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DESCRIÇÃO: EFEITO DE REAL OU EFEITO DE IGUALDADE? UM DIÁLOGO DE RANCIÈRE COM (E CONTRA) BARTHES* * O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. **

DESCRIPTION: AN EFFECT OF REALITY OR AN EFFECT OF EQUALITY? A RANCIÈRE DIALOGUE WITH (AND AGAINST) BARTHES

RESUMO

Em “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”, Jacques Rancière criticará Roland Barthes, afirmando que sua interpretação do livro “Um coração simples”, de Gustave Flaubert, teria se mostrado incapaz de perceber a política da escrita da literatura romanesca. Para Thomas Clerc, leitor de Barthes, Rancière teria se deixado confundir pelo duplo caráter do pensamento barthesiano: ao mesmo tempo estruturalista e crítico. Ambos os autores, Barthes e Rancière, se empenham por recusar um pensamento pautado pela noção de representação. Nossa hipótese, porém, é a de que os autores divergem em relação ao próprio sentido da representação, tendo como consequência uma divergência também na compreensão da política, o que embasaria a crítica de Rancière a Barthes não como uma confusão, mas, antes, como uma recusa à política da escrita barthesiana. Pretendemos, com isso, reconstruir os argumentos de ambos em torno de Flaubert, para perceber a política da escrita que operam. Recusando o ponto de vista ao mesmo tempo estruturalista e desmistificador de ideologias de Barthes, Rancière aponta para outra leitura que vê na literatura romanesca a ruptura em relação à política da escrita do regime representativo e a configuração do regime estético.

Palavras-chave:
Jacques Rancière; Literatura romanesca; Representação; Regime estético; Política da escrita; Roland Barthes

ABSTRACT

In “The Lost Thread: the democracy of Modern Fiction”, Jacques Rancière will criticize Roland Barthes, stating that his interpretation of Gustave Flaubert’s book “A simple heart” would have shown himself unable to understand the politics of writing of romanesque literature. For Thomas Clerc, reader of Barthes, Rancière would have been confused by the double character of Barthesian thought: both structuralist and critical. Both authors, Barthes and Rancière, strive to refuse a thought based on the notion of representation. Our hypothesis, however, is that the authors diverge in relation to the very meaning of representation, resulting in a divergence in the understanding of politics, which would support Rancière’s criticism of Barthes not as a confusion, but, rather, as a refusal to the politics of Barthesian writing. With this, we intend to reconstruct the arguments of both autors around Flaubert, to understand the politics of writing that they operate. Refusing the structuralist and ideology-demystifying point of view of Barthes, Rancière points to another reading that sees in the Romanesque literature the rupture in relation to the politics of writing of the representative regime and the configuration of the aesthetic regime.

Keywords:
Jacques Rancière; Literature Romanesque; Representation; Aesthetic regime; Politics of writing; Roland Barthes

Introdução

A literatura, desde seu surgimento no século XIX, afigura-se como um incômodo, como se configurasse um espaço não apenas diverso em relação às normas políticas e sociais, mas, também, capaz de desviá-las, de desordenálas. Ora são seus personagens imorais que parecem incomodar ou cometer uma espécie de crime – como a adúltera Emma Bovary do livro de Gustave Flaubert (2011)FLAUBERT, G. “Madame Bovary”. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.1 1 Em 1857, alguns meses após a publicação de “Madame Bovary” em formato de folhetim, Gustave Flaubert foi acusado e processado pelo Estado francês. A acusação afirmava dois crimes e fornecia a direção para encontrá-los na história da personagem Emma Bovary: “a ofensa à moral pública está nos quadros lascivos que porei sob vossos olhos, a ofensa à moral religiosa, nas imagens voluptuosas misturadas às coisas sagradas” (França, 1857, on-line, tradução nossa). O processo ficou famoso e movimentou a cidade de Paris com artigos sobre o caso publicados nos jornais e discussões acaloradas. –, ora é a própria circulação material do livro que se apresenta como um perigo – incorrendo no erro de fazer chegar ideias às almas erradas –, ora, ainda, são os detalhes, os objetos sem utilidade que parecem apresentar alguma espécie de perigo silencioso. Em uma ou outra forma, a literatura parece sempre encenar o “crime do livro” apontado por Jacques Rancière: esse perigo sempre a se recolocar no encontro entre as palavras e os corpos, entre a letra e a vida dos “quaisquer”. Já no século XIX, o escritor Barbey d’Aurevilly (1865)BARBEY D’AUREVILLY, J. “M. Gustave Flaubert”. In: Les œuvres et les hommes : IV. Les romanciers. Paris: Amyot, 1865 [Online]. Disponível em: https://obvil.sorbonne-universite.fr/corpus/critique/barbey-aurevilly_romanciers#body-7-1 (Acessado em 8 de março de 2022).
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dedicava suas críticas aos livros de Flaubert, apontando, em seus excessos descritivos, a completa ausência do autor, cuja função deveria ser a de dar corpo à obra. No início do século XX, André Breton, o escritor surrealista, também expressará seu incômodo em relação às descrições intermináveis de Flaubert: “E as descrições! Nada se compara ao seu vazio; são superposições de imagens de catálogo, o autor as toma cada vez mais sem cerimônia, aproveita para me empurrar seus cartões postais, procura fazer-me concordar com os lugarescomuns” (Breton, 1924BRETON, A. “Manifesto surrealista”. 1924 [Online]. Disponível em: http://www.ufiscar.br/~cec/arquivos/referencias/Manifesto%20do%20Surrealismo%20%20Andr%20Breton.htm (Acessado em 8 de março de 2021).
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).

No livro “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”, Rancière (2017b)RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b. nos mostra como os detalhes e as descrições, tão caros à escrita flaubertiana, darão, ainda, vazão a conflitos no pensamento de um outro autor, qual seja, Roland Barthes. No texto “O efeito de real”, publicado em 1968, Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. parte da descrição da sala da senhora Aubain, no livro “Um coração simples”, de Flaubert, para pensar aquilo que denomina de “notação insignificante” na estrutura narrativa, empenhado em dar-lhe uma função, utilidade ou justificativa no interior da análise estrutural do texto. Para Rancière, esse empenho de Barthes dá continuidade aos gestos de Breton e de d’Aurevilly contra as descrições flaubertianas; gestos cujo modo de pensamento é aquele da representação. Rancière afirma, em uma palestra realizada no Instituto de Investigação Cultural de Berlim, em 2009, que

a análise de Barthes não leva em consideração a questão política porque, na minha opinião, a ideia de estrutura que sustenta sua investigação sobre o estatuto do ‘real’ na literatura está de acordo com a ideia de estrutura implicada na lógica representativa: a estrutura como arranjo funcional de causas e efeitos que subordina as partes ao todo. (Rancière, 2010a, pp. 80-81RANCIÈRE, J. “O efeito de realidade e a política da ficção”. Novos Estudos – CEBRAP, Nr. 86, 2010a, pp. 75-90.)

Barthes teria sido incapaz de perceber a política da escrita flaubertiana, pois seu pensamento obedeceria a uma lógica representativa, a uma noção de estrutura configurada pelas relações de causa e de efeito, de funcionalidade e de totalidade.

Em resposta à crítica de Rancière dedicada a Barthes, Thomas Clerc (2015)BARTHES, R. “O grau zero da escrita”. Trad. M. M. Barahona. Lisboa: Edições 70, 2015., no texto “Barthes apreendido por Rancière”, afirma que este teria se deixado confundir pela duplicidade fugidia do pensamento barthesiano. Nas palavras de Clerc,

Chega a ser surpreendente que Rancière produza uma crítica contraditória de Barthes no seu texto: ele o vê ao mesmo tempo como formalista e como ‘denunciador’ do realismo. A posição instável de Barthes enlouquece Rancière: Barthes aparece marcado duplamente por sua fliação estruturalista e pelo pertencimento à tradição crítica. (Clerc, 2015, p. 94CLERC, T. “Barthes apreendido por Rancière”. Criação & crítica, São Paulo, Nr. 14, 2015, pp. 91-104.)

Clerc (2015)CLERC, T. “Barthes apreendido por Rancière”. Criação & crítica, São Paulo, Nr. 14, 2015, pp. 91-104. argumenta que Rancière teria dado atenção em demasia ao caráter estruturalista da leitura feita por Barthes do livro de Flaubert, sendo incapaz de perceber que o pensamento de Barthes apontaria, ao mesmo tempo, para o caráter interno da textualidade e para o caráter externo, de referencialidade. Com isso, diz Clerc, o texto “O efeito de real”, de Barthes, marcaria já um afastamento em relação à lógica fechada do estruturalismo, dando a ver uma preocupação com o aspecto político do texto a partir de uma consideração do sensível. Outros leitores de Barthes, como Leyla Perrone-Moisés (2012)PERRONE-MOISÉS, L. “Prefácio”. In: BARTHES, R. O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012., confirmam essa mudança gradativa de seu pensamento, que passa a se afastar do estruturalismo em direção ao texto e à escritura, traçando, com isso, uma passagem do projeto semiológico e estruturalista para a teoria da escritura e do prazer do texto. Perrone-Moisés aponta, ainda, que, no pensamento de Barthes,

em sua produção como em sua recepção a obra literária tem estratos mais numerosos e mais imbricados do que os que a metalinguagem estruturalista pode descrever, e o signo verbal tem aí mais funções e mais aberturas de sentido do que aqueles que a semiótica pode nomear. (Perrone-Moisés, 2012, p. XIIIPERRONE-MOISÉS, L. “Prefácio”. In: BARTHES, R. O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.)

