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Caminhos para Aproximar a Formação de Profissionais de Saúde das Necessidade da Atenção Básica

Ways the Attune Training of Health Professionals with Basic Health Care Needs

Resumo:

A partir da consideração de que o Sistema Único de Saúde, por mandato constitucional, deveria “ordenar” o processo de formação profissional na área da saúde e com base na importância da força de trabalho que ele absorve, os autores exploram as possibilidades de integração do processo de aprendizagem à rede de serviços de saúde. Na busca de reorientar a formação, tratam de estimular uma atuação interdisciplinar multiprofissional por meio da construção de um novo modelo pedagógico que equilibre a excelência técnica e a relevância social, com métodos de ensino-aprendizagem centrados no aluno e desenvolvidos como processo permanente, com base nas relações de parceria da universidade com os serviços de saúde, com a comunidade, com as entidades e outros setores da sociedade civil. Os autores propõem um sistema de incentivos às instituições de ensino superior, visando maior sintonia com o paradigma da integralidade. Para isto, estabelecem um mecanismo de acompanhamento classificatório que congrega os distintos eixos de um processo de mudança da organização de uma instituição de ensino na direção proposta, que incluem: a orientação teórica predominante na instituição, a abordagem pedagógica e os cenários de práticas, cada um deles abrindo-se em três vetores que marcam o grau de avanço nas mudanças em curso. Com isso, conformam uma tipologia em um “perfil radical de avaliação” da tendência a alcançar o paradigma proposto. Não se avalia com este instrumento a qualidade da instituição ou do programa, senão sua posição em relação ao SUS.

Descritores:
Educação médica - tendências; Sistemas de saúde; Integração docente-assistencial

Abstract:

Considering that the Brazilian Constitution mandates the country’s Unified Health System (SUS) to “organize the professional training process in the health field” and based on the importance of the work force the SUS absorbs the authors explore the possibilities for integrating the learning process into the health care system. Seeking to reorient the training process, they attempt to simulate interdisciplinary multiprofessional action by constructing a new pedagogical model balancing technical excellent and social relevance. The teaching-and-learning process should be centered on the student and developed as a permanent process, based on partnership between university and health services, community, NGOs, and other sectors of the civil society. The authors propose a system of incentives for encouraging institutions of higher learning to further approach the integrality paradigm. They establish a mechanism of classificatory follow-up which assembles the various lines in a process of change in the direction they propose, including: the institution’s predominant theoretical orientation, the teaching approach, and the range of health care practices, each comprising three vectors characterizing the degree of progress in actual changes. Thus, they shape a typology and a “radical profile of evaluation” in the thrust to reach the proposed paradigm. The instrument does not evaluate the quality of the institution or program, but its position in relation to the SUS.

Descriptors:
Medical education - trends; Health System; Teaching care integration

INTRODUÇÃO

Apesar de a Constituição Federal de 1988 já indicar que o SUS deveria cumprir o papel de “ordenar” o processo de formação profissional na área da saúde, isso não se tem traduzido numa prática institucional. Os instrumentos de poder de que dispõe o sistema de saúde para orientar o processo de formação e a distribuição dos recursos humanos no país até o momento não foram utilizados.

A desarticulação entre as definições políticas dos ministérios da Saúde e da Educação tem contribuído para acentuar o distanciamento entre a for maç3o dos profissionais e as necessidades do SUS. Embora o SUS constitua um significativo mercado de trabalho para os profissionais de saúde, tanto nos serviços públicos quanto nos contratados, este fato não tem sido suficiente para produzir impacto sobre o ensino de graduação na área de saúde. A inserção parcial dos hospitais universitários na rede do SUS reforça esse distanciamento, agravando as distorções.

