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O OPUS POSTUMUM DE KANT ENTRE A CONDICIONALIDADE EMPÍRICA E A INDETERMINAÇÃO TRANSCENDENTAL

KANT'S OPUS POSTUMUM BETWEEN EMPIRICAL CONDITIONALITY AND TRANSCENDENTAL INDETERMINATION

RESUMO

Este trabalho discute o status crítico-sistemático da argumentação kantiana no manuscrito intitulado Opus postumum. A primeira seção apresenta os elementos que compõem o rigor conceitual de Kant em sua metodologia de redação e contrasta esses elementos com a estrutura argumentativa do Opus postumum. A segunda seção considera a condição história do manuscrito quanto às suas ordenação e presença/ausência de elementos probatórios. A terceira seção pondera a situação filosófica do Opus postumum no que diz respeito à sua contextualização (pós)crítica. A conclusão apresentada é a de que a limitação probatória e a condição histórica do manuscrito do Opus postumum determinam a sua natureza filosófica: ele sempre será passível de uma interpretação de necessidade transcendental condicionada pela contingência empírica.

Palavras-chave
filosofia crítica; idealismo alemão; conhecimento a priori; argumentação transcendental; estruturação argumentativa

ABSTRACT

This paper contends with the critical-systematical status of Kant’s argumentation in the manuscript known as Opus postumum. At first, the elements holding Kant’s conceptual accuracy in his writing methodology and the contrast of these elements to the argumentative structure of the Opus postumum are set forth. After that, the historical condition of the manuscript in what matters to ordering and presence/absence of proofs is taken into account. Finally, the philosophical situation of the Opus postumum regarding its (post-)critical contextualization is brought into discussion. The conclusion reached is that the limitation of proofs and the historical condition of the manuscript determine its philosophical nature: it will always be susceptible to an interpretation which on its own is transcendentally necessary and, at the same time, contingentempirically conditioned.

Keywords
critical philosophy; German idealism; a priori knowledge; transcendental argumentation; argumentative structuring

Introdução

Já na primeira apresentação do seu pensamento crítico-transcendental, Kant precisa ao leitor que a sistematicidade desse pensamento se dá na determinação do alcance da razão quando lhe são suprimidas “[...] toda matéria e toda assistência da experiência” (Kant, KrV, A XIV_____. (1781/1787) “Kritik der reinen Vernunft” [KrV]. Hrsg. von Raymundé Schmidt. Hamburg: Meiner, 1998. Trad. Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes, 2018.). Para levar a cabo a investigação do status da argumentação daquela última obra que viria a compor tal sistematicidade da empreitada crítica - e que, contudo, ficou conhecida apenas como um manuscrito denominado Opus postumum -, partese de duas questões e das suas respostas no contexto do pensamento críticotranscendental: (i.) Pode o empírico justificar o transcendental? Não! Pode o empírico determinar a condição (humana) de justificação do transcendental? Sim!

A partir da resposta afirmativa à última questão, pretende-se pontuar dois elementos, de fato não operantes naquele contexto unicamente importante para qualquer interesse genuinamente filosófico no sentido kantiano - a saber, o contexto transcendental - mas que, quanto ao Opus postumum, determinam decisivamente se (e como) se deve ler esse texto enquanto parte integrante do pensamento crítico-transcendental.

A consideração da argumentação do Opus postumum será dividida em três momentos: pontua-se, inicialmente, quanto aos dois referidos elementos de caráter empírico, (i.) a metodologia específica de Kant para redação de suas obras e a situação do manuscrito conhecido como Opus postumum em relação a tal metodologia e (ii.) o histórico desse manuscrito no decurso de mais de treze décadas de manuseio sem um definido interesse sistemático de editoração e publicação; investiga-se, por fim, quanto ao caráter propriamente transcendental da argumentação kantiana, (iii.) o status do manuscrito face à argumentação crítica e à argumentação do idealismo pós-kantiano.

Quanto aos dois primeiros momentos, caberá questionar uma posição defendida, já em 1860, por Kuno Fischer, e que, de uma maneira ou de outra, transcorre com determinadas posições da literatura até a atualidade: de que a argumentação de Kant, no manuscrito do Opus postumum, teria um fundamento empírico-patológico, o qual só se explicaria pela velhice e pela perda das faculdades mentais do seu redator.1 1 Kuno Fischer argumenta: “[p]ode-se duvidar do valor dessa obra [mesmo] sem inspeção prévia, se se considerar o estado frágil que Kant estava naquele momento, e a completude à qual ele próprio havia sido conduzido pela filosofia que ele tinha fundado [...]. Homens competentes que, logo após a morte de Kant, leram o manuscrito muito volumoso, testemunharam que ele meramente repete conteúdos de seus escritos anteriores numa maneira que denota decrepitude” (Fisher, 1869, p. 83 apud Förster, 1993, p. xviii). A partir do próprio comentário de Fischer, já se desconfia do fato de que, conforme justifica Félix Duque (1983, p. 20), para aquele, o Opus postumum se trata de uma “[...] obra que não havia absolutamente lido”. Sobre a retomada dessa posição na atualidade, veja-se: Henrich (1992, p.6): “[...] na velhice [...] ele [Kant] começou a perder a capacidade de controlar seus pensamentos e frases” e Henrich (2003, p. 52): “[e]m razão da sua idade, ele [Kant] não conseguia escrever mais de uma frase sem perder a linha do seu pensamento. Isso era muito doloroso para ele, já que precisava ficar começando do zero”.

Quanto ao último momento, caberá defender que não há como estruturar, a partir do manuscrito, um argumento filosoficamente convincente para defender que a argumentação do Opus postumum contradiz a argumentação crítica e/ ou condiz à argumentação do idealismo pós-kantiano. O alvo principal de contraposição, nesse sentido, é Eckart Förster, intérprete que ocupa uma posição ímpar na literatura, devido à conjunção do seu exímio conhecimento do texto do Opus postumum com a sua insistente interpretação deste à luz do idealismo posterior a Kant.

1. A metodologia kantiana de redação e o Opus postumum

Com os alunos de Kant, que, ainda antes da estruturação probatória que compõe o pensamento crítico, assistiam às suas Vorlesungen über Anthropologie na década de 1770, conhece-se o plano metodológico de qualquer escrito kantiano levado a público:

[...] deve-se ter à mão uma folha de papel dobrada ao meio, na qual se vai registrando indiscriminadamente [promiscue] todas as imagens [Bilder] que dizem respeito à matéria. Além disso, também é preciso fazer alguns intervalos enquanto se pensa, os quais contribuem de maneira extraordinária para o descanso e o fortalecimento da imaginação. Deve-se também evitar reler com frequência aquilo que se escreveu. Não se deve ler sobre o assunto, mas pensar apenas na própria coisa [investigada] e reunir imagens. Quando ali se encontrarem todos os materiais de nosso assunto, surgirá em nós, mediante a [sua] leitura, um esquema que formularemos em frases curtas e emendadas sem coerção. Caso o esquema esteja correto, recorremos ao nosso catálogo de imagens [unserm Bilder Magazin]. Anotamos, então, a matéria sem ponderação e, se logo nos ocorre alguma outra coisa, deixamos um espaço e, com uma palavra, assinalamos, na margem, o que deverá vir no meio. Então, reescreve-se, completa-se aquilo que se sente faltar, copia-se mais uma vez, pule-se aqui e ali, e está pronto (Kant, V-Anth_____. (1772-1779) “Vorlesungen über Anthropologie” [V-Anth]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bd. 25. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1997., AA 25: 313).2 2 Esse trecho é citado por Terra (1995, pp. 11-12). Terra segue uma referência atribuída à Anthropologie Brauer por Tonelli (1954, pp. 424-425), que, por sua vez, a teria buscado em Schlapp (1901, pp. 215-216). Essa referência não foi localizada na edição da Akademie. O trecho, na verdade, corresponde à Anthropologie Parrow. Terra traduz todas as orações na primeira pessoa do plural. Na tradução deste trabalho, mantém-se a oscilação do texto original entre o impessoal e a primeira pessoa do plural.

Vale destacar, inicialmente, que o pensamento kantiano sobre determinado tema é estruturado por meio de imagens (Bilder). Isso significa que, para a construção de determinada parte do edifício da razão, deve-se ter presente, por assim dizer, a ilustração geográfica do todo desse edifício ou, como Kant fala, o seu “catálogo de imagens”.

Na linguagem de uma metáfora apresentada na Introdução da Crítica da faculdade do juízo, parte-se do olhar geral ao campo (Feld), determina-se o território (Boden), precisa-se o que unicamente tem estrutura constitutiva de determinação quanto aos domínios (Gebiete) da razão e, só então, visualizamse ulteriores possibilidades. Nas palavras de Kant:

[o]s conceitos, na medida em que podem ser relacionados com os seus objetos e independentemente de saber se é ou não possível um conhecimento desses objetos, têm o seu campo [Feld], o qual é determinado simplesmente segundo a relação que possui o seu objeto com nossa faculdade de conhecimento. A parte desse campo, em que para nós é possível um conhecimento, é o território [Boden] (territorium) para esses conceitos e para a faculdade de conhecimento correspondente. A parte desse campo a que eles ditam as suas leis é o domínio [Gebiet] (ditio) desses conceitos e das faculdades de conhecimento que lhes cabem (Kant, KU_____. (1790) “Kritik der Urteilskraft” [KU]. Hrsg. von Karl Vorländer. Hamburg: Felix Meiner, 1993 (Philos. Bibliothek Bd. 39 a). Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques. Rio de Janeiro: Florense Universitária, 1995., XVI-XVII).

Nesse sentido, a pergunta que caberá responder é esta: é possível situar, na consideração dessa ilustração geográfica do todo do edifício da razão, as investigações do Opus postumum? A última seção deste trabalho pretende oferecer uma resposta a essa questão.

