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Saúde: atacado ou varejo?

O fenômeno não é de ontem nem ante-ontem. Dele já me dei conta há uma série de anos, embora só recentemente pude vê-lo em toda a sua dimensão, reconhecer os descaminhos a que conduz, as ciladas que têm à espreita, bem como as séries implicações que traz para a assistência à saúde e à doença da população.

Se fico tão apreensivo é parque trata-se de um processo que acomete de preferência os jovens-estudantes ou médicos formados e, entre eles, justamente os sensíveis e imaginativos, os mais profundamente engajados com a profissão, os líderes, os potenciais formadores de opinião. É contagioso, igual a qualquer outra doença de infância só que tenho sérias dúvidas se é tão fugaz como o sarampo ou a varicela.

Pertence à síndrome dos conceitos abrangentes. Estes moços têm uma visão vasta e generosa da medicina; observam-na através de uma lente de grande aumento, conseqüentemente não têm qualquer paciência com os problemas, grandes ou pequenos, do indivíduo no seu singular, com a doença a varejo. Meros detalhes de um panorama muito mais amplo seriam indignos da atenção do profissional talentoso, comprometido, agora sim, com a solução de questões de prioridade nacional, as macro-questões. Para tal, estão sempre à busca de um "referencial", um "marco teórico". (Deve ser esta a atitude - imagino eu - de um diretor do Banco Central, procurado a respeito do elevado preço alcançado pela abobrinha na feira livre do dia anterior).

Seu lema é Pensar Grande. Efetivamente, de que serve a mesquinha preocupação com uma trivial dor de barriga, uma prosaica erupção de pele, e mesmo um câncer que, não obstante os melhores esforços do médico, por fim acaba triunfando, se as prioridades nacionais são as doenças por atacado, a desnutrição, as doenças profissionais, todo o estresse imposto pela pobreza, e estes - como faz tempo concluíram - não devem qualquer tributo à biologia mas às ciências sociais? Não é contra o micro­cosmo da doença que assestam seus canhões mas contra a estrutura, a luta de classes, o imperialismo econômico (leia-se “multinacionais”).

Muito antes de cunhada a famosa proposta do “Saúde Para Todos no Ano 2000” (com ênfase no Todos) já os vimos entusiasmados com o surgimento da Medicina Preventiva, arrebatados com o surgimento da Medicina Social ou Medicina Comunitária que, na ocasião, ainda estavam engatinhando, propostas grandiosas, generosas, que prometiam, de um só lance, uma solução global, definitiva de todos os problemas.

Posso falar de primeira mão: nós, os professores, fizemos o papel de genuínos aprendizes de feiticeiro. Se é verdade que fomos nós que deflagamos todo o processo, logo mais estes estudantes tomaram a dianteira e assim - que remédio - tivemos que tomar assento no mesmo barco - embora a contragosto, é bem verdade -, munir-nos de um "discurso'' despejado, travestir-nos de cruzados de uma empreitada sobre a qual já havíamos perdido todo o controle.

O mal de Chagas servirá de excelente exemplo. Como tinha que ser, mostramos em aula a estreita correlação entre a prevalência e as condições de moradia da população. Exibimos nossos gráficos, projetamos nossos diapositivos para melhor ilustrar o famoso “tripé da doença”: paciente, agente, ambiente. De tudo isso só o último ficou de pé; as tentativas de encontrar uma vacina, os ensaios em prol de uma quimioterapia mais eficaz foram ridicularizados par nossos pupilos e mesmo o controle através dos inseticidas (o pouco que nos resta fazer) a seus olhos não passa de uma vulgar manobra para tapar o sol com uma peneira.

Ao transferir-se, armas e bagagens, do varejo para o atacado, muito naturalmente estes professores tiveram que se situar numa posição antagônica ao restante da escola, não sendo de estranhar, portanto, subitamente se viram confinados a um gueto, de onde - diga-se de passagem - até hoje não conseguiram se safar. Mas estamos todos de rabo preso; se a essas alturas procurarmos voltar atrás, maneirar a proposta, atenuar os extremismos, não demora muito e seremos conhecidos como “ingênuos”, “positivistas”.

E imaginar que tudo começou de modo tão inocente! Com toda a honestidade, demos ciência aos alunos que a prevenção (quando factível) era em última análise mais desejável que o tratamento médico.