Todos os esforços prévios de integração do processo de ensino-aprendizagem à rede de serviços tiveram baixa sustentabilidade, pois dependiam de uma adesão ideológica de docentes e estudantes, e, mesmo estando institucionalizados, mostravam-se vulneráveis às conjunturas políticas locais. Assim, os deslocamentos para ambulatórios periféricos, a supervisão de internatos rurais, a participação em atividades comunitárias, entre outros atividades, sempre representaram um pesado ônus para aqueles que as assumiam e as levavam à frente (Marsiglia, 199513. Marsiglia RG. Relação ensino/serviços: dez anos de integração docente assistencial (IDA) no Brasil. São Paulo, Hucitec, 1995.; Teixeira e Paim, 199620. Teixeira CF, Paim JS. Políticas de formação de recursos humanos em saúde: conjuntura atual e perspectivas. Divulgação em saúde para debate. 1996; (12): p.19-23.; Teixeira, 199520. Teixeira CF, Paim JS. Políticas de formação de recursos humanos em saúde: conjuntura atual e perspectivas. Divulgação em saúde para debate. 1996; (12): p.19-23.).

É necessário assumir que não se pode ficar à mercê da transformação espontânea das instituições acadêmicas na direção assinalada pelo SUS. A saúde, como único setor do Estado que vem sofrendo uma reforma realmente democrática, apoiada na mobilização de expressivos setores sociais (Noronha e Levcovitz, 199415. Noronha JC, Levcovitz E. AIS - SUDS - SUS: os caminhos do direito à saúde. In: Saúde e sociedade no Brasil, anos 80. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994 p. 73-111.; Mendes, 1994), tem recursos estratégicos para intervir ativamentenoccn6rio da formação profissional. Assim, é extremamente necessário e oportuno um papel indutor do SUS, em suas várias instâncias, para estimular as mudanças na formação profissional em saúde de acordo com seus interesses e necessidades. Isso vai possibilitar que se dê direcionalidade ao processo de mudança das escolas, facilitando que a formação profissional se aproxime do necessário para uma assistência à saúde mais efetiva, equânime e de qualidade.

IMAGEM-OBJETIVO A SER ALCANÇADA

O que se busca é a intervenção no processo formativo, para que os programas de graduação possam deslocar o eixo da formação centrada na assistência individual prestada em unidades hospitalares para um processo de formação mais contextualizado, que leve em conta as dimensões sociais, econômicas e culturais da população, instrumentalizando os profissionais para enfrentar os problemas do processo saúde/ doença da população. Isto implica estimular uma atuação interdisciplinar, multiprofissional, que respeite os princípios do controle social e do SUS e que atue com responsabilidade integral sobre a população num determinado território (Rede Unida, 199817. Rede Unida. Contribuição para as novas diretrizes curriculares nos cursos de graduação da área da saúde. Olho Mágico . 1996; (16): 11-28.).

A construção de um novo modelo pedagógico deve ter como perspectiva o equilíbrio entre excelência técnica e relevância social. como princípios que devam nortear o movimento de mudança, que deve estar sustentado na integração curricular, em modelos pedagógicos mais interativos, na adoção de metodologias de ensino-aprendizagem centradas no aluno como sujeito da aprendizagem e no professor como facilitador do processo de construção de conhecimento (Feuerwerker e Sena, 19999. Feuerwerker LCM, Sena RA. Construção de novos modelos acadêmicos de atenção â saúde e de participação social. In: Almeida MJ, Feuerwerker LCM, Llanos MA. Educação dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec; 1999. p. 47-83.).

As novas interações devem estar sustentadas também em relações de parceria entre as universidades, os serviços e grupos comunitários, corno forma de garantir o planejamento do processo de ensino-aprendizagem centrado em problemas sanitários prevalecentes. As mudanças impõem uma nova estrutura de administração acadêmica, orientada por um sistema de controle que considere as novas categorias da prática pedagógica/assistencial (Feuerwerker e Sena, 19999. Feuerwerker LCM, Sena RA. Construção de novos modelos acadêmicos de atenção â saúde e de participação social. In: Almeida MJ, Feuerwerker LCM, Llanos MA. Educação dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec; 1999. p. 47-83.).