Cabe garantir, por hora, que a provável surpresa quanto ao contraste desse plano, que principia pelo registro indiscriminado de imagens, em relação ao rigor conceitual de qualquer escrito kantiano, fica dissuadida pelo fato de que, em tal plano, está previsto um roteiro específico de execução/redação. Esse roteiro, indicado de forma genérica no trecho acima, é compreendido, na sua especificação, a partir das Vorlesungen über Logik da década de 1770.

São sete os passos do roteiro seguido por Kant para levar a cabo qualquer projeto de acordo com a sistematicidade do “catálogo de imagens” que compõe o todo dos empreendimentos da razão: (i.) escrever pensamentos, notas ou ideias indiscriminadamente como elas vem à mente; (ii.) coordenar e subordinar essas representações; (iii.) trabalhar as representações coordenadas e subordinadas em um texto contínuo; (iv.) incorporar o texto em uma cópia que seria ainda revisada; (v.) copiar o texto em formato único; (vi.) fazer ulteriores inserções, mudanças, e exclusões para melhorar o texto; (vii.) transcrever, finalmente, o texto em uma forma limpa definitiva (Cf. Kant, V-Lo/Philippi_____. (1750-1800) “Vorlesungen über Logik” [V-Log]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bd. 24. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1966. Trad. J. Michael Young. New York: Cambridge University Press, 1992., AA 24: 484 apud Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xxiv).

Eckart Förster (1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xxiv) diz que “[...] o Opus postumum reflete todas, exceto as duas últimas etapas desse processo”. Uma consideração atenta do manuscrito, pelo menos quanto à estrutura textual na qual ele ficou conhecido, parece revelar, contudo, que não há nenhum impedimento para se dizer que Kant permanece, em muitos trechos, na primeira etapa, no sentido que ele não está, ainda, necessariamente coordenando e subordinando suas ideias de acordo com o pensamento crítico-transcendental, mas meramente registrando anotações, pensamentos ou, mesmo ainda, ideias que precisariam ser contrapostas.

Conforme argumenta, de forma muito precisa, Hall (2015, p. 5):

[...] é extremamente importante julgar o OP não como uma obra completa, mas sim como, na melhor das hipóteses, um esboço de trabalho de algo deixado incompleto. O estilo repetitivo de Kant no OP tem, além disso, muito em comum com o modo no qual Kant esboçou a KrV. Ambas as obras foram escritas em um número de folhas individuais, nas quais cada folha continha um argumento ou um pensamento completo. Geralmente havia muitos esboços do mesmo argumento e Kant comparava essas versões para determinar a mais adequada para seguir adiante. Aqui está, então, uma esclarecedora analogia: examinar o OP para determinar a forma do projeto da passagem seria exatamente como examinar as anotações de Kant na década de 1770 para determinar a forma da KrV, se não soubéssemos contrafactualmente como na verdade a KrV surgiu.

Sobre a legitimidade desse comentário de Hall, vale ter presente que, para o argumento da dedução das categorias, Kant possuía, antes da publicação da primeira edição da Crítica em 1781, pelo menos três esboços de trabalho registrados em folhas individuais:

esboço i: datado de 1770, Refl. 4629 - 4634 (AA 17: 614-619). Kant procura explicar a relação entre categorias e objetos estabelecendo as categorias como condições de possibilidade da experiência. O argumento é baseado na tese de que tais condições são imprescindíveis para que objetos nos possam ser dados na experiência;

esboço ii: encontrado no verso da carta de May a Kant_____. (1750-1800) “Reflexionen zur Metaphysik” [Refl]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 1718. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1966. de 1775, Refl. 4674- 4684 (AA 17: 643-673). Kant começa com a noção de apercepção e procura descobrir uma conexão entre o fato de que diferentes representações pertencem a uma consciência e o uso das categorias em certos juízos;

esboço iii: também no verso de uma carta a Kant de janeiro de 1780 (AA 23: 18-20). Kant concebe a noção de apercepção como pertencente a uma teoria transcendental das nossas faculdades cognitivas, e a relação entre categorias e objetos é explicada pelas operações da então chamada faculdade transcendental da imaginação.3 3 Perin (2008, p. 96). Esses esboços são apresentados por Carl (1989, p. 4).

O argumento que, no prefácio de 1781 (A XVII), Kant denominou “inteiramente suficiente” e que é encontrado em A 92-93, corresponde ao ‘esboço i’. Por sua vez, a argumentação que Kant, no prefácio de 1781, define como “dedução subjetiva” e que é encontrada em A 94 - A 130, representa o ‘esboço iii’. O argumento da edição de 1787 da Dedução, por seu turno, segue genuinamente, a partir do § 16, o ‘esboço ii’.

Caso se queira fazer referência a outro exemplo, este de um período contíguo à redação do Opus postumum, pode-se considerar o argumento de Kant que foi publicado, em 1800, como Prefácio do livro Prüfung der kantischen Religionsphilosophie in Hinsicht auf die ihr beygelegte Aehnlichkeit mit dem reinen Mystizism, de Reinhold Bernhard Jachmann, e que consiste na defesa do conceito crítico de filosofia enquanto ‘doutrina da sabedoria’. Para definição desse argumento - que é publicado pela Akademie em AA 08: 439441 - Kant elaborou mais três esboços similares: esboço i: redigido justamente na metade de uma página do X fascículo do Opus postumum (AA 22: 370);4 4 Esse fato suscita a suspeita de que não apenas os argumentos que comporiam o projeto da obra que Kant executava por considerar a existência de uma “lacuna” no seu pensamento - a saber, a “Passagem dos princípios metafísicos da ciência da natureza à física” (Kant, Br, AA 12: 257) -, mas vários outros conteúdos ou, quiçá, até folhas do Nachlaβ com uma argumentação independente em relação a esse projeto, foram acrescidos ao manuscrito hoje conhecido como Opus postumum. esboço ii: localizado nos Altpapier Monatsschrift de 1899 do então existente Prussia-Museum de Königsberg (AA 23: 467-468); esboço iii: encontrado, em meados de 1960, por Dieter Henrich, nos denominados Hagenschen Papiere.5 5 Esses quatro esboços são traduzidos e comentados em Perin; Klein (2010, pp. 165-196).

Esses são apenas dois exemplos de que, de fato, como pontuou Hall, para chegar ao rigor conceitual característico de suas obras, “[g]eralmente havia muitos esboços do mesmo argumento e Kant comparava essas versões para determinar a mais adequada para seguir adiante” em seu trabalho de argumentação.6 6 A esse respeito, vale conferir o importante comentário de Jean Gibelin (1950, p.i), primeiro tradutor do Opus postumum à língua francesa: “[d]eve-se destacar, contudo, que essas repetições [presentes no manuscrito] são geralmente interessadas; elas não são pura e simplesmente repetições, mas Kant retoma o seu pensamento primitivo numa forma nova, cheia de nuances e mais precisa; e é certamente emocionante ver os contínuos esforços desse senhor para tornar os seus pensamentos mais e mais conexos; a morte, contudo, o impediria de dar a sua obra uma forma definitiva”. Vale considerar, também, o comentário de Paola Vasconi (1999, p. xv): “[...] a dificuldade de tratar a edição dessa obra inacabada constitui o fato de ela ser realmente um esboço de uma obra, o testemunho do método de trabalho de Kant que ressurgiria na edição das Reflexionen: isto é, um método caracterizado pela busca por constantemente refinar as expressões linguísticas das ideias propostas, o que leva a repetições que [nesse contexto de um mero esboço] podem se tornar irritantes para o leitor”.

Vale ler, a respeito desse trabalho e do seu rigor conceitual característico, as palavras de Johann Schultz, que conhecia muito bem os escritos e o pensamento kantiano e que, na condição de primeiro examinador do manuscrito do Opus postumum, não aconselhou a sua publicação. O texto apresenta, diz Schultz, “[...] apenas o primeiro começo de um trabalho cuja introdução ainda não estava completa” (Wasianski, 1804WASIANSKI, E. A. C. “Immanuel Kant in seinen letzten Lebensjahren: ein Beytrag zur Kenntniß seines Charakters und häuslichen Lebens aus dem täglichen Umgange mit ihm”. Königsberg: Nicolovius, 1804., p. 294 apud Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xvii).7 7 Förster (1993, p. xvii) conclui, a partir desse comentário de Schultz, que a sua “[...] consideração do texto não foi de modo algum desenvolvida com profundidade”. Essa avaliação de Förster parece ter o seu fundamento na interpretação que ele desenvolve nos seus trabalhos posteriores - os quais serão considerados na última seção deste trabalho -, a saber, que o Opus postumum apresenta, na força do seu intento metafísico, uma antecipação do idealismo posterior a Kant. Schultz alude, nesse comentário, à necessidade de se saber, pela apresentação que o autor faz de uma obra, o que está sendo investigado nela e quais os propósitos do autor quanto a essa investigação. Ademais, ele sugere que o texto do Opus postumum não só não faz essas indicativas, como também se situa, a partir dos sete passos do roteiro de trabalho de Kant referidos acima, numa fase muito preliminar de redação.

No sentido desse “primeiro começo de um trabalho”, cabe citar, como exemplos, três trechos referentes ao problema que relaciona Kant aos seus sucessores idealistas, a saber, o problema do sistema da filosofia: (i.) “O ponto mais alto da filosofia transcendental: Deus, o mundo e (o homem) o ser pensante no mundo” (Kant, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 32);8 8 Repetido em Kant (OP, AA 21: 52): “Deus, o mundo e a totalidade dos seres apresentados em um sistema no ponto mais alto da filosofia transcendental” e Kant (OP, AA 21: 59): “O ponto mais alto da filosofia transcendental no sistema das ideias: Deus, o mundo e o homem no mundo”. (ii.) “Filosofia enquanto doutrina da ciência [Wissenschaftslehre] estabelecida em um sistema completo” (Kant, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 155); “[...] o princípio que realiza a passagem [Übergang] para a conclusão [Vollendung] do sistema é o da teologia transcendental” (KANT, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 09). O que esses trechos querem dizer?

