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A química no Brasil de hoje

Chemistry in today's Brazil

Resumo

This article surveys the birth and development of the chemical community in Brazil in the last 50 years. Starting from humble beginnings, a vigorous community developed and rapidly expanded the scope of its activities across the country. Many problems remain unsolved, however, and to these have now been added dismal government policies which threaten to dwarf many of the accomplishments obtained thus far. Brazilian Chemistry is at the threshold of a new age which will be far different from the previous half-century.

Brazilian Chemistry; science policy; scientific development


Brazilian Chemistry; science policy; scientific development

OPINIÃO

A química no Brasil de hoje

Carlos A. L. Filgueiras

Departamento de Química Inorgânica - Instituto de Química - Universidade Federal do Rio de Janeiro - CP 68563 - 21945-970 - Rio de Janeiro - RJ

Recebido em 3/4/98; aceito em 22/10/98

Chemistry in today's Brazil. This article surveys the birth and development of the chemical community in Brazil in the last 50 years. Starting from humble beginnings, a vigorous community developed and rapidly expanded the scope of its activities across the country. Many problems remain unsolved, however, and to these have now been added dismal government policies which threaten to dwarf many of the accomplishments obtained thus far. Brazilian Chemistry is at the threshold of a new age which will be far different from the previous half-century.

Keywords: Brazilian Chemistry; science policy; scientific development.

As relações entre a Química e o Brasil têm passado por altos e baixos ao longo do tempo. A institucionalização da Química no país levou muito tempo e ainda é irregular, vivendo em parte à mercê do humor ou da sensibilidade dos governantes do momento. Já disse uma vez a revista Science em artigo sobre a ciência em geral no Brasil:

"O governo, até recentemente, não tem concedido ajuda bem direcionada e contínua em favor de investigações científicas, embora tenha por muitos anos mantido, com expensas consideráveis, departamentos científicos em todas as instituições de ensino.... Devido à má organização ou ao apoio insuficiente, os resultados científicos destes esforços foram, entretanto, de pequeno valor." E mais adiante: "Por um longo período, o que passava por ciência no Brasil foi caracterizado por uma ausência quase completa de pesquisa.... Mesmo hoje há muitas reputações sem qualquer base real em trabalho original de mérito"1.

O trecho acima foi tirado de um artigo sobre a ciência no Brasil publicado em Science há 115 anos, em seu primeiro volume, de 1883. Quando o descobri, há cerca de 20 anos, a descrição feita ainda tinha alguma atualidade; o ambiente científico mudou tanto no país nesses últimos anos que o relato não serve mais nem como caricatura.

O ensino regular de Química no Brasil começou ao tempo de D. João VI, assim como alguma atividade de pesquisa, de âmbito muito limitado. A situação não sofreu progressos consideráveis ao longo do século 19, e a Química era vista apenas como disciplina ancilar ao estudo de outras especialidades, como engenharia, medicina ou farmácia. Os primeiros cursos destinados precipuamente à formação de químicos só surgiram nas primeiras décadas do século 20, em várias escolas e universidades emergentes pelo país afora. Ensinava-se a Química já estabelecida, com a finalidade de formar profissionais capazes de dominar processos analíticos ou sintéticos, de transformação ou controle, importantes na indústria nascente que se instalava no país. Contribuições originais, experimentais ou teóricas, à ciência química, eram quase inexistentes. Uma importante exceção foi o trabalho sistemático de pesquisa que se instalou na nova Universidade de São Paulo a partir da década de 30, conduzido por químicos importados da Alemanha. Todavia, esta era uma atividade excepcional e mesmo anômala no Brasil. Apesar do pioneirismo daqueles pesquisadores iniciais da USP e de seus primeiros discípulos, o país como um todo continuava impermeável à idéia da necessidade de se fazer pesquisa científica. Não havia quase nenhuma sensibilidade, em virtude da ignorância científica da população, sobretudo da elite. Esta ignorância pode ser vista com freqüência ainda hoje, como demonstra o episódio seguinte. O Estado de Minas Gerais possui muitas dezenas de indústrias siderúrgicas. Ao lado de meia dúzia de indústrias de grande porte, existem muitas outras de porte pequeno ou médio. Durante a execução de um diagnóstico dessas indústrias conduzido pelo Departamento de Química da UFMG há alguns anos, quando perguntados a respeito dos problemas técnicos encontrados em suas fábricas, quase invariavelmente os proprietários das usinas de menor porte mostravam surpresa e respondiam que não tinham nenhum problema. Questionados um pouco mais, acabavam confessando não terem problemas para resolver porque, quando surgiam dificuldades, mandavam buscar um pacote no exterior. Esta atitude, além de demonstrar ignorância, encerra também um certo sentimento de inferioridade: ciência e tecnologia são coisas que não medram abaixo do equador. Aliás, basta perguntar ao brasileiro médio o que é um cientista e ver o resultado. Já fiz esta pergunta muitas vezes a meus alunos de graduação e as respostas são as mais disparatadas. Quando replico que um cientista é um cidadão comum, que recebe seu salário por trabalhar na proposição e resolução de problemas científicos, sou encarado como Colombo pondo um ovo em pé. Confronte-se essa postura de nossa população com o orgulho que se nota em cidadãos de muitos países com vasta tradição científica, ao falar de suas instituições ou de seus cientistas e suas realizações como coisa natural e corriqueira.