A educação deve ser entendida como um processo permanente. Iniciado durante a graduação e mantido na vida profissional, por meio das relações de parceria da universidade com os serviços de saúde, a comunidade, as entidades e outros setores da sociedade civil. Como tal, ela envolve uma importante reorientação pedagógica, centrada no desenvolvimento da aptidão de aprender, transformando o conhecimento num produto construído por meio de ampla e total integração com o objeto de trabalho (Ferreira, 19867. Ferreira JR. Avaliação prospectiva da educação médica. Educ. Med. Salud. 1986; 20 (1).).

Também deve haver a reorientação das pesquisas desenvolvidas na área da saúde, não apenas nos aspectos técnico-operacionais, mas especialmente com a inclusão do aspecto político-institucional e da avaliação da incorporação de novas tecnologias no repertório das linhas de investigação. Especialmente este último aspecto está relacionado com a promoção da pesquisa estratégica, aplicada a situações concretas que demandam resultados a curto prazo que possam ser incorporados à mesma realidade em que se realiza o trabalho.

Os hospitais universitários e de ensino, as instituições de ensino superior e os gestores do SUS devem buscar sua inserção mais orgânica e efetiva no sistema, criando condições reais de exercer sua missão e retribuir com a qualidade técnica na assistência, no ensino, na pesquisa, na educação continuada e permanente, e na avaliação da incorporação de novas tecnologias. Graças a essa pactuação, os hospitais podem tornar-se mais abertos à influência externa na definição do perfil profissional a ser formado para o mercado, em especial para o SUS, e na integração efetiva, potencialmente tornando-se referência terciária regional para o Sistema Único de Saúde.

SISTEMA DE GRADAÇÃO DAS MUDANÇAS

Nos últimos anos, especialmente nas áreas de medicina e enfermagem, houve movimentos expressivos no sentido de promovera reflexão crítica sobre os modelos tradicionais de formação profissional e de estimular as escolas a buscarem a Transformação desse processo (Conferência, 19865. Conferência mundial de educação médica: seis temas principais para as reuniões nacionais. Rev. Bras. Educ. Méd. 1986; 10 (3): 157-169.; Ferreira, 19888. Ferreira JR. El análisis prospectivo de la educación médica en América Latina. Educ. Med. Salud . 1988; 22 (3); World, 199422. World summit on medical education. Edinburgh, 1993. Med. Educ. 1994; 28 (suppl.1).; OPS, 199716. OPS. Encuentro continental de educación médica. Montevideo: OPS/OMS, 1997. 514 p.; (Sena-Chompré e Egry, 199819. Sena-Chompré Roseni R, Egry Emiko Y. A enfermagem nos projetos UNI: contribuição para um novo projeto político para a enfermagem brasileira. São Paulo: Hucitec , 1998.). Apesar de haver muito debate e um grau significativo de mobilização, aparentemente faltam elementos para que se desencadeiem nas escolas processos eletivos de mudança. Apenas algumas escolas conseguiram iniciar processos profundos de mudança orientados de acordo com os princípios acima definidos (Cinaem, 19974. Cinaem. Relatório final da segunda fase. 1997. (mimeo); Feuerwerker, 199810. Feuerwerker LCM. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo: Hucitec /Rede Unida, 1998.). Nesse cenário, seria muito oportuno que os atores e instâncias do sistema de saúde (em permanente processo de mudança) pudessem intervir ativamente, ajudando as escolas a se transformarem no sentido de orientar o processo de formação às necessidades do sistema de saúde e de um modelo de atenção mais integral. Propõe-se, então, um sistema de incentivas às instituições de ensino superior que adotem práticas de ensino, pesquisa e assistência sintonizadas com o paradigma da integralidade.

A tendência é de que os processos de mudança se dêem simultaneamente em distintos eixos (Almeida, 19991. Almeida MJ. Educação médica e saúde: possibilidades de mudança Rio de Janeiro: ABEM, 1999.). Não é impossível, mas é pouco provável, que uma escola que assuma um sólido compromisso com a mudança pedagógica na graduação siga privilegiando apenas o ambiente hospitalar como cenário de prática.