Em vez de se cogitar buscar o seu significado de tais trechos quer na (re)visão do pensamento crítico-transcendental, quer na visão do idealismo posterior, quer na presunção de debilidade mental do autor daquele, parece ser mais prudente entendê-los como anotações de alguém que, para fazer uso da tese da filosofia teórica do próprio Kant, possui um intelecto discursivo e, então, precisa de algo que lhe é dado para poder estruturar o seu próprio pensamento.

Que esse ‘dado’, em muitos trechos do Opus postumum, permanece como mero registro e, por conseguinte, não é ainda subordinado e coordenado sob os requisitos intelectuais da síntese e da unidade, em favor do que se pretende defender ou contrapor, deve-se assumir como primeiro princípio de interpretação desse manuscrito de Kant.

Em uma palavra, a primeira situação empírica a determinar a condição da justificação transcendental do pensamento kantiano no manuscrito do Opus postumum parece ser o fato de que, em muitos momentos desse manuscrito, a condição do seu autor humanamente se limitou ao mero registro indiscriminado de informações.9 9 Compreende-se, com isso, também o fato do manuscrito conter muitas anotações sobre elementos da rotina privada de Kant. Como, para dar um exemplo, o registro de detalhes do cardápio que ele solicitaria ao seu serviçal para dois dias da semana: “Quarta-feira: ervilhas espessas com porco. Quinta feira: frutas secas com pudim e, também, salsichas de Göttingen trazidas por Nicolov” (Kant, OP, AA 21: 071). Para muitos comentários, esse e outros trechos do tipo são um indício explícito da senilidade do autor do manuscrito. Tendo presente que, em nenhum momento do texto, Kant executou o último passo do seu rigoroso processo de trabalho - a saber, “transcrever, finalmente, o texto em uma forma limpa definitiva” para levá-lo a público - parece justo conceder a ele uma breve pausa da sua ocupação transcendental para, na privacidade dos passos preliminares, fazer registros que assegurariam a sua metódica rotina empírica.

2. Por um histórico do manuscrito do Opus postumum

Félix Duque (1983. p. 19), ao iniciar a sua apresentação da tradução do Opus postumum à língua espanhola, argumenta que “[o]s últimos papéis filosóficos de Kant sofreram mais aventuras e conheceram mais cidades do que teria tolerado o seu sedentário autor”.10 10 Ousa-se dizer que Félix Duque parece ter feito, nesse preciso e escrupuloso trabalho, a melhor edição e a melhor tradução do manuscrito do Opus postumum. Isso, basicamente, por dois motivos: (i.) ele procura traduzir a integralidade do manuscrito quanto aos volumes XXI, XXII e as folhas adicionais publicadas no volume XXIII da Akademie. Eckart Förster que, em 1993, também realiza uma boa tradução do Opus postumum à língua inglesa, faz, contudo, uma série de recortes no texto original, sendo eles indicados por colchetes; (ii.) ele segue, diferentemente da edição da Akademie, os princípios editoriais que Erich Adickes, o consagrado editor dos Nachlaβ kantianos que, durante quase quatro décadas, dedicou-se ao exímio estudo de todos os detalhes da grafia e da datação dos escritos kantianos. No verão de 1916, Adickes viajou a Hamburg e, em quatro semanas de inspeção do manuscrito, reestabeleceu um roteiro de ordem cronológica dos vários fascículos que se encontravam desordenados. O porquê da desordem do manuscrito e da infeliz ausência de Adickes como seu editor será considerado na argumentação que se segue nesta seção do trabalho.

Que essa situação empírica é, também e igualmente em caráter de exceção, um determinante a ser considerado na avaliação da justificação transcendental da argumentação de Kant nesse manuscrito, cabe considerar nas circunstâncias apresentadas a seguir.

Foram necessários mais de 130 anos de suspense, desventuras e surpresas para que boa parte das (lose) Blätter que compõem o manuscrito do Opus postumum viesse a público na edição da Akademie: em 1936 (Band XXI), em 1938 (Band XXII) e, finalmente, em 1955 (Band XXIII), este último volume contendo Ergänzungen zum Opus postumum, que consistem basicamente em várias folhas que estavam sob posse de bibliotecas em Berlin e Königsberg e que não foram utilizadas na edição dos volumes XXI e XXII. Muitas folhas do manuscrito original foram perdidas ou, ainda, destruídas durante a Segunda Guerra Mundial e algumas, talvez, ainda precisem ser encontradas (Cf. Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xxiv e Hall, 2015HALL, B. W. “The post-critical Kant: understanding the critical philosophy through the Opus postumum”. New York: Routledge, 2015., pp. 07-08). Esta última conjectura, a exemplo da notícia, em 1767, do encontro de outra folha solta do manuscrito por W.G. Bayerer (Kant-studien, n. 58, pp. 277-284 apud Duque, 1983DUQUE, F. “Transición de los princípios metafísicos de la ciência natural a la física - Opus postumum: introducción, traducción y notas”. Madrid: Editora Nacional, 1983., p. 23).

Logo após Johann Schultz ter avaliado e desaconselhado a publicação do manuscrito, este presenciou um suspense de desaparecimento por várias décadas. Soube-se, depois, que ele havia sido enviado ao genro do irmão de Kant, Carl Christoph Schoen, que morava na província russa de Kurland. Após a morte de Schoen, em 1854, sua filha encontrou o manuscrito escondido na biblioteca do pai juntamente com uma tentativa fracassada de revisão e edição do texto para publicação (Cf. Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xxvii). Como comenta Félix Duque: “[...] Schoen [...] deixou que o pó tomasse posse das últimas reflexões de Kant, até que as mãos piedosas - ou curiosas ou interessadas, nunca o saberemos - da filha desenterrassem (quase literalmente) os papéis” (Duque, 1983DUQUE, F. “Transición de los princípios metafísicos de la ciência natural a la física - Opus postumum: introducción, traducción y notas”. Madrid: Editora Nacional, 1983., p. 19).

Sabe-se, sim, que a família decidiu imediatamente pela venda do manuscrito por um valor que, até para a Königliche Bibliothek em Berlin, não era acessível. Essa intenção de venda por uma valor exacerbado foi redarguida pelos rumores, incentivados principalmente por Kuno Fischer, de que o manuscrito seria um produto de senilidade de Kant (Cf. Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., pp. xvii-xviii).

Dado esse desfecho, os herdeiros do manuscrito concedem o seu empréstimo, em 1864, a Rudolf Reicke, bibliotecário de Königsberg, a fim de que ele fosse publicado. A expectativa pela publicação do texto teve que aguardar mais dezoito anos. Reicke tinha, inicialmente, o plano de publicar os vários fascículos do manuscrito em um texto coerente. No fim das contas, sob pressão dos herdeiros, ele anuncia que o manuscrito seria publicado em uma série de artigos (Cf. Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xviii).

A causa dessa recusa de Reicke por uma edição do todo do manuscrito não é outra que o fato de que o manuscrito, em seis décadas de manuseio e translado, já apresentava a ordem de suas páginas totalmente perdida, bem como a ausência de determinadas páginas. Como diz Hall (2015, p. 6):

[...] o próprio manuscrito foi levado a uma terrível desordem. Ele passou por uma série de mãos privadas. As pessoas pegaram folhas do manuscrito e as retornaram sem qualquer preocupação com a sua localização original, ou, em alguns casos, definitivamente não as retornaram.

Tendo presente essa condição e a pressão dos herdeiros do manuscrito para a sua publicação, Reicke solicita o auxílio de Emil Arnoldt. Arnoldt adota o princípio editorial de fazer Kant parecer “tão digno quanto possível” e, para esse propósito, “[...] ele apaga trechos da transcrição de Reicke, muda a pontuação e, em determinadas situações, frases inteiras - sem indicar sempre as suas inserções e sem nunca consultar o texto original” (Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xix). Em 1882, aparecem, então, em tiragem limitada e edição bem fragmentada da revista Preußischen Monatsschrift, algumas partes do manuscrito na forma de artigo (Cf. Duque, 1983DUQUE, F. “Transición de los princípios metafísicos de la ciência natural a la física - Opus postumum: introducción, traducción y notas”. Madrid: Editora Nacional, 1983., p. 19).

Dado o insucesso desse projeto, o então herdeiro do manuscrito, Paul Haensell, decide pela sua venda ao British Museum. Duque (1983, p. 20) comenta, a respeito dessa decisão, que “[i]sso não se poderia aceitar: as últimas palavras filosóficas do orgulho da Prússia, erradicadas, como de Hébuca se recordava no Prefácio da Crítica: unc trahor exul, inops!”.

Reicke contata secretamente o pastor Albrecht Krause, que mantinha grande admiração por Kant e que decide, então, comprar o manuscrito por 800 marcos. O manuscrito viaja agora a Hamburgo e é submetido a uma nova edição. Em 1888, Krause decide publicar a sua versão do manuscrito com “adições científico-populares”. A publicação, conhecida como Das nachgelassene Werk Immanuel Kants: Vom Übergange von den metaphysischen Anfangsgründen der Naturwissenschaft zur Physik, fora estruturada de acordo com este procedimento: “Krause interpretava o Opus postumum nas páginas pares do escrito e nas ímpares reproduzia distintos fragmentos, retocados (aumentados e recortados) e ‘ordenados’ ao seu modo” (Duque, 1983DUQUE, F. “Transición de los princípios metafísicos de la ciência natural a la física - Opus postumum: introducción, traducción y notas”. Madrid: Editora Nacional, 1983., p. 21).