Outro aspecto importante da dificuldade em institucionalizar a ciência no Brasil foi, durante inúmeras décadas, a descontinuidade das ações, programas e instituições. A História da Química no Brasil mostra-nos a persistência de um problema estrutural que desafia a passagem do tempo e os regimes políticos: a falta de continuidade dos organismos, das políticas, dos programas, das instituições e das atividades científicas. Para mim, uma característica importante da ciência brasileira era, até bem pouco tempo, seu caráter fragmentário e descontínuo. O padrão recorrente era o seguinte: de tempos em tempos um cientista brilhante ou um grupo de cientistas se destacava e iniciava um trabalho importante em alguma área, cercando-se de discípulos e freqüentemente fundando instituição ou escola de pensamento. O brilho de suas realizações era reconhecido, às vezes amplamente, para, algum tempo depois, tudo voltar à situação inicial. A sociedade acientífica gosta do brilho efêmero e considera-o como um confeito de bolo, um ornamento social, mas nunca algo essenciale imprescindívelà vida e ao progresso dessa mesma sociedade. Para alcançar esse progresso, o que é efêmero deveria tornar-se permanente, constante, recebendo continuamente as atenções e a dedicação de gerações de equipes de pesquisadores em trabalho comum, com garantia de financiamento e avaliações periódicas.

Foi preciso esperar que a conscientização da necessidade da pesquisa amadurecesse para que ações concretas pudessem ser levadas a cabo. O período do pós-guerra testemunhou esse amadurecimento, ao menos em parte, em decorrência da demonstração, no campo militar, do que podem fazer a ciência e a tecnologia. A constatação do atraso em que se encontrava o Brasil, com a própria idéia de criar universidades mal saída do nascedouro, sem qualquer programa estabelecido de fomento ao desenvolvimento científico, era um sinal gritante de que estávamos condenados a uma regressão econômica, social e intelectual se nada fosse feito. Felizmente o alarme foi ouvido por pessoas sensíveis, que tinham o poder de intervir e tentar modificar a situação. Assim, em 1951 foram criados o Conselho Nacional de Pesquisas e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Essas duas agências surgiram para promover e direcionar a formação de cientistas em nível pós-graduado, fomentar a pesquisa através de apoio financeiro e formular uma política nacional de desenvolvimento científico e educacional. É bastante ilustrativo ler hoje o ensaio sobre a vida e a obra do Almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, fundador e primeiro presidente do CNPq, publicado recentemente2. Várias instituições importantes também foram criadas nesse período, como o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e a Comissão Nacional de Energia Nuclear, que tiveram papel destacado na promoção da pesquisa científica e, sobretudo em sua fase inicial, na descoberta e incentivo de novos talentos científicos. Ao lado desses órgãos, importantes organizações não governamentais, como as sociedades científicas, das quais a mais importante naquele momento foi a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, fundada em 1948, fizeram coro no sentido de começar a mudar o panorama nacional nesse campo. Os progressos foram lentos a princípio; afinal, tratava-se de criar um corpo de cientistas, de instituições de pesquisa, de introduzir a prática da pesquisa científica regular nas universidades, de formar pessoas de alto nível no maior número possível de especialidades e, acima de tudo, de começar a mudar uma mentalidade arraigadamente acientífica, petrificada por séculos de atraso intelectual e social.

Apesar de todos os obstáculos, houve grandes avanços, e ao cabo de duas décadas, ou seja, ao início dos anos 70, havia evidência palpável de progresso. Vários cursos de pós-graduação já funcionavam regularmente, e ganhava corpo a idéia de que a pesquisa devia ser encarada como uma necessidade, como proclamavam as universidades, após a reforma universitária de fins da década de 60. Já começava a permear a comunidade universitária o conceito generalizado de que a criação do conhecimento era um dos dois pilares sobre os quais se deve assentar a instituição universitária, não mais bastando apenas a atividade, importante todavia, da transmissão do saber. Nessa época eu estava afastado da universidade, em licença para realização de doutorado no exterior. Quando regressei, em 1972, deparei com uma realidade muito diferente daquela que deixara, pelo menos em nível institucional. Não mais havia cátedras, o núcleo acadêmico era o departamento, havia sido estabelecida a obrigatoriedade de realização de pesquisas pelos professores, etc. A reforma não foi feita sem traumas; lembro-me bem de vários docentes em situação aflitiva por serem obrigados, de repente, a começar a exercer uma atividade de pesquisa com que não tinham familiaridade ou experiência. Não obstante, houve na maior parte dos casos uma certa dose de compreensão e tolerância, que permitiu a muitos reciclar-se num tempo até generoso. Hoje, em retrospecto, o que àquela época poderia ser tomado como permissividade, na realidade foi talvez uma forma sábia encontrada, sem premeditação, para efetuar uma mudança tão drástica. Oxalá a atual era de intolerância, que freqüentemente prejudica as relações acadêmicas, pudesse aprender um pouco com a forma com que se conduziu a política de reforma universitária daqueles anos.

Enfim, ao longo das décadas de 70 e 80 as atividades de pós-graduação e pesquisa se desenvolveram extraordinariamente no país. Houve apoio político e financeiro para esse desenvolvimento, que se traduziu num notável crescimento quantitativo e qualitativo da ciência brasileira, em particular da Química, que nos diz respeito mais de perto.

