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Deficiências e Necessidades em Educação Médica Continuada de Pediatras em Minas Gerais

Resumo:

Com o objetivo de avaliar as deficiências e necessidades em Educ3çi1o Médica Continuada (EMC), foram entrevistados 397 pediatras do Estado de Minas Gerais, por meio de um questionário de perguntas predominantemente fechadas. O Estado foi dividido em três áreas levando-se em consideração o perfil sócio-econômico da população. Foi utilizado o Statistical Package for Social Sciences (SPSS) para análise estatística. Verificou-se que o conhecimento relacionado às ciências sociais e humanas é o mais deficiente na formação dos pediatras e que é pouco significativa a necessidade expressa desse tipo de conhecimento. Aponta-se a EMC como uma das estratégias para uma mudança de atitude dos médicos e das instituições ligadas à saúde.

Palavras-chave:
Educação Médica Continuada; Educação médica; Prática médica

Summary

Aiming to know the diferences and needs in Continued Medical Education (CME), 397 pediatricians of Minas Gerais were interviewed through a multiple-choice questionnaire. The state has been divided into three parts considering the e4conomic situation of the population. The Statistical Package for Social Science (SPSS) has been used to statistical analysis. The results show that the knowledge about social and human sciences is the great deficiency in pediatric formation and the urges for this kind of knowledge are not considered. This way, the author's point CME as a strategy changes the doctor's altitude and health institutions.

Keywords:
Continuing medical education; Medical education; Medical practice

INTRODUÇÃO

Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), a EMC tem como objetivos dar continuidade à educação profissional após a graduação, levando-se em conta a mobilidade e a reorientação do pessoal de saúde em relação às transformações do sistema de saúde, e melhorar a qualidade dos serviços e prestação de cuidados:

"A Formação Médica Continuada (FMC) compreende os conhecimentos, mas também um grande leque de competências que têm uma relação com a prestação de cuidados de saúde. Se ela obedece a esta definição, a formação continuada refletirá as necessidades da comunidade em matéria de saúde..." (Abbat & Méjia, 1990: 9)11. ABBAT, F. R., MEJIA, A. La formation continue des Personnels de Santé. Manuel pour ateliers. Geneve: OMS, 1990..

Se a saúde da população depende, ao menos parcialmente, da qualidade dos cuidados de saúde, um programa de EMC deve levar em conta, além das necessidades e motivações do médico, a percepção de suas dificuldades próprias, uma resultante das condições objetivas de trabalho e de suas aspirações profissionais.

Contudo, é importante frisar que a definição das necessidades dos médicos cm EMC nem sempre é ditada por estes, tendo-se como exemplo importante a influência da indústria farmacêutica sobre a prática médica1212. ORLOWSKI, J. P. & WATESKA, L. The effects of pharmaceutical firm enticements on physicians prescribing patterns. There's no such thing as a free lunch. Chest., v.102, n° 1, p. 270-3, 1992.),(1515. ROSNER, F. Ethical relationships between drugs companies and the medical profession. Chest ., v.102, nº 1, p. 266-9, 1992.),(1919. SKOLNTCK, A. FDA issues draft "concept paper" on drug company funding of CME. Jama, v.266, n° 21, p. 2947-8, 1991.),(2020. WAUD, D. R. Pharmaceutical promotions - a free lunch? N. Engl. J. Med., v.327, n° 5, p. 351-3, 1992.),(2121. WENTZ, D. K., OSTEEN, A. M., CANNON, M. I. Continuing medical education. Unabated debate. Jama , v.268, n° 9, p.118-20, 1992.. Mais do que isso, mesmo quando a EMC é definida e organizada pelos próprios médicos, ela reflete valores sociais e da categoria, mantendo muitas vezes o pensamento dominante. Isto impede, por sua vez, a mudança de atitude do médico na sua prática, como é o caso da não-valorização das ciências sociais e humanas em oposição à excessiva valorização do conhecimento biológico nos cursos de graduação e residência1313. PASQUALIN, L. Pediatria: a prática pretendida e a prática permitida. Ribeirão Preto: USP, 1992 (Dissertação, Mestrado em Pediatria)..

