. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma "nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saúde Pública , 1998; 32(4): 299-316.. É preciso construir um marco teórico que reavalie o campo social na saúde, decorrente dos problemas de efetivação de práticas que priorizem as ações de promoção de saúde2222. Minayo MCS. O Desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo-Rio de Janeiro: HUCITEC­ ABRASCO; 2000.),(2323. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma "nova saúde pública" ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saúde Pública , 1998; 32(4): 299-316.. Além disso, devem-se reforçar os movimentos que procuram redefinir as práticas dos profissionais de saúde e rediscutir o significado do cuidado em saúde e o sentido do processo de cura, de forma a ampliar a capacidade de autonomia do paciente1717. Campos GWS. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e a reforma das pessoas. O caso da saúde. In: Cecilio LCO (Org). Inventando a Mudança na Saúde. São Paulo: Hucitec ;1997. p.29-87.. Também é necessária a adequação de políticas de valorização profissional, para levar em conta as práticas que se correlacionem mais direta e objetivamente às mudanças pretendidas.

Ao nosso ver, a preparação e as mudanças dos centros formadores são o primeiro passo para a formação de uma nova identidade e práticas em saúde que superem a especialização desordenada. Para isto, é necessário superar problemas estruturais nas escolas de formação dos profissionais de saúde2424. Viana ALD, Dal Poz MR. A Reforma do Sistema de Saúde no Brasil e o Programa de Saúde da Família. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva. 1998; 8(2):11-48.. Como já apontamos, existe um problema de efetivação de práticas contextualizadas na área de saúde, pois existem Crenças Derivadas, decorrentes de grupos de referência específicos que influenciam a prática diária dos atores sociais. As universidades e os professores, no nosso pensamento, seriam a principal fonte de formação de identidade dos novos profissionais. Desta forma, junto com outras mudanças, seria de suma importância uma discussão critica acerca dos sistemas de crença, para que os profissionais saiam das faculdades realmente preparados para um trabalho que procure avaliar os vários aspectos do fenômeno saúde/doença, principalmente em relação ao trabalho na Atenção Primária.

A medicina se apresenta como principal divulgadora e responsável pelo sucesso ou elaboração das políticas de saúde. Sendo assim, as outras profissões ligadas à saúde são direta ou indiretamente influenciadas por ela, apresentando uma característica de especialização de suas atividades1717. Campos GWS. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e a reforma das pessoas. O caso da saúde. In: Cecilio LCO (Org). Inventando a Mudança na Saúde. São Paulo: Hucitec ;1997. p.29-87.. Observamos, ainda, no mercado de trabalho, que a assistência médica é tratada, na maioria das vezes, como mercadoria. Ultimamente, a medicina tem ganhado, cada vez mais, um caráter comercial, emaranhada em um complexo médico-industrial que gera lucro e reproduz velhas formas de atenção, pautadas na reprodução da força de trabalho. O profissional tem sido cada vez mais seduzido pelo mercado e pelo status que ele fornece. As práticas comunitárias e de saúde coletiva, com tecnologias mais simplificadas e uma preocupação psicossocial, ficam relegadas a um segundo plano na lista de prioridades desses profissionais. As ações de maior complexidade tecnológica ficam associadas a uma competência técnica maior, em detrimento das atividades ambulatoriais menos complexas1717. Campos GWS. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e a reforma das pessoas. O caso da saúde. In: Cecilio LCO (Org). Inventando a Mudança na Saúde. São Paulo: Hucitec ;1997. p.29-87.),(1919. Pinheiro R. As práticas do cotidiano na relação oferta e demanda dos serviços de saúde: um campo de estudo e construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 65-112.),(2525. Machado MH. Os médicos no Brasil. um retrato da realidade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997..