Entre os fatores do êxito do CNPq, sobretudo, como condutor da política nacional de ciência e tecnologia nas décadas de 70 e 80, estiveram o apoio financeiro decidido aliado à implantação do sistema de avaliação pelos pares, exercido por comitês assessores e consultores ad-hoc pertencentes à própria comunidade científica. O sistema de comitês assessores, implantado a partir de 1976, teve uma enorme importância no estabelecimento de julgamentos e alocações de recursos com base no mérito, e não no clientelismo.

Um dos indicativos da importância política que se atribuía ao progresso científico foi a publicação, em 1974, de um Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PBDCT)3, como estratégia de governo. Este tipo de planejamento era considerado tão importante que em 1976 foi elaborado um segundo plano, sucessor do primeiro4. No mesmo ano de 1974 foram profundamente reformulados a Finep e o CNPq, que a partir dessa data funcionaram por muitos anos como agências eficazes e eficientes de promoção do desenvolvimento científico, em consonância com as diretrizes do PBDCT. O documento do PBDCT publicado para a área de Química mostra como o panorama existente na época era diferente daquele que se verifica hoje. Mesmo considerando alguma imprecisão nos levantamentos realizados, os dados publicados, que refletiam a situação de dezembro de 1973, revelavam a existência de um total de 144 doutores em Química nas universidades brasileiras, assim como de 118 estudantes de doutorado. Comparem-se estes dados apenas com o número de doutores que comparecem às reuniões anuais da SBQ, e se terá uma noção da mudança profunda que se operou.

Em 1996 havia no Brasil cerca de 80.000 profissionais da Química, dos quais 50.000 técnicos e 30.000 de nível superior, entre químicos e engenheiros químicos. Destes profissionais, um pouco mais de 1.600 tinham o título de doutor, e 90% dos doutores estavam nas universidades 5.

É bom não esquecer que o Brasil está entre os dez países no mundo com a maior indústria química instalada, e que a instalação desta indústria foi importante na criação de empregos e de riqueza interna, assim como na obtenção de divisas pela exportação. Isto não teria ocorrido sem o grande aumento na formação de químicos de todos os níveis, assim como de profissionais de áreas em que a Química desempenha um papel fundamental. Desta maneira, as instituições brasileiras que se dedicam à formação de químicos e profissionais afins têm sabido cumprir bem sua função neste aspecto. Todavia a grande indústria química brasileira dedica-se principalmente à produção de materiais relativamente menos elaborados e fabricados em grande quantidade, como produtos petroquímicos, monômeros, polímeros, etc. A participação da Química Fina, em que são fabricadas quantidades menores de produtos de grande valor agregado, ainda é muito modesta no país. E esta, além de necessitar de capitais e vontade política para se implantar, não pode prescindir de cientistas de alto nível para se desenvolver.

A formação de doutores até agora tem sido crescente; para avaliar a evolução, basta confrontar os números mais recentes: em 1995 formaram-se no país cerca de 150 doutores em Química; em 1996 o número subiu para 170; em 1997 estima-se que se tenham formado 200 novos químicos com o grau de doutor6. O rápido progresso verificado no Brasil foi notável, sobretudo ao considerarmos que saímos praticamente do nada. O primeiro doutor a ser formado num curso de doutorado em Química foi o primeiro Presidente da SBQ, Prof. Simão Mathias que obteve seu título em 1942 na USP. A institucionalização da pós-graduação em sua forma moderna, porém, só viria a ocorrer em meados da década de 60, na UFRJ e em seguida em várias outras universidades. Hoje existem, de acordo com a avaliação da CAPES, 36 programas de Mestrado e 25 de Doutorado no universo da Química brasileira. Nenhum desses cursos tem conceito D ou E, e 38 daqueles programas apresentam conceito A ou B7.

No ano de 1974 foi publicado pelo MEC o documento relativo ao Plano Nacional de Pós-Graduação, que viria a ser implantado durante o qüinqüênio 1975-19808. Este plano, elaborado em consonância com o PBDCT, procurava fazer uma análise pormenorizada do estado da pós-graduação no Brasil e estabelecer procedimentos e metas para sua consolidação e crescimento. Os números fornecidos acima mostram que efetivamente a pós-graduação cresceu de forma impressionante no país, embora com irregularidade na distribuição geográfica, refletindo até certo ponto as enormes diferenças regionais do Brasil. Um segundo Plano Nacional de Pós-Graduação viria a ser elaborado para o período 1982-19859, estabelecendo uma seqüência de planos pela CAPES.

A partir de 1979 foi estabelecido o Programa Nacional de Química (Pronaq), com objetivos ambiciosos, mas que não funcionou a contento nem obteve o resultado desejado de causar um grande impacto no desenvolvimento da Química brasileira. A experiência adquirida nesse programa, contudo, foi depois repassada ao PADCT, que obteve certo êxito, embora cercado de controvérsias por vezes amargas, numa época em que já começava a grande retração dos programas de balcão do CNPq.