As instituições públicas, incluindo as universidades, são fundamentais nas diretrizes dos cursos de EMC. Às primeiras, como responsáveis pelos cuidados de saúde da maioria da população, cabe identificar a inadequação entre a formação na graduação e as necessidades do serviço. Além disso, elas representam o maior mercado de trabalho médico, no momento. Às universidades, por sua vez, em função de sua autonomia relativa aos processos políticos que afetam as demais instituições públicas, cabe assegurar a permanência dos processos de EMC, associando-a à pesquisa e à formação na graduação. O envolvimento da universidade no processo de EMC justifica-se, também, pela chance maior de identificação da inadequação entre a prática e a formação na graduação, possibilitando transformações nesta33. CHAVES, M., ROSA, A. R. Educação médica nas Américas; o desafio dos anos 90. São Paulo: Cortez, 1990. 209p.),(44. FERNANDES, M. El médico na pratica privado y la Educación continua. Un punto de vista personal. In: Primero Seminario Internacional de Educacion Medica Continua e Nueva Mesa de la Academia Mexicana de Ciencias Medicas, 1979, México. Instituto Mexicano de Cultura e Academia Mexicana de Ciências Médicas, 1979.),(1414. RIBEIRO, C. M. P. De estudante de medicina a médico no interior, formação e vida isolada em pesquenas cidades de vinte e dois médicos egressos da Universidade Federal de Minas Gerais, de 1978 a 1985. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1991 (Tese de Doutorado em Metodologia de Ensino)..

Finalmente, para realizar um programa de Formação Médica Continuada adequado, é necessário identificar, além das necessidades e motivações de aprendizado do médico55. FOX, R. D., HARVILL, L. M. Self-assessments of need, relevance and motivation to learn as indicators of participation in contuing medica education. Medical Education, v.18, p. 275-81, 1984., o contexto no qual se dá o programa, considerando as forças políticas, sociais, econômicas e históricas que influenciam o sentido das transformações buscadas.

Assim, para subsidiar o programa interinstitucional de EMC do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG (Programa ECO), foi desenvolvido um trabalho de conhecimento do perfil do pediatra do Estado de Minas Gerais e suas demandas em EMC.

Neste artigo são discutidos os dados relativos às deficiências e necessidades dessa população em Formação Médica Continuada.

MATERIAIS E MÉTODOS

Trata-se de um estudo transversal, que teve como população de referência médicos que exercem a pediatria no Estado de Minas Gerais, que se intitulam ou são intitulados pediatras. O estudo foi desenvolvido em três áreas distintas do Estado, que contam com cerca de 1.900 médicos exercendo a pediatria e apresentam, entre si, grande heterogeneidade no campo sócio-econômíco e cultural. Acreditando que isso pudesse resultar numa variação do perfil do pediatra e de suas necessidades e disponibilidade para EMC, dividiu-se a área total escolhida em três áreas distintas- I, II, III -, estratificando-se a amostra com a finalidade de reproduzir esta heterogeneidade e garantir a representatividade das áreas de menor número de médicos. A amostra foi aleatória e calculada separada e proporcionalmente para cada área, utilizando-se um intervalo de confiança de 90% e margem de erro de 3%.

Foram realizadas duas amostragens aleatórias, com intervalo de dois meses, pois a primeira não foi suficiente para preencher o número amostral definido, tendo sido excluídos, do universo referência para o sorteio da segunda, os sorteados na primeira. O número de pediatras sorteados em cada amostragem foi maior que o número amostral em virtude de previsão de perdas. Consideramos os questionários devolvidos na primeira e segunda amostragens como constituindo uma única amostra total para cada área porque o intervalo de tempo entre as duas foi considerado pequeno para modificações significativas no universo e porque os sorteados na primeira foram excluídos da segunda.