Mostramo-lhes que doença não surge par geração espontânea, que é multicausal, e que, a par dos fatores basicamente biológicos, também as condições do ambiente, sobretudo o ambiente social e econômico, teriam que ser levados em conta. Não temos nada de que nos envergonhar: simplesmente buscamos desenhar aos nossos alunos uma medicina de horizontes mais amplos.

Fomos, porém, de uma colossal imprudência. Erramos na dosagem. De nada nos serviu toda essa boa vontade, visto que um pequeno senão ficou desapercebido: frente a frente com estes moços, deixamos de lhes reforçar que indivíduo e sociedade não são mutuamente exclusivos, não são legítimas alternativas, que não faz qualquer sentido falar numa “opção consciente”. Trata-se de conceitos situados em planos diferentes; ambos têm as suas características próprias, seu próprio mercado de trabalho, necessitam um contingente de profissionais dedicados, preparados.

Erramos muito: ensinamo-lhes uma Medicina Preventiva que falava apenas em termos do plural, como se a prevenção no singular, no diabético, no hipertenso, no epilético fosse algo inteiramente intuitivo. Também a multicausalidade não foi devidamente assimilada, ficando a impressão de que, a cura sendo sempre tão problemática, a biologia tão refratária à intervenção do médico, a medicina clássica não passa de uma farsa cuja hora chegara. Resultado: a rejeição total, radical. Para eles o rei mostrava-se nu; daqui para frente era no macrocosmo que se concentravam todas as atenções.

Mais um pouco e os discípulos estavam entregues a uma implacável crítica da profissão e dos profissionais. Passaram a arrancar o mato que crescia na horta-tarefa sem dúvida mais do que louvável -, mas tamanha foi sua ferocidade que não pouparam sequer as poucas hortaliças que nela cresciam. Agora o sonho de todos era fazer-se políticos da saúde, administradores, gerentes. Pois envolver-se com pacientes, arriscar perder o sono com a dor alheia, a ansiedade, o detalhe, enfim, não trazia quaisquer dividendos.

Tudo isso me desconsola profundamente - e sei que não sou só eu. O que será dos doentes desta terra se a cada ano diminui o número de médicos dispostos a ocupar-se de seus problemas mais imediatos? O que será dos próprios médicos, se o mercado de trabalho na Saúde Pública, na Medicina Social, nas quais tantos deles pretendem ingressar, é tão reduzido? E como ficará a medicina brasileira, ameaçada de transformar-se numa pirâmide de base voltada para cima, com milhares de “gerentes” mas muito poucos gerenciados?

Em resumo, o que será de nós naquele feliz momento quando, vencida a batalha da saúde como direito de cada um, não nos resta senão reconhecer que nos faltam “recursos humanos” capacitados, que o sonho prossegue tão como antes?

Embora seja possível que nem todos concordem comigo, para mim esta é uma questão que interessa, basicamente, à educação médica (daí envolver esta Revista em minha inquietação).

Estou convicto que a essas alturas não nos cabe, mais uma vez, ocupar-nos de mudanças curriculares, pois já não é a forma mas o conteúdo que importa. Já passou a hora de argumentar em cima dos livros de texto, quebrar a resistência do auditório através do raciocínio lógico (pois neste campo o pupilo é mais traquejado que o mestre), nem mesmo usar como fiel da balança nossa “longa experiência de vida”.

Muito mais do que o intelecto, é sobre os sentimentos que agora temos que trabalhar e se esta proposta soa falso - um tanto piegas, para dizer a verdade - peço minhas desculpas.

Em que pese a opinião dos pessimistas, que em tudo vêem o dedo da ambição material, por ocasião de seu ingresso na faculdade a maioria dos jovens ainda é pura; se lhes indagarmos porque preferiram esta a qualquer outra carreira, não se acanham em falar em “vocação” ou mesmo “predestinação”. Acreditem ou não os cínicos (os quais, pelo visto, já não se recordam dos velhos tempos de escola), o jovem primeiranista sente uma enorme necessidade de “ajudar o próximo”, de tornar-se útil, de deixar o mundo um pouco melhor. (Naquela época ainda gostavam de gente).