Também na década de 70, é importante lembrar, foram iniciados pela CAPES e pelo CNPq processos de monitoramento e avaliação das atividades sob responsabilidade dessas agências, com o objetivo claro de tentar corrigir os rumos, direcionar ou incentivar, onde necessário, na pós-graduação e na política científica de fomento à pesquisa. A iniciativa da CAPES foi a mais bem sucedida, resultando no atual sistema de avaliação periódica dos cursos de pós-graduação. Desde o início este sistema de avaliação foi baseado na consulta aos pares, visitas aos cursos por comissões de especialistas, análise de todos os aspectos referentes às atividades de pós-graduação, envolvendo instalações, recursos bibliográficos, de equipamentos e materiais, qualificação e desempenho dos corpos docente e discente, etc. O sistema de avaliação da pós-graduação, como se sabe, desfruta hoje de grande credibilidade na comunidade acadêmica. Compare-se a isso a imposição do provão como único critério de peso na avaliação da graduação, para se aquilatar a decadência das políticas educacionais da atualidade.

No âmbito do CNPq, foram coletados dados periodicamente, a partir de meados da década de 70, entre a comunidade científica, cujos representantes se reuniram várias vezes com a finalidade de elaborar os documentos intitulados "Avaliação e Perspectivas", dos quais o primeiro seria publicado em 197710. A este primeiro documento se seguiriam vários outros. Apesar de o processo ter ocorrido de forma tão democrática como aquele levado a cabo dentro da CAPES, o sistema de avaliação da pesquisa no CNPq nunca funcionou a contento. Muitas foram as causas, entre elas a dificuldade de se julgar a qualidade das pesquisas, sua adequação, impacto e, talvez mais importante, a incapacidade de formulação e de implantação de diretrizes de investigação científica bem estabelecidas pelos departamentos e institutos universitários. Não obstante, a tentativa de realizar esse trabalho no âmbito do CNPq foi interessante, ao menos para evidenciar a dificuldade de levá-lo a cabo. Esta é uma tarefa que necessita ser feita, mas que é difícil e trabalhosa. Isso não significa que seja impossível ou que não se deva fazê-la. O mesmo se pode dizer da avaliação dos cursos de graduação.

Para dar uma ligeira idéia da verdadeira revolução que se operou nas últimas décadas, dou um testemunho pessoal. Quando fiz meu curso de graduação em engenharia química, na década de 60, não tive um só professor que possuísse sequer o mestrado, embora tivesse excelentes docentes cuja dedicação e seriedade em grande parte compensavam a falta de oportunidade de terem feito estudos pós-graduados.

Chegamos ao limiar da virada do século numa situação bem diversa. Há que acrescentar o extraordinário desenvolvimento e atuação das sociedades científicas. No caso da Química, a Sociedade Brasileira de Química, fundada há 21 anos, tornou-se hoje a maior sociedade científica do país, com cerca de 4000 sócios, e uma atuação marcante, cujo sinal mais visível são os vários congressos por ela organizados e suas quatro publicações periódicas regulares. Entre os congressos, podem-se destacar reuniões de três naturezas distintas: a Reunião Anual, os Congressos Temáticos e as Reuniões Regionais. As publicações consistem no Journal of the Brazilian Chemical Society, Química Nova, Química Nova na Escola e o Boletim da SBQ.

Uma outra forma de encarar o que se fez nessas poucas décadas é comparar a situação brasileira com nossos vizinhos latino-americanos. O Brasil entrou na atividade científica em situação de absoluta inferioridade. Vários países latino-americanos dispunham de universidades vetustas e de passado glorioso, algumas datando do primeiro século da colonização espanhola. A Escuela de Minería do México teve papel destacado na Química do século 18, podendo-se apontar a descoberta do vanádio como uma contribuição importante da Química que lá se praticava no período colonial. No México o livro de Lavoisier foi traduzido para o espanhol e publicado pouco depois de sair na França, antes mesmo de ser traduzido na Espanha. Apenas como curiosidade, ele é inédito até hoje em português. Por tudo isso, o Brasil, com escassa tradição científica, cuja primeira universidade de funcionamento contínuo com o nome de universidade só se criou em 1920 no Rio de Janeiro, merece ser encarado como tendo conseguido vencer um imenso desafio e criado um grande edifício científico, muito bem alicerçado, em menos de 50 anos.

Não sou ufanista, nem quero entoar loas a respeito de pretensas maravilhas. O que fiz até agora foi simplesmente expor a situação do ponto de vista da evolução ocorrida no período considerado. Muitas mazelas existem, e pretendo abordá-las aqui.