Na primeira amostragem, foram sorteados 300 pediatras da área I, 85 da área II e 59 da área III, num total de 444.

Na segunda, foram excluídos os pediatras que haviam sido sorteados da primeira vez, com exceção da área III, onde o número de questionários enviados na primeira amostragem coincidiu com o total da população. A não-devolução da maioria deveu-se no não-recebimento do questionário, conforme verificado pelos pesquisadores em contato telefônico.

Assim, na segunda amostragem, foram sorteados 164 pediatras da área I e 27 da área II, num total de 205. A estes se somaram 14 da área III que haviam sido sorteados da primeira vez, mas ainda não haviam recebido o questionário e para os quais o mesmo foi reenviado. Da primeira amostragem, foi respondido um total de 270 (61 %) e da segunda, 127 (62%). A devolução dos questionários teve, por área, a seguinte distribuição: área I: 270 (58%), área II: 84 (75%) e área III: 43 (59%).

A área I corresponde à região de melhor nível sócio/econômico/cultural, maior densidade demográfica, maior densidade de médicos e onde se situam todas as faculdades de Medicina do Estado, excetuando-se a Faculdade de Medicina do Norte de Minas, localizada na área III. As cidades de Governador Valadares e Montes Claros, apesar de suas localizações geográficas - Nordeste e Norte do Estado, respectivamente - , foram incluídas na área I por apresentarem características mais compatíveis com essa área. O número de pediatras da área I, à época da pesquisa, era de 1.691, e o número amostral calculado foi de 230. Como obtivemos 270 questionários devolvidos, este foi, ao final, o número amostral analisado.

A área m está no outro extremo em relação ao desenvolvimento econômico da região, chamando atenção a pequena densidade de médicos por habitante. Contava com 59 pediatras, e o número amostral calculado foi de 36. Ao final, foram devolvidos 43 questionários, para análise.

A área II apresenta características intermediárias entre as duas anteriores. Contava com 127 pediatras, e o número amostral calculado foi de 76. Obteve-se, ao final, a devolução de 84 questionários, número amostral analisado.

Para o sorteio, foi utilizada como base uma lista de pediatras fornecida por uma companhia de produtos alimentícios para crianças, por ser a única fonte disponível.

O levantamento foi realizado por meio de um questionário de auto-respostas, elaborado em conjunto pelos autores, predominantemente de questões fechadas, composto por duas grandes partes. A primeira pesquisava dados gerais sobre a população estudada: sexo, idade, renda, local de trabalho, tempo de formado, carga de trabalho semanal, etc. A segunda parte, que será abordada neste artigo, focalizava diretamente a questão da EMC: os métodos mais utilizados e preferidos pelos pediatras da amostra, suas motivações, dificuldades e necessidades.

As categorias usadas nas questões fechadas foram elaboradas a partir da experiência dos autores, de sugestão de respondentes de piloto e de dados da literatura. O piloto foi realizado com 23 pediatras de Belo Horizonte que exerciam suas atividades em hospitais, faculdade de Medicina, consultórios e unidades básicas de saúde, para correção e validação do instrumento de coleta. O questionário foi entregue pessoalmente aos médicos da amostra por cerca de 150 estudantes de Medicina, participantes da pesquisa, com exceção de 123questionários enviados pelo correio aos pediatras de cidades onde n3o havia estudantes de Medicina participantes. Foram entregues, ao todo, 649 questionários. A devolução foi feita predominantemente aos mesmos alunos; uma minoria foi devolvida pelo correio (Tabela 1).

TABELA 1
Distribuição da primeira e segunda amostragens em pesquisa sobre formação continuada de pediatras em Minas Gerais, de acordo com a forma de entrega dos questionários, se intermediada por alunos de Mediana ou efetuada por correio - 1993

Com a finalidade de reduzir perdas, após o prazo limite para devolução dos questionários, solicitou-se por telefone aos não-respondentes que preenchessem e devolvessem os mesmos.

