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ASSISTÊNCIA MÉDICA PÚBLICA OU PRIVADA?

O contrato entre o médico e o paciente era, a principio, muito simples: “Eu confio em você, Você trata de minha saúde”. Desta forma, o médico assumia a responsabilidade pelo tratamento de cada um de seus pacientes, sem intermediários. Hoje, uma terceira parte participa deste contrato - ou o governo, ou as empresas de saúde, que se tornaram o agente pagador das contas, desde as simples consultas com exames, sofisticados ou não, até às internações hospitalares.

Desta forma, os médicos de hoje passaram a ser os fornecedores e os clientes os consumidores ou usuários de um serviço denominado “assistência à saúde”.

Este aspecto comercial da medicina moderna dá origem a um conflito entre a sua imagem clássica, formada ao longo dos séculos, e a imagem atual.

Nos tempos primitivos, a medicina foi praticada por feiticeiros e sacerdotes, dado o seu caráter divino e posteriormente por profissionais exclusivamente dedicados a este mister, os médicos, que recebiam seus conhecimentos diretamente dos mestres, jurando guardá-los em segredo e transmití-los apenas a outros iniciados. Esta evolução dá origem, inclusive, a um código de ética próprio, restrito aos seus membros e, em conseqüência, a palavra de um médico só podia ser questionada por outro médico. Ao doente restava apenas submeter-se aos exames e tratamentos propostos.

A instituição do ensino médico em universidades não mudou este quadro, mantendo-se os privilégios, as obrigações e os deveres dos médicos. As mudanças só vieram a ocorrer com o desenvolvimento do espírito científico que agitou o final do século XIX e iníciodo século XX, introduzindo não apenas modernas técnicas científicas mas, principalmente, o questionamento das chamadas verdades científicas”. Esta mudança comportamental permitiu o desenvolvimento da medicina liberal, quando o conhecimento passou a ser discutido com base experimentais. A palavrado médico deixou de sera palavra final. A palavra final passa a ser a do cientista que domina a tecnologia.

Esta alteração do estado semidivino da medicina desencadeia um processo de perplexidade geral, havendo, inclusive, necessidade de um novo código de ética. Todas as afirmações podem ser questionadas, negadas e substituídas por outras novas. A palavra dos “Grandes Mestres” pode ser substituída por outras, oriundas de pesquiadores anônimos.

A este estado de perplexidade frente a uma profissão divina (era comum referir-se a sua prática como “sacerdócio”), adiciona-se mais uma surpresa: quem deve pagar a conta médica, uma vez que a pesquisa adiciona ao aspecto da medicina arte o de medicina ciência, evidentemente caro?

Dentro deste ambiente de mudanças contínuas e bruscas, alguns pontos são básicos para refletri sobre a dúvida proposta - “assistência à saúde: pública ou privada?”: 1ª) a ausência de verdades absoslutas na sociedade atual; 2ª) a divergência de condutas em diferentes comunidades, mesmo que suas culturas tenham pontos semelhantes, e 3ª) o conflito conceitual frente à problemas vitais.

Citemos alguns exemplos:

1º) não existem verdades absolutas na área médica. A medicina é exercida de formas diferentes em diferentes países. Assim, na França prescreve-se três vezes mais tranquilizantes do que na Espanha. Em contra partida, na Espanha se prescreve quatro vezes mais antibióticos que na França.

2º) A conduta cirúrgica também varia: a) nos Estados Unidos, 20% dos bebês nascem de operações cesareanas, contra apenas 9% na Inglaterra. No Brasil, em alguns centros. fala-se em percentuais superiores a 50%!; b) nos Estados Unidos, para cada 100.000 habitantes, opera-se 61 por ano de revascularização miocárdica, contra 6 na Inglaterra e apenas 1 no Japão. Entretanto, no Japão morrem menos pessoas de doença coronariana que nos Estados Unidos; 3º) o conflito de opiniões aumenta de forma assustadora quando se examinam temas mais abertos. Por exemplo: até quando prolongar a vida de um paciente atingido por moléstia terminal incurável, que sofre? Certamente muitas vidas estão sendo artificialmente prolongadas por pressão das indústrias produtoras de materiais médicos e hospitalares e, talvez, por outros motivos menos fáceis de serem demonstrados, que não serão aqui discutidos.

Estes pontos só podem ser apresentados para debate porque a medicina evoluiu de forma avassaladora nas últimas décadas. Um paciente que sofresse um bloqueio cardíaco, uma insuficiência renal ou insuficiência coronariana há apenas alguns anos atrás ou se recuperava, ou rapidamente morria. A morte era um evento de baixo custo, tanto sido substituída por um prolongamento da vidade alto custo. O hospital, que não era mais do que um local de repouso, que oferecia conforto aos enfermos e aos morimbundos, passou a ser o ambiente depositário de alta tecnologia. muitas vezes escondida atrás de velhos prédios tradicionais.

O gasto com a recuperação da saúde passou a exceder a possibilidade de que o pagamento individualizado fosse feito. Aquele contrato simples entre o médico e o paciente não é mais satisfatório. Há necessidade de que alguém pague a conta!

E quem deve ser este pagador? Como acontece nos outros países ocidentais, de economia livre e mais adaptados ou ricos que o Brasil?

Na Europa ocidental, em todos os países ditos ricos, com exceção da Dinamarca, a medicina é socializada. O pagador é o estado, que arrecada impostos e administra os recursos médicos e de saúde. O pagamento das contas é feito num percentual que varia. Aí estão incluídas consultas, exames, medicamentos e tratamentos hospitalares e de reabilitação. Embora a economia de mercado imponha as suas regras nestes países, a questão da saúde é encarada como um problema do estado, que é, em última instância, o responsável pela saúde da população.

