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A revisão do ensino médico de graduação

Este trabalho resume algumas das idéias do Autor sobre o tema, que foram se sedimentando nos anos preparatórios da constituição do Conselho dos Examinadores da AMRIGS e nos seis anos durante os quais foi membro do mesmo. Os objetivos e as prioridades do ensino-médico de Graduação e a sua avaliação têm sido tratados no Relatório que o Conselho de Examinadores apresentou à Diretoria da Associação Médica do Rio Grande do Sul, em maio de 197611. Associação Médica do Rio Grande do Sul. “O Exame AMRIGS”. Revista AMRIGS. Porto Alegre, 21 (1):9-35, jan.-jun., 1977. e revisadas durante o seminário sobre “A Formação do Médico Generalista”, realizado pela Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) e Fundação Kellog em Campinas, São Paulo, em maio de 197822. Associação Brasileira de Educação Médica. Revista Brasileira de Educação Médica. Suplemento no 1, 1978.. Tanto esses dados quanto os do Comitê de Objetivos e Prioridades do Conselho Nacional de Examinadores Médicas dos Estados Unidos, em seu exaustivo documento sobre a Avaliação da Educação Médica55. National Board of Medical Examiners. Evaluation in the continuum of medical education. Relatório do Committee on Goals and Priorities do National Board of Medical Examiners. Philadelphia, junho 1973., subsidiaram alguns dos comentários aqui desenvolvidos.

O ensino médico de graduação está a exigir uma revisão de seus objetivos e prioridades. Esta tarefa compete tanto às direções das instituições responsáveis pela assistência, ensino e pesquisa na área da saúde, quanto aos professores e alunos das escolas das ciências da saúde. Pessoas e organizações das comunidades freqüentemente expressam insatisfação com o tipo de assistência médica que vêm recebendo; por isso mesmo deveriam ser consultadas e participar do processo de revisão do ensino médico de graduação.

Moralmente, um tal compromisso deveria ser assumido em especial pelos corpos de professores e autoridades dos serviços de saúde, por serem eles, e não as populações e os alunos, os que maior força possuem na determinação das metas das escolas.

O desenvolvimento das ciências biomédicas no currículo das Escolas de Medicina e a crescente tendência à especialização são fatos básicos a serem levados em conta nesse reexame.

O progresso das ciências biomédicas criou, dentro do corpo docente das escolas médicas, um grupo de pesquisadores praticamente desligado dos professores voltados à prestação de serviços. Por isso, de certa forma, as atividades assistenciais desenvolvidas pelos últimos acabaram por antagonizar-se com as propostas pelos primeiros, que reputam ser as atividades clínico-assistenciais “menos científicas”.

A autonomia dos departamentos dentro das universidades leva a um conflito automático quando se trata de delinear currículos. Um planejamento interdisciplinar de ensino colide diretamente com o universo de interesses existente nas escolas de medicina. Os objetivos do corpo de professores diferem não só dos da maioria dos alunos como também distanciam-se (quando não se alienam) das expectativas e necessidades médico-sociais das populações.

Devido à escassez relativa de médicos no mundo, as escolas de medicina aumentaram em número e passaram a admitir mais alunos, justificando esta atitude pela necessidade de dar cobertura de atendimento às populações. Entretanto, a concentração dos médicos nas áreas urbanas e de maior riqueza, bem como o fato de se dedicarem à prestação de cuidados especializados às populações, inutilizou esse esforço.

O ingresso de alunos nas universidades brasileiras através do sistema de exame vestibular - que seleciona candidatos apenas pelo nível mais elevado de conhecimentos gerais - também tem sofrido críticas como outro dos fatores a serem considerados quando se tenta repensar o ensino médico de graduação. Por um lado, este sistema não se preocupa com os conhecimentos do futuro médico em ciências do comportamento e/ou sociais. De outra parte, facilita principalmente o ingresso de estudantes de classes sociais privilegiadas, econômica e culturalmente descompromissados da tarefa de elevar os índices de saúde das populações.

A grande maioria dos médicos se volta à concessão de cuidados que visam o diagnóstico e o trata mento de pacientes (prevenção secundária) e mais raramente a reabilitação (prevenção terciária), não estando preparada para a promoção da saúde e para a proteção específica contra as doenças (prevenção primária). Essa tendência decorre, via de regra, das características da prática médica e da organização dos serviços de saúde, que não atendem às necessidades médico­ sociais das populações mas, sim às solicitações do atual mercado de trabalho. No momento, bom número de profissionais da saúde, inclusive nas esferas oficiais, professores e, principalmente, as populações enfatizam os aspectos preventivos e sociais da saúde e, portanto, os cuidados primários de saúde, mas não se observa igual comportamento por parte das instituições médicas de ensino e assistência.

É fundamental que não se confunda PREVENÇÃO PRIMÁRIA com CUIDADOS PRIMÁRIOS DE SAÚDE, e prevenção secundária ou terciária com cuidados secundários ou terciários. Os cuidados primários incluem a prevenção primária, secundária e terciária de problemas de saúde considerados prioritários para o atendimento de indivíduos, suas famílias e comunidades.

A introdução na Inglaterra do “Médico Prático Geral” (o “General Practitioner”), o ressurgimento nos Estados Unidos da América do “Médico de Família” (o “Family Doctor”) e da “nova” especialidade, a “Medicina de Família” (o “Family Practice”), oficializou, dentro da medicina, a reintrodução do médico na linha dos que concedem cuidados primários de saúde.

O reconhecimento de que preparar médicos de cuidados primários não é tarefa simples, dada a complexidade e abrangência de tais serviços, desafia o presente ensino médico de graduação.