Para tratamento computadorizado dos resultados foi utili­zado o programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS). Na avaliação de diferenças entre categorias excludentes foi utilizado o X2, tomando como significativo um p < 0,05, e para categorias não-excludentes, a descrição de tendências.

O agrupamento, por categorias, das respostas das questões abertas foi realizado sem critérios predeterminados, após avaliação das respostas, discussão e consenso dos participantes da pesquisa.

A análise dos resultados foi feita de duas formas: separadamente por área, considerando que cada amostra é representativa do subgrupo populacional, e em conjunto, porque as amostras foram proporcionais, tendo sido utilizados os mesmos parâmetros para definição do número amostral. Na área III, por ser o universo muito pequeno, o número amostral foi muito próximo do universo. Embora a devolução dos questionários tenha sido proporcionalmente maior na área II, o que inviabilizaria a análise do conjunto pela maior representatividade desta área, a diferença encontrada entre as três áreas não foi estatisticamente significativa (p > 0,05).

RESULTADOS

A Tabela 2 refere-se a como os pediatras se informam da situação de saúde da comunidade onde trabalham.

TABELA 2
Distribuição da amostra de pediatras de tris regiões economicamente diferentes do Estado de Minas Gerais, de acordo com a fonte de conhecimento da situação de saúde da comunidade onde trabalha - 1993

Para a maior parte dos pediatras, esse conhecimento vem como consequência de sua atividade diária em ambulatórios ou hospitais.

As Tabelas 3 e 4 referem-se à percepção, pelos pediatras, de deficiências do ensino na graduação e no residência, de diversos campos do conhecimento médico. O conhecimento de medicina do adolescente foi julgado deficiente na graduação por 77% dos pediatras, sendo a área mais citada como deficiente também na residência (Tabela 4).

TABELA 3
Distribuição da amostra de pediatras de três regiões economicamente diferentes do Estado de Minas Gerais, de acordo com as áreas do conhecimento consideradas deficientes na graduação - 1993

TABELA 4
Distribuição da amostra de pediatras de três regiões economicamente diferentes do Estado de Minas Gerais, de acordo com as áreas do conhecimento consideradas deficientes na residência - 1993

A Tabela 5 refere-se ao relato de utilização de determinado conhecimento na prática diária e a percepção da importância do mesmo pelos pediatras da amostra. Observa-se que a soma dos pediatras que não utilizam (49%) ou não julgam importante (7%) o conhecimento sobre adolescência perfaz 56% da amostra total.

TABELA 5
Distribuição da amostra de pediatras de três regiões economicamente diferentes do Estado de Minas Gerais, de acordo com a importância e utilização de conhecimentos pediátricos na prática - 1993

Com relação nos conhecimentos agrupados sob a denominação "afetivo-social", a também mostra que 50% dos pediatras não os utilizam. Entretanto, cerca de 90% os consideram importantes (importantes e utilizados, e importantes mas não utilizados), apesar de serem relativamente pouco utilizados.

Os conhecimentos agrupados como "área social" são considerados importantes por cerca de 65% dos pediatras, mas são utilizados por somente 30% ou menos, enquanto uma média de 11% nem mesmo os considera importantes.

Note-se que os conhecimentos sobre ética e leis foram tidos como não utilizados ou não importantes por 43% da amostra.

DISCUSSÃO

Dentre os fatores que influenciam o julgamento, pelo médico, das deficiências e necessidades de dado conhecimento, é importante frisar a influência do tempo sobre a memória, que pode levar a distorções ou esquecimentos, sendo que, em nossa amostra, a maioria dos pediatras (67%}, tem mais de dez anos de formados (Tabela 6).