Apenas para fins classificatórios, e sujeitos à crítica, identificam-se a seguir distintos eixos de um processo de mudança em direção a uma imagem-objetivo que antevê uma academia integrada e que dê respostas às necessidades concretas do SUS na formação profissional, na produção do conhecimento e na prestação de serviços, objetivos finalísticos e indissociáveis das instituições acadêmicas, bem como de um serviço articulado e comprometido com o processo de formação dos profissionais de saúde.

As primeiras situações sempre são as mais tradicionais e conservadoras. As demais tentam projetar cenários de avanço gradual, que nem sempre se darão em suave transição, mas que neste momento servem para definir tipologias que possam estimular e orientar o processo de transformação desejado, como se verá mais adiante.

EIXO 1: ORIENTAÇÃO TEÓRICA

Este eixo comporta três vetores, que dizem respeito, respectivamente, à produção de conhecimentos e à oferta de pós-graduação e de educação permanente. Pode-se constatar que a pesquisa científica vem sendo dirigida pela dinâmica e pela lógica estabelecidas pelos países desenvolvidos. Há, porém, necessidades imperiosas da atenção primária que não vem sendo corretamente respondidas, em especial quando se consideram as necessidades nacionais e regionais dos países menos desenvolvidos (Rifkin et al., 198818. Rifkin SB, Muller F, Bichmann W. Primary health care: on measuring participation. Soc. Sci. Med. 1988; 26 (9): 931-40.). Estudos clínico-epidemiológicos, ancorados em evidências, que possam avaliar criticamente e redirecionar protocolos e intervenções podem ser realizados com a capacidade ora existente. Devem ser ainda investigados componentes gerenciais do SUS, que possam estabelecer boas práticas de gestão, visando alimentar um processo de tomada de decisão e estimular a conformação de redes de cooperação técnica horizontal.

As prioridades atualmente adotadas no campo da investigação na academia permitem caracterizar pelo menos três tipos de perfil institucional. O primeiro engloba instituições que desenvolvem investigações predominantemente no campo biomédico, com ênfase na apropriação tecnológica e atuação autônoma especializada, dirigidas a produzir respostas para a atenção individual e a cura de doenças. Um segundo grupo de instituições adota orientação mais inovadora e procura um melhor equilíbrio entre o biológico e o social, desenvolvendo também investigações no terreno da prevenção das doenças, da promoção da saúde e da ações coletivas, propiciando aos estudantes oportunidades de participarem desse tipo de investigação ao longo de toda a carreira. Finalmente, pode-se considerar a existência de uma terceira abordagem, na qual os fatores reconhecidos como determinantes da saúde constituem a base da fundamentação de um novo modo de produção do conhecimento, integrando aspectos da atenção individual e coletiva, compondo um novo paradigma que integra promoção e prevenção com a prática curativa.

Em relação à oferta de oportunidades educacionais além da graduação, pode-se notar que em expressivo número de IES a determinação da oferta dos quantitativos de especialistas se dá de acordo com uma lógica interna - pressão de grupos de poder, influências das corporações - e não segundo necessidades epidemiológicas e sociais. O corolário desta situação é a baixa oferta de educação pós-graduada em áreas necessárias, como a atenção básica e a educação permanente dos profissionais da rede (Feuerwerker, 199810. Feuerwerker LCM. Mudanças na educação médica e residência médica no Brasil. São Paulo: Hucitec /Rede Unida, 1998.; Sena-Chompré e Egry, 199819. Sena-Chompré Roseni R, Egry Emiko Y. A enfermagem nos projetos UNI: contribuição para um novo projeto político para a enfermagem brasileira. São Paulo: Hucitec , 1998.).

É ainda necessário articular cada vez mais a oferta de oportunidades de formação depois da graduação com as necessidades dos profissionais e do sistema de saúde. As atividades de educação permanente devem ser dirigidas à oferta regular de atividades com o objetivo de capacitar a força de trabalho no setor, em consonância com as necessidades assistenciais (Teixeira e Paim, 199620. Teixeira CF, Paim JS. Políticas de formação de recursos humanos em saúde: conjuntura atual e perspectivas. Divulgação em saúde para debate. 1996; (12): p.19-23.). Deve ser incentivada a incorporação de modalidades de ensino não presencial e à distância e a oferta de vagas de cursos de pós-graduação para áreas estratégicas e/ou carentes de profissionais qualificados para o SUS.