Infere-se dessas circunstâncias que a educação médica pré-graduada e o internato deveriam levar diretamente à formação de um médico geral, sem que para isso o estudante tivesse de freqüentar um treinamento pós-graduado a nível de residência.

Se este ponto receber a importância que lhe é devida na formulação do currículo das escolas médicas, implicará para estas e para os serviços de saúde uma auditoria e participação do governo e do público interessado. Uma vez que o governo e, por meio dele, o público, financiam as escolas médicas - mesmo as particulares, indiretamente - é justo que influam sobre elas através de uma auditoria pública, de modo a fazer com que sirvam ao interesse das populações. Sua participação se torna necessária no planejamento e desenvolvimento de programas de ensino, bem como na utilização adequada dos recursos humanos para a saúde recém-formados.

Outra conseqüência da formação integral será o desaparecimento do internato como tal e como etapa de pré-especialização. Sua transformação num estágio que objetive a formação integral do médico prático em contato com a realidade assistencial do país, possibilitará a integração do ensino com a assistência médica. A conveniência de uma educação médica integrada permitirá que se estabeleçam vínculos efetivos entre os serviços das ciências biomédicas e os serviços que atuam mais diretamente na concessão de cuidados de saúde às populações.

Esta integração que decorre da vinculação do ensino das ciências biomédicas ao do das disciplinas clínicas, por utilizar o trabalho clínico como método de ensino, facilitará a aprendizagem, uma vez que este é a motivação por excelência do processo de ensino-aprendizagem nas escolas médicas. Outra vantagem será a de poupar a repetição de conteúdos fora de um contexto que relacione os conhecimentos biomédicos com aqueles necessários à prática clínica e ao cuidado de pacientes e de populações, tal como ocorre atualmente na totalidade das escolas brasileiras.

É sabido que o grupo dos professores pesquisadores, desligados do que se dedicam à prestação de serviços, procuram alocar carga horária excessiva para o ensino das Ciências Biomédicas. Por sua vez, os professores das disciplinas clínicas acham que o total dos conhecimentos das mesmas deve ser transmitido aos alunos e não apenas aqueles necessários à formação integral do médico prático.

Outros fatos, além da excessiva carga horária alocada ao ensino das Ciências Biomédicas, como as férias muito longas e o número excessivo de feriados nos calendários das universidades brasileiras, traduzem uma consciência de que as escolas médicas aderiram à moratória que as sociedades das nações ricas concede aos seus adolescentes e jovens adultos, para retardar a sua entrada na vida prática, deixando de ser os locais onde se deveria preparar profissionais para servirem às populações, luxo este que as sociedades das nações emergentes não podem e não devem se permitir.

Estas considerações permitem concluir que:

Com o melhor aproveitamento do tempo dispendido no ensino médico de graduação, o curso médico pode ser de imediato reduzido no nosso país, inicialmente de seis para cinco anos.

A diplomação do jovem profissional deve ser feita no final do ano que antecede o Estágio ou Internato. Este deve ser obrigatório para que o futuro médico receba o certificado de habilitação ao exercício profissional.

O Estágio ou Internato realizado por um estudante já graduado cria responsabilidades e encargos que certamente beneficiarão o ensino, tirando do mesmo, tal como hoje é praticado, o caráter de que a atividade do profissional desenvolvida pelo futuro profissional é ainda um jogo de faz-de-conta.

Este estágio não deve ser optativo e muito menos uma etapa de pré-especialização. Deve ser obrigatório e genérico, preparando o futuro médico em Saúde Pública, Pediatria, Ginecologia e Obstetrícia, Psiquiatria, Medicina Interna e Cirurgia. Dentro desta linha de pensamento, um contato do Estagiário ou Interno com os serviços reais de saúde do país, dedicados à prestação de cuidados primários a populações, e não apenas com aqueles artificialmente desenvolvidos para fins de ensino, é básico para o aprimoramento do processo de ensino-aprendizagem na etapa de graduação das escolas médicas, por inserir a docência na rede da assistência médica do país.

Por último, a necessidade de dar assistência aos egressos dos sistemas formadores levará ao desenvolvimento de programas de educação continuada ou permanente, consentâneos e conseqüentes aos currículos daquelas escolas que revisaram seu ensino médico de graduação.

Agradecimento

O Autor agradece aos Drs. Carlos V. Serrano, Newton Neves da Silva e Sérgio Pacheco Ruschel as críticas e sugestões recebidas por ocasião da leitura do manuscrito original.

Referências Bibliográficas

  • 1
    Associação Médica do Rio Grande do Sul. “O Exame AMRIGS”. Revista AMRIGS Porto Alegre, 21 (1):9-35, jan.-jun., 1977.
  • 2
    Associação Brasileira de Educação Médica. Revista Brasileira de Educação Médica Suplemento no 1, 1978.
  • 3
    BUSNELLO, E.; LEWIN, I.; RUSCHEL, S.; BRADLEY, P. Projeto de um Sistema Comunitário de Saúde Porto Alegre, Centro Médico Social São José do Murialdo da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul, out. 1974/abr. 1975.
  • 4
    GROSSMANN, C.; BUSNELLO, E.; LEWIN, I; RUSCHEL, S.; BRADLEY, P. Projeto de Residência em Saúde Comunitária Porto Alegre, Centro Médico Social São José do Murialdo da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul , abril de 1975.
  • 5
    National Board of Medical Examiners. Evaluation in the continuum of medical education Relatório do Committee on Goals and Priorities do National Board of Medical Examiners. Philadelphia, junho 1973.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1979
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