TABELA 6
Distribuição da amostra de pediatras de três regiões economicamente diferences do Estado de Minas Gerais, conforme o tempo de formados - 1993

É relevante, também, a relação com professores, que marca positiva ou negativamente dada disciplina e influencia tanto a aquisição quanto o julgamento do conhecimento na época e a posteriori. A necessidade atual do conhecimento também influenciaria o médico na percepção de sua deficiência na graduação ou residência.

A maioria destes fatores, entretanto, pode ter influência apenas individual ou episódica, como, por exemplo, o interesse na época do curso por um tema específico de Pediatria.

Algumas áreas do conhecimento são focos de menor interesse da maioria dos pediatras, tais como os aspectos social e afetivo da criança, como mostrado neste estudo. Embora isto possa representar uma preferência pessoal, sua explicação pode estar além de questões individuais: na visão da Medicina atual, há uma tendência a desconsiderar fatores que não os biológicos no processo saúde-doença, o que levaria o médico a não identificar deficiências no conhecimento dos aspectos sociais e afetivos, por não considerá-los importantes em sua conceituação do que é ser um bom médico.

Aliada a isso, a ausência ou pobreza de dado conhecimento no desenho curricular das faculdades, não por coincidência, mas por que este obedece a um pensamento dominante sobre o perfil ideal do médico1010. MEDICI, A. C. A força de trabalho em saúde no Brasil dos anos 70. Percalços e tendências. Texto de Apoio. Planejamento 1. Recursos humanos em saúde. Rio de Janeiro: PEC/ ENSP, Abrasco, 1987.),(1111. NARDI, A. Brasil: currículo e prática. Educ. Med. Salud., v.23, n° 4, p.354-62, 1989., atuam no sentido de homogeneizar a percepção de deficiência.

A percepção de necessidade de dado conhecimento sofre, ainda, a influência de outros fatores, como a avaliação da demanda em saúde da população assistida, baseada, principalmente, nas estatísticas de morbi-mortalidade. Estas, por sua vez, são muito precárias em nosso meio, levando o médico a basear-se em sua experiência e percepção da rotina dos serviços, que nem sempre refletem as reais condições da população, mas, sim, a oferta em termos de prestação de serviços. A oferta de serviços é também condicionada por fatores sociais, políticos e econômicos, que tendem a homogeneizá-la. Em decorrência disso, a percepção pelo médico das necessidades do paciente e, assim, de suas necessidades de conhecimento, também fica homogeneizada. Em nosso trabalho isto é corroborado pelo fato de que 88% dos médicos relatam conhecer as necessidades de saúde da comunidade por meio de sua prática diária, que sabemos ser predominantemente assistencial e restrita à resposta da demanda nas instituições de saúde (Tabela 2).

Ainda como fator homogeneizador da percepção de necessidades do médico, há o conceito que este tem do processo saúde-doença. Por exemplo, ele quase sempre não julga necessário aprender psicologia se não considera importante que os fatores psíquicos também são determinantes do processo do adoecer.

Por fim, outro fator que influencia a percepção do médico de suas necessidades é a atração que a tecnologia de equipamentos e medicamentos exerce sobre ele e que tem como resultado, por exemplo, a supervalorização desta tecnologia, com consequente desvalorização da relação médico-paciente e da prática clínica1717. SANTANA, J. P. Tecnologia Médica e formação profissional. Divulgação em Saúde para Debate, v.5, p.55-7, 1991..

O fato de a maior parte dos pediatras da amostra julgar deficiente o conhecimento de medicina do adolescente na graduação e também na residência pode ser decorrente de que apenas há duas décadas a medicina do adolescente passou a ser do domínio da pediatria. Além disso, o fato de grande parte (56%) dos pediatras das três amostras não utilizar ou não julgar importante tal conhecimento pode estar confirmando a não incorporação, ainda, pelos mesmos, da medicina do ado­lescente como seu campo de atuação.