No Canadá, o sistema de saúde totalmente socializado, foi implantado há alguns anos e vem funcionando com plena satisfação pelos usuários e prestadores. Este sistema vem sendo estudado por outras nações ricas ocidentais, inclusive os Estados Unidos. O sistema é público, custeado e gerido pelo Governo. É tão rigoroso que não permite a cobrança de nenhum adicional que possa estabelecer eventuais critérios diferenciais no tratamento, que não sejam exclusivamente médicos.

Um pequeno parênteses: apenas 2 países não tem um sistema de saúde.

Vejamos então os Estados Unidos, Nesta nação, o custeio da atenção médica é assegurado pelo governo aos cidadãos que tenham renda anual inferior a 12.000 dólares, pelo programa Medicare. Aos que recebem mais de 12.000 dólares anuais, o acesso ao programa não é permitido, através de um rigoroso controle feito pelo imposto de renda. Estes cidadãos devem procurar programas de assistência nas empresas ditas de saúde. É justo? Parece. Mas não é!

Eis o que acontece de fato:

  1. em primeiro lugar, como os seguros de saúde são extremamente caros, oscilando entre 9.000 a 10.000 dólares anuais os mais simples, constata-se que 30% da população americana não tem direito à assitência médica, pois ganham mais do que o estabelecido, mas não o suficiente para custear por conta própria. Este fato gera uma distorção significativa: uma nação que gasta 11% do seu PIB com saúde, deixa 30% da sua população sem cobertura médica!;

  2. as famílias que podem pagarpor um plano mais simples, embora tenham uma despesa que pese substancialmente no orçamento doméstico, não tem direito a tratamento médico sofisticado (por exemplo: exames complementares que utilizem técnicas aprimoradas, cirurgia cardíaca e tratamentos para câncer);

  3. os que podem pagar um plano mais caro, ou seja, os ricos, embora não tenham problemas na área de assistência à saúde, também manifestam insatisfação: são os que pagam os maiores impostos e, ainda assim, são sobrecarregados com altos gastos com a saúde.

Em artigo recente publicado na revista norte americana New England Journal of Medicine, denominado “O Paradoxo da Saúde”, fica demonstrado que o povo americano não está satisfeito, embora os parâmetros universalmente utilizados para aferir o nível de saúde indiquem o contrário.

Os dados que demonstram a melhora de saúde são:

  • expectativa de vida - aumento de 47,3 anos em 1900 para 74,7 anos em 1984;

  • mortalidade infantil - diminuiu de 24,7 por 100.000 em 1965 para 10,6 em 1984;

  • mortalidade por diabetes, doenças cardíacas e úlcera péptica, diminuiu dez vezes.

Porém, a sensação de bem estar diminuiu:

  • satisfação com a saúde: 61% dos americanos estavam satisfeitos com a saúde em 1961, contra 55% em 1980;

  • em 1920 apenas 0,82% dos americanos tinham doenças graves, contra 2,12% em 1980.

Esta deterioração da sensação de bem estar, aí incluindo o medo de ficar doente, se acompanhou de mudanças comportamentais. Este medo de perda da saúde se evidencia também de várias formas, como apontamos articulistas das revistas médicas americanas:

  1. aumento dos gastos com a saúde:

1980 - 75 bilhões de dólares - 1986 - 465 bilhões de dólares

  1. aumento dos cuidados com a saúde:

44% dos americanos tenta controlar o stress; 46% dos americanos tenta emagrecer; 60% dos americanos faz alguma espécie de dieta.

Como fator desencadeante desta sensação de medo e de desconforto, um dos mais importantes, senão o mais, é a comercialização, efetuada pelas indústrias de produtos médicos e hospitalares, pelos advogados e pelas empresas de saúde, que promovem a falácea de que a saúde pode ser comprada.

Após a apresentação destes pontos, podemos formular algumas perguntas para reflexão?

1ª) tem o brasileiro condições de pagar um plano de saúde, como o que vem sendo implantado segundo divulgação do Jornal Estado de São Paulo (8/10/91)? ver quadro a seguir:

Idade Plano individual Plano casal Plano família 30 746 1.493 1.826 * 30/34 919 1.838 2.019 * 35/39 1.103 2.206 2.556 * 40/44 1.242 2.484 3.195 * 45/49 1.467 2.935 4.036 * 50/54 1.805 3.616 4.541 * 55/59 2.144 4.288 5.214 * 60/64 2.539 5.079 6.054 * 65/69 3.013 6.207 7.399 * 70/74 3.829 7.658 9.119 * *

Idade Contribuição/ano (em dólares) 25 1.700 30 2.400 35 3.400 40 5.000 45 8.000 50 13.000 Idade da aposentadoria: 65 anos

2ª) É lícito suspender o atendimento à saúde da população sob a alegação de que maus profissionais, sejam eles médicos, advogados, juízes ou funcionários públicos, lesaram o sistema de saúde brasileiro? Não seria mais justo prender os infratores, confiscar o que foi roubado e retornar à população os impostos recolhidos sob a forma de um melhor sistema de saúde?

Supondo que uma pessoa pudesse pagar estes planos, ainda assim as coisas não seriam tão simples. O Jornal do Brasil, de 11/10/91 comunica que o seguro saúde de um determinado Banco brasileiro agora cobre despesas com doenças graves como infarto agudo do miocárdio, derrame, cirurgia coronariana e câncer (quer dizer que os outros não cobrem?), porém com uma ressalva importante: o contrato termina no dia imediatamente anterior ao 65 o aniversário do segurado!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1993
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