O grande edifício do sistema nacional de ciência e tecnologia tem apresentado rachaduras cada dia mais visíveis nos últimos anos. Hoje em dia não há diretrizes visíveis para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Os velhos planos do passado podem e devem ser criticados. Mesmo cheios de equívocos, porém, eles representaram uma afirmação de querer desenvolver a ciência e a tecnologia no Brasil. Essa afirmação foi acompanhada de ações concretas e gerou um crescimento muito significativo em termos tanto qualitativos como quantitativos. Hoje seria o momento de continuar esse crescimento com as correções de rumo necessárias. Ao invés disso, todavia, o que se vê é um vácuo quase absoluto de políticas e ações firmes de fomento. O CNPq não funciona como o condutor da política científica nacional, como se esperaria. A velha praga da falta de apoio contínuo e decisivo ao fomento científico tem sido uma constante na atual década, crescendo significativamente nos anos mais recentes. Os órgãos tradicionais de fomento do governo federal estão em retração, e os minguados recursos liberados não são suficientes nem sequer para manter a capacidade instalada de pesquisa, muito menos para atender à crescente demanda representada pelos novos pesquisadores que chegam. Os julgamentos de projetos de pesquisa tendem a tornar-se cada vez mais um jogo das cadeiras, com um número reduzidíssimo de assentos e uma imensa multidão em pé. A retração dos órgãos federais de fomento se deu sem que se viabilizasse qualquer outro esquema de apoio à pesquisa que os sucedesse com a mesma envergadura. As fundações estaduais, com a possível exceção de seu protótipo, a Fapesp, não têm fôlego suficiente para arcar com as responsabilidades tradicionalmente afetas aos órgãos federais. Com isso, corre-se o risco de sucatear a capacidade instalada dos estados brasileiros, à exceção de São Paulo. Não preciso dizer do perigo, em termos de desenvolvimento nacional, de permitir a consolidação de uma assimetria tão gritante entre as unidades da federação. No entanto, às vezes tem-se a impressão de que o que se assiste seja até parte de um plano algo sinistro. Os constantes alertas, apelos e reclamações dos cientistas e educadores, das sociedades científicas, das universidades e institutos de pesquisa não encontram guarida nos ouvidos insensíveis dos detentores do poder. O perigo aludido também diz respeito, e de perto, ao próprio Estado de São Paulo, que se veria alvo de intensa pressão por parte da comunidade do resto do país, gerando um ambiente de intranqüilidade e desconfiança.

A palavra de ordem, o modismo dos imediatistas é a palavra mágica "mercado". Parece que não se pode fazer mais nada no país se não atender às exigências momentâneas do mercado. Na área educacional e científica a insensibilidade poderá conduzir-nos a um desastre irreparável. Com relação apenas à questão das universidades, nenhum Governo moderno pode ignorar que a universidade deve não somente satisfazer à necessidade de formar bons profissionais para o mercado existente naquele dado momento histórico, mas também buscar sempre ir além de seu tempo ou de suas contingências. Em suma, a tarefa que se deve exigir de uma universidade digna desse nome é não só transmitir o conhecimento de forma eficiente e eficaz, formando profissionais do melhor nível possível, mas também criar novos conhecimentos, através da pesquisa científica, de modo a estar sempre além das demandas pontuais do mercado de trabalho. Se a universidade não mantiver uma posição de liderança da sociedade estará fadada a se transformar num arremedo de universidade. Já se mostrou anteriormente como os cursos de Química instalados no país têm contribuído para a formação da enorme mão de obra especializada, seja de nível técnico ou superior, que supre as imensas necessidades da Química brasileira. O extraordinário aumento ocorrido nas últimas décadas não teria sido possível se não houvesse ocorrido uma notável expansão quantitativa e qualitativa nas atividades de pesquisa e de pós-graduação. Com efeito, essas atividades, em adição aos frutos imediatos da investigação científica em si, desenvolvem em educadores e educandos um espírito crítico e uma tomada de consciência que dificilmente seriam observados em escolas cujos professores fossem apenas repetidores do conhecimento desenvolvido alhures. É importante ressaltar que existe uma falsa dicotomia contrapondo a pesquisa fundamental à pesquisa tecnológica. A distinção que se deve fazer, ao contrário, é entre pesquisa de alta qualidade e de baixa qualidade. Nenhum país pode prescindir de fomentar a pesquisa de alta qualidade, e é necessário repetir que ambas as vertentes, fundamental e tecnológica, se complementam. Assim tem sido entendido nos principais países do mundo em que a visão histórica do desenvolvimento social e econômico não é apenas imediatista. Para dar apenas um exemplo, se o Programa Brasileiro de Álcool não tivesse degenerado no oceano de corrupção que o enlameia, seria um excelente caso de estudo para mostrar como a pesquisa fundamental e tecnológica poderiam andar juntas de forma continuada, envolvendo estudos de Engenharia Genética, Microbiologia, Agronomia, Química, Engenharia Química, etc.

Muito se fala, na atualidade, da oportunidade de privatizar as universidades públicas, ou de torná-las semi-privadas. Isto é visto pelos defensores da idéia como uma medida arrojada, de modernização e alívio para os cofres públicos de despesas consideráveis, fomentando a transformação das universidades atuais em instituições competitivas, atuando em perfeita sintonia com o mercado. Ora, esta é uma idéia no mínimo pueril, que não resiste à menor análise. Primeiro, como já foi apontado anteriormente, se as universidades se restringirem apenas ao ensino, em pouco tempo o nível deste cairá e desaparecerá a vivência de resolver problemas novos e inusitados. É como a diferença entre um aluno ter uma aula prática de laboratório ou desenvolver um projeto original de investigação. O primeiro caso consistirá numa repetição de experimentos já testados anteriormente e que fatalmente darão certo no prazo de uma aula, se o aluno proceder corretamente. No segundo caso, porém, a situação é bem diversa, e o estudante estará confrontando um problema inédito, que exigirá dele o desenvolvimento da capacidade de avaliação e decisão em cada etapa, até chegar a um resultado satisfatório no final.