A atividade de CTI é relativamente recente entre nós, o que explicaria o porquê de este conhecimento ter sido citado em segundo lugar como deficiente na graduação (Tabela 3) e em oitavo lugar na residência (Tabela 4). Há uma inviabilidade de treinar todos os alunos em CTIs, pelas próprias características dos mesmos e pelo grande número de alunos, e, como este conhecimento é do campo do subespecialista, pensamos que ele não deve ser considerado como deficiente, mas sim como não adquirido.

A pequena valorização dos conhecimentos relativos à área afetivo-social, patologias da área afetiva, educação da família para os cuidados com a criança cronicamente doente, patologias psicossomáticas e distúrbios de aprendizagem tem importantes implicações. Sabe-se que uma alta taxa de queixas em consultas de ambulatório está relacionada a problemas afetivos e/ou sociais; que os problemas de aprendizado atingem um grande número de crianças no Estado e que o manejo, pela família, de crianças cronicamente doentes é essencial à terapia das mesmas. O trabalho sugere que cerca da metade dos atendimentos não abordam este tipo de problema ou restringem-se a uma abordagem centrada na busca de alterações físicas, o que talvez possa ser explicado pela tentativa de tornar interpretáveis sob o ponto de vista biológico, que é do domínio médico, manifestações predominantemente psicossomáticas e psicossociais. Isto significaria, assim, que uma grande quantidade de crianças não tem suas queixas adequadamente valorizadas e abordadas pelo pediatra.

Este resultado pode, a nosso ver, ser explicado por fatores ligados tanto à formação do médico quanto à organização do trabalho e à sua inserção social. A área do conhecimento dominada pelo médico e seu conceito do processo saúde-doença são fatores relevantes na utilização ou não e na valorização ou não dos conhecimentos na área sócio/afetiva. Também os fatores ligados à ideologia médica, tais como a busca de autonomia99. MACHADO, P. A. Crise ideológica na corporação médica. Resistência ao processo de assalariamento no setor saúde. Belo Horizonte: UFMG, 1988 (Dissertação. Mestrado em Ciências Políticas).),(1818. SCHRAIBER, L. B. Profesión médica: representación e trabajo y cambio. Educ. Med. Salud ., v.25, n° l, p. 58-71, 1991., a busca de poder e prestígio22. BLOCH, C. Os profissionais de saúde: ampliando o campo de estudo. In: NUNES, E. D. (Org.) As ciências sociais em saúde na América Latina. Tendências e perspectivas. Opas, 1985.),(1616. SALGADO, J. A. Contribuições ao estudo da relação entre realidade de saúde e ensino médico. Belo Horizonte: UFMG , 1981 (Tese de Doutorado em Medicina Tropical). e a inserção social do paciente, são condicionantes da definição das características da consulta e do tipo de relação estabelecida com os pacientes, e, portanto, com o conhecimento utilizado. Isto reveste-se de especial importância nas atividades médicas em instituições públicas, onde a população, por suas próprias características de desfavorecimento social e pela forma de organização do serviço, praticamente não tem poder na determinação das características do atendimento a que se submete. A consulta restringe-se frequentemente a uma abordagem biológica e superficial dos sintomas.

Entretanto, apesar da pequena utilização dos conheci­mentos da área afetivo-social, eles são considerados importantes (importantes e utilizados, e importantes mas não utilizados) pela maioria dos pediatras, o que, aparentemente, não se reflete em mudanças de atitude, como sugere a pouca utilização deste tipo de conhecimento. Isto poderia ser reflexo de fatores como:

  • predominância da preparação técnica dos médicos nos aspectos biológicos clássicos;

  • dificuldade de formação do médico na área afetivo-social devido à pequena oferta, longa duração, alto custo e pequena divulgação dos cursos;

  • dificuldades objetivas do trabalho médico;

  • limitação dos conhecimentos da psicologia e sociologia na instrumentalização da prática médica.