VETOR 1: “PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS PARA NECESSIDADES DO SUS”

Grau 1: Escolas com limitada produção sistemática de investigação, predominando as pesquisas na área da atenção hospitalar e de alta tecnologia, com ênfase nas ações curativas.

Grau 2: Escolas que produzem espectro mais amplo de investigação, incluindo, além do anterior, as investigações clínico-epidemiológicas e baseadas em evidências que possibilitem avaliar criticamente e redirecionar protocolos e intervenções.

Grau 3: Escolas que, além das investigações no terreno biológico, na área de atenção hospitalar e de desenvolvimento de tecnologia complexa, desenvolvem pesquisas no campo da atenção básica e da gestão do SUS, contribuindo para que seja possível a tomada de decisões com base em informação relevante e o estabelecimento de melhores práticas.

VETOR 2: “DETERMINANTES DE SAÚDE”

Grau 1: Escolas que valorizam, na orientação da formação, exclusiva ou predominantemente, os aspectos biomédicos voltados ao diagnóstico, tratamento e recuperação de enfermos.

Grau 2: Escolas que buscam criar oportunidades de aprendizagem, tendo em vista algum equilíbrio entre o biológico e o social, seguindo a orientação da prevenção primária, secundária e terciária (paradigma de Leavell e Clark).

Grau 3: Escolas que definem as oportunidades de aprendizagem de acordo com a importância dos fatores determinantes da saúde, incluindo as necessidades da atenção básica. Para tanto, desenvolvem uma forte interação com os serviços de saúde, enfocando articuladamente aspectos relativos à promoção, prevenção e cura.

VETOR 3: PÓS-GRADUAÇÃO E EDUCAÇÃO PERMANENTE

Grau 1: “Autonomia” completa na definição da oferta de residências e de outras modalidades de especialização e ausência de oferta de pós-graduação na área da atenção básica e da educação permanente, aos profissionais da rede SUS.

Grau 2: Conformação intermediária, em que haja esforços para a oferta de educação permanente relacionada à nosologia prevalecente, porém sem que isso interfira no perfil de oferta de residência médica, mestrados e doutorados, que seguem a lógica dominante, essencialmente corporativa.

Grau 3: A lógica da oferta de oportunidades educacionais de pós-graduação é definida em estreita articulação com os gestores do SUS, havendo revisão dos quantitativos e da qualidade da formação de acordo com as necessidades assistenciais, existindo, em consequência, um trabalho em estreita articulação com os Pólos de Capacitação em Saúde da Família.

EIXO 2: ABORDAGEM PEDAGÓGICA

Este eixo comporta igualmente três vetores, relacionados respectivamente com a estrutura curricular, a mudança didático-pedagógica e a orientação programática.

Em relação à estrutura curricular, o padrão mais freqüente atualmente é o da extrema fragmentação do conhecimento e do desenvolvimento isolado das disciplinas que compõem o plano de estudos (Cinaem, 19974. Cinaem. Relatório final da segunda fase. 1997. (mimeo)). Existem também currículos que incluem distintas modalidades de articulação, alguns de modo incipiente, outros chegando à articulação inter e transdisciplinar.

Predominam as orientações tradicionais no que diz respeito às metodologias de ensino-aprendizagem, havendo poucas oportunidades para a participação ativa do aluno no processo de produção do conhecimento. Na grande maioria das escolas, persiste também a separação entre teoria e prática, e entre os ciclos básico e profissionalizante (Cinaem, 19974. Cinaem. Relatório final da segunda fase. 1997. (mimeo)).

No entanto, o processo de educação de adultos pressupõe a utilização de metodologias ativas de ensino-aprendizagem, que proponham concretamente desafios a serem superados pelos estudantes, que lhes possibilitem ocupar o lugar de sujeitos na construção dos conhecimentos e que coloquem o professor como facilitador e orientador desse processo (Bordenave e Pereira, 19942. Bordenave JD, Pereira AM. Estratégias de ensino-aprendizagem. Petrópolis. RJ: Vozes, 1994.). Considerando-se a velocidade vertiginosa com que se produzem e disponibilizam conhecimentos e tecnologias no mundo atual, um dos objetivos fundamentais de aprendizagem do curso de graduação é o de aprender a aprender.