Como afirmam, ainda, Leda Tenório da Motta e Rodrigo Fontanari, “sabe-se que nos anos 1970 Barthes gradativamente mudou de direção em relação ao universo dos termos técnicos, passando a ter novas experiências epistemológicas” (Motta e Fontanari, 2012, p. 164MOTTA, L. T.; FONTANARI, R. “Roland Barthes in Camera Lucida, the unfaithful semiologist”. Matrizes, Vol. 6, Nr. 1 e 2, jul.-dez. 2012, pp. 161-168., tradução nossa), tendo como único princípio, continuam os autores, o prazer da escrita.

Partindo desse ponto comum entre Clerc, Perrone-Moisés, Motta e Fontanari, que diz respeito à gradual abertura do pensamento barthesiano para além da semiótica e do estruturalismo, pretendemos marcar que a crítica de Rancière ao autor não está interessada em recusar ou afirmar tal mudança. Sua interpretação crítica do pensamento de Barthes fundamenta-se, muito mais, em um interesse por perceber e recortar a política da escrita nos textos de Barthes e de Flaubert. Assim, a desavença entre Clerc – que faz ressoar, também, as diversas interpretações sobre o pensamento de Barthes (Motta e Fontanari, 2012MOTTA, L. T.; FONTANARI, R. “Roland Barthes in Camera Lucida, the unfaithful semiologist”. Matrizes, Vol. 6, Nr. 1 e 2, jul.-dez. 2012, pp. 161-168.; Perrone-Moisés, 2012PERRONE-MOISÉS, L. “Prefácio”. In: BARTHES, R. O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.) – e Rancière abre um caminho para pensarmos algumas noções que fundamentam as diferenças entre o “efeito de real” – apontado por Barthes como expressão das “notações insignificantes” no texto de Flaubert – e o “efeito de igualdade” – sugerido por Rancière (2017b)RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b. como sendo a política da escrita flaubertiana, que teria sido ignorada pelo pensamento representativo de Barthes.

Em nossa hipótese, a primeira distância traçada pelo pensamento de Rancière e de Barthes é aquela que diz respeito à própria noção de representação. Ponto fulcral, tendo em vista que, tanto Barthes quanto Rancière pretendem refutar o pensamento representativo a partir de suas leituras de Flaubert. Para Barthes, como veremos, trata-se de operar uma dissolução do signo até alcançar seu completo esvaziamento de sentido. Ideia do “grau zero” da escrita, do livro homônimo, de 1953 (Barthes, 2015BARTHES, R. “O grau zero da escrita”. Trad. M. M. Barahona. Lisboa: Edições 70, 2015.), cujo sentido, segundo Motta e Fontanari (2017)MOTTA, L. T.; FONTANARI, R. “Escrever ‘no grau zero’ com a luz. Sobre a semiologia barthesiana da fotografia”. Crítica cultural, Palhoça, SC, Vol. 12, Nr. 1, Jan.-jul. 2017, pp. 87-94., teria sido englobado posteriormente na ideia do “neutro”: uma espécie de não dizer, de sentido sem fechamento. Para Rancière, em contrapartida, recusar a lógica representativa significa refutar toda oposição entre razão e sensível, forma e conteúdo, realidade e ficção e, com isso, a oposição entre a massa de sujeitos ignorantes e o seleto grupo daqueles que conhecem e dominam os discursos. Nosso intuito será, assim, analisar o modo com que ambos os autores compreendem a noção de representação para perceber como configuram uma ideia de política diversa.

A partir de um cotejamento entre a análise do texto o “O efeito de real”, de Barthes e a crítica feita por Rancière, no livro “O fio perdido”, pretendemos configurar uma argumentação em torno da hipótese apresentada: a crítica de Rancière a Barthes fundamenta-se em duas divergências conceituais, quais sejam, aquela em torno da noção de representação e aquela em torno da noção de política. Nosso objetivo, assim, será, mostrar como a confusão apontada por Clerc nada tem a ver com uma incapacidade de Rancière de lidar com a duplicidade de Barthes – ao mesmo tempo formalista e desmistificador crítico da realidade – antes, pretendemos mostrar como é justamente essa duplicidade que embasa a razão representativa operante no pensamento barthesiano. Rancière e Barthes empenham-se em configurar um modo de pensamento que recuse a lógica representativa, mas, a partir das divergências conceituais que apresentaremos, compreende-se como a crítica a Barthes parte de um campo de pensamento no qual política e representação significam algo diverso daquilo que significava para Barthes.

O barômetro da Sr. Aubain, de notação insignificante a efeito de real

Na interpretação de “Um coração simples”, de Flaubert, Barthes detém-se sobre um detalhe que poderia passar imperceptível e a partir dele desenvolve uma análise que culminará na ideia de “efeito de real”. Logo nas primeiras páginas do livro, a narrativa flaubertiana descreve a sala da senhora Aubain e faz aparecer nesse quadro um barômetro. O objeto polêmico, porém, aparece em meio a uma longa descrição no livro de Flaubert, percorrendo toda a extensão da casa, desde sua localização externa, passando pelo piso térreo e a sala, até o segundo andar. Um quadro descrito em seus mínimos detalhes do qual recortamos uma parte:

Essa casa, com seu telhado de ardósia, situava-se entre um beco e uma ruela que dava no rio. Por dentro, tinha diferenças de nível que provocavam tropeços. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da ‘sala’, onde a sra. Aubain passava o dia inteiro, sentada junto à janela numa poltrona de palhinha. Contra os lambris, pintados de branco, alinhavam-se oito cadeiras de acaju. Um velho piano sustentava, abaixo de um ‘barômetro’, uma pilha piramidal de caixas e estojos. Duas bergères estofadas de tapeçaria ladeavam a lareira de mármore amarelo em estilo Luís X V. O relógio, centralizado, representava um templo de Vesta — e todo o piso térreo (aposento?) tinha cheiro de mofo, pois o nível do assoalho era inferior ao do jardim. (Flaubert, 1996, pp. 5-6FLAUBERT, G. “Um coração simples”. Trad. C. M. Vaz, D. Vaz, S. K. Rickmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996., grifo nosso)

O barômetro, assim, é mais um entre os diversos objetos, móveis e detalhes descritos por Flaubert. Mas, para Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a., ele é indício de uma problemática com a qual a análise estrutural usualmente se encontra sem saber como analisá-la. Autores como Flaubert, diz Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a., produzem uma série de

notações escandalosas (do ponto de vista da estrutura), ou, o que é mais inquietante, parecem concessões a uma espécie de luxo da narração, pródiga a ponto de dispensar pormenores ‘inúteis’ e elevar assim, em algumas passagens, o custo da informação narrativa. (Barthes, 2012a, p. 182BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.)

Mas o que faria com que o barômetro fosse lido por Barthes como uma notação inútil enquanto o “velho piano” assim como a “pilha de caixas e estojos” ocupariam um outro estatuto na análise estrutural? Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. afirma que o piano apareceria como índice da classe burguesa à qual pertenceria a senhora Aubain, enquanto a pilha de caixas daria sinal da desordem da casa. Ambos, assim, fornecendo algumas pistas para a configuração de uma ambiência expressiva da personagem. Quanto ao barômetro, continua o autor, não há nada, à primeira vista, que justifque sua notação. O aparelho – medidor da pressão atmosférica com o intuito de fornecer sinais de prováveis mudanças meteorológicas – era objeto comum nas casas, seja de pescadores ou senhoras de uma burguesia decadente como a personagem do livro. O barômetro, não aparecendo como índice de atmosfera, de classe ou personalidade da personagem, classifica-se, então, como uma dessas “notações escandalosas”: palavras ou frases sem função na estrutura narrativa.

Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a., ao reconhecer o escândalo dessa notação sem função, retoma, para corrigir, um trabalho anterior no qual se empenhara por determinar um modo de fazer e pensar a análise da estrutura narrativa dos textos literários. O autor refere-se ao trabalho desenvolvido em “Introdução à análise estrutural das narrativas”, de 1966, que passará, já no texto “O efeito de real”, a ser apontado pelo autor como um dos exemplos de erros cometidos pelos analistas estruturais em relação às notações sem função. Na crítica dirigida a si próprio, Barthes afirma que a análise estrutural

tem deixado de parte, quer por excluir do inventário (não falando deles) todos os pormenores ‘supérfluos’ (com relação à estrutura), quer por tratar esses mesmos pormenores (o próprio autor dessas linhas tentou fazê-lo) como ‘enchimentos’ (catálises), afetados de um valor funcional indireto, na medida em que, somando-se uns aos outros, constituem algum índice de caráter ou de atmosfera, e assim podem finalmente ser recuperados pela estrutura. (Barthes, 2012a, pp. 181-182BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.)

No texto de 1966, Barthes (2001)BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. diz ser necessária a criação de uma teoria capaz de dar conta da leitura estrutural da narrativa e propõe que se tome como modelo a própria linguística. Mas, se esta, na divisão das partes e objetos sobre os quais se dedica a pensar, tem como unidade última a frase, essa segunda linguística, afirma o autor, deve ter como unidade o enunciado. Passar-se-ia, assim, da língua para o discurso. A homologia metodológica pressuporia, ainda, outra homologia: “entre a linguagem e a literatura (na medida em que seja esta uma espécie de veículo privilegiado da narrativa)” (Barthes, 2001, p. 109BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.). Tal ideia leva Barthes a pensar a análise estrutural a partir da divisão de níveis no interior da narrativa, capaz de organizá-la, não como mera soma de elementos, mas, sim, compreendendo-a como uma “hierarquia de instâncias. Compreender uma narrativa não é apenas acompanhar o desenrolar da história, é também, reconhecer ‘estágios’, projetar os encadeamentos horizontais do ‘fio’ narrativo sobre o eixo implicitamente vertical” (Barthes, 2001, pp. 111-112BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.). A horizontalidade do encadeamento causal de acontecimentos traça, assim, um fio que deve ser seguido como o ponto principal da narrativa. Mas não basta passar de um acontecimento a outro, de um enunciado a outro, deve-se, também, passar de um nível a outro da narrativa, ver como o fio horizontal é sinuoso, descendo e subindo pelos diversos níveis verticais da história.

Barthes propõe distinguir a estrutura narrativa em três diferentes níveis de descrição: 1) o nível das funções; 2) o nível das ações; 3) e, por último, o nível da narração; devendo-se, ainda, levar em consideração o modo como os três níveis estão interligados progressivamente: “uma função só tem sentido na medida em que tem lugar na ação geral de um actante; e essa ação mesma recebe o seu sentido último do fato de ela ser narrada, confiada a um discurso que tem o seu próprio código” (Barthes, 2001, pp. 112-113BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.). Deve haver uma preponderância do sentido na distribuição dos níveis e na definição das unidades. A “função”, assim, define-se como uma unidade narrativa ou segmento que tem início na aparição de um elemento qualquer e termina na sua justificação ou significação no interior de uma cadeia maior. E o percurso dessa função, entre a apresentação de um elemento e seu sentido, perpassa os diversos níveis da narrativa. Barthes explica assim:

Se em Un coeur simples [Um coração simples], Flaubert nos informa, em dado momento, aparentemente sem insistir, que as filhas do subdelegado de Pont l’Évêque possuíam um papagaio, é porque esse papagaio irá ter, em seguida, uma grande importância na vida de Félicité: o enunciado desse pormenor (qualquer que seja a sua forma linguística) constitui portanto uma função, ou unidade narrativa. (Barthes, 2001, p. 114BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.)

No livro de Flaubert, o papagaio, que a princípio aparece como uma notação qualquer, será, posteriormente, dado de presente a Félicité, que irá criar uma intensa relação com o animal chamado Lulu. Assim, se em um primeiro momento ele parece não ter função na narrativa é porque não veríamos ainda sua unidade, que se completa quando Lulu passa a fazer parte da vida de Félicité.

Essas unidades ou funções da narrativa possuem, ainda, na análise estrutural de Barthes (2001)BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001., classes diversas. Haveria, por um lado, as “funções cardinais”, ou núcleos, assim denominadas pois se referem a unidades que, caso modificadas, alterariam a linha principal da narrativa. Como afirma Barthes, “para que uma função seja cardinal, basta que a ação a que ela se refere abra (ou mantenha ou feche) a alternativa consequente para a continuação da história, enfim, que inaugure ou conclua uma incerteza” (Barthes, 2001, p. 119BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.). Haveria, por outro lado, a noção de “catálise”, referente às unidades que preencheriam os espaços entre os núcleos. Como diz Barthes, as “catálises permanecem funcionais na medida em que entram em correlação com o núcleo, mas sua funcionalidade é atenuada, unilateral, parasita; [...] puramente cronológica” (Barthes, 2001, p. 119BARTHES, R. “Introdução à análise estrutural das narrativas”. In: A aventura semiológica. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.). Trata-se de elementos que aparecem na narrativa em uma linha consecutiva, mas não consequente.

Retornando, assim, ao texto “O efeito de real”, Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. nele sugere estar corrigindo o fato de anteriormente ter considerado os pormenores supérfluos da narrativa como catálises ou enchimentos. E, com isso, dá a ver que a aparição do barômetro na sala da senhora Aubain não pode ser explicada como um preenchimento entre dois núcleos; bem como não possui a mesma função do papagaio das filhas do subdelegado (este sim tendo uma função nuclear), que, como vimos, formará uma unidade de sentido quando se tornar o animal de estimação de Félicité. Com isso, Barthes precisa encontrar outra categoria para o barômetro em sua análise estrutural, afinal – já no momento apontado por Clerc (2015)CLERC, T. “Barthes apreendido por Rancière”. Criação & crítica, São Paulo, Nr. 14, 2015, pp. 91-104. como o de um afrouxamento em relação a um estruturalismo estrito –, o próprio Barthes questiona: “e que valor poderia ter um método que não desse conta da integralidade de seu objeto, isto é, no caso presente, de toda a superfície do texto narrativo?” (Barthes, 2012a, p. 182BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.).

Para dar conta da totalidade do texto, Barthes operará um gesto que, a princípio, pode parecer irrelevante, mas que não podemos relegar a segundo plano: tornará equivalentes duas figuras, quais sejam, a “notação insignificante” e a “descrição”. Mesmo que a notação seja configurada por apenas uma palavra (o barômetro), haveria, segundo Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a., um caráter enigmático nela tal qual aquele encontrado na descrição. Essa semelhança as faria ser apreendidas e compreendidas a partir da ausência de uma marca preditiva. A estrutura geral da narrativa, segundo o autor, é sempre preditiva, ou seja, ela repete a seguinte fórmula dada ao personagem ou ao leitor: “se você agir de tal modo, se escolher tal parte da alternativa, eis o que vai obter” (Barthes, 2012a, p. 183BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.). O caráter preditivo quer dizer, simplesmente, que há uma série de consequências dadas na consecutividade dos elementos narrados. Bem diferente da descrição (que passa a abarcar, também, as “notações insignificantes”), cuja estrutura “é puramente somatória e não contém esse trajeto de escolhas e alternativas que dá à narração um desenho de vasto dispatching, dotado de uma temporalidade referencial” (Barthes, 2012a, p. 183BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.). Por um gesto simples, Barthes acaba por colocar toda descrição na categoria da ausência de predição, ainda, na ausência de sentido – sendo este compreendido de maneira específica, qual seja, como uma narrativa pautada em um encadeamento causal. Dizendo de outra forma, a descrição configura-se, no pensamento de Barthes, como aquilo que está fora do sentido e que para este deve ser retornada ou conduzida. Assim, Barthes afirma que

a singularidade da descrição (ou do ‘pormenor inútil’) no tecido narrativo, a sua solidão, designa uma questão da maior importância para a análise estrutural das narrativas. É a seguinte questão: tudo, na narrativa, seria significante, e senão, se subsistem no sintagma narrativo alguns intervalos insignificantes, qual é, definitivamente, se assim se pode dizer, a significação dessa insignificância? (Barthes, 2012a, p. 184BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.)

É a partir da questão sobre a “significação da insignificância” que Barthes irá configurar um estatuto particular para a descrição (tornada equivalente a “notação insignificante”). Em seu esforço por reconduzir ao interior do sentido aquilo que ele próprio colocara fora, a descrição, o autor irá se empenhar em criar uma justificativa para o excesso realista ou excesso descritivo da literatura de Flaubert. Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. associa o discurso epidítico à escrita de Flaubert (2011)FLAUBERT, G. “Madame Bovary”. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. tal qual aparece no início de “Madame Bovary”, no qual vemos uma longa descrição da cidade de Rouen. Segundo Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a., pode-se ver o caráter estritamente estético e estilístico dessa longa descrição pelo comparativo das seis versões diversas da cena deixadas por Flaubert. Entre elas não haveria nenhuma diferença que pudesse mostrar uma preocupação em relação à fdelidade ao modelo representado. Antes, tratava-se de fazer ajustes da imagem, de redundâncias fônicas, em suma, de estilo. “Vê-se enfim que toda a descrição é ‘construída’ com vistas a aparentar Rouen a uma pintura, é uma cena pintada que a linguagem assume” (Barthes, 2012a, p. 186BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.). Trata-se, continua o autor, de uma mimese, tal qual compreendida por Platão no livro “A república”: a produção de uma verossimilhança artística, uma imitação da imitação, distante três graus da essência. Assim, diz Barthes, apesar de não ser pertinente ou preditiva em relação à estrutura narrativa de “Madame Bovary”, a descrição de Rouen não é escandalosa, pois “se vê justificada pela lógica da obra, ao menos pelas leis da literatura: seu ‘sentido’ existe, ele depende da conformidade, não ao modelo, mas às regras culturais da representação” (Barthes, 2012a, p. 186BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.).

Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. encontra, assim, uma função estética ou de estilística para a presença das descrições ou notações inúteis de Flaubert. “A finalidade estética da descrição flaubertiana é toda mesclada de imperativos ‘realistas’, como se a exatidão do referente [...] ordenasse e justificasse sozinha, aparentemente, descrevê-lo” (Barthes, 2012a, p. 186BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.). A descrição realista, porém, afasta-se do que Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. denomina de “atividade fantasística” da retórica clássica e, com isso, dá às descrições uma justa medida, já que, tendo como referencial o real, não se torna inesgotável. Tendo renunciado aos códigos retóricos, a descrição realista apresenta-se sob uma nova razão de ser, substituindo a velha verossimilhança por aquilo que Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. considera uma nova forma de verossimilhança. Na velha forma, diz o autor, “o real não podia em nada contaminar a verossimilhança” (Barthes, 2012a, p. 188BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.). Não se tratava de representar a realidade tal qual ela era, mas, sim, de formar uma opinião sobre um tema, um modo de ver específico. A própria ideia da peripécia, em Aristóteles (2017)ARISTÓTELES. “Poética”. Trad. Paulo Pinheiro. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017., dá mostras disso, afinal, aquilo que parece ser, sempre será invertido, ao fim, em seu contrário, denotando o afastamento em relação à realidade, na qual aquilo que é simplesmente é. Ou, como diz Barthes, “na verossimilhança, o contrário nunca é impossível” (Barthes, 2012a, p. 189BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.). A nova verossimilhança, por sua vez, é o realismo, diz o autor, e acrescenta: “entenda-se todo discurso que aceita enunciações só creditadas pelo referente” (Barthes, 2012a, p. 189BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.).

Com isso, Barthes estabelece um diálogo com a linguística de seu tempo atribuindo à descrição, bem como à notação insignificante, um estatuto de significante vazio de sentido. Tal ideia se refere à natureza tripartida do signo em uma releitura feita por Émile Benveniste (2005)BENVENISTE, É. “Problemas de linguística geral I”. Trad. M. G. Novak e M. L. Neri. 5ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2005. do signo bipartido de Ferdinand de Saussure (2012)SAUSSURE, F. “Curso de linguística geral”. Trad. A. Chelini, J. P. Paes, I. Blikstein. 34ª ed. São Paulo: Cultrix, 2012.. Se, para este, o signo era dividido em significante e significado, ou seja, entre a imagem acústica e seu sentido, para Benveniste (2005)BENVENISTE, É. “Problemas de linguística geral I”. Trad. M. G. Novak e M. L. Neri. 5ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2005. a linguagem deveria ser pensada no próprio ato, na própria relação imediata, na “referência de situação” (Benveniste, 2005, p. 140BENVENISTE, É. “Problemas de linguística geral I”. Trad. M. G. Novak e M. L. Neri. 5ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2005.), o que lhe forneceria um terceiro elemento: a referência. Benveniste afirma que “é no discurso atualizado em frases que a língua se forma e se configura” (Benveniste, 2005, p. 140BENVENISTE, É. “Problemas de linguística geral I”. Trad. M. G. Novak e M. L. Neri. 5ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2005.).2 2 A influência da linguística de Benveniste é declarada pelo próprio Barthes (2012b), no texto “Por que gosto de Benveniste”. Tal influência é analisada por Carolina Knack (2020), no texto “A linguagem (re)descoberta: contornos prospectivos da leitura barthesiana de Benveniste”, no qual a autora defende que a própria noção de escritura em Barthes teria sido reconfigurada pela leitura da linguística de Benveniste. Em especial, por esse aspecto referencial introduzido no pensamento da linguagem a partir da noção de pessoa, ou seja, da compreensão de que a categoria de sujeito deve ser pensada como uma instância do discurso. Nesse sentido, para Knack, a própria noção de que “o escritor constitui-se como tal na e pela instância de discurso” (2020, p. 713) seria consequência da influência de Benveniste no pensamento de Barthes. Daí surgiriam, ainda, as discussões em torno da morte do autor e da diferença entre escritor e escrevente. Nesse sentido, quando Barthes dá à descrição o estatuto de um significante vazio de sentido, recupera o pensamento de Saussure e de Benveniste para afirmar a ausência de sentido no uso excessivo das palavras. Como afirma o próprio Barthes, “o ‘pormenor concreto’ é constituído pela colusão direta de um referente e de um significante: o significado fica expulso do signo” impedindo, continua o autor, o desenvolvimento da “própria estrutura narrativa” (Barthes, 2012a, p. 189BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.). Esse movimento se dá justamente pelo excesso descritivo, pelas notações escandalosas que parecem não possuir nenhuma outra função a não ser aquela de denotar o real, de dizer, simplesmente, “isso é” ou “isso foi”.3 3 A ideia de tornar presente uma realidade na fórmula “isso foi” reaparecerá no livro “A câmara clara”, de Barthes (2018), no qual o autor defende que haveria uma natureza da fotografia, mais forte do que na escrita, de “ratificar o que ela representa” (2018, p. 72). O autor afirma, ainda, que “o infortúnio (mas, também, talvez, a volúpia) da linguagem é não poder autenticar-se a si mesma. O noema da linguagem talvez seja essa impotência, ou, para falar positivamente: a linguagem é, por natureza, ficcional; para tentar tornar a linguagem inficional é preciso um enorme dispositivo de medidas: convoca-se a lógica ou, na sua falta, o juramento; mas a Fotografia, por sua vez, é indiferente a qualquer revezamento: ela não inventa; é a própria autenticação” (Barthes, 2018, p. 73). Nesse sentido, podemos pensar que toda essa maquinaria de criação do “efeito de real”, sendo construída pelo autor a partir da literatura de Flaubert, daria a ver essa necessidade de um “enorme dispositivo de medidas” que Barthes teria percebido, por comparação, ao analisar a fotografia ou a natureza da fotografia. Ao se coligar de maneira tão direta ao referente, sem se importar com o sentido ou com o que Barthes denomina de “forma do significado” (a própria estrutura narrativa), o significante constitui uma ideia de signo que se coaduna com a ideologia dominante, a da “referência obsessiva ao ‘concreto’ [...] sempre armada como uma máquina de guerra contra o sentido, como se, por uma exclusão de direito, o que vive não pudesse significar – e reciprocamente” (Barthes, 2012a, p. 187BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.).

O realismo, ou o que Barthes denomina de “nova verossimilhança”, opera, assim, uma substituição: a enunciação realista é suprimida em seu sentido de significado de denotação para reaparecer como significado de conotação. Ou seja, o realismo das descrições deixa de designar um sentido direto e literal e passa a fazer referência a atributos implícitos na própria linguagem, para além de qualquer vínculo com a realidade. Barthes conclui, assim, que “a própria carência do significado em proveito só do referente torna-se o significante mesmo do realismo: produz-se um ‘efeito de real’, fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade” (Barthes, 2012a, p. 190BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.).

Barthes faz, com isso, uma crítica ao romance realista, afirmando que este teria, de certa forma, chegado apenas à metade do caminho na crítica à representação. Diz o autor:

A desintegração do signo – que parece ser a grande causa da modernidade – está certamente presente no empreendimento realista, mas de maneira algo regressiva, pois que se faz em nome de uma plenitude referencial, quando se trata, ao contrário, hoje, de esvaziar o signo e afastar infinitamente o seu objeto até colocar em causa, de maneira radical, a estética secular da ‘representação’. (Barthes, 2012a, p. 190BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.).

Para Barthes, o romance realista faria encontrar o referente com sua expressão deixando ausente o significado ou sentido, conseguindo, com isso, desintegrar o signo, mas em nome disso que denomina de uma “plenitude referencial”. Haveria, assim, no realismo, uma espécie de representação sem sentido, compreendida como um modo de colocar apenas uma das partes do signo (o significante) em relação com o referente, mas sem deste abdicar.