Supondo agora que o que se queira sejam universidades privadas que também se dediquem à pesquisa, como ocorre comumente nos Estados Unidos, por exemplo, é também ingênuo supor que a atividade de pesquisa nessas instituições correria por conta de financiamentos privados. Mesmo nos Estados Unidos, onde existe uma fortíssima tradição de mecenato, inexistente no Brasil, a maior parte dos financiamentos da pesquisa provêm de fontes públicas, como a National Science Foundation, os National Institutes of Health, os vários ramos da administração direta, incluindo-se aí o Departamento de Saúde e Bem-Estar, o Pentágono (Departamento de Defesa), e um sem-número de organizações governamentais e para-governamentais. A pesquisa contratada é de natureza tanto fundamental como tecnológica. Ademais, várias universidades daquele país (públicas e privadas) reservam um certo montante em dinheiro para os novos professores contratados. O valor desse "enxoval" pode ser freqüentemente da ordem de US$250.000 para dois anos, ao cabo dos quais o professor deverá demonstrar que os recursos foram bem aplicados, caso contrário seu contrato não será renovado.

No Brasil de hoje, palavras ocas e propaganda há em demasia; ação resoluta, muito pouca. O que se vê em termos de apoio à pesquisa são apenas promessas vagas, sem nenhum ato concreto de peso que corrija os descaminhos por onde caminha o fomento à ciência brasileira. Basta mencionar o caso do PADCT. Este surgiu como um veículo especial, digno de muitos elogios, concebido como um programa auxiliar e adicional ao sistema normal de fomento do país. Contudo, acabou transformado de fato no único programa federal de fôlego, já que tanto o importante sistema de balcão do CNPq como a Finep não são hoje senão uma pálida versão do que foram outrora. Isto acabou pervertendo o sentido original do PADCT, que passou a ser uma arena de disputas ferozes, muitas vezes com forte conotação política, entre um número cada dia maior de pesquisadores em luta pelos minguados recursos disponíveis, face a uma demanda gigantesca. Em números absolutos as cifras disponíveis no PADCT ou no Pronex podem até impressionar os mais incautos. Os valores são porém irrisórios face ao enorme crescimento da comunidade científica brasileira e a suas necessidades, se se quiser de fato inserir o Brasil no número dos países desenvolvidos cientificamente. Alega-se que os pesquisadores deveriam buscar financiamento na indústria, já que existem incentivos fiscais para isto. Ora, não se muda uma cultura industrial de uma hora para a outra. Eu próprio conheço muito bem a dificuldade que envolve a interação com a indústria. Embora seja preciso reconhecer que a cultura existente precisa ser mudada, e que nós devemos trabalhar nesse sentido, isso não significa que as fontes oficiais podem ou devem ser descartadas, como algo já superado. Isso não ocorre em nenhum país desenvolvido cientificamente, onde o financiamento oficial é indispensável. Basta mencionar o papel fundamental da National Science Foundation no fomento à pesquisa universitária nos Estados Unidos. Há pouco, dizia-me um químico daquele país que um dos critérios para se conseguir "tenure", a estabilidade no cargo de professor universitário americano, é a capacidade demonstrada de obter auxílios financeiros da NSF. Se esse tipo de critério vigorasse no Brasil, imagine-se o que aconteceria, com o CNPq do jeito que está.

Situação análoga se passa hoje no tocante às bolsas em todos os níveis. A retração que já se pratica está tornando cada dia mais difícil a vida dos cursos de pós-graduação e dos programas de iniciação científica. Somando-se a isso a acachapante política salarial do governo atual, será cada dia mais difícil persuadir os estudantes a dedicar-se a uma carreira científica. Como conseqüência, corre-se o risco de desfazer em poucos anos o belo edifício a que me referira antes, e que é motivo não só de orgulho nacional como de admiração por nossos vizinhos. Esta foi, por exemplo, a impressão unânime dos presidentes das sociedades de Química de vários países latino-americanos que participaram da 19 Reunião Anual da SBQ em 1996. Os equivocados que se pretendem tão modernos mas desconhecem a importância do investimento em ciência e educação de qualidade, desconhecem também que no mundo moderno o conhecimento é o bem mais valioso de uma população. A destruição, ou ainda pior, a desmoralização do sistema de ciência e tecnologia é uma tarefa relativamente fácil de conseguir, se não se reverterem as tendências atuais. Muito mais difícil será restaurar o edifício, se os abalos sofridos continuarem ainda por muito tempo.

Além da insensibilidade oficial, há que se considerar também outros aspectos da vida acadêmica atual. Há duas décadas proclamava-se que no dia em que as universidades tivessem todo o seu corpo docente titulado, com todos os professores ostentando o título de doutor, viveríamos uma era maravilhosa, com a pesquisa e o ensino caminhando juntos num progresso contínuo e harmonioso. Hoje, quando esse antigo sonho já é uma realidade quase absoluta num grande número de departamentos de Química, convém averiguar então se vivemos, como o Doutor Pangloss de Voltaire, no melhor dos mundos possíveis. Todas as utopias têm suas falhas, e esta não foi nenhuma exceção. Embora a pesquisa científica se tenha desenvolvido extraordinariamente, nem sempre este desenvolvimento contribuiu diretamente para o ensino de graduação. Se se considera então o que as universidades fizeram ou fazem pelos graus anteriores de escolaridade temos uma verdadeira tragédia. Existe um desdém muito grande por esta área, que deveria ser da alçada das universidades como objeto de reflexão e de ação, considerando a capacidade e a responsabilidade social das instituições superiores, além da própria importância desses níveis educacionais anteriores como fornecedores de universitários. Contudo, até os próprios cursos de graduação são às vezes desprezados por excelentes pesquisadores, numa postura equivocada e perigosa para a própria estabilidade da estrutura universitária e, conseqüentemente, de suas carreiras científicas.