Aprender a aprender envolve o desenvolvimento de habilidades de busca, seleção e avaliação critica de dados e informações disponibilizados em livros, periódicos, bases de dados locais e remotas, além da utilização das fontes pessoais de informação, incluindo a advinda da própria experiência profissional. Outro conceito-chave de um modelo pedagógico inovador é o de aprender fazendo, que pressupõe a inversão da sequência clássica teoria/prática na produção do conhecimento e assume que ele ocorre de forma dinâmica por intermédio da ação-reflexão-ação. Pretende-se a completa integração entre os atuais ciclos básico e clínico e a adoção de um currículo integrado, organizado em módulos interdisciplinares, compostos por problemas relevantes, prevalecentes de saúde. A resolução dos problemas é que orientará a busca da ciência básica que respalde as intervenções para enfrentá-los (Marques, 199712. Marques LAR. Currículo: bem mais que um documento. Olho Mágico.1997; (12):3.; Demo, 19986. Demo P. Desafios modernos da educação. Petrópolis, RJ: Vozes. 1998.; Lück, 199411. Lück H. Pedagogia interdisciplinar: fundamentos teórico-metodológicos. Petrópolis, RJ: Vozes . 1994.; Rede Unida, 199817. Rede Unida. Contribuição para as novas diretrizes curriculares nos cursos de graduação da área da saúde. Olho Mágico . 1996; (16): 11-28.; Brasil, 19973. Brasil. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Superior. Edital no. 4/97. O MEC, por intermédio da SESU torna público e convoca as Instituições de Ensino Superior a apresentar propostas para as novas Diretrizes Curriculares dos cursos superiores, que serão elaboradas pelas Comissões de especialistas da SESU/MEC. Diário Oficial da União de 12/12/97, p. 26920, seção III.).

VETOR 4: ESTRUTURA CURRICULAR

Grau 1: Ciclos clínico e básico completamente separados e organizados em disciplinas fragmentadas.

Grau 2: Existência de disciplinas-atividades integradoras ao longo dos primeiros anos, mas mantida a organização por disciplinas e a separação entre conteúdos básicos e clínicos.

Grau 3: Currículo majoritariamente integrado, sem disciplinas isoladas, já que os conteúdos são organizados em módulos, sem a precedência cronológica do ciclo básico. Os temas são abordados de modo que as áreas básicas funcionem como efetiva base e referência para a busca dos conhecimentos para a solução de problemas.

VETOR 5: MUDANÇA PEDAGÓGICA

Grau 1: Ensino centrado no professor, realizado por meio de aulas expositivas para grandes grupos de estudantes e com processos de avaliação baseados em testes e provas.

Grau 2: Ensino realizado em pequenos grupos de no máximo 15 estudantes, adotando processos de avaliação interativos, mas ainda restritos a menos de 20% da carga horária

Grau 3: Aprendizagem ativa com orientação tutorial permanente, desenvolvendo-se em múltiplos cenários e utilizando múltiplas fontes de conhecimento, como as bibliotecas, a comunidade, os laboratórios de simulação, os órgãos de processamento de informações de saúde, etc. Avaliação formativa e somativa de todos os aspectos da formação do estudante: conhecimentos, atitudes e habilidades.

VETOR 6: ORIENTAÇÃO PROGRAMÁTICA

Grau 1: A teoria precede a prática, havendo grande ênfase nas aulas expositivas e alguma prática tanto em laboratórios básicos como em serviços hospitalares. Incipiente definição de necessidades de aprendizagem.

Grau 2: Embora prevaleça a precedência da teoria sobre a prática em algumas disciplinas são desenvolvidas atividades práticas centradas nas competências laborais, buscando orientar a formulação da teoria.

Grau 3: Ensino baseado majoritariamente na resolução de problemas, em grupos pequenos, com ênfase na realidade de saúde, abordada nos serviços e nos espaços comunitários.