Nesse sentido, ao afirmar que haveria uma ideologia dominante – a da concretude do real – expressa na estrutura do texto romanesco de Flaubert, Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a. estaria traçando um diálogo com o trabalho desenvolvido em seu livro “O grau zero da escrita”, no qual o autor (Barthes, 2015BARTHES, R. “O grau zero da escrita”. Trad. M. M. Barahona. Lisboa: Edições 70, 2015.) se empenha em desvincular a escrita da ideologia dominante, a partir da configuração da ideia de uma “escrita neutra”. Esse duplo caráter de um pensamento voltado, ao mesmo tempo, para o fechamento do texto sobre si mesmo e para sua relação com a realidade a partir da denúncia de uma ideologia dominante indica que a leitura de Rancière não estaria equivocada, tal qual denuncia Clerc (2015)CLERC, T. “Barthes apreendido por Rancière”. Criação & crítica, São Paulo, Nr. 14, 2015, pp. 91-104.. Para Clerc, lembremos, Rancière teria sido obrigado “a manter um duplo discurso, por conta da incerteza do sujeito Barthes: Barthes é politicamente cego porque ele é estruturalista; ele é, entretanto, crítico, apesar de ser estruturalista” (Clerc, 2015, p. 94CLERC, T. “Barthes apreendido por Rancière”. Criação & crítica, São Paulo, Nr. 14, 2015, pp. 91-104.). Para Rancière (2017b)RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b., porém, o caráter crítico ou político nada tem a ver com a vinculação ou desvinculação a uma leitura estruturalista. Antes, é a própria ideia de uma separação entre forma e conteúdo do texto que, para Rancière, mascara outra divisão ainda, qual seja, aquela entre estética e política.

André Fabiano Voigt e Miriam Mendonça Martins (2016)VOIGT, A. F., MARTINS, M. M. “Arte, imagem e fotografia: um diálogo possível entre Roland Barthes, Walter Benjamin e Jacques Rancière”. Oficina do historiador, Porto Alegre, Vol. 9, Nr. 1, jan.-jul. 2016, pp. 250-264., no texto “Arte, imagem e fotografia: um diálogo possível entre Roland Barthes, Walter Benjamin e Jacques Rancière”, afirmam que um dos principais pontos de divergência entre Barthes e Rancière é justamente o modo de pensar a relação entre estética e política. Como afirmam Voigt e Martins, “ao considerar que estética e política são campos opostos, o autor [Barthes] parte do princípio de que a imagem fotográfica, no seu sentido puro, é tão distinta que não consegue ser decodificada pelas massas” (Voigt e Martins, 2016, p. 253VOIGT, A. F., MARTINS, M. M. “Arte, imagem e fotografia: um diálogo possível entre Roland Barthes, Walter Benjamin e Jacques Rancière”. Oficina do historiador, Porto Alegre, Vol. 9, Nr. 1, jan.-jul. 2016, pp. 250-264.).

O mesmo vale para os signos da escrita. Enquanto para Barthes a imagem ou o texto só são considerados políticos a partir de um certo contexto ou efeito esperado, para Rancière, estética e política estão entrelaçadas já de partida na partilha do sensível. Como afirma Rancière,

Escrever é o ato que, aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que realiza: uma relação da mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma. [...] Ela [a escrita] é coisa política porque seu gesto pertence à constituição estética da comunidade e se presta, acima de tudo, a alegorizar essa constituição. (Rancière, 2017c, p. 7RANCIÈRE, J. “Políticas da escrita”. Trad. R. Ramalhete, L. E. Vilanova, L. Vassalo e E. A. Ribeiro. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017c.)

E é a partir de tal ideia da escrita que qualquer texto deve ser pensado. Seu caráter político lhe é intrínseco, já que alegoriza a comunidade, sempre a ser reconfigurada. O que interessa, para Rancière, é a questão sobre qual política a escrita ou o texto operam: aquela de uma lógica representativa – pautada na hierarquia entre palavra e imagem, entre real e ficção, entre forma e conteúdo, entre razão e sensível – ou aquela do pensamento estético – no qual o sensível é autônomo, produzindo sentido para qualquer corpo com o qual se encontra, sem a necessidade de um texto ou discurso explicativo de seu sentido. Como interpretam Voigt e Martins, o pensamento estético “postula um dissenso entre intencionalidade do autor e receptividade coletiva; em decorrência disso, não é necessário uma ‘estética fina’ ou um crítico apto para identificar os signos contidos em nenhuma produção artística” (Voigt; Martins, 2016, p. 259VOIGT, A. F., MARTINS, M. M. “Arte, imagem e fotografia: um diálogo possível entre Roland Barthes, Walter Benjamin e Jacques Rancière”. Oficina do historiador, Porto Alegre, Vol. 9, Nr. 1, jan.-jul. 2016, pp. 250-264.).

Para Rancière, estética e política não se separam, pois dizem respeito a um modo de configuração do sensível a partir do qual se estabelece uma ordenação dos corpos em sociedade. A política diz respeito aos modos de visibilidade dos corpos, ao que o autor denomina de “partilha do sensível”:

um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. (Rancière, 2009, pp. 16-17RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.)

Assim, a “partilha do sensível” operada pelo pensamento de Barthes em torno da escrita flaubertiana seria aquela da representação, cujas hierarquias e regras configurariam uma série de oposições que dizem respeito à ordenação política da sociedade. Divisões entre realidade e ficção, forma e conteúdo, razão e sensível, que fundamentariam uma divisão entre duas inteligências diversas. O pensamento estético de Rancière, que recusa a lógica representativa do pensamento de Breton, D’Aurevelly e Barthes, opera como uma “refutação sensível dessa oposição entre a forma inteligente e a matéria sensível que constitui, no fim das contas, a diferença entre duas humanidades” (Rancière, 2005, p. 25RANCIÈRE, J. “Sobre políticas estéticas”. Trad. M. Arranz. Barcelona: Servei de Publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, 2005.).

Para Rancière, Barthes, ao tentar resistir ao pensamento representativo, acabaria por reafirmá-lo com sua leitura estruturalista e desmistificadora da ideologia dominante. O que está em jogo na crítica de Rancière a Barthes é justamente o estatuto da descrição, aquela que o autor estruturalista havia logo afirmado como equivalente à notação insignificante. Barthes teria banido a descrição para fora do campo do sentido e da significação para, logo em seguida, trazê-la de volta sob a ideia de uma significação da insignificância. Para Rancière, esse pensamento que coloca a descrição do lado de fora da razão é o que impede Barthes de perceber o caráter político da literatura flaubertiana e de sua busca por fazer um livro sobre nada.4 4 Referimo-nos aqui à carta destinada a Louise Colet, amiga e correspondente, para quem Flaubert escreve: “o que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem apego exterior, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a terra, sem ser sustentada, se mantém no ar, um livro que quase não teria um tema ou, pelo menos, onde o tema seria quase invisível, se isso fosse possível” (Flaubert, 2017).

A revolução literária e o efeito de igualdade em Rancière

Contrariando a leitura de Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a., Ranciére afirma que o realismo romanesco operou uma ruptura radical em relação à ordem representativa e as consequências dessa revolução podem ser sentidas em um campo ao mesmo tempo estético e político. Não se trata, para Rancière, de um retorno da verossimilhança sob outra forma, tal qual afirmada por Barthes (2012a)BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a., tampouco de uma insistência por indiciar o real. Antes, trata-se de pensar que as descrições realistas rompem com aquilo que era o cerne da ordem representativa, a saber, a hierarquia da ação. E essa ruptura, diz Rancière,

está ligada ao que é o centro das intrigas romanescas do século dezenove: a descoberta de uma capacidade inédita dos homens e das mulheres do povo de obter formas de experiência que lhes eram, até então, recusadas. Barthes e os representantes da tradição crítica ignoraram essa reviravolta porque seus pressupostos modernistas e estruturalistas ainda estavam ancorados na tradição representativa que eles pretendiam denunciar. (Rancière, 2017b, p. 19RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.)

Está em jogo uma divergência na própria noção de representação. Se, para Barthes, como vimos, ela é interpretada de um ponto de vista linguístico, para Rancière a questão é de ordem filosófica: não uma oposição entre significado e significante, entre forma e conteúdo, entre razão e sensível, entre imaginação e realidade, mas, sim, entre duas formas de pensamento. Sem se preocupar com a natureza tripartida do signo, a compreensão da representação estará longe de designar o modo como significante, significado e referente se relacionam. A representação, para Rancière, não é uma relação do signo com o real, tampouco uma prescrição que diz aquilo que a arte deve fazer – cópias semelhantes aos modelos. Ela é um “regime de identificação das artes”, ou seja, um modo de pensamento e de visibilidade que faz a arte aparecer sob uma determinada configuração. Como afirma Rancière,

não há arte, evidentemente, sem um regime de percepção e de pensamento que permita distinguir suas formas como formas comuns. Um regime de identificação da arte é aquele que põe determinadas práticas em relação com formas de visibilidade e modos de inteligibilidade específicos. (Rancière, 2005, p. 22RANCIÈRE, J. “Sobre políticas estéticas”. Trad. M. Arranz. Barcelona: Servei de Publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, 2005., tradução nossa)

Aquilo mesmo que compreendemos como arte em um determinado espaçotempo é definido a partir desse sensorium comum que estabelece “um modo de articulação entre as maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações” (Rancière, 2009, p. 13RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.). A arte, assim, não é uma figura fixa que perpassa a história e os espaços destinados a ela; antes, ela é uma figura em constante transformação, sempre a ser repensada a partir das relações que estabelece com a não arte, a partir dos espaços nos quais suas linhas se encontram com o cotidiano da vida comum. E essa configuração que predomina em certos espaços-tempos é justamente o que Rancière denomina de “regime de identificação das artes”.