Além desses aspectos de mercado e econômico, a persistência da prática tradicional está também ligada a aspectos ideológicos de medicalização da sociedade, de interesses corporativistas e de manutenção de um status científico que conserva, de alguma forma, o poder de decisão sobre a sociedade ocidental. Desta forma, a prática médica - pautada no discurso biológico e com pretensões que abarcam vários fenômenos humanos - implica uma relação de poder com características próprias, como aponta Mattos2020. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser definidos. In: Pinheiro R, Mattos RA (Org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde . Rio de Janeiro, UERJ, IMS, ABRASCO; 2001 p. 39-64.:

“O termo medicalização é utilizado aqui para indicar um processo social através do qual a medicina foi tomando para si a responsabilidade sobre um crescente número de aspectos da vida social. Nesse sentido, a medicina preventiva é altamente medicalizante, pois estende as possibilidades de aplicar com certa eficácia técnica e conhecimentos sobre a doença, para regular aspectos da vida social. Através dela, a medicina não trata somente doentes; ela recomenda hábitos e comportamentos. Ela invade a vida privada para sugerir modos de vida mais saudáveis, ou seja, supostamente mais eficazes de impedir o adoecimento” (p. 49)

A mudança de paradigmas provocaria, de alguma forma, a horizontalização das relações tanto entre profissionais quanto com a sociedade geral, fator que não interessaria às seletas academias ou instituições rigorosamente construídas a partir do discurso científico, como relatado no início do artigo1515. Campos GWS. Reforma da reforma. São Paulo: Hucitec;1992..

Diríamos, a partir de Guareschi2626. Guareschi PA. Ideologia. In: Jacques MGC, Strey MN, Bernardes NMG, Guareschi PA, Carlos SA, Fonseca TMG (Orgs). Psicologia social contemporânea . Livro-texto. Petrópolis, (RJ): Vozes ; 1998. p. 89-103., que as dificuldades de mudança de paradigmas se justificariam, pois:

“(...) a rotulação e a estigmatização ligam determinados estereótipos a um sujeito ou instituição, propiciando com isto que as relações de dominação se criem e se perpetuem; a sacralização ou a divinização, através das quais características sobrenaturais são referendadas a acontecimentos ou a pessoas, criando-se com isso situações onde relações assimétricas de poder são instituídas, com o prejuízo de diversas pessoas ou grupos; e ainda outras possibilidades” (p. 99)

Estudos anteriores já apontam que as mudanças de políticas assistenciais encontram severas resistências, provocando tensões na relação entre os serviços, profissionais e usuários. Segundo Pinheiro1919. Pinheiro R. As práticas do cotidiano na relação oferta e demanda dos serviços de saúde: um campo de estudo e construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 65-112., “talvez isso possa estar acontecendo por desconhecimento, ou mesmo pela não-incorporação, por parte desse profissional, da racionalidade política que esse processo propõe" (p.75).

A CRISE DE PARADIGMAS NA SAÚDE

Apesar de toda crítica que fazemos à formação e à identidade do profissional de saúde, observamos que existe uma crise de paradigmas nas ciências. A mudança de paradigmas está ocorrendo principalmente nas chamadas "ciências duras" e está levando em conta a impossibilidade de qualquer um se deter em questões cientificas localizadas, tornando-se especialista de um único tema. Começa-se a colocar em questão a superespecialização e a fragmentação das práticas científicas como preconizadas no início do século anterior. Na área da saúde, existem correntes que também promovem essa discussão, procurando ampliar os fenômenos envolvidos nessa prática1313. Almeida Filho N. Transdisciplinaridade e saúde coletiva. Ciência e Saúde Coletiva,1997; 2 (1/2):5-20..

Observamos uma discussão crescente entre as escolas de formação e alguns grupos que valorizam um trabalho menos fragmentado e que leva em conta as questões multifatoriais e dialéticas na assistência em saúde. Porém, a valorização dessa "nova" forma de trabalho, por si só, torna-se insuficiente caso não sejam colocadas em prática políticas de ensino e uma metodologia que realmente promovam essa mudança de concepções. Constata-se, ainda, a formação dos profissionais de saúde em guetos teóricos, sem troca de conhecimentos, que são resguardados, muitas vezes, por receios corporativistas, com o objetivo de manutenção do status quo, do mercado de trabalho e financeiro. Perdura, assim, a justaposição de disciplinas sem integração conceituai entre si, com total ausência de comunicação1818. Souza AS. A interdisciplinaridade e o trabalho coletivo em saúde. Revista de Atenção Primária à Saúde. 1999; 2(2): 10-14..