EIXO 3: CENÁRIO DE PRÁTICAS

Este eixo se compõe de outros três vetores: locais de pratica, âmbito escolar e abertura dos serviços próprios das instituições acadêmicas às necessidades do SUS e grau de participação dos estudantes nas atividades práticas.

Na maior parte das escolas, os hospitais e, principalmente, as enfermarias continuam o local privilegiado para o treinamento prático dos estudantes (Cinaem, 19974. Cinaem. Relatório final da segunda fase. 1997. (mimeo)). No entanto, os movimentos atuais de reorganização da prática médica indicam uma tendência progressiva à des-hospitalização, já que grande parte das práticas assistenciais pode se desenvolver de maneira mais eficiente e com menores custos nos ambulatórios, na comunidade e nos domicílios. Os cenários de ensino, portanto, devem ser diversificados, agregando-se ao processo, além dos equipamentos de saúde, os equipamentos educacionais e comunitários (Rede Unida, 199817. Rede Unida. Contribuição para as novas diretrizes curriculares nos cursos de graduação da área da saúde. Olho Mágico . 1996; (16): 11-28.: Feuerwerker e Sena, 19999. Feuerwerker LCM, Sena RA. Construção de novos modelos acadêmicos de atenção â saúde e de participação social. In: Almeida MJ, Feuerwerker LCM, Llanos MA. Educação dos profissionais de saúde na América Latina: teoria e prática de um movimento de mudança. São Paulo: Hucitec; 1999. p. 47-83.; Demo, 19986. Demo P. Desafios modernos da educação. Petrópolis, RJ: Vozes. 1998.).

Muitos serviços próprios das instituições acadêmicas estão estruturados de acordo com uma lógica própria e interna, mais vinculada às demandas da pesquisa e do ensino que às demandas reais para funcionar como referência e contra-referência à rede do SUS. Perpetua-se assim a atenção a uma clientela cativa, cujos problemas poderiam ser resolvidos na rede de atenção básica, mas que bloqueiam o acesso dos que têm indicação para utilizar estes sofisticados recursos. Este eixo de mudança potencialmente produz dois impactos positivos: aumenta a representatividade da nosologia prevalecente nos serviços próprios e disponibiliza ao SUS referências terciária e quaternária.

A interação ativa do aluno com a população e profissionais de saúde deverá ocorrer desde o início do processo de formação, proporcionando ao aluno trabalhar sobre problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes como agente prestador de cuidados, compatíveis com seu grau de autonomia.

VETOR 7: “DIVERSIFICAÇÃO DE CENÁRIOS DE ENSINO-APRENDIZAGEM”

Grau 1: As atividades práticas durante os dois primeiros anos do curso estão limitadas aos laboratórios da área básica. Ciclo clínico com práticas realizadas majoritariamente em hospitais terciários.

Grau 2: Atividades extramurais uniprofissionais em unidades do SUS durante os dois primeiros anos do curso, com a participação de professores da área de saúde coletiva correspondendo a menos de 10% da carga horária. Ciclo clínico majoritariamente baseado em atividades ambulatoriais em serviço pertencente à instituição de ensino, com central de marcação de consultas própria, ou em ambulatórios conveniados cuja administração seja apartada da gestão da rede do SUS.

Grau 3: Atividades extramurais em unidades do SUS, equipamentos escolares e da comunidade ao longo de toda a carreira, com graus crescentes de complexidade. Durante os dois primeiros anos de graduação, combinam-se as atividades extramurais multiprofissionais com experiências de integração em laboratórios de problematização, com participação de docentes de áreas básicas e clínicas em pelo menos 20%, da carga horária.

VETOR 8: SERVIÇOS UNIVERSITÁRIOS ABERTOS AO SUS

Grau 1: Serviços próprios isolados da rede SUS, com porta de entrada se parada e com clientela cativa e redundante.

Grau 2: Serviços parcialmente abertos ao SUS, mas preservando algum grau de autonomia na definição do perfil de seus pacientes.