É pertinente mencionar o problema da evasão dos cursos de graduação em Química, que oscila em torno de uma média nacional tão alta como 50%. Este é um dado importante que bem retrata a delicadeza da questão, e tem desafiado o tempo. Será que os cursos são irreais, ou será que existe um descompasso muito grande entre a relativa facilidade de passar num vestibular para Química e a dura realidade do rigor inerente ao próprio curso? Ou serão outros fatores?

Chegamos enfim a uma época de enorme complexidade em nossa vida de cientistas e participantes da vida acadêmica. Longe está a era da inocência, das certezas ou das políticas transparentes. A tônica de hoje é a perplexidade em face dos desafios múltiplos que nos assolam. Que fazer? Em primeiro lugar, há que reconhecer a multiplicidade dos problemas, mas também que resolvê-los é tarefa que pode e deve ser buscada. Em segundo lugar, essa resolução será tarefa custosa e demorada, e só se poderá conseguir com grande competência, união e tenacidade da comunidade científica. Precisamos de nos unir num objetivo comum, confessadamente político, para conseguir reverter, nem que seja gradualmente, as atuais políticas de governo, que estrangulam a nós e à ciência brasileira, e que se não forem mudadas levarão fatalmente o Brasil a um desastroso retrocesso. Nossa união deverá manifestar-se também num empenho maior em influir positivamente em todos os níveis de ensino em que a Química tome parte, assim como no setor industrial, e em qualquer atividade que diga respeito direta ou indiretamente à Química. Isto deve ser entendido não apenas como uma estratégia política, mas como uma verdadeira ideologia posta em ação, que traduza a certeza de que acredito estarmos todos persuadidos, qual seja, a crença de que o cultivo e o desenvolvimento da Química são essenciais para o progresso e o bem-estar do país. Esta será sem dúvida uma tarefa árdua, no atual ambiente de insensibilidade nos círculos hegemônicos que formulam as diretrizes para a nação. De fato, vivemos hoje o grande equívoco pelo qual a elite dirigente considera a educação de qualidade e em níveis avançados, assim como a prática da pesquisa científica luxos dispensáveis. Privilegia-se a importação de pacotes de toda natureza, de equipamentos e materiais os mais diversos, mas não seu desenvolvimento aqui. Assistimos a uma inversão no rumo da História recente, em que o reacionarismo pretende reduzir-nos novamente à condição anterior ao último meio século. O perigo dessa situação é óbvio: destruir o que foi lenta e penosamente construído é relativamente fácil; como já disse e repito, difícil será juntar os cacos e refazer tudo de novo, caso o processo em curso não seja detido. É espantoso que nem os governos militares ousaram tanto; muito ao contrário, é forçoso reconhecer que alguns deles demonstraram extraordinária sensibilidade à necessidade de desenvolver a investigação científica no país, embora tivessem também desprezado ou mesmo perseguido as ciências humanas e sociais.

Ao lado de todo o esforço acadêmico e político, há que fazer mais ainda. Precisamos desencadear, como indivíduos e instituições, junto com nossa Sociedade Brasileira de Química e as várias sociedades congêneres, um processo intenso de divulgação científica e educação da população leiga. Sem alguma forma de conscientização do público, para que ele possa opinar a respeito do apoio de que a ciência precisa, o progresso será muito mais lento e difícil. É sempre bom lembrar que até há algumas décadas a consciência da necessidade da ciência estava longe de ser uma unanimidade, mesmo nos meios universitários. Ademais, trazer a ciência até à população em geral é uma tarefa importante que nos compete como integrantes e participantes de uma minoria que teve acesso à educação científica em todos os seus níveis. Trata-se aqui não de descobrir futuros cientistas, mas de disseminar a cultura científica entre cidadãos comuns, de alfabetizá-los cientificamente. O surgimento de vocações científicas será uma possível conseqüência dessa atuação, mas não sua motivação. Sendo a Química a ciência mais central, por tratar de todas as manifestações da matéria e das trocas de energia nas transformações sofridas por ela, cabe aos químicos um papel destacado no processo de levar a ciência até os cidadãos. Se criticamos aqueles que negam apoio a nosso trabalho de investigação científica, não nos podemos omitir sob pena de sermos acusados de incoerentes e desprovidos de espírito social.

O trabalho junto à população, se bem conduzido, poderá resultar numa conseqüência benéfica e importante para toda a comunidade científica. Se conseguirmos conquistar o público para a idéia de que fazer ciência é não só bom como indispensável, e que é motivo de orgulho nacional ter um grande número de cientistas e instituições ativos em pesquisa, o status social de nossa atividade e o nosso próprio tenderão a crescer, e poderemos ser mais influentes nas decisões políticas. Em suma, a mudança de mentalidade que ocorreu nas universidades há 30 anos com relação à prática da ciência precisa agora ser estendida ao resto da nação.