Nessa publicação, Krause afirma que Kant teria iniciado o manuscrito em 1783. Isso porque um dos fragmentos contém - em AA 21: 471 - uma anotação de Kant de envio de uma carta a “Euler”. Krause interpreta o envio da carta ao matemático Leonhard Euler, que havia falecido em 1783. Soubese, depois, que a carta teria sido enviada ao filho de Leonhard Euler. Essa suposição de Krause, correta para o final do século XIX, teve duas importantes consequências: (i.) a teoria que apregoava uma incapacidade mental do autor do manuscrito, de Kuno Fisher, é tida como inadequada. Nas palavras de Duque (1983, p. 21): “[...] quem teria se atrevido a defender a senilidade de Kant no ano dos Prolegômenos?”; (ii.) A argumentação de Krause, em seu comentário, de que, no manuscrito, estariam contidos dois livros (um sobre a transição à física e outro sobre o sistema da filosofia), foi vista pela preuβische Akademie como um fator relevante para, em 1894, aceitar a sua inclusão na proposta edição completa dos escritos de Kant (Cf. Duque, 1983DUQUE, F. “Transición de los princípios metafísicos de la ciência natural a la física - Opus postumum: introducción, traducción y notas”. Madrid: Editora Nacional, 1983., p. 21).

Prestes a chegar, finalmente, à ventura de uma publicação adequada e, mesmo que com seu nascimento prematuro, vir a acompanhar as assumidas criações que são herdadas de Kant, o manuscrito encontra outro empecilho. Krause só concederia o manuscrito à Akademie na condição de que ele próprio fosse seu editor. Tal condição não poderia ser aceita porque o editor do Nachlaβ era Erich Adickes, um exímio conhecedor do modo de trabalho de Kant e, principalmente, de todas as distinções e detalhes que, no percurso do tempo, acompanharam a materialidade dos seus manuscritos.

Esse embate gera uma disputa judicial que seria decidida, em 1902, com a vitória de Krause para a posse do manuscrito na suprema corte da Prússia (Cf. Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xxi). No mesmo ano, Krause falece e o manuscrito, então em posse particular definitiva para sua família, fica até 1916 novamente sem qualquer perspectiva de ser editado e publicado. É nesse ano que Erich Adickes, já bastante familiarizado com o contato e a edição dos escritos kantianos, viaja a Marburg para inspecionar o manuscrito e consegue, nas quatro semanas nas quais este fora disponibilizado a ele, reestabelecer a sua ordem cronológica. Até final da década de 1910, Adickes tentou convencer a Akademie da necessidade e da importância da publicação do manuscrito. Como ela era, agora, liderada por uma nova geração de pesquisadores, ele obteve, em 1919, a resposta de que “[...] a maioria dos trabalhos acadêmicos em caráter de opera postuma deveriam permanecer não publicados” (Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., pp. xxi-xxii).

Em 1923, a família de Krause vende os direitos de publicação do manuscrito do Opus postumum para a de Gruyter e, então, finalmente inicia-se um projeto de publicação em cooperação com a Akademie. Aquela exige, contudo, que o manuscrito permaneça em Berlin e tenha como seu editor adjunto Artur Buchenau; sendo que, por parte da Akademie, Adickes seria o editor chefe, mas permaneceria em Tübingen também editando outros Nachlaβ kantianos. Em 1926, após a ciência de que Buchenau não seguiria os princípios editoriais estabelecidos para os demais Nachlaβ kantianos já editados ou em edição e, pior ainda, editaria o manuscrito meramente a partir da ordem que ele fora encontrado, Adickes desiste da superintendência da edição do manuscrito. Adickes morre em 1928 e o manuscrito do Opus Postumum é publicado, na década seguinte, sob a edição de Artur Buchenau e Gerhard Lehmann (Cf. Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., pp. xxi-xxii, e Duque, 1983DUQUE, F. “Transición de los princípios metafísicos de la ciência natural a la física - Opus postumum: introducción, traducción y notas”. Madrid: Editora Nacional, 1983., p. 22).

Dentre todas essas surpresas e desventuras, às quais o Opus postumum foi submetido durante os descritos mais de 130 anos de excursão, a mais infeliz é, talvez, justamente a ausência de Erich Adickes como editor do manuscrito. Isso não só pela desconsideração da ordem cronológica das suas folhas que, mediante vasta experiência e exímio conhecimento do corpus kantiano, ele havia estabelecido; mas também pelo fato de que os seus princípios editorais dos volumes anteriores do Nachlaβ, na edição da Akademie, não foram seguidos. O resultado é o de que muitos trechos são publicados de modo repetido nos volumes das Reflexionen e do Opus postumum.

As boas traduções do manuscrito do Opus postumum - como é o caso da edição à língua espanhola de Félix Duque e à língua inglesa de Eckart Förster - seguem a cronologia estabelecida por Erich Adickes. Tal fato também contribui para que o Opus postumum seja um escrito kantiano peculiar e especial: para tentar entendê-lo é mais prudente recorrer às traduções do que à edição da Akademie.

Passa-se, na próxima seção deste trabalho, à consideração da condição da justificação transcendental do problema do sistema da filosofia no Opus postumum. Tenha-se presente, a partir do exposto nessa breve síntese empíricoexcursiva do manuscrito, que a ausência de uma ordem definitiva e a perda das suas folhas é, também, um elemento determinante de uma resposta filosófica que, enquanto tal, não pode se desfazer - principalmente para o seu autor - de uma estrutura de prova rigorosa e precisamente estabelecida.

3. O problema do sistema da filosofia no Opus postumum: um elo entre Kant e os idealistas posteriores?

Num trecho no qual sintetiza a sua posição sobre o problema do sistema da filosofia em Kant, Eckart Förster (2012_____. “The twenty-five years of philosophy”. Cambridge: Harvard University Press, 2012., p. 154) diz que

[...] na medida em que a filosofia é uma disciplina a priori, esse fato implica, para Kant, que o status científico da filosofia depende dos seus elementos serem derivados de um princípio comum: a filosofia não pode ser científica a menos que ela seja sistemática; e ela não pode ser sistemática a menos que os seus vários teoremas possam ser produzidos a partir de um princípio fundamental.

Tal seria, no título da obra anterior de Förster sobre o Opus postumum, a “Síntese final de Kant” (Förster, 2000_____. “Kant’s final synthesis: an essay on the Opus postumum”. Cambridge: Harvard University Press, 2000.). Isso porque, segundo ele, “[o] Opus postumum contém a longa busca de Kant por um princípio que fundamenta a passagem, mas também contém a solução para os seus esforços - uma solução, parece-me, que impôs a Kant a revisão da sua noção de filosofia” (Förster, 1989_____. “Kant’s notion of philosophy”. The Monist, 72, 1989, pp. 285-304., p. 296). O que significa, ao ver de Förster, que

[...] as suas reflexões logo o forçaram a retomar basicamente todos os principais problemas da sua filosofia crítica: a validade objetiva das categorias, a teoria dinâmica da matéria, a natureza do espaço e do tempo, a refutação do idealismo, a teoria do eu e sua ação, a questão dos organismos vivos, a doutrina dos postulados práticos e a ideia de Deus, a unidade da razão teórica e da razão prática, e, finalmente, a própria ideia de filosofia transcendental (Förster, 2000_____. “Kant’s final synthesis: an essay on the Opus postumum”. Cambridge: Harvard University Press, 2000., p. xi).11 11 Na obra Kant’s final synthesis, Förster também assume que, “[d]e acordo com a primeira Crítica, [...] o entendimento é o começo da razão” e defende que, no Opus postumum, está operante uma concepção de filosofia concorde com a posição expressa em uma frase que Hölderlin teria escrito a Schiller em 1797, a saber, “[e]u considero a razão como o começo do entendimento” (Förster, 2000, respectivamente pp. 149 e 148). Vale apenas dizer que assumir que, na Crítica da razão pura, “o entendimento é a origem da razão” é, por si só, a reconfiguração - para não dizer, a desconfiguração - da filosofia crítica.

Essa ‘retomada’ corresponderia à admissibilidade ou ao reconhecimento da condição de um “empreendimento crítico” incompleto, que só seria levado à “completa revolução do modo de pensamento” de Fichte (Förster, 2012_____. “The twenty-five years of philosophy”. Cambridge: Harvard University Press, 2012., pp. 153 e 179).12 12 Respectivamente, os títulos dos capítulos 7 e 8 do livro da obra The twenty-five years of philosophy: “O ‘empreendimento crítico’: incompleto” e “‘A completa revolução do modo de pensar’ de Fichte”. Isso porque, se “[a] unidade da filosofia transcendental de Kant é, pois, tornada possível mediante uma referência ao suprassensível” e “Kant nega qualquer possibilidade de cognitivamente conectar o ponto de unidade suprassensível com o domínio sensível” (Förster, 2012_____. “The twenty-five years of philosophy”. Cambridge: Harvard University Press, 2012., p. 179), em Fichte, já na caracterização da Wissenschaftslehre apresentada em suas aulas em Gena em 1794, entende-se que a essência da filosofia consiste “[...] precisamente em explorar o que, para Kant, não era explorável, a saber, a raiz comum que conecta os mundos sensível e suprassensível e na derivação real e compreensível dos dois mundos a partir de um único princípio” (Fichte, GA II, 8:32; W10;104) apud Förster, 2012_____. “The twenty-five years of philosophy”. Cambridge: Harvard University Press, 2012., p. 179).

É a partir da gestação do pensamento idealista nessa perspectiva fichteana que Förster intenta compreender a filosofia desenvolvida entre 1781, no texto da primeira Crítica, e 1806, nas Preleções de Hegel. Förster observa que Hegel, contra a concepção kantiana de que só existe uma filosofia e de que esta necessariamente se contrapõe às anteriores,13 13 A posição kantiana é, de fato, sistematicamente retratada em Kant, MS, AA 06: 207: “Quando, pois, alguém anuncia um sistema de filosofia como sua elaboração própria é como se dissesse que antes dessa filosofia não tinha existido nenhuma outra. E se quisesse admitir que tinha existido uma outra (e verdadeira), então haveria sobre os mesmos objetos duas espécies verdadeiras de filosofia, o que é em si mesmo contraditório. Quando, portanto, a filosofia crítica se anuncia como se antes dela não tivesse existido filosofia alguma, não faz nada de diverso do que fizeram, farão e devem mesmo fazer todos aqueles que constroem uma filosofia segundo um plano”. defende que “[a] última filosofia contém, pois, as anteriores, inclui todos os estágios, e é o produto ou o resultado de todas as que a precederam” (Hegel, TW 20: 461 apud Förster, 2012_____. “The twenty-five years of philosophy”. Cambridge: Harvard University Press, 2012., p. ix). Para resumir, então, a posição de Förster: o pensamento crítico seria, em relação ao idealismo posterior, um mero estágio e o Opus postumum o reconhecimento pleno dessa sua condição.