Grau 3: Serviços próprios completamente integrados ao SUS, sem central de marcação de consultas ou de internações próprias das instituições acadêmicas. Desenvolvimento de mecanismos institucionais de referência e de contra-referência com a rede SUS.

VETOR 9: PARTICIPAÇÃO DO ALUNADO NAS PRÁTICAS

Grau 1: Predomina a observação de práticas de caráter demonstrativo.

Grau 2: Participação do aluno em atividades selecionadas (anamnese, exame físico, coletas de material para exames, curativos, etc.).

Grau 3: Ampla participação clínica e comunitária do aluno, supervisionada pelos professores.

Conformação das tipologias

Com base na pontuação obtida no sistema de gradação das mudanças, nos nove vetores estabelecidos, é possível agrupar as instituições segundo uma tipologia que procura caracterizar o grau de inovação adotada por cada escola. A porcentagem de pontos obtidos por determinada instituição está referida a um valor máximo de 100%, que corresponde ao grau máximo de aproximação do “estado da arte”. O quadro seguinte indica valores médios para esta tipologia:

Pontuação Tipologia % de avanço 0-10 Tradicional 35 11-15 Inovação incipiente 47 16-20 Inovação parcial 64 21-24 Inovação avançada 84 25-27 Transformação 96

Esta mesma tipologia pode ser apresentada num “perfil radial de avaliação”. Apresentamos na figura um exemplo que inclui os dados de uma simulação.

A instituição simulada corresponde aos seguintes parâmetros:

  1. desenvolve alguma investigação epidemiológica - orientada à prevenção de doenças;

  2. centra a abordagem da saúde no paradigma de Leavell e Clark;

  3. articula-se com o SUS por meio dos pólos de capacitação do PSF;

  4. experimenta alguma integração entre as disciplinas básicas;

  5. adota ensino em pequenos grupos em parte do currículo;

  6. enfatiza a transmissão do conhecimento por meio de aulas expositivas;

  7. utiliza laboratórios de demonstração e hospitais terciários;

  8. possui serviços clínicos próprios, isolados do SUS;

  9. o aluno participa somente em atividades selecionadas.

Em resumo, tal instituição poderia ser caracterizada como uma escola com alguma orientação em direção ao conceito ampliado de saúde, com inovação parcial no ciclo básico e abordagem clínico-hospitalar tradicional, com cerca de 60% de aproximação do estado da arte.

O esquema proposto poderia, eventualmente, servir como roteiro para que se fizesse o acompanhamento e o apoio de programas voltados ao incentivo da reorientação do modelo de formação das profissões da saúde. Para ter direito aos incentivos, as escolas teriam que definir termos de compromisso para a mudança, pactuados com os gestores do SUS, que permitissem prever gradualismo na transição entre a situação atual e a imagem-objetivo que se pretendesse alcançar.

A adesão a essa proposta seria voluntária e dependeria de projetos a serem apresentados pelas autoridades responsáveis em cada instituição de ensino, contando, obviamente, com o respaldo das respectivas congregações ou colegiados de curso. Os processos de mudança ou inovações não deveriam ficar restritos a urna ou duas áreas acadêmicas, mas abranger o maior número possível de áreas, significando a constituição de um movimento expressivo de mudança dentro das escolas. Todas essas características se podem captar por intermédio do esquema avaliativo proposto.

Há conhecimento acumulado nas várias áreas abrangidas por essa proposta (mudança organizacional, trabalho em parceria multiinstitucional, concepção pedagógica, desenho curricular e metodologias de ensino-aprendizagem. etc.). É fundamental que as escolas tenham acesso a esses conhecimentos nas várias fases do processo: elaboração da proposta, construção e condução do processo de mudança, implementação da mudança, capacitação pedagógica para os docentes, construção de um projeto político-pedagógico, etc. Além dos recursos financeiros, portanto, para que uma política de incentivos realmente contribuísse para a mudança da formação profissional, seria indispensável que ela possibilitasse às escolas apoio técnico para o acompanhamento e desenvolvimento dos projetos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2001

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2001
  • Aceito
    08 Jun 2001
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