Os resultados encontrados com relação aos conhecimentos agrupados na categoria "área social" - organização, gestão e avaliação de serviços de saúde; planejamento e execução de programas de saúde da criança e diagnóstico de saúde da população infantil de uma comunidade - parecem significar que o nível de importância e de valorização dado pelos médicos a estes conhecimentos não é suficiente para transformá-los em atividade prática. Embora as características individuais sejam importantes, a maior relevância na determinação do fenômeno parece estar na estruturação do sistema de saúde. Até recentemente, a demanda colocada por este aos profissionais médicos, de forma geral, restringia sua atividade ao interior do consultório, a atendimentos individuais das pessoas doentes, para cumprimento de programas definidos verticalmente, tanto na definição de objetivos e prioridades, quanto no planejamento e estratégias de execução. Há um acordo tácito do profissional que não consegue ver, como de sua responsabilidade, nada além deste atendimento. Ele pode não se sentir nem mesmo tolhido em sua participação na decisão dos fatores citados. Sua queixa restringe-se a tempo de atendimento e número de pacientes. Isto tem um reflexo sobre a formação do médico na graduação, que retira dos departamentos clínicos o ensino da saúde coletiva, compartimentando-o. Tem também um reflexo sobre o aluno de Medicina, que, no observar a prática médica e o mercado de trabalho, exige, de forma clara ou implícita, uma adaptação do ensino, o que leva à desvalorização e ao esvaziamento das disciplinas dos departamentos de medicina social e preventiva.

A percepção dos conhecimentos sobre ética e leis como deficientes no graduação e na residência, bem como sua pequena utilização e valorização por parte importante da amostra parece-nos que espelham a pouca reflexão, pelo médico, sobre a necessidade e mesmo do pré-requisito que a questão ética representa no exercício da prática. Apesar disto, existe uma ética, necessariamente implícita na prático, que a determina, embora seja possível não se ter consciência desta determinação.

CONCLUSÃO

Levando-se em conta as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) e o progressivo assalariamento médico, seria necessário, além da ampliação dos conceitos de processo saúde­doença que subsidiam a prática e da restruturação dos serviços, o encontro de novos valores, pela categoria, para a constituição de um novo ideal profissional. Tudo isto iria no sentido de valorizar a relação médico-paciente, resgatando a cidadania do paciente e redefinindo o conceito de autonomia médica a fim de adequá-lo as necessidades de um trabalho coletivo.

Acreditamos que os conhecimentos da área psíquica e social em um novo sistema de saúde, mais eficaz e humano, são necessários à prática diária do pediatra, senão para atuação como planejador, organizador e gestor dos serviços de saúde, ao menos como participante das equipes.

A efetiva implantação do SUS poderia contribuir para valorizar o trabalho do profissional no diagnóstico e planejamento de saúde local e numa nova relação médico-paciente, estimulando a percepção de necessidades de conhecimento nesta área.

Um programa de EMC exige uma avaliação contínua das necessidades prescritas pela instituição, das necessidades da população e das motivações e necessidades expressas dos profissionais de saúde, que são, frequentemente, não-coincidentes. Além disso, deve ser levado em conta o conhecimento acadêmico das ciências biológicas e humanas sobre a melhor forma de responder às demandas de saúde da população e, portanto, das necessidades dos profissionais de saúde em EMC. Estas têm mostrádo que os conhecimentos até aqui discutidos, sociais, psíquicos e biológicos, são essenciais para uma formação médica que responda às necessidades do cuidado de saúde do ser humano.

Assim, embora os conhecimentos citados e sua integração não sejam necessidades expressas pela maioria dos pediatras, considerando os fatores explicativos aqui discutidos, julgamos que a EMC pode ser uma estratégia de ação que leve à reflexão e à transformação de percepção no sentido da convergência das necessidades dos setores interessados: instituições, profissionais de saúde, população e instituições formadoras.

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  • Fonte Financiadora: CNPq

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1998
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