Assim, a representação, em Rancière, surge como uma questão filosófica expressa “pela elaboração aristotélica da mímesis e pelo privilégio dado à ação trágica” (Rancière, 2009, p. 30RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.). Aristóteles, no início de sua “Poética”, define as diversas artes poéticas como aquelas que, mesmo diferindo em seus meios, objetos e modos, “são, tomadas em seu conjunto, produções miméticas” (Aristóteles, 2017, pp. 37-39ARISTÓTELES. “Poética”. Trad. Paulo Pinheiro. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017.). Aristóteles aponta, ainda, que não se pode afirmar que Homero e Empédocles, por terem em comum o uso da métrica, sejam, ambos, poetas. Afinal, o primeiro usa a métrica para imitar as ações dos homens; enquanto o segundo usa a métrica para expor questões médicas ou científicas, devendo-se, assim chamá-lo de naturalista e não de poeta. Com isso, Aristóteles (2017)ARISTÓTELES. “Poética”. Trad. Paulo Pinheiro. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017. traça um corte na distribuição dos fazeres, levando a questão da mímesis para longe do que era sintetizado pelo pensamento de Platão, para quem, como afirma Rancière, a mímesis estava relacionada à “verificação habitual dos produtos das artes por meio de seu uso” ou, ainda, à “legislação da verdade sobre os discursos e as imagens” (Rancière, 2009, p. 30RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.). Para Platão (2010)PLATÃO. “A república”. Trad. J. Guinsburg. 1ª reimp. São Paulo: Perspectiva, 2010., como vemos em “A República”, a mímesis é a cópia de um modelo sempre anterior cujo caráter de verdade é o que se pretende conhecer. Entre a mímesis feita pelo poeta, pelo artífice e pelo filósofio, há uma mesma mediação: aquela da verdade e do modelo. Aquilo que faz diferir essas três mímesis é a distância em relação ao modelo, é a maior ou menor capacidade de alcançar a verdade.5 5 O pensamento de Platão, para Rancière (2009), é a expressão ainda de um outro regime de identificação das artes, do qual não trataremos aqui em detalhes. Trata-se de compreendê-lo como um regime no qual estão em questão a origem e a destinação das imagens. Não existindo, nele, a arte em um sentido autônomo, as imagens em geral são pensadas a partir do modo como podem corroborar ou desviar a ordenação da sociedade. Entra em questão a conhecida cena da expulsão dos poetas na República de Platão (2010), cujo embaralhamento produzido por aqueles que fazem imitações é visto como maléfico para a ordenação da república. É essa mediação única em torno da mímesis que Aristóteles rompe ao afirmar que a produção mimética é exclusiva às artes poéticas, criando, com isso, um mundo do fazer artístico apartado.

Como afirma Rancière,

A poética clássica da representação quis, contra o rebaixamento platônico da mímesis, dotar o ‘plano’ da palavra ou do ‘quadro’ de uma vida, de uma profundidade específica, como manifestação de uma ação, expressão de uma interioridade ou transmissão de um significado. Ela instaurou entre palavra e pintura, entre dizível e visível uma relação de correspondência à distância, dando à ‘imitação’ seu espaço específico. (Rancière, 2009, p. 22RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.)

Mas esse espaço específico da arte instaurou uma série de divisões, regras e hierarquias que, como afirma Rancière (2009)RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009., dizem respeito à partilha política da comunidade. Aristóteles (2017)ARISTÓTELES. “Poética”. Trad. Paulo Pinheiro. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017. define que a mímesis é sempre a imitação das ações dos homens: “é o ‘feito’ do poema, a fabricação de uma intriga que orquestra ações representando homens agindo, que importa, em detrimento do ‘ser’ da imagem, cópia interrogada sobre seu modelo” (Rancière, 2009, p. 30RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.). Nesse desvio operado pelo pensamento de Aristóteles, instaurou-se uma separação entre dois modos de encadeamento dos acontecimentos. Rancière aponta como o regime representativo configurou um princípio “que declara a construção de um encadeamento causal verossímil mais racional que a descrição dos fatos ‘como eles acontecem’” (Rancière, 2017b, p. 21RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.). E, continua o autor, essa separação entre dois tipos de encadeamentos teria, ainda, engendrado duas naturezas diversas, duas humanidades: aquela que age, modificando a ordem das coisas, e aquela que permanece passiva, observando a passagem dos dias preenchidos por ocupações banais. Essa divisão, que diz respeito àquilo que a arte faz – imitar as ações dos grandes homens –, acaba, assim, como afirma Rancière, por configurar outra divisão que extravasa o campo da arte em direção ao espaço político. Afinal, como afirma Rancière,

A distinção poética entre dois tipos de encadeamentos dos acontecimentos se baseia em uma distinção entre dois tipos de humanidade. O poema, segundo Aristóteles, é uma organização de ações. Mas a ação não é simplesmente o fato de fazer algo. É uma categoria organizadora de uma divisão hierárquica do sensível. Segundo essa divisão, há homens ativos, homens que vivem ao nível da totalidade porque são capazes de conceber grandes fins e de tentar realizá-los enfrentando outras vontades e golpes do acaso. E há homens que simplesmente veem as coisas lhes acontecer, uma depois da outra, porque vivem na simples esfera da reprodução da vida cotidiana e porque suas atividades são, pura e simplesmente, meios para assegurar essa reprodução. Estes últimos são chamados de homens passivos ou ‘mecânicos’, não por não fazerem nada, mas apenas por não fazerem nada além de fazer, sendo excluídos da ordem dos fins que é o da ação. Esse é o âmago político da política representativa. (Rancière, 2017b, p. 21RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.)

O desvio operado pelo regime estético, assim, diz respeito à recusa de uma “partilha do sensível” que separa os homens que se perdem na reprodução banal dos fazeres sem fins daqueles outros homens cujas ações nunca são vazias ou desprovidas de sentido, mas, antes, sempre direcionadas a um fim. Essa é a questão: a ação não é sinônimo do fazer, mas, sim, da organização do fazer ou dos acontecimentos segundo a ordem dos fins. A finalidade em Aristóteles é aquilo que organiza o modo de pensamento. Assim, para Rancière, a insistência de Barthes em encontrar finalidades em cada parte do texto – e, até mesmo no caso dos elementos insignificantes, encontrar “a significação dessa insignificância” (Barthes, 2012a, p. 184BARTHES, R. “O efeito de real”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012a.) – seria a continuação dessa saga aristotélica. Para Rancière, Barthes – com sua ideia de que o “efeito de real” seria uma espécie de retorno da verossimilhança sob outra forma – perpetua a separação entre duas humanidades determinada pelo princípio da ação. Afinal, como afirma Rancière, “a verossimilhança, que é o âmago da poética representativa, não está ligada apenas à relação entre as causas e os efeitos. Ela também está ligada às percepções e aos sentimentos, aos pensamentos e às ações esperadas de um indivíduo segundo sua condição pessoal” (Rancière, 2017b, p. 22RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.). Assim, afirmar outra espécie de verossimilhança que teria como função ou significância produzir um “efeito de real” é perpetuar não apenas as regras internas da poética aristotélica, mas, também, a política da arte que ela opera, a “partilha do sensível” que ela configura.

Para Rancière, o barômetro, bem como as infinitas descrições flaubertianas que marcaram a literatura romanesca, expressam não um “efeito de real”, mas, antes, um “efeito de igualdade”. Com a ruptura em relação às hierarquias e às regras do regime representativo, a literatura teria operado aquilo que o autor compreende como uma “revolução literária”, um transtorno capaz de embaralhar a divisão dos corpos em sociedade, fazendo chegar a qualquer um os sentimentos que antes não lhe eram destinados. Essa revolução, diz Rancière, criou “afetos novos, embaralhando a narrativa das paixões, a etiologia de suas causas, as formas de suas expressões e sua destinação a determinada condição social” (Rancière, 2017a, p. 24, tradução nossa). No “regime estético”, qualquer corpo pode se encontrar com as paixões e os sentimentos; indivíduos de qualquer condição social podem experienciar o sensível. Como afirma Rancière, retornando ao livro de Flaubert,

esse é o transtorno causado pelo relato atravancado do famoso barômetro. ‘Um coração simples’ é a história de uma pobre criada cuja existência monótona é marcada por uma série de paixões infelizes ligadas, sucessivamente, a um namorado, a um sobrinho, à filha de sua patroa e, para terminar, a um papagaio. É nesse contexto que o barômetro ganha seu sentido. Ele não está lá para atestar que o real é bem real. Porque a questão não é saber se o real é real. É saber a textura desse real, ou seja, o tipo de vida que é vivido pelos personagens. (Rancière, 2017b, pp. 24-25RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.)