Não obstante Eckart Förster divergir das posições que assumem a senilidade de Kant no texto do Opus postumum e argumentar que Kant teria idealizado o seu projeto já em 1790 (Cf. Förster, 1987FÖRSTER, E. “Is there a gap in Kant’s critical system?”. Journal of the history of philosophy, 25, 1987, pp. 533-555., pp. 535-336), há de se dizer que, desde que admitida a sua apresentada tese - a saber, que, nesse manuscrito, Kant estaria “retoma[ndo] basicamente todos os principais problemas da sua filosofia crítica” (Förster, 2000_____. “Kant’s final synthesis: an essay on the Opus postumum”. Cambridge: Harvard University Press, 2000., p. xi) - o prognóstico parece ser, necessariamente, o de insanidade.

E “insanidade” significa, tão só e essencialmente, que aquele pensador que, na sua filosofia crítica, havia considerado que “[...] foram necessários anos para que [ele] ficasse inteiramente satisfeito não só com o todo, mas também com cada proposição singular em relação às suas fontes” (Kant, Prol_____. (1783) “Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik” [Prol]. In: AkademieTextausgabe, Bd. 04. Berlin: de Gruyter, 1968; Anmerkungen, Berlin/New York: de Gruyter, 1977. Trad. Tania Maria Bernkopf. São Paulo: Abril Cultural, 1974., AA 04: 263), agora estaria considerando esse trabalho desnecessário e dando azo às propostas idealistas.

Cabe ter presente que, tanto em 1790 quanto no período posterior, Kant se manifesta contra essa posição - insana, para a sua filosofia - de que haveria um princípio colocado como fundamento das determinações teórico e prática da razão ou como base para uma passagem constitutiva entre essas determinações.

Em 1790, no manuscrito da Primeira introdução, no qual fica propriamente demonstrado o contratempo do estabelecimento de um sistema da razão nesse sentido, Kant já alertava:

[n]a verdade, há filósofos que merecem todo o louvor já que, pela profundidade do seu modo de pensar, procuraram explicar essa diferença [de todas as faculdades do ânimo humano] como apenas aparente e reduzir todas as faculdades à mera faculdade de conhecimento. Só que pode ser mostrado muito facilmente, e há algum tempo também já foi compreendido [eingesehen], que essa tentativa, ademais empreendida num espírito genuinamente filosófico, de introduzir unidade nessa diversidade de faculdades, é inútil (Kant, EE_____. (1794) “Erste Einleitung in die Kritik de Urteilskraft” [EE]. In: Akademie Textausgabe, Bd. 09, Berlin: de Gruyter, 1968; Anmerkungen, Berlin/New York: de Gruyter, 1977. Trad. Ricardo Terra e Rubens Rodrigues Torres Filho. In: Duas introduções à Crítica do juízo. São Paulo: Iluminuras, 1995., AA 20: 206. Tradução do autor).

Nesse trecho, Kant já revela a certeza de que a justificação autossuficiente das faculdades operantes nos domínios teórico e prático da razão é, na década de 1790, a égide da sua concepção de filosofia contra as cogentes propostas idealistas que começavam a se estabelecer. Sobre essa égide, vale ter presente a incisiva no Anuncio do término próximo de um tratado para a paz perpétua na filosofia, de 1796:

[f]ilosofia crítica é aquela que não começa com as tentativas de construir ou demolir sistemas, ou até mesmo apenas (como o Moderacionismo), de assentar sobre colunas um teto sem casa para moradia eventual, mas começa sua empresa de conquista a partir da investigação das faculdades da razão humana (seja com que intenção for), e não raciocina sem claro objetivo [so ins Blaue], quando se trata de filosofemas que não podem ter sua justificativa em nenhuma experiência possível [...].

Essa filosofia, que é sempre um estado armado (contra aquelas, que equivocadamente confundem fenômenos com coisas em si mesmas), [... é], justamente por isso, também um estado armado que acompanha incessantemente a atividade da razão (Kant, VNAEF_____. (1796) “Verkündigung des nahen Abschlusses eines Tractats zum ewigen Frieden in der Philosophie” [VNAEF]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bd. 08. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1969., AA 08: 491-493).14 14 O alvo de crítica desse comentário, pelo menos quanto às suas últimas palavras, parece ser claramente Fichte. Conforme pode ser confirmado nas palavras de Kant, que são relatadas por Johann Friedrich Abegg, a partir da visita deste àquele, no dia 1º de junho de 1798: “Fichte te coloca uma maçã diante da boca, porém não te permite prová-la. Isso se resume à questão: mundus ex aqua? Situa-se sempre nas generalidades, sem, porém, apontar um exemplo se quer; e isto sim é o pior: nem mesmo poderia dá-lo, porque aquilo que corresponde aos seus conceitos não existe” (Kant, Br, AA 13: 482 apud Duque, 2001, p. 24).

É com base nessa “empresa de conquista” - que compreendeu o seu projeto crítico de fundamentação autossuficiente do conhecer e do agir humanos e que, agora, para sua própria defesa, precisa se estruturar como “estado armado que acompanha incessantemente a atividade da razão” - que Kant faz, em 1799, a Erklärung da sua filosofia enquanto “[...] um sistema da crítica, jacente a um fundamento assegurado por completo” (Kant, BrKANT, I. (1747-1803) “Briefwechsel” [Br]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 10-13. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1969. Trad. Arnulf Zweig. New York: Cambridge University Press, 1999., AA 12: 371).15 15 O trecho completo da ‘Erklärung in Beziehung auf Fichtes Wissenschaftslehre’ é este: “A filosofia crítica deve se sentir convencida, por meio da sua incontrolável tendência para satisfação da intenção tanto teórica quanto prático-moral da razão, de não estar iminente a qualquer mudança em caráter de opinião, a quaisquer melhoramentos ou ulteriores aperfeiçoamentos de construção teorética, mas de que o sistema da crítica, jacente a um fundamento assegurado por completo, é garantido para sempre e é, também, para todas as épocas futuras, indispensável para os fins supremos da humanidade”. Tradução do autor.

Essa concepção eminentemente crítica do sistema da filosofia - a saber, por partir da autossuficiência das faculdades humanas, nem racionalista prékantiana e nem idealista pós-kantiana - é especificada por Kant nas suas Reflexionen über Metaphysik do final da década de 1790: “[o] sistema da crítica da razão pura movimenta-se entre dois pontos cardeais: na qualidade de sistema da natureza e da liberdade” (Kant, Refl_____. (1750-1800) “Reflexionen zur Metaphysik” [Refl]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 1718. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1966. 6353, AA 18: 679). A partir dessa definição, entende-se que: (i.) se a crítica do uso teórico foi definida como uma propedêutica ao sistema, é porque (necessariamente) lhe faltava o segundo ponto cardeal, a saber, “a realidade do conceito de liberdade”; (ii.) se, a partir da crítica do uso prático, não se estabelece um sistema doutrinal da filosofia, é porque aquele não se orienta constitutivamente pelo primeiro ponto cardeal, ou seja, “[a]o sistema da razão (e da liberdade) não corresponde qualquer sistema da natureza” (Kant, Refl_____. (1750-1800) “Reflexionen zur Metaphysik” [Refl]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 1718. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1966. 6280, AA 18: 547).

A especificação, na década de 1790, do sistema da filosofia kantiana como ‘sistema da crítica’, assentado sobre a autossuficiência das faculdades humanas que fundamentam o conhecimento e o agir, é o elemento norteador para que se explicite, agora, o tratamento do problema do sistema da filosofia no Opus postumum.

Vale lembrar que, como defendido nas seções anteriores deste trabalho, em caráter de exceção no corpus kantiano, o status transcendental da argumentação do Opus postumum não pode prescindir de dois elementos empíricos: (i.) o manuscrito, em muitos trechos, revela apenas um primeiro passo de um rigoroso método de redação do seu autor. Kant estaria, então, apenas registrando ideias que precisariam ser defendidas ou, sobretudo, contrapostas; (ii.) o manuscrito, transcorridos mais de 130 anos de desventuras até a sua publicação, teve, nesta, o desfecho da desordem das suas páginas, da perda de muitas delas e da ausência de Erich Adickes na sua edição. Ou seja, vários elementos da estrutura de prova de cada argumento, que é constituída pelas coordenação e subordinação de informações, podem ser questionados quanto a sua ordem ou mesmo tidos como ausentes.