Na escola se aniquila com tudo isso; as necessidades emocionais, o “lado humano dos recursos humanos”, são esquecidas, ou deliberadamente rejeitadas como pueris ou mesmo danosas. E ao cabo de pouco tempo, destruídos os antigos valores, ei-los substituídos por conhecimentos teóricos, pela habilidade manual, pelo exercício de um competente artesanato cuja matéria-prima é a doença, cujo instrumental é a técnica, cujo sucesso é medido pelo diagnóstico, seja quais forem suas conseqüências práticas.

Uma parte dos alunos se adapta às novas regras do jogo. Um outro contingente - ao que parece, em número ano por ano crescente - rebela-se contra seus mestres, pois toda esta tecnologia, única coisa que se salvou, a seus olhos aparece pretenciosa, estéril e ineficiente.

Embora no hospital universitário assistam a um por outro brilhante sucesso terapêutico, eles constituem a exceção. Poucas as vidas que se podem dizer salvas, no mais trata-se de doentes que mal e mal podem ser controlados pela medicina e estes ficarão a ela atrelados - até que a morte os separe. (Grande é o desencanto.)

Traído em suas expectativas, o jovem volta-se para os macroproblemas. Já que - segundo acredita - a grande maioria dos doentes não aufere qualquer benefício da medicina, não é muito mais sensato desistir de vez do indivíduo, ao invés disso voltar-se para a sociedade?

Esse tipo de radicalismo me é muito conhecido. Anos atrás nosso departamento contava com um professor auxiliar, jovem e bem intencionado, que ao menor pretexto pichava médicos e medicina, a seu ver nada mais que uma farsa muito bem ensaiada, porém pomposa e ineficiente. Nem mesmo diante dos alunos do ambulatório sabia conter suas críticas, o que nos trouxe embaraços sem fim.

Um belo dia deixou de comparecer ao trabalho. Mas na manhã seguinte estava aí, justificando-se: na véspera sentira-se mal, uma súbita sensação de opressão no peito. Olhei para longe, disfarçando meu interesse: - E aí, o que fizeste?

Ora, lógico: fora ao médico. Como de resto, temendo a doença cardíaca, também faria qualquer outro mortal.

Daí para a frente o comportamento deste moço mostrou-se bastante mudado. Aprendera na própria pele que a função do médico transcende o curar, que o consolo, o alívio, um mero conselho que seja, também fazem parte das necessidades básicas do ser humano. Saiu enriquecido da experiência, passou a ver a profissão sob outro prisma, a repensar os desafios que oferecia.

Baseio-me neste e noutros exemplos para propor que se enfrente a “síndrome de abrangência” através de uma terapêutica de choque, que descaradamente, sem qualquer pudor, mobilize mecanismos emocionais - a empatia, por exemplo -, aponte novas opções para a motivação em “psicologismo” mas com muito bom senso. Este é para mim o único caminho correto; estou convicto que, se muitos destes jovens procuram um novo “referencial teórico”, não é propriamente porque é a ideologia que os atrai, mas porque a tecnologia, fria e desumana, os repele.

Este novo aspecto do currículo não vem inserido numa apostila.

Requer um esforço pessoal e consciente por parte de alguém que, mais do que professor, reconhece que chegou a vez de fazer o papel de mestre e amigo.

O primeiro axioma é Não atrapalhar! Ao ingressar na escola, a maioria dos estudantes já nos traz de casa uma bagagem emocional (melhor dito, afetiva) bastante suficiente e cabe-nos preservá-la carinhosamente.

O exemplo que segue é bastante recente e envolveu um jovem de minhas relações: nas férias de fim de ano, como tantos de seus colegas, estava ele fuçando pelo Pronto Socorro do hospital universitário, quando ouviu gemidos, vindo de um canto do corredor. Era uma mulher de meia idade, em cima de uma maca, esperando a sua vez para fazer uma radiografia.

Apiedado mas sem poder tomar um papel mais ativo, assim mesmo o rapazinho decidiu providenciar socorro. Não longe daí encontrou uma figura de branco, muito provavelmente um médico. Falou-lhe da mulher, pediu-lhe que pelo menos mandasse aplicar um analgésico.

O futuro colega descolou-se da parede, deitou fora o cigarro, mirou-o de alto a baixo.