O transtorno ao qual se refere Rancière é a operação de uma confusão na antiga divisão da sensibilidade. Os sentimentos destinados às “almas de ouro” veem-se misturados de tal forma às emoções das “almas de ferro destinadas às atividades prosaicas” (Rancière, 2017b, p. 24RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.), que a própria divisão entre esses dois tipos de humanidades é embaralhada.

“Um coração simples” é mais um dos textos desestruturados de Flaubert, no qual as partes nem sempre se coadunam com o todo; e, por isso mesmo, é, também, uma textura sensível na qual as paixões se destinam a qualquer corpo que as desejar viver. As “notações insignificantes” perseguidas por Barthes em seu intento de lhes dar um sentido não estão ali para dividir o mundo entre os ricos e os pobres, entre aqueles a quem os nobres sentimentos estão destinados e aqueles outros a quem cabe apenas o trabalho árduo do corpo. Não se trata de, com as descrições e detalhes, fornecer ao leitor provas de uma realidade que se quer expressar. Para Rancière, o barômetro e tantos outros elementos descritivos da narrativa estão ali para partilhar uma textura sensível: a textura da vida de “qualquer um”. E, podemos dizer, o poder da escrita descritiva é justamente esse de partilhar um comum, de construir – e não de reconstituir ou representar – o real.

Como afirma Rancière, o barômetro da sra. Aubain, na narrativa de Flaubert, irá marcar

o elo dessas existências obscuras com o poder dos elementos atmosféricos, as intensidades do sol e do vento e a multiplicidade dos acontecimentos sensíveis cujos círculos se ampliam no infinito. O mundo dos trabalhos e dos dias não é mais o da sucessão e da repetição opostas à grandeza da ação e de seus fins. Ele é a grande democracia das coexistências sensíveis que evoca a estreiteza da ordem antiga das consequências causais e das conveniências narrativas e sociais. (Rancière, 2017b, p. 25RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.)

O “efeito de igualdade”, assim, não pressupõe uma divisão entre forma e conteúdo, entre realidade e ficção. Com a revolução literária operada pelo realismo, “o real não é mais um espaço de desenvolvimento estratégico para os pensamentos e as vontades. Ele é a cadeia das percepções e dos afetos que tecem esses pensamentos e essas vontades” (Rancière, 2017b, p. 29RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.). Como afirma Rancière, o que se instaura é o que um crítico de Flaubert, Armand de Pontmartin, denominava, pejorativamente, de “democracia literária”, que “quer dizer gente demais, excesso de personagens semelhantes a todos os outros, indignos, portanto, de serem distinguidos pela ficção” (Rancière, 2017b, p. 22RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.). Rancière vê, justamente nesse excesso da “democracia literária”, a política ou a partilha do sensível que essa nova ficção opera. Se, para Pontmartin, a democracia na literatura dá provas de um tempo no qual não se sabe mais fazer a “boa poética”, para Rancière, ela dá mostras, ao contrário, do surgimento da literatura, compreendida como um regime da palavra ou da escrita no qual o princípio da ação – que estruturava um certo tipo de narrativa e uma ordem política – é rompido. Aquilo que era apontado como um excesso de quadros imóveis é, no realismo, a textura sensível do real, é a “partilha do sensível” desenhada por nossos modos de viver e de pensar tanto quanto pela escrita literária. O que é próprio à literatura é aquilo que Rancière (2017c)RANCIÈRE, J. “Políticas da escrita”. Trad. R. Ramalhete, L. E. Vilanova, L. Vassalo e E. A. Ribeiro. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017c. denomina de “ser literário” ou de “literaridade”, ou seja, um poder da palavra de, ao se destituir das regras e hierarquias da representação, circular livremente, desviando os corpos de suas funções, redesenhando as vidas dos quaisquer. Como afirma Rancière, “o ser da literatura seria o ser da língua onde esta se furta às ordenações que dão aos corpos vozes próprias para colocá-los em seu lugar e em sua função: uma perturbação na língua análoga à perturbação democrática dos corpos quando só a contingência igualitária os põe juntos” (Rancière, 2017c, p. 31RANCIÈRE, J. “Políticas da escrita”. Trad. R. Ramalhete, L. E. Vilanova, L. Vassalo e E. A. Ribeiro. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2017c.).

A “democracia ficcional” do realismo, denunciada por Pontmartin e outros críticos da época, é pensada por Rancière como a capacidade da escrita e da palavra de operar uma igualdade. Mas não se trata, como o autor (Rancière, 2014RANCIÈRE, J. “Aux bords du politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 1998. Trad. J. P. Cachopo. Lisboa: KKYM, 2014.) analisa em “Nas margens do político”, de uma igualdade compreendida como um passado perdido para o qual deveríamos retornar; tampouco da igualdade compreendida como um ponto futuro para o qual deveríamos caminhar. Antes, diz Rancière, “a democracia ficcional coloca em ação uma forma bem específica de igualdade: a das frases que carregam o poder de união do todo, o poder igualitário da respiração comum que anima a multiplicidade dos acontecimentos sensíveis” (Rancière, 2017b, p. 35RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.). Aquilo que Barthes vê como o “efeito de real” é apontado por Rancière como um “efeito de igualdade”; dessa igualdade específica que as palavras compartilham com as vidas “quaisquer”.

Considerações finais

Retornamos, assim, à nossa hipótese inicial, qual seja, que a crítica de Rancière a Barthes baseia-se em uma divergência em relação à noção de representação, que daria a ver, ainda, a distância entre dois modos diversos de pensar a política. Para Rancière, haveria, do lado da representação, “a lógica das identidades sociais e das relações causais” (Rancière, 2017b, p. 37RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.), apontando para um estatuto da descrição no qual o excesso de palavras corre sempre o risco de interromper a causalidade da ação, na medida em que deveria servir apenas para criar uma ambiência e identificar os personagens. A política da escrita representativa é aquela que divide forma e conteúdo, razão e sensível e, com isso, perpetua, ainda, outra divisão: aquela entre duas humanidades diversas, duas inteligências diversas. Só seriam capazes de conhecer a verdade por trás das aparências aqueles que, não se deixando enganar pelas aparências sensíveis, teriam o domínio da razão. Ideia que ressoa o pensamento de Barthes que, como afirma Voigt, “subestima a capacidade de julgamento estético das massas. O semiólogo francês, como já vimos, afirma que o grande público é incapaz de captar o sentido agudo de algumas fotos” (Voigt, 2016, p. 256VOIGT, A. F., MARTINS, M. M. “Arte, imagem e fotografia: um diálogo possível entre Roland Barthes, Walter Benjamin e Jacques Rancière”. Oficina do historiador, Porto Alegre, Vol. 9, Nr. 1, jan.-jul. 2016, pp. 250-264.). Assim, seu pensamento em torno do signo mascara uma hierarquia das inteligências contra a qual Rancière se posiciona.

Nesse sentido, a crítica de Clerc (2015)CLERC, T. “Barthes apreendido por Rancière”. Criação & crítica, São Paulo, Nr. 14, 2015, pp. 91-104. à suposta confusão rancieriana em relação à dupla posição de Barthes pode ser assim respondida: tanto o viés estruturalista de Barthes quanto seu caráter crítico configuram uma política da escrita avessa àquela pensada por Rancière. Por um lado, seria preciso todo um arcabouço linguístico para se ter acesso a uma suposta totalidade do texto – conhecer as ferramentas para a análise estrutural da narrativa, em busca, até mesmo, da “significação da insignificância”. Por outro, partindo de seu viés crítico, o leitor comum estaria sempre sob o risco de se enganar pelas aparências ideológicas do texto, que esconderiam, sob suas engrenagens, a verdadeira configuração social e política à qual a literatura estaria associada. Assim, tanto o Barthes estruturalista quanto o crítico, ou mesmo esse que ocupa uma dupla posição, expressariam uma mesma política da escrita: aquela que configura uma “partilha do sensível” desigual. A divisão entre ficção e realidade que sustenta o “efeito de real” barthesiano tem, assim, como consequência uma configuração política desigual.