Hall (2015, p. 8), referindo-se à natureza desses elementos, diz que

[a] escuridão que envolve muitas das formulações de Kant no OP pode também explicar a dificuldade que muitos pesquisadores têm tido para tentar chegar a um consenso sobre a natureza da lacuna na filosofia crítica de Kant bem como a sua relação com o projeto da passagem. Em muitos aspectos, o OP pode ser visto como um teste filosófico de Rorschach. É fácil para os comentadores ver o que eles querem ver, dados o modo no qual o OP é escrito e o estado geral do manuscrito existente.16 16 No contexto desse comentário de Hall, cabe determinar, pelo menos quanto ao problema do sistema da filosofia, a “a natureza da lacuna na filosofia crítica de Kant bem como a sua relação com o projeto da passagem”. Em duas cartas, do ano de 1798, Kant faz referência a uma lacuna (Lücke) no seu pensamento: (i.) “[a] tarefa [Aufgabe] [...] com a qual eu me ocupo agora deve ser completada ou então permanecerá uma lacuna no sistema da filosofia crítica” (Kant, Br, AA 12: 257 - Carta a Christian Garve, de 21 de setembro de 1798); (ii.) “[...] com aquela [...] a ocupação crítica estará concluída e uma lacuna que permanece aberta será fechada” (Kant, Br, AA 12: 258 - Carta a Christian Kiesewetter, de 19 de outubro de 1798). A intenção de interpretar essa ‘lacuna’ no sentido da passagem entre os domínios teórico e prático da razão é dissuadida, por Kant, ao especificar a referida tarefa da obra na qual ele trabalhava: na carta a Garve, Kant diz que ela “[...] concerne à ‘Passagem dos princípios metafísicos da ciência da natureza à física’” (Kant, Br, AA 12: 257) e, do mesmo modo, na carta a Kiesewetter, que ela consiste “[...] na passagem dos princípios metafísicos da ciência da natureza à física” (Kant, Br, AA 12: 258). Nesta carta, Kant diz ainda que tal tarefa “[...] não pode ser deixada fora do sistema” (Kant, Br, AA 12: 258. Negrito adicionado). A partir do que Kant assegura em cada uma dessas cartas, compreende-se que não seria a sua tarefa no Opus postumum garantir um sistema da razão mediante uma passagem entre os domínios teórico e prático. Esse sistema já fora, por ele, construído no único modelo filosoficamente exequível, a saber, como ‘sistema da filosofia crítica’. A ‘lacuna’, que completaria esse sistema, diz respeito - a partir do que Kant havia garantido como suas duas tarefas no período posterior à terceira Crítica, a saber, a redação “da metafísica da natureza e a dos costumes” (Kant, KU, X) e especifica nas cartas acima - à conclusão das suas investigações no que se refere a uma “metafísica da natureza”. Como garantem estes trabalhos: (i.) Edmundts (2004, p.2): “[m]inha abordagem é baseada em uma tese [...]: o Nachlaβwerke de Kant persegue o projeto de uma fundamentação filosófica das ciências empíricas. Mesmo que esse projeto se refira ao conhecimento científico, ele se encontra também distante das discussões físicas por submetê-las a um exame filosófico”. (ii.) Ureta (2006, pp. 37-38): “[u]m aspecto muito importante elaborado por Kant em seu O.p. será responder a pergunta, como é possível a física enquanto ciência? [...] O conceito de ‘passagem’ tem como finalidade alcançar um todo unindo dois âmbitos diversos. Esses dois âmbitos são as leis a priori das ciências naturais e as leis da experiência”. No sentido dessa determinação do significado sistemático do termo ‘lacuna’ (Lücke), cabe destacar a singularidade de Félix Duque que, em sua tradução do manuscrito à língua espanhola, prioriza o título que o próprio Kant teria dado à obra: Transición de los principios metafísicos de la Ciencia Natural a la física.

A analogia consiste, aqui, no fato de que, a partir de um mesmo manuscrito, tem-se a possibilidade de utilizar, para interpretação das orações e dos fragmentos de Kant, diferentes conjuntos de compreensão, cada um, é claro, dotado de interesses particulares. Esse “teste filosófico de Rorschach” só é possível, como concorda Hall, devido ao manuscrito estar, em muitos aspectos, em um estágio primitivo de redação e com sua ordem geral corrompida.

Ora, dada essa conjuntura, determinadas assertivas sobre o problema do sistema da filosofia - (i.) “O ponto mais alto da filosofia transcendental: Deus, o mundo e (o homem) o ser pensante no mundo” (Kant, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 32.); (ii.) “Filosofia enquanto doutrina da ciência [Wissenschaftslehre] estabelecida em um sistema completo” (Kant, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 155); (iii.) “[...] o princípio que realiza a passagem [Übergang] para a conclusão [Vollendung] do sistema é o da teologia transcendental” (Kant, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 09); (iv.) “Para Garve. Sistema da filosofia numa intenção pragmática para se desenvolver enquanto mestre da habilidade e da prudência” (Kant, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 483); (v.) “Sistema do Idealismo transcendental por Schelling, Spinoza, Lichtenberg, em três dimensões: o presente, o passado e o futuro” (Kant, OP_____. (1798-1804) “Opus postumum” [OP]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 17-18. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1936 e 1938. Trad. Félix Duque. Madrid: Editora Nacional, 1983., AA 21: 87) -17 17 Vale ler, no contexto deste último aforismo, os seguintes comentários: (i.) Guyer (2000, p. 20): “[a]s inúmeras referências de Kant a Spinoza nos seus últimos escritos só visam a enfatizar a diferença entre a sua própria teoria da sistematicidade do pensamento humano como um produto do juízo reflexionante e o que ele considerou ser a metafísica monista dogmática de Spinoza tal qual reavivada por Schelling e seus seguidores. Os filósofos de Schelling e a sua geração podem ter adquirido o gosto por um sistema único e abrangente de todos os aspectos da realidade a partir de Kant, mas eles se rebelaram contra a sua [de Kant] restrição de tal sistema ao domínio do juízo reflexionante ou de meras ‘ideias’”. (ii.) Perin; Klein (2010, p. 180): “Kant considera a filosofia de Espinoza como o grau mais alto do misticismo, pois ela defende que existe apenas um único ser, sendo que todo o resto se constitui como uma modificação dele. O espinosismo se constitui como uma metafísica dogmática e se apresenta como uma continuação da escola neoplatônica, podendo ser caracterizado como uma teosofia mística”. podem ser usadas, sem força de primazia argumentativa, para defender quer a (re)posição do pensamento crítico kantiano18 18 Nesse sentido, Pecere (2015, p. 154), “[...] conclu[i] que o novo projeto pretendia fornecer não uma reforma, mas um complemento necessário às obras anteriores”. quer a (im)posição do idealismo pós-kantiano. Isso também vale, sim, para a defesa de que Kant estaria, nessas assertivas, meramente citando posições ou autores implicados/referidos, visando à sua posterior contraposição.19 19 Félix Duque (1983, p. 586), parece justamente reconhecer que a sua posição interpretativa se constitui como um “conjunto de compreensão” que não tem primazia argumentativa sobre os demais: “[...] certamente, teremos aqui sugestivos indícios de resposta à grande pergunta kantiana ‘o que é o homem?’ (Logik, IX, 25; cf. também KrV, A 805/B 833). O homem como cópula entre Deus e o mundo (XXI, 27), como dono do mundo (XXI, 38), submetido contudo ao dever (XXI, 54), quer dizer: habitante de ambos os mundos (XXI, 29), deveria ter sido a grande Ideia mediadora que teria constituído o territorium do Sistema de todas as passagens (uma concepção muito fecunda, que aponta à Vermittlung hegeliana). Contudo, são somente sugestões não desenvolvidas”. Outros comentários prudentes ao Opus postumum, embora não façam esse reconhecimento de forma explícita, são levados à construção de uma argumentação de caráter supositivo. Tal é o caso de Guyer (2000, p. 19), na sua defesa de que, nesse manuscrito, “Kant estava aparentemente tentando unificar as suas filosofias teórica e prática num único sistema das ideias da natureza e da liberdade. Nessa obra, Kant parece ter pretendido mostrar que a constituição da natureza mediante as nossas formas da intuição e do entendimento deve ser compatível com o conteúdo da lei moral e a nossa capacidade de agir de acordo com ela, enquanto representada pela nossa ideia de Deus como um legislador supremo, porque ambos os conceitos da natureza e a ideia de Deus têm o seu fundamento comum no próprio pensamento humano”. Negritos adicionados pelo autor deste trabalho.

Compreende-se, então, que não há como estabelecer, a partir do manuscrito do Opus postumum, uma resposta filosoficamente convincente sobre o problema que (des)associa o pensamento crítico kantiano ao idealismo alemão póskantiano, a saber, o problema do sistema da filosofia. Pode-se apenas interpretar esse manuscrito de acordo com um conjunto de interesses, os quais, em tal interpretação, são, excepcionalmente, filosóficos e ao mesmo tempo relativos.

Considerações finais

Como fundamento do projeto crítico kantiano, considera-se a convicção de que “[...] o que se espera de todo conhecimento que deve ser certo a priori é que ele seja tomado por absolutamente necessário, e que uma determinação de todos os conhecimentos puros a priori, com tanto mais razão, deva ser o padrão de medida e, portanto, o exemplo mesmo de toda certeza apodítica (filosófica)” (Kant, KrV_____. (1781/1787) “Kritik der reinen Vernunft” [KrV]. Hrsg. von Raymundé Schmidt. Hamburg: Meiner, 1998. Trad. Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes, 2018., A XV).

Este trabalho discutiu a natureza da argumentação apresentada no manuscrito do Opus postumum em relação a tal necessidade atribuída por Kant ao campo (Feld) do conhecimento a priori e a certeza apodítica dos domínios (Gebiete) que filosoficamente lhe garantem uma determinação constitutiva quanto ao conhecer e ao agir humanos.

A primeira seção apresentou a metodologia de Kant para redação de suas obras e comparou essa metodologia com o estágio da argumentação fornecida no manuscrito do Opus postumum. Defendeu-se que Kant tinha um roteiro preciso e meticuloso para estabelecimento das definitivas estruturas probatórias de sua argumentação. Considerou-se que esse roteiro partia do registro de pensamentos, passava às suas coordenação e subordinação, prosseguia a sua elaboração em um texto contínuo, transcorria à cópia dos argumentos e à sua elaboração em um texto único e, só então, culminava no melhoramento estilístico do texto e na sua transcrição final e definitiva. Foi sustentado que uma primeira situação empírica de condicionalidade do status da argumentação do manuscrito se deve ao fato de que, em vários momentos, o seu autor permanece dedicado ao estágio primitivo do registro dos seus pensamentos.