- Você em que ano está, meu rapaz?

- No primeiro. Aliás, estou passando para o segundo. Um sorriso: - Bem se vê. Bem se vê. (E foi-se embora, sem mais uma palavra.)

Episódio prosaico, banal. Mas o bastante para que naquela noite, e nos dias que se seguiram, o estudante seriamente cogitasse abandonar os estudos!

Deve ser proibido desgastar. Com palavras, ou através de exemplos que ridicularizem a profissão, que lhe roubem a dignidade ou neguem que ela possa ser tornada útil.

O estudante é demais vulnerável e todo cuidado é pouco. Quantas e quantas vezes os ouvi reclamar da “grosseria” (foi este o termo mais empregado) de certos professores que em aula prática, desrespeitavam o paciente, fazendo exibir-se nu diante de um grupo grande de alunos, deixando que dez ou vinte nele praticassem o toque retal, o exame ginecológico em série.

Alguém acha que isso fica impune, que, depois de anos deste tipo de prática, ainda é possível conservar intacta a motivação, o pique?

A discussão de “casos” clínicos já está consagrada e não proponho que a abandonem. Também acredito na utilidade de se debater, com ou sem a presença de sociólogos ou antropólogos, os aspectos sociais que possam estar envolvidos. Agora, por que não acrescentar-lhe outros dez ou quinze minutos, reservando-os para que o próprio aluno busque identificar também os aspectos emocionais que estão em jogo, permitindo que a “medicina integral”, ao invés de um chavão como tantos outros, se transforme em realidade?

Para a terapêutica de choque propriamente dita é preciso ter inventividade e. . . muita coragem. Embora os exemplos que seguem tenham-se mostrado bastante eficazes em minhas mãos, a receita terá que ser adaptada a cada caso:

Em face de uma demonstração de excesso de abrangência, gosto muito de perguntar: - Escute, Fulano, a mim uma coisa parece paradoxal: como é que você, que se comove até as lágrimas com a fome, pode mostrar-se tão insensível com a dor ou a dispnéia do teu paciente? Já te passou nessa cabeça que não cabe a ti discriminar entre aquilo que é “importante” e aquilo que não é?

Para estes jovens, que ainda não chegaram à idade de, também eles, experimentarem seus achaques ou doenças crônicas, que possivelmente nunca assistiram ao sofrimento de um amigo ou familiar - portanto não sofreram de segunda mão - um oportuno “Você já imaginou se fosse em teu irmão, em teu primo, ou talvez até acontecesse contigo próprio?” Se mostra de muita utilidade. Provoca reflexão, faz nascer a empatia.

Gosto de mostrar-lhes que sua preferência pela doença por atacado pode muito bem traduzir uma fuga da realidade, ao contrário do que sempre imaginaram. Chamo-os de “médicos de gabinete”, “estrategistas de asfalto” que, temendo sujar as mãos, envolver-se com a aspereza do dia-a-dia, encerram-se sua torre de marfim, pensando que daí nascerá toda uma avalanche de soluções.

Se para eles é uma surpresa serem apelidados de comodistas, tampouco lhes agrada a lembrança de que sua ojeriza pelos “detalhes’, sua impaciência com as soluções parciais, as providências mais imediatas, possa ter estreito parentesco com o fatalismo. - Fatalista justo eu, que tanto luto em prol da saúde da comunidade? - protestam de viva voz.

Não me disponho a negociar e incito-o a repensar sua atitude face ao mal de Chagas (e tantas outras questões). E porventura não é fatalismo omitir-se as medidas a curto prazo, reservando a solução definitiva para a eventualidade de um venturoso porvir? De resto, acrescento-lhes: - Se você tivesse um assaltante na porta de tua casa, você se consolaria com a perspectiva de que num futuro distante, através de uma gradual elevação do nível de renda, a criminalidade fatalmente será tornada obsoleta?

Táticas como estas funcionam muito bem, desde que os professores assumam mesmo o papel de mestres e amigos tolerantes e compreensivos com o lado humano desta massa tão mal tratada que denominamos de “recursos humanos”.

Desde que repensem um pouco o currículo formal e reconheçam que é preciso acrescentar-lhe um “algo a mais”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1986
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