Em contrapartida, diz Rancière, haveria um outro modo de pensamento, o estético, capaz de recusar a lógica representativa e sua política. A revolução literária teria colocado em movimento “a lógica dos estados sensíveis coexistentes” (Rancière, 2017b, p. 37RANCIÈRE, J. “O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna”. Trad. M. Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2017b.), a partir da qual a descrição surge como a potência da escrita de configurar um mundo sensível, de construir pontes entre o mundo da causalidade e o mundo da igualdade da experiência sensível. Nessa escrita como “partilha do sensível” a descrição deixa de ser vista como excesso a ser extirpado ou expulso para fora do sentido – como o fez Barthes. Se sua capacidade de interromper a causalidade do fio narrativo era condenada, agora passará a ser vista como o poder da escrita de criar um outro modo de pensar, ver e viver a vida. O “efeito de igualdade” proposto por Rancière nada tem a ver com mostrar a verdade por trás das aparências, tampouco com conscientizar aqueles que seriam incapazes de ver por si sós o que elas escondem. A recusa da divisão entre realidade e ficção implica pensarmos outra política da escrita. Nela, como afirma Andrea Soto Calderón, “a noção de aparência não é algo que se opõe ao real, nem ao verdadeiro, mas, sim, algo que faz parte de sua constituição” (2020, p. 41, tradução nossa). A política, assim, trata de reconfigurar essa aparência sensível para tornar visíveis aqueles que não o eram, trata de configurar uma “partilha do sensível” na qual “qualquer um” pode viver uma experiência sensível. Não se trata de conhecer ou dominar a razão para ter acesso à verdade das aparências, mas, antes, de simplesmente ter uma experiência. Como afirma Calderón, a política, em Rancière, não tem a ver com

conhecimento ou desconhecimento, mas sim com a posição de um corpo e com a colocação em jogo das capacidades desses corpos. Substitui a questão do desconhecimento pela do tempo: se estamos onde estamos não é por falta de saber, mas por falta de tempo – o dominado não possui tempo. A partir daí, para o autor, a emancipação não é uma ‘tomada de consciência’, mas, sim uma mudança de posição ou de competência. (Calderón, 2020, p. 38CALDERÓN, A S. “Los bordes de la representación”. Theory now: journal of literature, critique and thought, Vol. 3, Nr. 1, jan.-jun. 2020, pp. 30-49., tradução nossa)

Não se trata, portanto, de ultrapassar as aparências para alcançar a verdade da realidade, mas, sim, de configurar outra temporalidade a partir da experiência sensível que pode ser vivida por “qualquer um”. Daí a importância do “momento qualquer” sobre o qual Rancière afirma ser “o elemento de um tempo duplamente inclusivo: um tempo da coexistência [...], um tempo partilhado que já não conhece hierarquia entre aqueles que o ocupam” (Rancière, 2021, p. 138RANCIÈRE, J. “Les bords de la fiction”. Paris: Éditions du Seuil, 2017a. Trad. port. F. Scheibe. São Paulo: Editora 34, 2021.); um tempo no qual a literalidade, própria às palavras no regime estético, pode encontrar-se com os corpos para desviá-los das hierarquias que lhes são impostas. Félicitè, a personagem de “Um coração simples”, é apenas uma pobre mulher cujo destino não interessa pela ligação que opera em relação ao mundo dos fins e das ações, mas, sim, por aquilo que compartilha com a vida de “qualquer um”, por embaralhar a divisão entre as duas humanidades ao configurar outra temporalidade.

  • *
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 1
    Em 1857, alguns meses após a publicação de “Madame Bovary” em formato de folhetim, Gustave Flaubert foi acusado e processado pelo Estado francês. A acusação afirmava dois crimes e fornecia a direção para encontrá-los na história da personagem Emma Bovary: “a ofensa à moral pública está nos quadros lascivos que porei sob vossos olhos, a ofensa à moral religiosa, nas imagens voluptuosas misturadas às coisas sagradas” (França, 1857FRANÇA. Le Ministère Public. “Procès de Madame Bovary. Réquisitoire de M. L’Avocat Impérial, Ernest Pinard”. Gustave Flaubert. 1857 [Online]. Disponível em: http://faubert.univ-rouen.fr/oeuvres/mb_pinard.php (Acessado em 12 de maio de 2021).
    http://faubert.univ-rouen.fr/oeuvres/mb_...
    , on-line, tradução nossa). O processo ficou famoso e movimentou a cidade de Paris com artigos sobre o caso publicados nos jornais e discussões acaloradas.
  • 2
    A influência da linguística de Benveniste é declarada pelo próprio Barthes (2012b)BARTHES, R. “Por que gosto de Benveniste”. In: O rumor da língua. Trad. M. Laranjeira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012b., no texto “Por que gosto de Benveniste”. Tal influência é analisada por Carolina Knack (2020)KNACK, C. “A linguagem (re)descoberta: contornos prospectivos da leitura barthesiana de Benveniste”. Revista Linguagem e Ensino, Pelotas, Vol. 23, Nr. 3, Jul.-Set. 2020, pp. 702-719., no texto “A linguagem (re)descoberta: contornos prospectivos da leitura barthesiana de Benveniste”, no qual a autora defende que a própria noção de escritura em Barthes teria sido reconfigurada pela leitura da linguística de Benveniste. Em especial, por esse aspecto referencial introduzido no pensamento da linguagem a partir da noção de pessoa, ou seja, da compreensão de que a categoria de sujeito deve ser pensada como uma instância do discurso. Nesse sentido, para Knack, a própria noção de que “o escritor constitui-se como tal na e pela instância de discurso” (2020, p. 713) seria consequência da influência de Benveniste no pensamento de Barthes. Daí surgiriam, ainda, as discussões em torno da morte do autor e da diferença entre escritor e escrevente.
  • 3
    A ideia de tornar presente uma realidade na fórmula “isso foi” reaparecerá no livro “A câmara clara”, de Barthes (2018)BARTHES, R. “A câmara clara: nota sobre a fotografia”. Trad. Júlio Castañon Guimarães. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018., no qual o autor defende que haveria uma natureza da fotografia, mais forte do que na escrita, de “ratificar o que ela representa” (2018, p. 72). O autor afirma, ainda, que “o infortúnio (mas, também, talvez, a volúpia) da linguagem é não poder autenticar-se a si mesma. O noema da linguagem talvez seja essa impotência, ou, para falar positivamente: a linguagem é, por natureza, ficcional; para tentar tornar a linguagem inficional é preciso um enorme dispositivo de medidas: convoca-se a lógica ou, na sua falta, o juramento; mas a Fotografia, por sua vez, é indiferente a qualquer revezamento: ela não inventa; é a própria autenticação” (Barthes, 2018, p. 73BARTHES, R. “A câmara clara: nota sobre a fotografia”. Trad. Júlio Castañon Guimarães. 7ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.). Nesse sentido, podemos pensar que toda essa maquinaria de criação do “efeito de real”, sendo construída pelo autor a partir da literatura de Flaubert, daria a ver essa necessidade de um “enorme dispositivo de medidas” que Barthes teria percebido, por comparação, ao analisar a fotografia ou a natureza da fotografia.
  • 4
    Referimo-nos aqui à carta destinada a Louise Colet, amiga e correspondente, para quem Flaubert escreve: “o que me parece belo, o que eu gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem apego exterior, que se sustentaria pela força interna de seu estilo, como a terra, sem ser sustentada, se mantém no ar, um livro que quase não teria um tema ou, pelo menos, onde o tema seria quase invisível, se isso fosse possível” (Flaubert, 2017FLAUBERT, G. “Lettre de Flaubert à Louise Colet (1846)”. Correspondência eletrônica de Flaubert. Ed. Yvan Leclerc e Danielle Girard, 2017 [Online]. Disponível em: https://faubert.univ-rouen.fr/jet/public/correspondance/trans.php?corpus=correspondance&id=9900&mot=&action=M (Acessado em 12 de maio de 2021).
    https://faubert.univ-rouen.fr/jet/public...
    ).
  • 5
    O pensamento de Platão, para Rancière (2009)RANCIÈRE, J. “Le partage du sensible: esthétique et politique”. Paris: La Fabrique-éditions, 2000. Trad. port. M. C. Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009., é a expressão ainda de um outro regime de identificação das artes, do qual não trataremos aqui em detalhes. Trata-se de compreendê-lo como um regime no qual estão em questão a origem e a destinação das imagens. Não existindo, nele, a arte em um sentido autônomo, as imagens em geral são pensadas a partir do modo como podem corroborar ou desviar a ordenação da sociedade. Entra em questão a conhecida cena da expulsão dos poetas na República de Platão (2010)PLATÃO. “A república”. Trad. J. Guinsburg. 1ª reimp. São Paulo: Perspectiva, 2010., cujo embaralhamento produzido por aqueles que fazem imitações é visto como maléfico para a ordenação da república.

Referências

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  • MOTTA, L. T.; FONTANARI, R. “Roland Barthes in Camera Lucida, the unfaithful semiologist”. Matrizes, Vol. 6, Nr. 1 e 2, jul.-dez. 2012, pp. 161-168.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2021
  • Aceito
    12 Jul 2022
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