Um exemplo do problema entre a identidade profissional e as novas propostas assistenciais é o Programa de Saúde da Família (PSF), que seria uma estratégia importante na valorização do trabalho preventivo e coletivo. Apesar de sua importância, a proposta da formação do profissional generalista que compõe a equipe de PSF tem sido implantada em nível de políticas de reforma dos sistemas de saúde, havendo um problema em relação à prática e à formação do profissional que está preparado para "velhas" formas de trabalho.

A importância da avaliação da formação profissional do médico de PSF está no fato de que:

“(...) as percepções 'doentes' e 'doenças' não se modificaram nos discursos dos atores, com a implantação do programa. Embora a filosofia e o objeto de atuação dos profissionais e serviços sejam distintos dos serviços tradicionalmente oferecidos nas UBS, o material simbólico que carregam os atores envolvidos na relação entre oferta e demanda não se distingue nos seus conceitos e percepções sobre doença e saúde - ou seja, uma racionalidade médica centrada na categoria doença, com forte apelo às definições oriundas do campo da biologia (...)"1919. Pinheiro R. As práticas do cotidiano na relação oferta e demanda dos serviços de saúde: um campo de estudo e construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 65-112.(p.96).

Torna-se flagrante a necessidade de um direcionamento profissional para a responsabilidade social, em detrimento das práticas tradicionais puramente especializadas e individualistas, meramente curativas e mecanicistas, alicerçadas na estrita visão biológica do indivíduo. Não se trata, a partir desse fato, de abandonar a qualidade técnica, mas de conciliar conhecimentos técnicos gerais e uma postura profissional que também considere os fatores psicossociais envolvidos na prática em saúde1414. Costa Neto MM. O currículo médico e o sistema de saúde em construção. Rev Bras Saúde Família. 2000; 1(2): 46-51.),(2727. Sousa MF. Saúde da Família provoca inovações nas Instituições de Ensino Superior. Rev Bras Saúde Família , 2000; 1(2): 8-11.. Avaliamos, dessa forma, a necessidade da formação profissional voltada para a prática interdisciplinar, de cunho coletivo/comunitário, que consiga promover a difícil tarefa de mudanças de concepções produzidas e mantidas há vários anos em relação às práticas em saúde. Este fator traz a necessidade de que os centros de formação iniciem efetivamente uma reforma crítica e profunda, que prepare de fato os estudantes para o trabalho em saúde coletiva e a realidade sociopolítica que o Brasil vem procurando implantar a partir do PSF2727. Sousa MF. Saúde da Família provoca inovações nas Instituições de Ensino Superior. Rev Bras Saúde Família , 2000; 1(2): 8-11..

Segundo entendemos; as discussões e proposições de novas práticas e modelos de abordagem das questões ligadas à saúde e à doença precisam ultrapassar as infecundas e freqüentemente enfadonhas abordagens dicotomizadas da questão. Conforme sabido, radica-se no pensamento metafísico urna crença fundamental na antinomia dos valores, uma crença a partir da qual se multiplicam oposições. O raciocínio por oposição é aquele no qual a preposição contra habitualmente se transforma na conjunção ou, característica dos dualismos dicotômicos. Na prática, processos fundados no raciocínio por oposição - como nas querelas entre o físico e o mental; entre curar ou prevenir; entre prática médica coletiva ou individual; entre saúde pública e privada, etc. - funcionam como verdadeiros processos de exclusão: a afirmação de um dos termos da oposição é sempre a negação ou a desvalorização do outro, e as distinções dualistas revelam-se, a cada instante, em seu trabalho de exclusão2828. Ribeiro MS. Vida e Liberdade: a psicofisiologia de Nietzsche. Londrina, (PR): Editora UEL; 1999..