Gostaria ainda de abordar uma outra faceta importante relacionada a nossa profissão. Estamos ainda muito apegados a produzir nas universidades, sobretudo nos cursos de pós-graduação, clones de nós mesmos. Dada a pouca idade de nossa pós-graduação seria até absurdo se assim não fosse. Todavia, é chegada a hora de uma reflexão a respeito dos rumos da pós-graduação e de nossa profissão em geral. Já está demonstrado que é possível produzir no Brasil doutores em Química de excelente qualidade, em muitas áreas distintas, em vários cursos de pós-graduação e em diferentes pontos do país. Como se mencionou anteriormente, em 1997 formaram-se 200 novos doutores em Química no Brasil. O que há de ser deles? Já que nós somos responsáveis por sua formação, temos também responsabilidade com relação a seu futuro. Não podemos simplesmente persuadir alunos brilhantes a vir trabalhar por 4 anos, ou às vezes até mais, em belos projetos de pesquisa que depois de concluídos não lhes permitam a ascensão profissional que eles com toda razão desejam. Este é um problema delicado, cujos contornos já se delineiam no horizonte e que precisa ser pensado com urgência, pois encerra o potencial de uma crise tão grave como aquela da falência do fomento. Com a recente situação de corrida às aposentadorias e a contratação de novos professores pelas universidades, os departamentos de Química apresentam corpos docentes de idade média relativamente baixa. Isto significa que novas contratações deverão escassear cada vez mais, sobretudo nas maiores universidades. A conseqüência já pode ser vista nos concursos de admissão de professores, cada vez mais acirradamente disputados, numa concorrência em que freqüentemente muitos dos candidatos rejeitados são de alta qualidade. O que fazer com os excluídos e com os novos doutores que chegam continuamente? Dizer-lhes "muito obrigado pela colaboração, mas a vida é assim, e agora o problema é seu"? Não sou favorável a uma postura suicida de avestruz. O que fazer então com essa gente? Bem, temos que admitir que muitos dos novos doutores em processo de formação não terão oportunidade de conseguir ser clones de seus orientadores, ou seja, de serem professores universitários e orientadores, por sua vez, de novos doutores. A questão está ligada ao papel que doutores em Química podem exercer na sociedade. Em nosso país, este papel tem sido bastante limitado às atividades estritamente acadêmicas, em decorrência da absoluta escassez desses profissionais nas universidades brasileiras até bem pouco tempo. Só casos muito excepcionais fogem a essa regra. Uma sociedade que queira ser desenvolvida necessita, porém, de pessoal altamente qualificado numa enorme variedade de postos e situações. Em primeiro lugar, existem muitas instituições de nível superior que ainda ocupam uma posição secundária no panorama nacional, comparativamente àquelas que se desenvolveram primeiro. Um processo de elevação da qualidade acadêmica dessas instituições deve ser uma preocupação importante para nós. E aí temos um campo adequado à ampliação das oportunidades para nossos ex-alunos. Estes estarão numa situação de pioneirismo análoga àquela que vigorava nas grandes universidades há 30 anos. Este processo, contudo, só tem possibilidade de êxito se for amparado pelas autoridades das áreas educacional e de fomento à pesquisa, ou seja, depende de uma mudança radical nos hábitos recentes com que essas áreas têm sido tratadas. Por isso, é necessária uma grande conscientização e trabalho da comunidade acadêmica como um todo em favor dessa iniciativa. Outra faceta relevante a ser mencionada é que a colaboração científica entre colegas (não o colonialismo) é essencial à consecução desse objetivo. Uma vez que os recursos não serão abundantes, pelo menos em curto prazo, precisam ser usados da maneira mais eficaz. Por isso a colaboração e a interdisciplinaridade, aliás tão importantes na ciência atual, são benvindas, por mais este motivo. Em segundo lugar, a indústria instalada no Brasil emprega muito poucas pessoas com a qualificação de doutor. Muitas vezes isso se dá por ignorância. Aqui está um campo em que também muito pode ser feito, já que as relações acadêmico-industriais ainda são bastante tímidas e limitadas no Brasil. Outras áreas, só para citar aquelas mais próximas da realidade acadêmica de hoje, são o ensino de qualidade em todos os níveis e a divulgação científica, mencionados anteriormente. Antes que se desdenhem essas duas sugestões, convém mencionar que alguns países altamente desenvolvidos, como a Grã-Bretanha, possuem um sistema de divulgação científica para o público em geral de altíssimo nível, conduzido por profissionais do mais alto gabarito. E este trabalho goza de grande prestígio social. Quanto ao ensino, deve-se lembrar que o trabalho no curso secundário gozava no passado de prestígio praticamente igual àquele no nível superior. Refiro-me especificamente ao status social dos professores e a seus níveis salariais. É claro que a situação deteriorou muito com o tempo, mas não será tempo de que nos ocupemos também desses assuntos? Se admitirmos que precisamos exercer alguma atividade política em favor da ciência, fica claro que não podemos deixar de nos ocupar com esses assuntos. Ou será que pretendemos ser espíritos puros que não têm tempo a perder com coisas tão comezinhas?

Estas são algumas reflexões pessoais a respeito da situação da Química no Brasil. A Química é, porém, tão complexa e abrangente que freqüentemente tive que enveredar por outros caminhos a ela relacionados. Espero que os leitores compartilhem algumas de minhas preocupações e que a situação de dificuldade por que passamos no momento venha a ser revertida. Isto, no entanto, não nos será dado gratuitamente e sem esforço. Ao contrário, estou convencido de que só com muito trabalho e dedicação é que conseguiremos chegar à grande virada.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Set 2000
  • Data do Fascículo
    Fev 1999

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 1998
  • Aceito
    22 Out 1998
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