A segunda seção considerou o histórico do manuscrito desde a despedida do seu autor até a sua publicação. Foi considerado, assim, que os mais de 130 anos de alterações e perdas da sua estrutura probatória, além de análises não precisas, compreendem o segundo elemento de condicionalidade empírica da necessidade transcendental da argumentação de Kant no Opus postumum.

A terceira e última seção tomou em apreço a tarefa da determinação da relação, a partir do manuscrito do Opus postumum, da argumentação crítica kantiana com o idealismo posterior. Foi defendido que as duas condições empíricas apresentadas nas seções anteriores essencialmente determinam a necessidade da condição transcendental dessa relação. Isso quer dizer que o texto do manuscrito não pode ser usado como mecanismo de prova da (in) suficiência crítica em relação às propostas idealistas posteriores.

  • 1
    Kuno Fischer argumenta: “[p]ode-se duvidar do valor dessa obra [mesmo] sem inspeção prévia, se se considerar o estado frágil que Kant estava naquele momento, e a completude à qual ele próprio havia sido conduzido pela filosofia que ele tinha fundado [...]. Homens competentes que, logo após a morte de Kant, leram o manuscrito muito volumoso, testemunharam que ele meramente repete conteúdos de seus escritos anteriores numa maneira que denota decrepitude” (Fisher, 1869FISCHER, K. “Geschichte der neuern Philosophie”. Friedrich Bassermann: Mannheim, 1869., p. 83 apud Förster, 1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xviii). A partir do próprio comentário de Fischer, já se desconfia do fato de que, conforme justifica Félix Duque (1983, p. 20), para aquele, o Opus postumum se trata de uma “[...] obra que não havia absolutamente lido”.
    Sobre a retomada dessa posição na atualidade, veja-se: Henrich (1992HENRICH, D. “Aesthetic judgment and the moral image of the world: studies in Kant”. Stanford: Stanford University Press, 1992., p.6): “[...] na velhice [...] ele [Kant] começou a perder a capacidade de controlar seus pensamentos e frases” e Henrich (2003_____. “Between Kant and Hegel: lectures on German idealism”. Cambridge: Harvard University Press, 2003., p. 52): “[e]m razão da sua idade, ele [Kant] não conseguia escrever mais de uma frase sem perder a linha do seu pensamento. Isso era muito doloroso para ele, já que precisava ficar começando do zero”.
  • 2
    Esse trecho é citado por Terra (1995TERRA, R. R. “Reflexão e sistema: as duas Introduções à Crítica do juízo”. In: R. R. Terra; R. R. Torres Filho (ed.), 1995. pp. 11-27., pp. 11-12). Terra segue uma referência atribuída à Anthropologie Brauer por Tonelli (1954TONELLI, G. “La formazione del testo della Kritik der Urteilskraft”. Revue internationale de philosophie, 8, 1954, pp. 423-448., pp. 424-425), que, por sua vez, a teria buscado em Schlapp (1901SCHLAPP, O. “Kants Lehre vom Genie und die Entstehung der Kritik der Urteilskraft”. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1901., pp. 215-216). Essa referência não foi localizada na edição da Akademie. O trecho, na verdade, corresponde à Anthropologie Parrow. Terra traduz todas as orações na primeira pessoa do plural. Na tradução deste trabalho, mantém-se a oscilação do texto original entre o impessoal e a primeira pessoa do plural.
  • 3
    Perin (2008PERIN, A. “Sobre o argumento da dedução transcendental na segunda edição da Crítica da razão pura”. Studia kantiana, 6/7, 2008, pp. 83-120., p. 96). Esses esboços são apresentados por Carl (1989CARL, W. “Kant’s first drafts of the deduction of the categories”. In: E. Förster (ed.), 1989. pp. 3-20., p. 4).
  • 4
    Esse fato suscita a suspeita de que não apenas os argumentos que comporiam o projeto da obra que Kant executava por considerar a existência de uma “lacuna” no seu pensamento - a saber, a “Passagem dos princípios metafísicos da ciência da natureza à física” (Kant, BrKANT, I. (1747-1803) “Briefwechsel” [Br]. In: Kants Gesammelte Schriften, ed. Preussische (spätter Deutsche) Akademie der Wissenschaften. Bde. 10-13. Berlin und Leipzig: de Gruyter, 1969. Trad. Arnulf Zweig. New York: Cambridge University Press, 1999., AA 12: 257) -, mas vários outros conteúdos ou, quiçá, até folhas do Nachlaβ com uma argumentação independente em relação a esse projeto, foram acrescidos ao manuscrito hoje conhecido como Opus postumum.
  • 5
    Esses quatro esboços são traduzidos e comentados em Perin; Klein (2010PERIN, A; KLEIN, J. “O conceito de filosofia em Kant: uma tradução e um comentário”. Analytica, 2010, pp. 165-196., pp. 165-196).
  • 6
    A esse respeito, vale conferir o importante comentário de Jean Gibelin (1950GIBELIN, J. “Opus postumum: textes choisis et traduits”. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1950., p.i), primeiro tradutor do Opus postumum à língua francesa: “[d]eve-se destacar, contudo, que essas repetições [presentes no manuscrito] são geralmente interessadas; elas não são pura e simplesmente repetições, mas Kant retoma o seu pensamento primitivo numa forma nova, cheia de nuances e mais precisa; e é certamente emocionante ver os contínuos esforços desse senhor para tornar os seus pensamentos mais e mais conexos; a morte, contudo, o impediria de dar a sua obra uma forma definitiva”. Vale considerar, também, o comentário de Paola Vasconi (1999VASCONI, P. “Sistema delle scienze naturali e unità della conoscenza nell’ultimo Kant”. Firenze: Leo S. Olschki, 1999., p. xv): “[...] a dificuldade de tratar a edição dessa obra inacabada constitui o fato de ela ser realmente um esboço de uma obra, o testemunho do método de trabalho de Kant que ressurgiria na edição das Reflexionen: isto é, um método caracterizado pela busca por constantemente refinar as expressões linguísticas das ideias propostas, o que leva a repetições que [nesse contexto de um mero esboço] podem se tornar irritantes para o leitor”.
  • 7
    Förster (1993_____. “Kant’s Opus postumum: translation, critical introduction, commentary and notes”. New York: Cambridge University Press, 1993., p. xvii) conclui, a partir desse comentário de Schultz, que a sua “[...] consideração do texto não foi de modo algum desenvolvida com profundidade”. Essa avaliação de Förster parece ter o seu fundamento na interpretação que ele desenvolve nos seus trabalhos posteriores - os quais serão considerados na última seção deste trabalho -, a saber, que o Opus postumum apresenta, na força do seu intento metafísico, uma antecipação do idealismo posterior a Kant.
  • 8
    Repetido em Kant (OP, AA 21: 52): “Deus, o mundo e a totalidade dos seres apresentados em um sistema no ponto mais alto da filosofia transcendental” e Kant (OP, AA 21: 59): “O ponto mais alto da filosofia transcendental no sistema das ideias: Deus, o mundo e o homem no mundo”.
  • 9
    Compreende-se, com isso, também o fato do manuscrito conter muitas anotações sobre elementos da rotina privada de Kant. Como, para dar um exemplo, o registro de detalhes do cardápio que ele solicitaria ao seu serviçal para dois dias da semana: “Quarta-feira: ervilhas espessas com porco. Quinta feira: frutas secas com pudim e, também, salsichas de Göttingen trazidas por Nicolov” (Kant, OP, AA 21: 071). Para muitos comentários, esse e outros trechos do tipo são um indício explícito da senilidade do autor do manuscrito. Tendo presente que, em nenhum momento do texto, Kant executou o último passo do seu rigoroso processo de trabalho - a saber, “transcrever, finalmente, o texto em uma forma limpa definitiva” para levá-lo a público - parece justo conceder a ele uma breve pausa da sua ocupação transcendental para, na privacidade dos passos preliminares, fazer registros que assegurariam a sua metódica rotina empírica.
  • 10
    Ousa-se dizer que Félix Duque parece ter feito, nesse preciso e escrupuloso trabalho, a melhor edição e a melhor tradução do manuscrito do Opus postumum. Isso, basicamente, por dois motivos: (i.) ele procura traduzir a integralidade do manuscrito quanto aos volumes XXI, XXII e as folhas adicionais publicadas no volume XXIII da Akademie. Eckart Förster que, em 1993, também realiza uma boa tradução do Opus postumum à língua inglesa, faz, contudo, uma série de recortes no texto original, sendo eles indicados por colchetes; (ii.) ele segue, diferentemente da edição da Akademie, os princípios editoriais que Erich Adickes, o consagrado editor dos Nachlaβ kantianos que, durante quase quatro décadas, dedicou-se ao exímio estudo de todos os detalhes da grafia e da datação dos escritos kantianos. No verão de 1916, Adickes viajou a Hamburg e, em quatro semanas de inspeção do manuscrito, reestabeleceu um roteiro de ordem cronológica dos vários fascículos que se encontravam desordenados. O porquê da desordem do manuscrito e da infeliz ausência de Adickes como seu editor será considerado na argumentação que se segue nesta seção do trabalho.
  • 11
    Na obra Kant’s final synthesis, Förster também assume que, “[d]e acordo com a primeira Crítica, [...] o entendimento é o começo da razão” e defende que, no Opus postumum, está operante uma concepção de filosofia concorde com a posição expressa em uma frase que Hölderlin teria escrito a Schiller em 1797, a saber, “[e]u considero a razão como o começo do entendimento” (Förster, 2000_____. “Kant’s final synthesis: an essay on the Opus postumum”. Cambridge: Harvard University Press, 2000., respectivamente pp. 149 e 148). Vale apenas dizer que assumir que, na Crítica da razão pura, “o entendimento é a origem da razão” é, por si só, a reconfiguração - para não dizer, a desconfiguração - da filosofia crítica.