Procurando apontar para essa superação, reiteramos a caracterização realizada por Costa Neto1414. Costa Neto MM. O currículo médico e o sistema de saúde em construção. Rev Bras Saúde Família. 2000; 1(2): 46-51., por nós aqui tomada sob a perspectiva do médico ideal, um médico:

"1) que considera o indivíduo em seu contexto familiar e social, com vistas a prestar cuidados clínicos com elevado padrão e personalizar os cuidados preventivos através de uma relação de confiança a longo prazo; 2) que escolhe as tecnologias a serem aplicadas de forma ética elevando em consideração o seu custo benefício; 3) que é capaz de promover estilos de vida saudáveis através do esclarecimento enfático, dando condições, assim, de os indivíduos protegerem sua saúde; 4) que conseguem harmonizar as necessidades individuais e comunitárias de saúde através do ganho da confiança das pessoas com as quais trabalha; 5) que consegue trabalhar de forma interdisciplinar e multissetorial, com vistas a satisfazer as necessidades dos indivíduos da comunidade com as quais trabalha" (p.49) .

À GUISA DE CONCLUSÃO

Apesar da hegemonia de práticas pautadas pela identificação com o trabalho especializado, existe uma tentativa de mudança e reconstrução das ações e da identidade do profissional de saúde. Todavia, como aponta Campos1717. Campos GWS. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução das coisas e a reforma das pessoas. O caso da saúde. In: Cecilio LCO (Org). Inventando a Mudança na Saúde. São Paulo: Hucitec ;1997. p.29-87., ainda não conseguimos, historicamente, realizar a negação/superação das práticas tradicionais; ou seja, mais as criticamos e apontamos seus limites do que fomos capazes de construir propostas alternativas de atenção.

Deparamo-nos com estratégias de mudanças inovadoras, mas ainda pouco desenvolvidas e pouco discutidas pelos profissionais vinculados aos dispositivos assistenciais e/ou aos centros de formação. Algumas estratégias foram traçadas, porém, muitas vezes, sem efetivamente atentarem para o contexto macro a que visam: não levando em conta o processo cultural que molda as relações profissionais, não conseguem atingir seus objetivos.

Podemos concluir afirmando que, a partir de um histórico da formação e contexto da prática médica, o processo de construção da identidade do profissional médico priorizou as ações superespecializadas, ficando o trabalho de promoção em saúde como uma prática que distancia o profissional de sua identidade. Ainda não se delineou um consenso quanto à possibilidade de as atuais estratégias de mudança do sistema de saúde brasileiro - em especial o PSF e a reforma curricular das faculdades de medicina - serem apontadas como alternativas relevantes à atual dicotomização do pensar e agir na área de saúde. De fato, existe uma ampla divulgação e incentivo de ampliação e uma idéia de que o PSF será o salvador das mazelas e incompetência das políticas de saúde pública tradicionais, assim como uma grande expectativa em relação à reforma curricular. Porém, precisamos estar atentos para a questão da formação de urna identidade social ou mudanças de concepções a respeito do trabalho do profissional de saúde. Apontamos a importância de considerar as percepções dos atores sociais envolvidos nos processos de implementação de novas políticas. Mudanças apenas no âmbito formal apresentam dificuldades de efetivação prática, e, muitas vezes, ocorre o fenômeno denominado por Ribeiro1919. Pinheiro R. As práticas do cotidiano na relação oferta e demanda dos serviços de saúde: um campo de estudo e construção da integralidade. In: Pinheiro R, Mattos RA (Org). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: UERJ, IMS, ABRASCO; 2001. p. 65-112. de "esquizonomia", que seria a marcada dissociação entre o dizer e o fazer, entre o discurso e a ação, cada vez mais freqüente - ou, talvez, apenas mais perceptível - em nossa época.

Ao nosso ver - e ao lado de outros aspectos não abordados neste trabalho-, a explicitação e a discussão dos processos de formação da identidade profissional são fundamentais ao entendimento das dificuldades para implementar determinadas políticas de saúde ou reformulações na matriz curricular. Enquanto não nos ocuparmos diretamente do processo de formação e manutenção de identidades institucionalizadas, estaremos, provavelmente, perseverando sem êxito nessa busca de ruptura de barreiras culturais às novas práticas em saúde.

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    É importante ressaltar que o Relatório Flexner representou um grande salto de qualidade para a medicina na época, porém o que procuramos discutir no momento é sua incompatibilidade com as novas preocupações e propostas de ação em saúde de forma mais ampla, levando, inclusive, a uma reforma curricular das faculdades de medicina.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2003

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2003
  • Aceito
    11 Set 2003
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