  • 12
    Respectivamente, os títulos dos capítulos 7 e 8 do livro da obra The twenty-five years of philosophy: “O ‘empreendimento crítico’: incompleto” e “‘A completa revolução do modo de pensar’ de Fichte”.
  • 13
    A posição kantiana é, de fato, sistematicamente retratada em Kant, MS_____. (1797) “Metaphysik der Sitten” [MS]. In: Akademie Textausgabe, Bd. 06. Berlin/New York: de Gruyter, 1968. Trad. José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011., AA 06: 207: “Quando, pois, alguém anuncia um sistema de filosofia como sua elaboração própria é como se dissesse que antes dessa filosofia não tinha existido nenhuma outra. E se quisesse admitir que tinha existido uma outra (e verdadeira), então haveria sobre os mesmos objetos duas espécies verdadeiras de filosofia, o que é em si mesmo contraditório. Quando, portanto, a filosofia crítica se anuncia como se antes dela não tivesse existido filosofia alguma, não faz nada de diverso do que fizeram, farão e devem mesmo fazer todos aqueles que constroem uma filosofia segundo um plano”.
  • 14
    O alvo de crítica desse comentário, pelo menos quanto às suas últimas palavras, parece ser claramente Fichte. Conforme pode ser confirmado nas palavras de Kant, que são relatadas por Johann Friedrich Abegg, a partir da visita deste àquele, no dia 1º de junho de 1798: “Fichte te coloca uma maçã diante da boca, porém não te permite prová-la. Isso se resume à questão: mundus ex aqua? Situa-se sempre nas generalidades, sem, porém, apontar um exemplo se quer; e isto sim é o pior: nem mesmo poderia dá-lo, porque aquilo que corresponde aos seus conceitos não existe” (Kant, Br, AA 13: 482 apud Duque, 2001_____. “Islas en la laguna del sistema: La relación de Kant con Fichte y Schelling en el Opus postumum”. Signos filosóficos, 5, 2001, pp. 11-46., p. 24).
  • 15
    O trecho completo da ‘Erklärung in Beziehung auf Fichtes Wissenschaftslehre’ é este: “A filosofia crítica deve se sentir convencida, por meio da sua incontrolável tendência para satisfação da intenção tanto teórica quanto prático-moral da razão, de não estar iminente a qualquer mudança em caráter de opinião, a quaisquer melhoramentos ou ulteriores aperfeiçoamentos de construção teorética, mas de que o sistema da crítica, jacente a um fundamento assegurado por completo, é garantido para sempre e é, também, para todas as épocas futuras, indispensável para os fins supremos da humanidade”. Tradução do autor.
  • 16
    No contexto desse comentário de Hall, cabe determinar, pelo menos quanto ao problema do sistema da filosofia, a “a natureza da lacuna na filosofia crítica de Kant bem como a sua relação com o projeto da passagem”. Em duas cartas, do ano de 1798, Kant faz referência a uma lacuna (Lücke) no seu pensamento: (i.) “[a] tarefa [Aufgabe] [...] com a qual eu me ocupo agora deve ser completada ou então permanecerá uma lacuna no sistema da filosofia crítica” (Kant, Br, AA 12: 257 - Carta a Christian Garve, de 21 de setembro de 1798); (ii.) “[...] com aquela [...] a ocupação crítica estará concluída e uma lacuna que permanece aberta será fechada” (Kant, Br, AA 12: 258 - Carta a Christian Kiesewetter, de 19 de outubro de 1798). A intenção de interpretar essa ‘lacuna’ no sentido da passagem entre os domínios teórico e prático da razão é dissuadida, por Kant, ao especificar a referida tarefa da obra na qual ele trabalhava: na carta a Garve, Kant diz que ela “[...] concerne à ‘Passagem dos princípios metafísicos da ciência da natureza à física’” (Kant, Br, AA 12: 257) e, do mesmo modo, na carta a Kiesewetter, que ela consiste “[...] na passagem dos princípios metafísicos da ciência da natureza à física” (Kant, Br, AA 12: 258). Nesta carta, Kant diz ainda que tal tarefa “[...] não pode ser deixada fora do sistema” (Kant, Br, AA 12: 258. Negrito adicionado).
    A partir do que Kant assegura em cada uma dessas cartas, compreende-se que não seria a sua tarefa no Opus postumum garantir um sistema da razão mediante uma passagem entre os domínios teórico e prático. Esse sistema já fora, por ele, construído no único modelo filosoficamente exequível, a saber, como ‘sistema da filosofia crítica’. A ‘lacuna’, que completaria esse sistema, diz respeito - a partir do que Kant havia garantido como suas duas tarefas no período posterior à terceira Crítica, a saber, a redação “da metafísica da natureza e a dos costumes” (Kant, KU, X) e especifica nas cartas acima - à conclusão das suas investigações no que se refere a uma “metafísica da natureza”.
    Como garantem estes trabalhos: (i.) Edmundts (2004EMUNDTS, D. “Kants Übergangskonzeption im Opus Postumum: zur Rolle des Nachlaβwerkes fur die Grundlegung der Empirischen Physik”. Berlin: de Gruyter, 2004., p.2): “[m]inha abordagem é baseada em uma tese [...]: o Nachlaβwerke de Kant persegue o projeto de uma fundamentação filosófica das ciências empíricas. Mesmo que esse projeto se refira ao conhecimento científico, ele se encontra também distante das discussões físicas por submetê-las a um exame filosófico”. (ii.) Ureta (2006URETA, J. M. “La idea de sistema en el ‘Opus postumum’ de M. Kant” (Tese - Doutorado em Filosofia). Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, 2006., pp. 37-38): “[u]m aspecto muito importante elaborado por Kant em seu O.p. será responder a pergunta, como é possível a física enquanto ciência? [...] O conceito de ‘passagem’ tem como finalidade alcançar um todo unindo dois âmbitos diversos. Esses dois âmbitos são as leis a priori das ciências naturais e as leis da experiência”.
    No sentido dessa determinação do significado sistemático do termo ‘lacuna’ (Lücke), cabe destacar a singularidade de Félix Duque que, em sua tradução do manuscrito à língua espanhola, prioriza o título que o próprio Kant teria dado à obra: Transición de los principios metafísicos de la Ciencia Natural a la física.
  • 17
    Vale ler, no contexto deste último aforismo, os seguintes comentários: (i.) Guyer (2000GUYER, P. “The unity of nature and freedom: Kant’s conception of the system of philosophy”. In: S. Sedgwick (ed.), 2000, pp. 19-53., p. 20): “[a]s inúmeras referências de Kant a Spinoza nos seus últimos escritos só visam a enfatizar a diferença entre a sua própria teoria da sistematicidade do pensamento humano como um produto do juízo reflexionante e o que ele considerou ser a metafísica monista dogmática de Spinoza tal qual reavivada por Schelling e seus seguidores. Os filósofos de Schelling e a sua geração podem ter adquirido o gosto por um sistema único e abrangente de todos os aspectos da realidade a partir de Kant, mas eles se rebelaram contra a sua [de Kant] restrição de tal sistema ao domínio do juízo reflexionante ou de meras ‘ideias’”. (ii.) Perin; Klein (2010PERIN, A; KLEIN, J. “O conceito de filosofia em Kant: uma tradução e um comentário”. Analytica, 2010, pp. 165-196., p. 180): “Kant considera a filosofia de Espinoza como o grau mais alto do misticismo, pois ela defende que existe apenas um único ser, sendo que todo o resto se constitui como uma modificação dele. O espinosismo se constitui como uma metafísica dogmática e se apresenta como uma continuação da escola neoplatônica, podendo ser caracterizado como uma teosofia mística”.
  • 18
    Nesse sentido, Pecere (2015PECERE, P. “The systematical role of Kant’s Opus postumum: ‘exibition’ of concepts and the defense of transcendental philosophy”. Con-textos kantianos, 1, 2005, pp. 154-175., p. 154), “[...] conclu[i] que o novo projeto pretendia fornecer não uma reforma, mas um complemento necessário às obras anteriores”.
  • 19
    Félix Duque (1983, p. 586), parece justamente reconhecer que a sua posição interpretativa se constitui como um “conjunto de compreensão” que não tem primazia argumentativa sobre os demais: “[...] certamente, teremos aqui sugestivos indícios de resposta à grande pergunta kantiana ‘o que é o homem?’ (Logik, IX, 25; cf. também KrV, A 805/B 833). O homem como cópula entre Deus e o mundo (XXI, 27), como dono do mundo (XXI, 38), submetido contudo ao dever (XXI, 54), quer dizer: habitante de ambos os mundos (XXI, 29), deveria ter sido a grande Ideia mediadora que teria constituído o territorium do Sistema de todas as passagens (uma concepção muito fecunda, que aponta à Vermittlung hegeliana). Contudo, são somente sugestões não desenvolvidas”. Outros comentários prudentes ao Opus postumum, embora não façam esse reconhecimento de forma explícita, são levados à construção de uma argumentação de caráter supositivo. Tal é o caso de Guyer (2000GUYER, P. “The unity of nature and freedom: Kant’s conception of the system of philosophy”. In: S. Sedgwick (ed.), 2000, pp. 19-53., p. 19), na sua defesa de que, nesse manuscrito, “Kant estava aparentemente tentando unificar as suas filosofias teórica e prática num único sistema das ideias da natureza e da liberdade. Nessa obra, Kant parece ter pretendido mostrar que a constituição da natureza mediante as nossas formas da intuição e do entendimento deve ser compatível com o conteúdo da lei moral e a nossa capacidade de agir de acordo com ela, enquanto representada pela nossa ideia de Deus como um legislador supremo, porque ambos os conceitos da natureza e a ideia de Deus têm o seu fundamento comum no próprio pensamento humano”. Negritos adicionados pelo autor deste trabalho.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2020
  • Aceito
    10 Set 2020
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